O planeta Bergman

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CARLOS ARMANDO MAGALHÃES LOPES nasceu em Belo Horizonte, a 17 de novembro de 1939. É crítico e ensaísta há mais de 20 anos, tendo artigos publicados em vários jornais do país. Atualmente, mantém uma coluna de cinema no Diário de Minas, é colaborador do "Caderno Dois" do Diário da Tarde e dedica-se às promoções dos cinemas de arte Pathé e Roxy, como programador e divulgador. É autor da série "Os Grandes Clássicos", publicada no Diário de Minas, onde, em 200 artigos, faz um panorama da história do cinema através dos clássicos. Participou dos júris dos festivais de cinema brasileiro de Belo Horizonte (1968) e de Araxá (1975).

Carlos Armando

O Planeta Bergman Oficina de Livros ' 1988 Belo Horizonte


© 1988 Carlos Armando Magalhães Lopes Editoração/produção gráfica: Presser & Bertelli Consultoria Editorial Revisão: Carlos Luiz Pompe/Vera Lúcia Emídio/Javert Monteiro Capa: Luís Díaz N.º de catálogo: 0001 Direitos reservados: Oficina de Livros Ltda. Rua Tupinambás, 360, 12.° andar 30.120 — Belo Horizonte — MG — tel. 222-1577 Rua Maria Paula, 201, 11." andar, conj. 112 01319 — São Paulo — SP — tel. 37-9872

SUMÁRIO [Apresentação], 9 Trajetória, 19 O cinema sueco antes de Bergman, 93 O cinema sueco depois de Bergman, 105 O universo de Bergman, 125 Retrato do elenco, 139 Filme por filme, 163 A leitora mais lúcida do que o crítico, 287 Mãe-Poder, 295 Álida Pantuzza O que Bergman disse, 305 5


"A morte aparece no cinema, no caso de alguns diretores (Bergman, por exemplo), para exprimir as próprias angústias do ser humano face ao mistério da vida; no entanto, como diz o grande Bergman, 'ela é a única certeza'. E a nós, pobres mortais, só nos resta viver até o dia em que ela chegar. Retornar à vida depois da fatalidade, tornar-se um fantasma, só no cinema." Paulo Arbex Este livro é dedicado à memória de Paulo Arbex, pioneiro da crítica mineira e um dos precursores de Ingmar Bergman no Brasil, morto em circunstâncias trágicas na noite de 4 de janeiro de 1986. 7


O cenário é uma biblioteca. A sala é extensa, no fundo uma mesa ampla e um homem sendo filmado. A câmera aproxima-se lentamente em travelling. Agora já é possível distinguir alguns livros sobre a mesa: O conceito de angústia, de Soren Kierkegaard; A metamorfose, de Franz Kafka; O ego e o id, de Sigmund Freud; O sonho, de August Strindberg; Moby Dick, de Herman Melville; Crime e castigo, de Fedor Dostoievski; O velho e o mar, de Ernest Hemingway; Histórias extraordinárias, de Edgar Allan Poe... A câmera, em plano americano próximo, focaliza o homem de frente. Aproxima-se devagar em direção ao seu rosto. Já podemos ver as feições do homem: é velho, mas não aparenta a idade (65 anos) que tem; olhos fundos, mas vivos e investigadores; nariz e orelhas bem grandes; boca pequena; queixo curto; poucas rugas; testa vasta; cabelos grisalhos... De repente, um close-up do homem de perfil, seguido de outro close-up de frente. A câmera aproxima-se mais ainda do rosto do homem, dando a impressão de que vai atravessá-lo. Detalhes dos olhos, do ouvido, da fronte. . . Agora a câmera está tão perto que é possível distinguir os poros, os quais, vistos através da lente, dão a impressão de crateras. Neste instante o homem passa para uma mesa ao lado, em cima da qual tem um projetor. Apaga a luz e aciona a engrenagem da máquina que lança numa tela, no outro extremo da sala, imagens de um filme. Vemos uma ilha filmada do alto. A ilha é um pequeno e estranho planeta, com 113 km de extensão. Parece um lugar isolado, morto e inacessível. O plano se inverte, agora o filme nos coloca na ilha e enfoca o céu. O azul é recortado pelo cinzento. Há nuvens sombrias e ameaçadoras. Um céu de dramas, pesado, prenunciando malefício para os cavalos, carneiros, aves e um punhado de homens 9


abandonados lá embaixo. A música que sublinha estas singulares imagens é de Johann Sebastian Bach. Uma lenta caminhada da câmera sobre a ilha descobre montanhas, crateras, cavernas, florestas fechadas, colinas, antros tortuosos... O homem continua sentado à mesa e a penumbra da sala faz com que seu rosto confunda-se com o projetor. Na tela o filme continua. O rosto de uma mulher, um grito, um parto. A mão de um médico segurando um bebê pelas pernas. O cordão umbilical ligando a criança à mãe. Um homem num quarto branco deitado em posição fetal. Um menino andando por corredores e labirintos. Ele sobe uma escada em espiral. Rostos de mulheres, silhuetas de homens. Um pátio, crianças brincam, adultos observam. É uma escola. Numa sala de aula, um menino é castigado, professores com dedos em riste, rostos ameaçadores... Um trem avança célere por sobre os trilhos. Dentro, numa cabine, um casal troca carícias. Vista da janela do trem, a paisagem campestre parece se mover depressa e frêmita. Um túnel, a tela escurece. Num intertítulo lê-se uma frase de Kierkegaard: "Os mortais capazes de amar existem em pequeno número... e o sofrimento é grande". A tela clareia de novo. Um automóvel em uma estrada deserta. Dentro do carro, um casal discute, gesticula, não se entende. A paisagem agora parece desbotada. O sol em primeiro plano não aquece nem clareia, os ruídos sufocam. A natureza não é mais natural e mais esmagador é o eclipse da cena. Na trilha sonora, os acordes de Bach são substituídos pelo tique-taque de um relógio. Um velho puxa as cobertas e deita-se. A câmera se inclina sobre ele. O velho adormece, sonha... Vai para bem longe. A época parece ser a Idade Média. Cavaleiros, religiosos, bruxas queimadas vivas, a peste, um séquito de miseráveis, um horror atroz, e a Morte toda vestida de preto, o rosto branco, quase transparente de angústia e desespero, com a foice na mão ceifando vidas, silenciando gritos, matando almas. O velho acorda em sobressalto. Todos os tormentos do sonho lhe provocam o pior sofrimento. Mesmo assim o velho levanta-se e, imitando Santo Agostinho, agradece a Deus por ele não ser responsável pelo conteúdo de seus sonhos. De novo na tela um intertítulo que é uma frase de Kierkegaard: "É uma carga muito pesada para nós e Deus está tão longe! Eu não compreendo sua ausência, mas é preciso viver". 10 O rosto do velho é trocado pela face pálida de fadiga de um menino que se esforça para compreender o que diz um pastor protestante que prega do alto do seu imponente púlpito num estranho templo. O homem fala de Deus, do Diabo, da virtude, do pecado, do inferno, das trevas... A criança se sente acusada e foge correndo do templo. Corte. Um homem é interrogado entre quatro paredes por autoridades hostis. Querem saber o que ele faz, quanto ele ganha, em que e como ele gasta seu dinheiro. O homem é humilhado, ultrajado, insultado. Silhuetas furtivas deslizam pelos corredores do local, enquanto o homem foge para a rua apavorado. Lá fora uma paisagem crepuscular, um céu nublado ameaçador. O homem vai para casa. À noite não consegue dormir. Anda no escuro e no silêncio. Vai para um canto e recorda um episódio da sua infância. Vemos um menino fugindo correndo de um templo protestante. Atrás dele um homem, seu pai, um pastor. Em casa, para punir o menino, o pai o fecha num armário embutido na parede. Treva total, o medo, o pânico, o horror se apodera da criança, que passa horas dentro do armário e, quando sai, não pode suportar a claridade. Uma luz lancinante ilumina a tela. O homem agora está na ilha. Ele procura a solidão, a mais absoluta solidão. Olha uma parede branca que se transforma num álbum de retratos de sua família: seu pai, um homem austero, de roupas e ares religiosos; a mãe, de aparência meiga e submissa; seus filhos; suas mulheres, com quem se casou e de quem se separou, sempre procurando sua própria essência individual; o homem, ele mesmo, um artista em processo de purificação, que durante muitos anos man teve uma luta dolorosa contra si mesmo para que fosse possível fazer explodir sua realidade como ser humano, recriando-a no quadro de seu universo interior e expressando-a sobre o plano plástico. O homem está ali, entre o céu e a terra, isolado num pequeno e estranho planeta, circundado pelo mar. É um lugar cósmico, anônimo, de onde parece ter saído toda a vida, e não somente a vida humana. Na ilha, o homem olha para o céu, uma imensidão azul recortada pelo cinzento, há nuvens sombrias e ameaçadoras. . . Agora é o homem que está sendo olhado por aquele céu, insensível, indiferente, duro e impenetrável. O homem é filmado do alto. A câmera o abandona na ilha e sobe ao céu cada vez mais. Lá embaixo, ele é


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apenas uma figura na paisagem da ilha. Da altura em que o vemos, ele agora dá a impressão de ser apenas um inseto saído da literatura de Kafka. De repente, é apenas um ponto, até que não conseguimos mais enxergá-lo. Só o pequeno e estranho planeta cercado pelo mar torna-se visível. Assim como Gregor Sansa virou barata, o homem da ilha sai do contexto em que estava inserido, perde-se de vista no cenário que acentua seu isolamento, é reduzido ao nada pelo poder incomensurável, esmagador e absurdo do céu, mas metamorfoseia ele próprio num mundo interno, íntimo, particular, num universo interior, anímico, num planeta invisível. Acendem-se as luzes. A câmera colada ao rosto do homem se afasta lentamente em travelling. Recua até o fundo da sala e fica ali plantada, observando os movimentos do homem. Este passa para uma mesa ao lado, depois de pôr em ação, em sentido contrário, a engrenagem do projetor para recolher o filme à bobina. Na outra mesa tem outro projetor. O homem escurece novamente a sala e começa a projetar um novo filme. Na tela surge a imagem de um velho numa rua deserta e num tempo petrificado, em que os relógios não têm ponteiros, os homens possuem feições monstruosas e se derretem literalmente no chão a um simples toque seu, e um acidente com um carro funerário que deixa cair um ataúde de onde seu próprio corpo morto-vivo o puxa para a morte. A imagem muda para as paredes brancas e divisórias de vidro de um hospital. Médicos e enfermeiras de aventais brancos preparam um parto. Close num rosto de mulher que se contorce de dor. O parto está sendo executado mas a câmera não abandona o rosto da mulher. Um grito pungente seguido do choro da criança que acaba de nascer. A face aliviada da mulher quase que enunciando um sorriso. O rosto branco e trágico de um palhaço substitui o rosto da mulher. Ele narra um sonho para seu interlocutor: "Ouvi minha mulher me dizer: 'Você parece cansada e triste, venha descansar um pouco. Você será pequeno como um feto e dormirá no meu ventre'. Fiz como minha mulher disse, entrei no seu ventre e dormi como uma criança. Tornei-me cada vez menor e desapareci". No cenário melancólico da Idade Média, um cavaleiro que não tem medo da Morte lhe propõe uma partida de xadrez. Enquanto 12

jogam, estabelecem um diálogo. O cavaleiro se referindo a Deus: "Creio ir em direção a ele durante a noite mas é como se não existisse ninguém". — A Morte: "Talvez não haja ninguém". — O cavaleiro: "Então a Vida é um horror atroz. Ninguém pode viver com a Morte diante dos olhos sabendo que tudo é nada". — A Morte: "Você não desistirá nunca de colocar questões?". — O cavaleiro: "Não, nunca". — A Morte: "Mas você nunca terá resposta". — O cavaleiro: "Às vezes eu penso que as questões são mais importantes do que as respostas". Um trem cruza a tela estrepitosamente. Atravessa uma região estranha onde reina um clima de guerra ou de ameaça de guerra. Há tanques vindo em direção oposta. Dentro do trem, numa cabine sufocante, viajam duas mulheres e um menino em silêncio. Uma das mulheres, com um livro nas mãos, procura decifrar palavras de uma língua desconhecida. O trem desliza sobre os trilhos e atravessa um túnel. A tela escurece, mas logo torna-se clara de novo. Duas mulheres conversam, trocam confissões íntimas. Uma delas diz: "Podemos ser pessoas diferentes, uma ao lado da outra, ao mesmo tempo...". Agora a tela parece esfumaçada e ocupada por dois rostos de mulher que se aproximam um do outro até que se tornam um rosto único, mas duplo, metade da face de uma mulher, metade da face da outra, e a fusão das duas faces num só rosto. O preto e branco transmuda-se em cores brancas e vermelhas* predominância do vermelho do sangue, o vermelho do inferno, que se dissolve no rosto de uma mulher fixado pela câmera. A mulher agonizante grita de aflição. O grito repercute pela trilha sonora como um interminável eco. Enquanto duas mulheres desarvoradas fogem, outra se oferece para socorrê-la. Segura como uma criança o corpo da mulher que está morrendo. A roupa desabotoada à altura do colo, um dos seios à mostra. O corpo da mulher atravessado em cima de suas pernas. As vestes brancas das duas se confundindo. A face de sofrimento da mulher que está morrendo torna-se subitamente serena e, no momento exato da sua morte, uma luz extraordinária, mas natural, vem iluminar seu rosto. De novo preto e branco. A luz derrama-se sobre um palco onde uma bailarina de maquilagem lívida ensaia O lago dos cisnes. Colorido: ao som de uma flauta, um jovem e uma jovem atrevem-se a passar pelo corredor dos horrores, enfrentando a água e o fogo. Preto e 13


branco: uma jovem correndo sobre uma praia; um homem e uma mulher na cabine de um trem, ele lhe oferece um cigarro; uma jovem na rua fascinada pelas vitrinas e um velho que surge e lhe oferece um vestido branco suntuoso. Outra vez, cores: uma mulher recebe alianças retiradas do dedo de outra mulher morta; um homem e uma mulher assentados frente a frente numa mesa sobre a qual há uma garrafa de vinho e um prato de queijo, eles falam de amor, vida conjugai, se abrem, discutem. O ritmo do filme que está sendo projetado parece agora bastante acelerado. São flashes, pequenos pedaços de filmes montados sem nenhuma ordem que vão se sucedendo na tela. Alguns pedaços são em preto e branco, outros em cores. A fita escoa rápido pelas bobinas do projetor, uma desenrolando-a, a outra reco-lhendo-a muito velozmente. Numa mesa de jantar estão assentados vários convidados, homens e mulheres. Uma velha lhes serve um vinho que tem a fama de ser um filtro mágico que permite a todos que o bebem realizar seus desejos. A água pura e impetuosa jorra de uma fonte, nela uma mulher lava seu rosto. Cenas de um parto em imagens esfumaçadas de um pesadelo: coxas afastadas, pernas levantadas no ar, a mulher acordando e rindo sobre a mesa de operações, ao choro da criança que acaba de nascer. Cenas de um funeral debaixo de um céu vazio e frio; um pastor encomenda a alma da morta através de frases muito elaboradas. Um menino vê sua mãe entrar num quarto com um homem. Ele os espia por uma fresta, sente ódio e aflição. Imagens es-branquiçadas mostram uma mulher se banhando nua diante de um pelotão de soldados; o marido com o rosto pintado de palhaço experimenta a humilhação. Num quarto branco, um casal nu parece flutuar. Uma mulher com a vela acesa se instala diante do espelho. Na realidade ela está só, mas no reflexo do espelho sua imagem surge acompanhada de um homem que coloca as mãos em seu ombro e depois a abraça. Em outra imagem outro casal se interroga sobre a necessidade de envelhecerem juntos antes que seus rostos enruguem. Agora, em outra cena, um velho assiste à posse de sua mulher, que aparece em sua juventude, por outro homem. Espantado, pergunta: "Qual é o castigo?". — Alguém responde: "O de hábito, a solidão. Um homem isolado numa ilha anda de um lado para outro. Ali o 14 contato com os outros é impossível, a não ser um encontro consigo mesmo". Tentar dar uma significação global à obra de Ingmar Bergman, fazer uma síntese de seus elementos constitutivos, é antes de tudo deixar-se embalar por uma série de imagens-mães que deixaram em nossa mente um traço indelével, signo de uma potência visual extraordinária. São imagens, sempre marcadas por uma grande beleza plástica, que não constituem somente as fulgurações do estilo bergmania-no, mas imagens que trazem no interior de si mesmas a significação dos filmes e sobretudo sua tonalidade dramática, seu ritmo lento cortado por impulsos de emoções. "Sucessão de impulsos e de repousos", tal como Stravinsky definiu a música. Ver um filme de Bergman é meditar, é ir o mais fundo possível no âmago do ser humano, é viajar por um planeta estranho à procura de uma chave que possa abrir nosso próprio cárcere para nos libertar de nós mesmos, nos fazer sair das trevas, acendendo a chama para que possamos caminhar melhor no nosso mundo interior. Portanto, aqui o cinema é utilizado como instrumento de introspecção, como meio revelador de estados d'alma. Essa palavra alma, que é proferida de alguma maneira em todos os seus filmes, sem exceção, é a própria substância de sua obra. A alma dos personagens, invisível e abstrata que aparece, no entanto, nos espaços e nas formas, e sobretudo na expressão dramática dos atores, nos seus rostos filmados de perto. Rostos em sua terrível nudez, em sua beleza muda, traduzindo sentimentos. O que interessa é a alma, o rosto e o que está por trás do rosto. E o caminho para penetrar na alma de um ser humano começa pelo rosto. Se a obra de um artista se define pela fidelidade a uma temática, então esse artista é Bergman, o cineasta da alma, mas também o cineasta do corpo, da pesquisa gestual do corpo, da presença física de personagens integradas ao cenário, personagens que fazem avançar a ação na medida em que são colocadas em cena como no teatro. Suprime-se o palco, corta-se a distância, de modo que a diferença entre a vida e o cinema desapareça. Nada mais aristotélico e menos brechtiano que a direção de atores em Bergman. A simplicidade, a sinceridade, a "cotidianidade" de seus intérpretes, seu natural, seu natura15


lismo mesmo, antes do seu talento, é o que fascina os espectadores, que os levam, aliás, a olharem em seus espelhos. Cineasta intimista, artista abandonado por Deus, criança castigada pelo pai, recém-nascido que ainda não rompeu o cordão umbilical, Bergman costuma viajar pelo interior de si mesmo, penetrando na obscuridade de um longo túnel em busca de sua singularidade. Ele progride em linhas espirais, por labirintos que se fecham e se transformam em circunferências desesperadamente concêntricas. A impossibilidade fundamental de encontrar-se consigo mesmo conduz ao desespero e faz com que o homem não encontre a porta de saída. A arte de viajar por dentro das pessoas, eis uma das essências bergmanianas. A viagem como forma simbólica de atingir um objetivo, ou como um meio de estruturar o próprio filme. Uma lição de amor, Sonhos de mulheres, Morangos silvestres, O rosto são filmes de viagens. Como o é também e principalmente O silêncio, desde a primeira imagem do trem, dos compartimentoscélulas, depois por tudo o que vemos: a obscuridade do longo túnel, o cortejo lento dos tanques, a paisagem estranha. Do trem nós passamos ao hotel, uma prisão ainda, a despeito dos largos espaços. E fora do hotel é parecido com dentro: ruas, salas e sombras, paredes velhas, úmidas, manchadas, sombras de transeuntes, transeuntes que são sombras, silhuetas de homens que falam uma língua incompreensível, desconhecida, numa cidade que os geógrafos ignoram. O interior humano é um planeta a descobrir. É através das viagens constantes a esse mundo desconhecido que Bergman leva o espectador a profundas meditações de caráter metafísico. Em suas viagens, Bergman procura distinguir a vida exterior da vida interior, a vida estética da vida ética, depois de passar desta última a uma vida sobrenatural, para não dizer religiosa. Deus e o amor estão sempre presentes na obra do cineasta, mas se o amor existe como uma realidade no mundo dos homens, Deus permanece como uma dúvida, no seu silêncio e no seu mistério. É justamente afrontando esse silêncio e esse mistério que Bergman lança as suas interrogações e nos remete a uma responsabilidade interior, na qual nos apercebemos ser impossível exprimir o inexprimível, comunicar o incomunicável, traduzir o intraduzível. Cineasta da vida, cineasta do amor, cineasta da morte. Cineasta que vive o sonho e sonha com a vida, Bergman nos revela sobretudo 16 o que acontece por dentro das pessoas em seus gestos cotidianos e estados naturais: solidão, medo, sofrimento, angústia entre efêmeras pausas de alegria, segurança, satisfação, conforto. Cineasta dos interiores, a direção de atores em Bergman se orienta pela sua visão do mundo: intra-uterina. E abrange inclusive a nós, espectadores fechados numa sala escura onde é abolida a fronteira entre personagens e platéia. Procuramos a saída, mas não achamos a porta. A tela é um espelho que nos devolve a nós mesmos. Somos colocados diante de nossa própria irrealidade, abandonados entre a vida e a morte, somos em síntese mistérios insolúveis. Cineasta do flash back, Bergman vai ao passado e volta ao presente para contar histórias, rompendo com todos os convencionalis-mos materiais, abrindo novas e fascinantes possibilidades para uma aproximação antes nunca imaginada entre o espectador e o filme, tal como se dá no teatro. Cineasta da mulher, Bergman usa rostos e corpos femininos para falar da alma feminina, do interior da mulher, de onde irrompe a luz da vida e para onde o ser humano sente o desejo de regressar em busca de suas origens. 17


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Em 1956, durante o Festival de Carmes, os críticos franceses, estupefatos e surpresos, alardeavam a descoberta de um novo cineasta através de seu 16.° filme, Sorrisos de uma noite de amor. Só que, no seu entusiasmo, os franceses ignoravam, ou pelo menos fingiam desconhecer que Ingmar Bergman já havia sido descoberto pela crítica brasileira e mais particularmente pela imprensa especializada paulista, dois anos antes, durante o Festival de Cinema do IV Centenário de São Paulo, quando um outro filme seu, realizado antes de Sorrisos. .. foi aplaudido de pé pela platéia da qual fazia parte Walter Hugo Khouri, Ruben Biáfora, Rodolfo Nanni, os cariocas Ely Azeredo e Hugo Barcelos, e o mineiro Paulo Arbex. O título do filme era Noites de circo, e os franceses só o veriam em fins de 1957, quando a onda bergmaniana começava a atingir os Estados Unidos e o resto do mundo. Logo depois seriam lançados no Brasil, desordenadamente, outros filmes de Bergman, também ignorados em outros países, como Monika e o desejo (1951), Quando as mulheres esperam (1952), Juventude (1950) e Sede de paixões (1949), mantendo a crítica atenta e sensível à sua grande descoberta, cuja carreira havia começado em 1945 com Crise, história de uma jovem disputada pela mãe adotiva e pela mãe verdadeira, e, segundo Jacques Siclier, "um filme pessimista e revoltado, com influências teatrais". Observação que tem razão de ser porque, antes de ser diretor de cinema, Bergman havia estreado aos 20 anos de idade como diretor de teatro. Antes de Noites de circo, Bergman só era conhecido no Brasil por colecionadores de minúcias que descobriram seu nome como roteirista nos créditos de filmes como Tortura de um desejo (1944), de Alf Sjoberg e Eva e a tentação (1948), de Gustaf Molander, que constituíam raridades do cinema sueco lançadas ocasionalmente nas telas do país por exibidores que 21


ignoravam o valor artístico destas fitas e delas apenas pretendiam explorar o aspecto erótico. I Ingmar Bergman nasceu no dia 14 de julho de 1918, na cidade de Uppsala. Era filho de um pastor sueco, nomeado capelão da Corte Real. Sua infância foi marcada por uma educação religiosa que deixou profundas feridas. Tanto assim que seus filmes costumam tocar freqüentemente em problemas educacionais, falando de castigos e punições. A hora do lobo, por exemplo, traz à tona uma experiência verídica vivida por Bergman na infância: o pai, para reprimi-lo, trancava-o, durante horas, dentro de um armário. Dessa forma, a figura do pai, quando não está totalmente ausente, surge nos filmes de Bergman como um ser terrificante entre um juiz e Deus. "Fiquei à mercê de uma educação literalmente medieval, feita de maus tratos físicos e psicológicos que visavam destruir toda e qualquer manifestação natural de vitalidade", disse Bergman certa vez. Em Estocolmo, o lar religioso onde ele cresceu era um cenário de tranqüilidade — mas só na aparência. As regras desta casa, simples e severas, exigiam das crianças honestidade e correção. Ímpetos exagerados ou comportamentos exaltados eram coisas proibidas. Ao mesmo tempo, a cabeça do pequeno Bergman fervilhava de imagens e sonhos. Ele escutava seu pai falar, com aquela linguagem peculiar de um capelão, cheia de símbolos, verdades e segredos obscuros. Bergman foi entrando em contato com idéias de morte, nascimento, pecado, castigo e reconciliação. Ele escutava e olhava, ouvidos e olhos abertos. Mas não lhe era permitido expressar sua imaginação. Imaginar significava mentir, e as mentiras precisavam ser punidas. Suas tentativas de falar das experiências que se acumulavam em seu interior eram reprimidas e proibidas, constantemente, pelos adultos que o circundavam. Por fim, ele passou a se omitir, a se fechar. Ainda criança começou a gaguejar, e gago viveu durante anos. Aprendera com o pai que o diabo existia. Mas como era ele? Bergman conta como tentou visualizá-lo: 22 Foi quando a lanterna mágica entrou na minha vida, uma caixa pequena com uma lâmpada e com espelhos coloridos na parte interna. Lá ia o Chapeuzinho Vermelho e o lobo ameaçador, entre outros personagens. E o lobo era o diabo, um diabo sem chifre, mas com um rabo e bastante representativo do mal.

Com aquela lanterna mágica, sua imaginação se soltava a todo vapor. Ele podia parar o filme, cortar as partes, colá-las de novo em outra ordem e projetá-lo novamente. Ele era um mágico. Mas, na escola, não havia lugar para mágicos. É com terror que Bergman se recorda da escola e de seus professores: "Lembro-me do ódio. Eu odiava a escola, odiei-a desde o primeiro dia, quando fui empurrado através do portão principal, aos gritos até me jogarem na sala de aula". Ordens, autoridades e proibições, foi tudo o que conheceu em sua primeira experiência escolar. Então, o pequeno Bergman revoltou-se. Brigava com os colegas e chegou a puxar uma faca contra uma professora. Foi uma revolta incontrolada com conseqüências imediatas. Os professores reclamaram aos pais de Bergman. "Fui terrivelmente espancado, o que se tornou uma tal barreira, física e psicológica, que mudei completamente de comportamento." Foi por essa época — ele tinha 8 anos de idade — que Bergman sentiu a primeira forte repressão da sociedade. Ele mudou, tornou-se gentil, dócil, fazendo qualquer coisa para ser um bom menino, evitando assim o castigo. Tinha oito anos e aprendera que precisava ser hipócrita para ser aceito. Dentro dele, ódios, sentimentos de culpa e fantasias iam se estocando, fechados e incomunicáveis. Sua vida era uma mentira. A crise que veio com a adolescência foi violenta, cheia de confusas emoções de pecado e culpa. Adolescente, Bergman deixou a família e foi viver em Gamla Stam, um bairro de artistas em Estocolmo. Foi quando começou a se interessar pelo teatro e pela literatura, artes de que seu cinema iria absorver constantes influência?. Entre os autores da literatura nórdica, cuja influência foi inegável sobre Bergman, é imperioso assinalar August Strindberg, de quem ele herdou os personagens, as mulheres destruidoras e os homens destruídos. Sua filosofia se asse23


melha à do dinamarquês Soren Kierkegaard — o tema obsessivo da dúvida sobre a existência de Deus. Mas a predileção por temas tormentosos e o gosto pronunciado pelo fantástico existem em Bergman por influência de Victor Sjostrom, o grande realizador sueco do período silencioso, e também de Friedrich Wilhelm Murnau, o magistral cineasta expressionista alemão. Entrou para a universidade, mas ia ao cinema praticamente todas as noites. Aos domingos, pegava duas sessões. Era como um anesté-sico, uma maneira de prolongar aquela alegria que sentia em frente de sua lanterna mágica. Escutava as peças de teatro transmitidas pelo rádio e ia aos espetáculos de ópera. Mantinha-se praticamente isolado de seus colegas. Aos 17 anos de idade, Bergman teve uma experiência marcante, só revelada em 1977, quando o Ovo da serpente foi lançado em Paris. Confessou ele ao jornalista Michel Delain de UExpress: • Em 1936, eu estava na Alemanha. Vi Hitler durante as festas do partido nazista. Senti profundamente a lentidão, o peso que se desprendiam do entusiasmo que provocava. Além disso, morando com uma família cujos cinco filhos e duas filhas compartilhavam das idéias hitleristas, li uma gazeta que incitava ao antisemitismo. Foi um choque. Fui ver o dono da casa, um pastor, perguntando-lhe o que era aquele absurdo. Isso não se refere aos estrangeiros, ele me respondeu.

Quando, eclodiu a Segunda Guerra Mundial, Bergman estava de novo na Suécia, país que permaneceu neutro por milagre, medo ou conveniência, o que levou os intelectuais a assistirem, impotentes, o início da selvageria, contentando-se em escrever histórias em torno do tema da angústia. A respeito da neutralidade da Suécia na Segunda Guerra, Bergman declarou à revista francesa UExpress, em 1973, o seguinte: "Eis o que existe em nós de fascista. Em que situação os bons social-democratas que somos se podem transformar em fascistas convictos?". Aliás, sobre o assunto, fez o filme Vergonha (1968). Dele, Bergman afirmou: A origem de Vergonha vem de uma sensação de terror pessoal. Como eu teria me comportado durante a Segunda Guerra Mundial, se a Suécia tivesse sido ocupada pelos nazistas, se eu tivessse um posto de responsa-

24 bilidade na administração ou em outro lugar qualquer? Quanta coragem física poderia eu opor à violência física ou psíquica nessa guerra de nervos? Quando penso nesse assunto, chego sempre à conclusão de que sou um fraco, tanto física como psiquicamente, exceto talvez quando estou enfurecido.

Depois dos estudos secundários na Universidade de Estocolmo, Bergman dirigiu um grupo de atores amadores e montou, em 1938, sua primeira peça: Através de um porto livre, de Sutton Vane. Strindberg veio a seguir com A viagem de Pedro, o feliz (1939). Neste mesmo ano encenou Rapsódia de outono, de Doris Ronnqvist, e O homem que pôde reviver sua vida, de Par Lagerkvist. Em 1940, mais Strindberg, com A luva negra, Svanevit e O pelicano, além do encontro com Shakespeare, dirigindo uma versão de Macbeth. Na verdade, Bergman fez seu aprendizado teatral na cena profissional, predominando nesses primeiros tempos Strindberg e Shakespeare. Do maior dramaturgo de todos os tempos, ele ainda encenou Sonhos de uma noite de verão, em 1941, e do sempre requisitado Strindberg, montou no Teatro dos Estudantes O pai, e ainda em 1941, no Teatro das Sagas, A sonata dos espectros, peça intimista que parecia antecipar seu estilo de filmar voltado para o interior do homem. Não se contentando em dirigir peças dos outros, Bergman escreveu, em 1942, A morte de Gaspard, que foi representada no mesmo ano no Teatro dos Estudantes. Nessa época, ele já se interessava pelas obras de um seu homônimo sem nenhuma ligação de parentesco, o escritor e teatrólogo Hjalmar Bergman, o mais fecundo e o mais original dos autores dramáticos suecos do período 1910-1930, considerado o pai do teatro radiofônico, atividade que o nosso Bergman incorporaria ao seu currículo em 1951, quando escreveu para a Rádio da Suécia o texto (excelente, dizem) de Staden (A cidade), seguido de adaptações de diversas obras, notadamente de Strindberg, Jean Anouilh, Garcia Lorca, Musset, Herman Melville e Jean Cocteau, sem falar de suas próprias peças e algumas outras de Hjalmar Bergman. Desse autor, levou ao palco, em 1944, O Senhor Sleeman chega, aprendendo com ele a arte de tipificar os personagens como se fossem marionetes, além do segredo de criar uma espécie de humor amargo, onde o riso é quase sempre arrancado de situações angustiantes. Tal característica aparece com freqüência nas tragicomédias 25


que realizou nos anos 50: Quando as mulheres esperam, Uma lição de amor, Sonhos de mulheres, e até mesmo em Sorrisos de uma noite de amor, cujos cenários e costumes da Belle Êpoque foram inspirados em A viúva alegre, de Franz Lehar. A maioria do público não-escandinavo desconhece a atividade teatral de Ingmar Bergman. Para nós brasileiros, por exemplo, ele é apenas um grande cineasta. Porém, no seu país natal, ele é considerado em primeiro lugar como um "mestre do teatro", depois como um diretor de cinema. Certa vez, um jornalista perguntou a Bergman se ele tinha preferência por uma dessas formas de expressão artística. E a resposta veio seca e ambígua: "O teatro é minha profissão, o cinema minha vocação". Talvez, com isso, ele tenha afirmado que o mundo do teatro e o mundo do cinema são inseparáveis. O certo é que, depois de 1944, o teatro e o cinema passaram a coabitar na mente de Bergman, que até hoje alterna incessantemente as duas artes, quando não as mistura, e passa sucessivamente de uma linguagem à outra, de uma técnica à outra. II Tortura de um desejo, realizado por Alf Sjoberg em 1944, era um estudo lírico da adolescência, que de certo modo lembrava o famoso Senhoritas de uniforme (1931), da austríaca Leontine Sagan. Contava a história de um estudante, Jan-Erik Widgren, cujo destino prende-se ao de uma patética jovem de nome Bertha. Ao encontrá-la, uma noite, bêbada na rua, não sabe o rapaz que a moça é física e moralmente vítima de um professor do colégio em que ela estuda, a quem todos chamam "Calígula", espécie de tirano cujo sadismo o leva a torturar os jovens como compensação às suas próprias frustrações. Os dois jovens apaixonam-se profundamente, até que o típico egoísmo masculino de Widgren o leva a abandonar a moça, quando esta lhe conta que o monstro havia voltado. Um dia, desesperado, Widgren volta ao quartinho pobre onde vive, mas encontra Bertha morta, e em um canto, trêmulo de pavor, o odioso "Calígula". O rapaz acusa-o, mas não fora ele. Bertha morrera de alcoolismo, possivelmente de paixão. "Calígula" é solto pela polícia e retorna suas funções no colégio. Mas Widgren é expulso. Na acareação, em frente ao diretor, ele agride "Calígula", num acesso 26 de fúria. O final é carregado de tristeza, com a formatura dos colegas que Widgren, de um canto da rua, vê saírem alegres na chuva. A falta da jovem companheira; o contato direto com a miséria do mundo; o remorso de sua própria covardia; o sentimento pela expulsão do colégio; tudo isso abre no coração do adolescente uma ferida que dói em desconsolo, em arrependimento, em lágrimas. O filme termina com o amanhecer de um novo dia, e um dose de Widgren revela mais compreensão, experiência e alguma esperança. Com esse argumento e roteiro escritos por Bergmann, Sjoberg, cineasta de evidência no renascimento do cinema sueco nos anos 40, realizou um filme lírico e dramático de grande beleza plástica, muito elogiado pela crítica. E foi assim que Bergman, passando pelo corredor do teatro, abriu a porta que dava acesso ao cinema. Para começar, escolheu uma história sobre adolescentes, seres humanos que ele considera privilegiados porque eram alegres e estavam descobrindo o amor. Mas ele já sabia que esse amor é que iria tornar difícil suas vidas, à medida que eles fossem entrando no mundo adulto, cheio de códigos burgueses. As grandes linhas de inspiração do cinema sueco — escreveu Ado Kyrou em seu livro Amour, erotismo et cinema — são: misticismo, amores torturados, inextrincável mistura de pastores e prostitutas, garotas nuas e com uniformes do Exército da Salvação, que se encontram presas entre duas tendências contraditórias: um moralismo puritano e essencialmente hipócrita e um gosto pela sensualidade sadia e feroz. País jovem, a Suécia oscila entre o seu socialismo e as tendências reacionárias vindas de herança religiosa. Do mesmo modo que os cineastas suecos começam um filme, decantando através das imagens o amor no que ele tem de mais carnal, não há outra maneira de terminá-lo a não ser colocando sempre um antifinal feliz, onde a estrofe moral reconduz à trilogia Familia-ReligiãoConformismo.

Mesmo já tendo estreado na direção em 1945, com Crise, baseado na peça dinamarquesa O animal natural, Bergman continuou escrevendo roteiros para outros cineastas, três deles para Gustaf Mo lander (1888-1973), ex-roteirista de Sjostrom e Stiller, os patriarcas do cinema escandinavo, cuja carreira foi iniciada em 1920, pressuposto descobridor de outro Bergman famoso no mundo do cinema, a 27


atriz Ingrid que foi para Hollywood no fim dos anos 30, com a missão impossível de substituir outra sueca mais do que célebre, a mitológica Greta Garbo. Para Molander, Bergman elaborou as histórias de A mulher sem rosto (1947), A mulher e a tentação (1948) e Divórcio (1950). Alf Sjoberg voltaria também a realizar outro filme escrito por Bergman, O último par que corra (1955). Seis anos antes, Bergman havia também colaborado com Per-Anders Fogelstrom e Lars Erik Kjellgren no roteiro de Quando a cidade dorme (1949), fita dirigida pelo último. E seis anos depois, ao lado do ator Erland Josephson, ambos figurando nos créditos sob pseudônimos, Bergman auxiliou na confecção da história para O jardim dos prazeres (1961), um dos filmes que o ator Alf Kjellin, que havia feito o papel de Widgren em Tortura de um desejo, realizou depois de 1956, quando iniciou uma segunda carreira como diretor. No ano em que realizou o seu primeiro filme, Bergman teve uma intensa atividade no teatro: fez uma nova encenação de O pelicano, de Strindberg, no Teatro Municipal de Malmõe; em Halsing-borg, dirigiu Revista do Ano Novo, de Hjalmar Bergman; Moderando a moral, de Sune Bergstron; Jacobouski e o coronel, de Franz Wer-fel; Raízes, de Olle Hedberg, e sobrou tempo para ele mesmo escrever Rakel e o porteiro do cinema, que foi um esboço do primeiro episódio de Quando as mulheres esperam. Inspirado numa peça de teatro, Crise, o primeiro filme de Bergman, retomava de certa forma os temas de Tortura de um desejo, abordando a crise da adolescência e o conflito de gerações. Crise — anotava no seu livro sobre o cineasta sueco o crítico Jacques Siclier — descrevia, com uma amargura onde encontramos hoje sinais do cinema francês de antes da guerra (poderíamos dizer prevertianos), a descoberta da vida por uma jovem provinciana protegida por uma mãe adotiva, e cuja verdadeira mãe vivia com um homem debochado e sem escrúpulos, o qual naturalmente, depois de ter tentado seduzir a moça, se apaixona por ela. Desta encruzilhada de situações por vezes sórdidas, nasciam, num clima negro, as primícias da obra futura.

O próprio Siclier e outros críticos importantes de Bergman, como Jean Béranger e Rune Waldekranz, afirmam que o filme era dema28 siadamente lento e pesado, com o cineasta utilizando elementos de expressão teatral e se excedendo nos diálogos. Em 1946, nova tentativa, com Chove sobre nosso amor, que tinha como cenário uma Suécia pobre e suja, exatamente ao contrário de sua reputação de país socialmente evoluído. "David e Maggie — explica Jacques Siclier —, um homem e uma mulher sós e desesperados, encontramse numa estação de trem e decidem bruscamente, depois de passarem uma noite juntos, unir seus destinos." Mas, a exemplo de Crise, a fita era ainda teatral, pesada e simplória, segundo os mais abalizados especialistas em Bergman, entre eles Francis D. Guyon e os críticos uruguaios Thevenet & Monegal. O terceiro filme de Bergman, Barco para as Índias (1947), inspirado em uma peça de Martin Soderhjelm, ainda nas palavras do imprescindível Siclier, [... ] leva quase até a abstração o vocabulário poético simbólico dos dois filmes precedentes, acrescido ainda de empréstimos feitos à mitologia populista do cinema sueco tradicional, prostitutas, marinheiros, bêbados. t • • • ] O essencial da ação — continua Siclier — passa-se a bordo de um barco onde vive uma família, que se esforça por fazer desencarnar um cargueiro. Quatro personagens, o capitão do barco, sua mulher, seu filho e uma jovem de má vida por quem o dono do barco se apaixona; a jovem, por sua vez, está apaixonada pelo filho do capitão, que não tarda também a corresponder a essa paixão. A mãe, que tudo sabe, sofre em silêncio nessa história que esgota uma boa dose de situações dramáticas de causar frêmitos.

Os próprios apologistas de Bergman classificaram o filme de eficaz, mas irritante. Música na obscuridade (1947), o quarto filme de Bergman, foi extraído de um romance de Dagmar Edqvist e conta a história de um pianista cego, que a sociedade marginaliza, e do amor entre este e uma operária que o retira da solidão. Comentando a fita, Siclier assinala a presença de um herói romântico que, marcado pela fatalidade, transforma-se num herói existencial que talvez tenha lido Sartre ou pelo menos Kierkegaard. "E Bergman passa do herói à heroína sem esboçar variações dignas de relevo. Não chegou ainda o tempo em que a mulher se tornará o centro do seu universo [...]", 29



anos antes, com um jovem e tímido estudante. Ela agora ama um jornalista e o romance é conflituoso. Numa das cenas, o maitre de ballet com máscara e nariz postiço vai até o camarim da bailarina dizer a ela o que pensa da felicidade, ou o que pensa o próprio Bergman. Tudo termina com um bale, o que levou os críticos a perguntarem se Bergman não estaria afirmando que a vida é uma dança. Quando as mulheres esperam (1952) é um dos primeiros sintomas dos novos rumos que tomaria a obra de Bergman após a primeira manifestação de maturidade que foi Juventude. Poderíamos mesmo dizer que a fita é uma recapitulação de seus dez primeiros filmes e a apresentação de uma das novas linhas temáticas que passaria a adotar a partir dali: a da comédia, mas com elementos trágicos, característicos de sua personalidade, sabiamente distribuídos nos diálogos e situações. Nessa nova linha, Bergman faria Uma lição de amor (1954), Sonhos de mulheres (1955) e Sorrisos de uma noite de amor (1955), um novo marco de maturidade do autor, dentro de um gênero em que a Suécia se salientou desde os tempos de Erotikon (1920), de Mauritz Stiller. A narrativa desenvolve-se através de rememorações, a história conjugai de quatro mulheres que, durante as férias de verão, estão esperando seus maridos numa casa de campo. Enquanto esperam, as mulheres trocam impressões e fazem confidencias sobre sua vida íntima com os quatro homens, que são irmãos e constituem diversos tipos psicológicos. O filme é considerado como o primeiro de Bergman a fazer concessões nitidamente comerciais, mas nem por isso deixa de ser um profundo estudo da alma feminina, que analisa trágica e satiricamente os dramas advindos do casamento, dos quais a mulher é sempre a maior vítima, seja pelo desencanto, pela rotina ou pela frustração. A revolta da mulher e sua ânsia pela liberdade estão gravadas em Monika e o desejo (1952), onde a heroína recusa ser escrava de sua vida familiar: o pai acoólatra, a mãe suja e conformada, e mais quatro irmãos, todos vivendo em condições precárias. O sonho de Monika é fugir dessa vida que a asfixia. Isso acontece quando ela encontra Henrik, empregado de uma livraria, e ambos partem. Vão num barco para uma ilha distante, onde poderão respirar ar puro 32

e se amar em liberdade. Mas a euforia dos primeiros dias se transforma rapidamente em conflito, quando surge René para acabar com a felicidade do casal. Eles voltam para Estocolmo e Monika está grávida. Acabam se casando, a criança nasce. Mas Monika não foi feita para a vida conjugai. Abandona o marido e o filho. No início do filme, Monika aparece num cinema encantada com a história que está vendo na tela. "No cinema, as pessoas são felizes... " Monika está mergulhada no sonho, escapando assim por alguns minutos das vicissitudes da realidade. Doce ilusão que a sociedade fabrica para que os seres, principalmente os jovens, acreditem que é possível viver livre, feliz, em contato com a natureza, imagem da sociedade ideal, sem problemas. A liberdade, porém, na realidade, não existe, porque se choca diretamente com essa mesma sociedade que impõe aos seres obrigações morais, códigos e padrões de comportamento que tolhem aspirações, desejos e instintos. Por isso, na última cena, só resta a Henrik, solitário, sonhar com a imagem de Monika se banhando nua. IV Quando partiu para realizar Noites de circo, Ingmar Bergman tinha 34 anos. Estava saindo da juventude, uma juventude inquieta e apaixonada, comungando com a natureza as suas alegrias e dando aos sentidos o máximo de expressão. Se alguém chamasse os seus filmes, desta época, de "naturalistas" ou "poéticos" não seria de estranhar. Era também a fase que ele começou a trabalhar com Har-riet Andersson, atriz bela e invulgar, que possivelmente ele amava em silêncio. Noites de circo marca um parênteses sombrio numa fase em que o realizador parecia menos amargo. Aqui ele tenta inserir no seu cinema a narrativa tradicional do espetáculo. O filme conta a história de paixões humanas que se entrechocam dentro de um circo, com o clássico triângulo amoroso e um final pungente: o homem derrotado pretende suicidar-se, mas acaba descarregando o revólver no velho urso do circo. E a vida continua... De novo, como em Monika e o desejo, Harriet Andersson volta a interpretar a jovem mulher sensual e provocante. Insucesso comercial na Suécia em seu lançamento, em 1953, Noites de circo fracassou nas bilheterias de outros países europeus,


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em sua retardada estréia, quatro anos mais tarde, justamente por se tratar de um filme absolutamente negro e sem nenhuma concessão. Numa entrevista aos Cahiers du cinema (n.° 61, julho de 1958) Bergman se lamentou: Para o cineasta, como para o equilibrista, o risco é da mesma ordem: o de cair e morrer. Vou citar uma experiência muito recente, cuja recordação me dá ainda um arrepio, e onde me arrisquei a perder, eu próprio, o equilíbrio. Um produtor, singularmente atrevido, investiu dinheiro num de meus filmes que, após um ano de atividade intensa, apareceu sob o título de Noites de circo. A crítica foi em geral destrutiva, o público abstevese, o produtor pôde contar as suas perdas e, quanto a mim, tive de esperar vários anos antes de fazer um novo ensaio.

Seria interessante revelar que o produtor, "singularmente atrevido", citado por Bergman foi o ensaísta, historiador e crítico do cinema sueco Rune Waldekranz, que não perdeu a coragem diante do fracasso comercial de Noites de circo e financiou depois a realização de Sonhos de mulhetes. Os vários anos que Bergman afirmou ter ficado sem filmar não passaram de doze meses, na verdade, pois em 1954, de volta à sua produtora habitual, a Svenskfilmindustri, eje dirigiu Uma lição de amor, comédia sofisticada, nos moldes do terceiro episódio de Quando as mulheres esperam. Mas, mudando de gênero, Bergman não abriu mão de seus pensamentos, mantendo-se fiel a todas as concepções já expostas nas fitas precedentes. O problema cruciante é tratado satiricamente, mas basta estar atento para perceber que, por trás do humor, há sempre um pouco de amargura. O curioso é notar que Uma lição de amor, com sua leveza, sua desenvoltura e seu brilho sofisticado, é imediatamente posterior a Noites de circo, o filme mais pesado e angustiante da filmografia de Bergman. Sonhos de mulheres (1955) precedeu ao filme que no Festival de Cannes de 1956 tornou Ingmar Bergman célebre mundialmente, Sorrisos de uma noite de amor. Desenrola-se em pouco mais de vinte e quatro horas, obedecendo as regras da construção dramática clássica: exposição, desenvolvimento e conclusão, com prólogo e epílogo num estúdio fotográfico. A narrativa acompanha os passos de duas 34 mulheres que saem do trabalho rotineiro em Estocolmo, para viver um dia extraordinário de sonho e pesadelo em Goteborg, e acabam voltando à rotina do trabalho, como se nada tivesse acontecido. As mulheres são Eva Dahlbeck, que faz uma diretora de uma agência de fotografias, e Harriet Andersson, que interpreta sua modelo favorita. Elas, na época, eram as duas atrizes favoritas de Bergman. "Sonhos de mulheres — escreveu Jacques Siclier — deve tanto à comédia como ao drama e poderia, por isso mesmo, ser denominado comédia dramática." "Não vamos prestigiar gênios desconhecidos", teria dito um dos membros do júri em Cannes56, reagindo aos aplausos do público e aos elogios da crítica a Sorrisos de uma noite de amor, depois da histórica exibição do filme no Festival, que acabou realmente não premiando nenhum gênio conhecido do cinema, mas um mergulhador francês, especialista em mergulhos submarinos, Jacques-Yves Cous-teau e seu documentário sobre o fundo do mar, O mundo do silêncio. A Sorrisos. .. coube apenas uma menção honrosa. Porém, o filme deixou o grand monde de Cannes perplexo, sobretudo quando houve nos bastidores do Festival a assombrosa revelação: Sorrisos... não era uma obra de neófito, seu realizador tinha 37 anos de idade e havia dirigido quinze outros filmes. A partir dessa descoberta os distribuidores franceses empreenderam uma verdadeira corrida para adquirir cópias dos filmes antigos de Bergman, que começaram a sèr exibidos em Paris sem nenhuma ordem cronológica. Barco para as índias e Monika e o desejo precederam a Juventude, lançado quase em símultaneidade com Sorrisos de uma noite de amor, em outubro de 1956, nos cinemas da cidade que consagra os artistas. Surpresa, espantada ou fascinada, a crítica francesa não fez me-suras para servir-se de seu costumeiro arsenal de elogios, fazendo uso de expressões como chefs-d'oeuvre, à voir absolument, excellent, une date dans Vhistoire du cinema. Bergman havia se consagrado com a sua narrativa galante da Belle Êpoque que, na realidade, era o galanteio de todos os tempos, onde alguns casais mal-casados chegavam ao fim da história unindo-se segundo suas afinidades reais. Alguém achou tudo muito parecido com o marivaudage de A regra do jogo (1939), de Jean Renoir — e foi quando Jean Béranger lembroa-sè de perguntar a Bergman: "Pareceu-nos haver alguns pontos de contato 35


entre Sorrisos... e A regra do jogo, o que você nos diz?" — A resposta foi delicada mas contundente: "Eu nunca vi A regra do jogo, o que lamento muitíssimo. Mas espero que, por intermédio de Henri Langlois, possa vir a preencher essa lacuna da minha cultura cinematográfica, quando for a Paris". (Langlois era o conservador da Cinemateca Francesa). Na revista Positif (n.° 18, novembro de 1956), Ado Kyrou escreveu uma crítica antológica sobre Sorrisos Nesse filme exaltante onde a poesia segue, da primeira à última seqüência, os traços ligeiros de Shakespeare, todo sentimento, todo ato é "gelo quente, neve negra". O trágico surge sempre instantaneamente para se transformar em alegria, a morte é vencida regularmente para conduzir à descoberta do amor. Todos os personagens têm uma só preocupação: o amor. As vezes, silhuetas de cinema, sombras na tela, são homens e mulheres que estão ali porque têm sexo e isso os preocupa.

E mais abaixo : Extraordinário cupido, Harriet Andersson evolui entre os amantes, exor-tando-os a fazer amor. É ela que tira a ingenuidade do seminarista e da jovem esposa do advogado egoísta. É ela que colocará em ação, pela primeira vez, o mecanismo destruidor das paredes, permitindo aos amantes se reconhecerem sem sair de seus leitos.

"Harriet Andersson possui no seu sorriso todo o apelo erótico do mundo", ainda anotaria Kyrou a respeito da jovem atriz bergma-niana que se tornou depois de Sorrisos... a obsessão da crítica francesa. Na mesma revista Positif, o crítico Roger Tailleur escrevia um artigo em forma de declaração de amor, que se intitulava "Para melhor conhecer Harriet Andersson". Jacques Siclier explicou melhor o fenômeno, observando que os filmes de Bergman se organizavam em torno da personagem erótica da atriz, valorizada com a mesma paixão com que Marlene Dietrich o foi nos primeiros filmes que ela rodou com Josef Von Sternberg. Só que Sternberg inventou um universo para Marlene, ao passo que Bergman incorporou Harriet Andersson ao seu. 36

V "Bergman costuma trabalhar, passando o inverno com o teatro e o verão com o cinema." A frase da inglesa Penelope Houston no seu livro O cinema contemporâneo (The contemporany cinema, Pen-guin Books, 1953) ilustra bem as atividades do artista sueco nesses dez anos que precederam à sua consagração mundial. Em 1946, ele encenou, no Teatro Municipal de Gotenborg, Calígula, de Albert Camus. Em 1947, Magie, de G. K. Chesterton e duas peças de sua própria autoria representadas em Goteborg, O dia acaba muito cedo e Tenho medo. Em 1948, dirige, em Halsingborg, outra de suas peças, Sem resultado, trabalhando também com A dança das barcaças, de B. E. Hoijer, e O baile dos ladrões, de Jean Anouilh. O selvagem, de Anouilh, e Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, foram encenadas por Bergman em 1949. No ano seguinte, o encontro com Brecht, através de A ópera dos três vinténs, a montagem de Me-déia, de Anouilh, e de Uma sombra, de Hjalmar Bergman. Em 1951, novamente Tennessee Williams, com A rosa tatuada. Em 1952, em Malmõe, A recompensa da recém-casada, de Strindberg, e Morte em Barjarna, peça escrita por ele mesmo. Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello, e O castelo, de Max Brod, baseado em Kafka, precederam em 1953 ao primeiro esboço do tema de O sétimo selo, representado em 1955 em Malmõe sob o título de Pintura sobre madeira. Nesse ano Bergman ainda dirigiu A pequena casa de chá, de John Patrick, Don Juan, de Molière, Lea e Raquel, de Wilhelm Moberg. Em 1956, enquanto Sorrisos de uma noite de amor surpreendia Cannes, os suecos viam Bergman encenar em Estocolmo A casada sem dote, de Ostrovsky, Gata em teto de zinco quente, de Tennessee Williams, e Erik XIV, de Strindberg. No teatro Bergman já era uma celebridade, agora o mundo culto do cinema europeu começava a descobri-lo. Seus filmes espalhavam-se por festivais e retrospectivas por toda a Europa, e O sétimo selo, realizado em 1956, é reservado para ser mostrado em primeira exibição no maior e mais famoso festival de cinema do mundo, o Festival de Cannes. E Cannes-56 oferecia uma seleção de filmes infinitamente variada: Um condenado à morte escapou, de Robert Bres-son, As noites de Cabíria, de Federico Fellini, Aquele que deve morrer, de Jules Dassin, Despedida de solteiro, de Delbert Mann, Kanal, 37


de Andrzej Wajda, O quadragésímo primeiro, de Gregofi Tchoukhrai, entre outros. "Se Sublime tentação, o filme de William Wyler que ganhou a "Palma de Ouro" — escreveu Pierre Billard na revista Cinema (n.° 19, junho de 1957) —, merecia um grande prêmio, era sem dúvida o da decepção." O sétimo selo, preferido pela crítica mundial que compareceu ao festival, acabou dividindo o "Prêmio Especial do Júri" com o filme de Wajda. Bergman havia sido outra vez injustiçado em Carmes, mas seu filme suscitou no público um interesse fora do comum e foi o mais discutido pela crítica. Os protagonistas são o cavaleiro Antonius Block e seu escudeiro Jons que retornam de uma cruzada na Terra Santa, atravessando uma Europa assolada pela peste negra, deparando com uma humanidade sofrida — saltimbancos itinerantes, exorcistas, feiticeiras queimadas nas fogueiras, flagelados —, para quem a vida não passa de uma aterradora espera, a passiva expectativa dç um fim trágico e contingente. O clímax do filme é a partida de xadrez que o cavaleiro disputa com a Morte para ganhar tempo, a fim de encontrar conforto para sua fé angustiante. Alegoria medieval que expressa o pensamento de Bergman sobre o mundo moderno, O sétimo selo baseia-se em uma peça de um ato, Pintura sobre madeira, que Bergman escreveu em 1954. O filme propõe a mais ambiciosa de todas as interrogações metafísicas. Como diz Bergman, "o tema é bastante simples: o homem e sua procura eterna de Deus, tendo a morte como única certeza". No lançamento do filme em Paris, um dia após a entrega dos prêmios no Festival de Cannes, um crítico perguntou se Bergman tinha recebido influências de Orfeu, de Jean Cocteau. Resposta: "Os mestres suecos do cinema mudo — imitados no seu tempo pelos alemães —, foram só eles que me inspiraram, sobretudo Victor Sjos-trom, que eu considero um dos maiores cineastas de todos os tempos". Por mais absurdo que possa parecer, O sétimo selo só foi lançado no Brasil em 1974, permanecendo, portanto, durante dezoito anos desconhecido dos críticos e cinéfilos brasileiros que, no entanto, foram recompensados com a exibição, em 1961, de Morangos silvestres, realizado em 1957 e considerado como o melhor filme de Bergman e uma das obrasprimas do cinema mundial. Registrávamos atrás a admiração de Bergman por Victor Sjos-trom. Pois é este antigo diretor do cinema sueco, e excelente ator, 38 quem interpreta o personagem principal de Morangos silvestres, o professor Isaac Borg, um médico de 78 anos. Enquanto viaja em companhia da nora para receber o título de Doutor Honoris Causa, prêmio e reconhecimento a uma existência dedicada à humanidade, recorda o que foi a sua vida, com derrotas e vitórias, erros e acertos, numa peregrinação pelo passado onde o negativo e o positivo se encontram. Bergman joga aqui constantemente com o possível e o impossível. No limiar da morte, o professor revê a vida passada numa viagem decisiva. O filme acaba com um grande plano do velho adormecendo. Fereydoun Hoveyda em Cahiers du cinema (n.° 95, maio de 1959) é de opinião que: À semelhança da nossa galáxia, a obra de Ingmar Bergman desenvolve-se não em circunferência, mas em espiral. Uma espiral em que cada uma das voltas acresce e aprofunda o círculo. Nesse trajeto para a perfeição, o autor detémse, por vezes, como que para abarcar com o olhar o caminho percorrido. A volta maior da espiral brilha, então, com um fulgor invulgar e parece esconder todo o resto. O filme que ela sustenta basta a si próprio; se ela torna inúteis os outros, vai com certeza mais longe do que eles. Morangos silvestres pertence a esta última categoria.

A esta meditação sobre o passado, segue uma meditação sobre o futuro: No limiar da vida (1957). Bergman conta como lhe surgiu a idéia do filme: "Atraiu-me bastante a novela de Ulla Isaksson de onde foi extraído. O tema é semelhante ao que já tinha sido abordado em alguns momentos de Sede de paixões e de Quando as mulheres esperam, relativos ao cerimonial do parto. Há três anos que Ulla e eu projetávamos fazer o filme". Sem qualquer música de fundo ("queria que o estilo deste filme fosse completamente independente", dizia o cineasta), No limiar da vida, realizado em vinte e oito dias, narra a história de três mulheres internadas num hospital e que vão ser mães dentro de pouco tempo: Cecília (Ingrid Thulin), Stina (Eva Dahlbeck) e Hjordis (Bibi Anders-son). Duas delas, as primeiras, são casadas e querem os filhos que vão ter. A outra não quer ter o filho, pois vai nascer de uma união ilegítima. Ao lado das outras duas, porém, Hjordis compreende a beleza de dar ao mundo uma nova vida, acima das dificuldades possíveis e do sofrimento que isso lhe possa trazer.


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A câmera, neste filme fechado entre quatro paredes onde predomina um branco intenso de luz, concentra-se sobretudo nos rostos e nos gestos, dando-nos a sensação de aderirmos ao drama essencial que ali se passa. Como se vê, Bergman rompe deliberadamente com o caminho esboçado nos filmes anteriores. Realista, o seu realismo tem a força maravilhosa que vem do palpitar da vida, da presença oculta de um poder que nos guia e não dos pormenores de realidade, colhidos em flagrantes ou propositadamente elaborados. VI Em 1957, Bergman realizou dois filmes, desenvolveu alguns projetos e dirigiu três peças: Peer Gynt, de Ibsen; O misantropo, de Molière; Fausto, de Goethe. Depois caiu doente. Era o resultado de um esforço intenso na ascensão para uma arte da alma. Ingmar, o artista inquieto, procurava alucinada e obsessivamente a face da verdade através da alma das criaturas. Do teatro ele ficaria quatro anos ausente, mas no cinema, a seguir, entregou-se obstinada e apaixonadamente à criação, à descoberta. Depois de No limiar da vida, filmou O rosto, em 1958; uma lenda medieval, A fonte da donzela, em 1959; uma comédia, O olho do diabo, em 1960. Em 1961, realizou Através do espelho, primeira parte de uma trilogia denominada "filmes de câmara", expressão que ele tomou emprestada a August Strindberg que assim classificava suas peças intimistas. As duas partes complementares da trilogia viriam respectivamente em 1962 e 1963 com Os comungantes e O silêncio. Bergman, portanto, continuava avançando, despertando interesse cada vez maior. À medida que vão estreando os seus filmes, vai também crescendo o número de seus admiradores. De repente, uma surpresa, o cineasta chegava até a capa do Time que em cinco páginas analisava a sua personalidade, percebendo os traços de um ilusionista, um boêmio, um existencialista (no sentido kierkegaardia-no), um barba-azul (até 1960 tivera três esposas legais, muitas amantes e casos ocultos com suas atrizes) e um super-homem. Como em Noites de circo, O rosto se inicia com uma troupe de artistas itinerantes a caminho de uma cidade. Seu chefe é um discípulo das teorias de magnetismo animal, Albert Emanuel Vogler, que se faz acompanhar de seu auxiliar, Amam (na realidade, sua mulher 40 Manda, disfarçada de rapaz), do empresário Tubal, de uma velha fabricante de poções "miraculosas" e do cocheiro Simom. À entrada de Estocolmo, a polícia detém a companhia, que é levada para a casa do cônsul Egerman, onde este, o chefe de polícia, Starbeck, e o médico Vergerus, todos céticos e cínicos, querem avaliar o espetáculo que julgam enganador. Vogler e sua troupe são submetidos a um interrogatório humilhante com o objetivo de demonstrar a fraude dos processos do mágico. Humilhado e vencido, Vogler, no entanto, será recompensado por uma ordem que chega do Palácio Real: o rei da Suécia deseja assistir a um espetáculo do grupo. Friamente recebido pela crítica européia, a despeito de três prêmios conquistados no Festival de Veneza de 1959 ("Prêmio Especial do Júri", "Prêmio da Crítica Italiana" e "Prêmio Cinema Novo"), O rosto foi explicado por Bergman numa só frase: "A arte é insignificante em nossa época, pois não tem mais o poder de influenciar as pessoas". O filme era, portanto, uma reflexão sobre a arte de representar a realidade e as ilusões. Vogler, o mágico e charlatão mambembe, é o alter ego de Bergman. Mas houve os que enxergaram em Vogler uma metáfora de Cristo. Lançado no Brasil somente em 1975, um ano antes do cineasta sueco ser acusado de praticar ilegalidades na declaração de seu Imposto de Renda e ser interpelado pelos agentes do fisco sueco, O rosto chegou a ser definido como filme de um visionário. Nele, teria Bergman contado, com dezessete anos de antecipação, os fatos de que foi vítima. A fonte da donzela provocou polêmicas teológicas. Houve os que descobriram no filme um misticismo catequizante, abordando temas não-metafísicos, mas religiosos como o remorso, a tentação e a purificação. O final do filme levou muitos a duvidarem do ateísmo de Bergman, que estaria admitindo a existência de Deus e se penitenciando das blasfêmias e pecados cometidos como qualquer cristão arrependido. Outros, no entanto, chegaram à conclusão de que, ao narrar uma história cruel com estupro, assassinato, violência, remorso e vingança, o cineasta, pelo contrário estava reiterando sua crença de que os homens não são criaturas de Deus, mas instrumentos do Diabo. O cenário é a Idade Média com suas lendas e superstições. Uma adolescente é abordada na


floresta por dois pastores e um rapazinho 41


que a violentam e matam, ficando com suas roupas. Mas a irmã de leite da donzela viu o crime e previne o pai que mata os dois pastores e o rapazinho durante a noite. Crime sobre crime, como nas peças de Strindberg. E sobre o local onde a virgem morre, nasce uma fonte. O vingador aí vê um sinal do destino e decide, para aliviar sua alma, construir ao lado da fonte uma pequena capela. A fonte da donzela demorou relativamente pouco para ser lançado no Brasil; realizado em 1959, o filme chegou até nós em 1964. Mas o filme seguinte de Bergman, O olho do diabo, feito em 1960, parece ser destinado a um ineditismo eterno no mercado brasileiro. Já se passaram vinte e seis anos de sua realização e nenhum distribuidor se interessou por ele. O ponto de partida é um provérbio de origem irlandesa: "A virgindade de uma mulher é como um terçol no olho do diabo". — "O diabo, que Ingmar Bergman nos apresenta sob os traços de um homem de negócios" — registra Jacques Siclier — "envia Don Juan à terra a fim de seduzir a filha de um honesto pastor. Don Juan não é bem sucedido, perde-se no jogo e apaixona-se pela filha do pastor." O filme é tratado como uma comédia que faz lembrar Sorrisos de uma noite de amor. Os críticos comentaram na época que Bergman misturava com humor e muita ironia a maior parte de seus temas favoritos. Mas houve quem não gostasse, dizendo que O olho do diabo foi o filme que ele não precisava ter feito. Nos anos seguintes, o humor meio satírico e meio fantástico deste filme de Bergman seria trocado por uma série de constatações amargas e realistas em torno do mundo moderno, cuja doença fundamental, segundo ele, era a falta de amor. Em outras épocas as religiões impediam que esse fato fosse visto e percebido pelas pessoas. Apesar de seus erros, seus freqüentes acessos de fanatismo e intolerância, as religiões ensinavam pelo menos os homens a acreditarem numa esperança sobrenatural e se apegaram a essa esperança — mesmo se Deus não emitisse nenhuma resposta às suas súplicas. O progresso da ciência, a desaparição quase que total dos grandes flagelos como a peste, o aperfeiçoamento do conforto material, vieram amenizar fatalmente os medos ancestrais e contribuir para relegar a fé ao plano dos contos de fada. Tudo tornou-se permitido. E outras ameaças surgiram, sob o aspecto de um egoísmo dissoluto, de uma perigosa indife42 rença aos olhos dos outros e de uma tentação quase permanente de voltar integralmente à animalidade. Colocada na liderança da Europa desde o princípio desta evolução econômica e social, a Suécia deveria obviamente, como aconteceu, sentir os primeiros efeitos: a angústia começava a devorar o homem afastado da crença em Deus. Todos esses terríveis problemas já transpareciam através dos filmes de Bergman, mas ele sentiu subitamente o desejo de consagrar aos males do mundo moderno uma série onde ele os ilustraria sob três facetas diferentes e coplementares. Para tornar os temas mais perscrutantes, ele decidiu concentrá-los, ao máximo, em torno de um número restrito de personagens aglutinados uns aos outros por ligações familiares ou por limites geográficos. Nasceram assim os "filmes de câmara" compostos de uma trilogia, de certa forma inspirada em Strindberg e seu "Kammerspel" (ou "teatro de câmara"), que propunha uma encenação intimista dos dramas humanos. Jean Béranger (em Cinema 62, n.° 69) dá uma explicação clara sobre esse assunto, escrevendo: "Bergman aproveitou muitos aspectos dos chamados "filmes de câmara" de certas peças intimistas de August Strindberg, tais como: A sonata de espectros ou Tormenta, cuja ação limitada a um número muito restrito de personagens se desenvolvia igualmente num mínimo de tempo, não excedendo a duração real de um dia ou mesmo de algumas horas". A publicação francesa Êtude cinematographique dedicou um número duplo (n.°* 46-47) sobre o assunto, em 1966, sob o título "Ingmar Bergman — La trilogie", onde há excelentes ensaios de Pierre Renaud, Claude Perrin, Michel Esteve, Denis Marion, Jos Burvennich e principalmente Berthélemy Amengual ("O silêncio — Dimensões realistas"). VII Em Através do espelho, o opus n.° 1 da trilogia bergmaniana, tudo se passa numa pequena cidade praiana, situada numa ilha, sua ponte de barcas e sua praia. Apenas quatro personagens, quatro membros de uma família em férias: Karin, uma jovem mulher, afetada por doença mental; seu irmão Minus, que enfrenta as perturbações da adolescência; David, pai de Karin e


Minus e escritor que 43


deseja refugiar-se numa "torre de marfim" para escrever um novo romance; e Martin, o marido de Karin, que exerce a profissão de médico. Esses quatro personagens são estruturados em torno de um eixo dramático, que é uma nova face do problema do amor. Folheando o diário do pai, Karin lê num trecho: "Minha filha é incurável e eu me surpreendo ao observar com curiosidade o progresso do mal". Karin conta ao marido o que tinha lido e este procura tranqüilizá-la: o pai havia sido mal compreendido. Os dois homens, pai e marido, partem de barco para a cidade. Karin e Minus permanecem na ilha. Enquanto no barco Martin e David discutem e trocam acusações sobre a doença de Karin, esta e Minus trocam afetuosas carícias na praia. É quando explode uma crise violenta de loucura em Karin e ela leva Minus a um navio abandonado e o incita a praticar o incesto. Quando os dois homens voltam, Minus conta-lhes o que aconteceu, ao passo que sua irmã emerge numa crise profunda de demência e alucinação, vendo imagens deformadas de Deus. David e Martin telefonam para um hospital pedindo para que uma ambulância-helicóptero venha buscar Karin. Por uma janela nós assistimos à chegada do helicóptero. O barulho do seu motor invade a tela e torna-se ensurdecedor. Karin terrifiçada precipita-se para um canto. Sob a pressão do ar, uma porta se abre. Ê dada uma picada de calmante na doente que, quando tranqüiliza-se, murmura: "Eu vi Deus... Ele veio me buscar. Ele é uma aranha. Desceu sobre mim e queria me penetrar mas eu me defendi". Quando o helicóptero parte "com sua presa", David diz a seu filho que a idéia de Deus não pode ter consistência a não ser no esforço de afeição dos seres, uns aos olhos dos outros. E conclui que seu amor irá proteger Karin na sua viagem através de um país desconhecido. E Minus diz: "Meu pai enfim falou comigo!" O filme termina com essa frase. Os críticos viram algo mais do que um drama sobre o amor humano. E aqui o amor teria o significado de "comunicação" de um ser humano com o outro, de entendimento e compreensão, do abandono do egoísmo com o objetivo de abrir-se para o interesse do próximo. Um crítico indagou se seria realmente possível a esperança de uma comunicação com o Pai Divino. Na cena final pode estar a resposta de Bergman. O título do filme, Através do espelho, lembra 44 uma das características da loucura que ultrapassa os limites da razão humana para perseguir uma outra realidade, mas Bergman retirou-o de uma carta do apóstolo Paulo que diz: "Agora nós vemos como através de um espelho, obscuramente; depois nós veremos face a face. Agora me conheço apenas em parte, mas depois saberei como sou conhecido. Agora subsistem a fé, a esperança e o amor, mas desses três o maior é o amor". O "Oscar" de melhor filme estrangeiro para Através do espelho, em 1961, serviria para confirmar que Bergman continuava com seu prestígio inabalado e firme como um dos grandes nomes do cinema mundial. No ano seguinte, ele realizaria Os comungantes, o segundo dos três "filmes de câmara" que rodou sucessivamente. Se Através do espelho foi considerado, mais do que um tratado sobre a existência de Deus, como um estudo de nossos esforços para conhecer a Deus e o próximo, Os comungantes foi feito como uma destruição daquela proposição, como um corte entre o céu e a terra, como uma interrupção das relações entre os homens e Deus. Num ambiente de fim do mundo — aquele de um domingo de novembro castigado pelo vento e pela umidade — a câmera nos conduz por entre igrejas de duas aldeias vizinhas, uma escola comunitária e uma casa de pescador. É meio-dia. O pastor Thomas Ericsson celebra a missa diante de apenas nove pessoas num pequeno templo medieval. Entre os presentes se encontram o pescador Jonas Persson, sua esposa Karin e Martha Lundgren, uma professora. Jonas é um homem inquieto, que se preocupa cada vez mais com a possibilidade de uma guerra nuclear. Ele lê num jornal que muitos países novos desejam possuir armas atômicas. Às 12 horas e 45 minutos a missa acaba e, só na sacristia, Thomas tenta entrar em comunicação com Deus. Deus não responde. Jonas chega para falar-lhe sobre seus temores. Mas respondendo a todas as perguntas, o pastor apenas fala de si mesmo, de sua missão e de Deus que protege os homens. Às 13 horas e 40 minutos Jonas suicida-se com um tiro de revólver. Às 14 horas, Thomas dá a notícia a Karin e vai estar com a professora Martha, que já foi sua amante, mas que agora despresa porque a considera como uma pessoa que não crê em Deus. Às 18 horas, Thomas começa o ofício religioso da tarde na igreja da cidade vizinha. Só Martha está presente. Thomas


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evoca a Deus, mas Deus não responde. Todas as comunicações estão cortadas. O homem está só no planeta. Thomas havia escolhido ser padre para agradar seus pais. Ele acreditava que assim poderia acalmar sua consciência. Mas ele compreende de repente seu fracasso e se põe a pensar que, com ou sem Deus, não há nenhuma diferença, mas que, sem Deus, o homem no fundo se sente mais livre. Ele vai, então, refazer sua vida com Martha. Patrick Bureau escreveu em Cinema 65, n.° 97. "Os comungantes é um longo diálogo de um pastor sem fé. Bergman o torna convulsivo, trágico, apaixonante mesmo para aqueles que não se interessam por problemas religiosos. Bergman liquida aqui, com uma espécie de satisfação cruel, os dois elementos primordiais de seu universo: Deus e a mulher". Há que se notar, além do problema da existência ou não de Deus e o das dificuldades do casal, temas indefectíveis da obra berg-maniana, novas alusões à ameaça atômica e à possibilidade de uma guerra nuclear, já contidas de uma forma alegórica em O sétimo selo. Foi nessa época que, interrogado sobre a possibilidade de realizar um filme sobre uma explosão nuclear e seus efeitos sobre a humanidade, o cineasta sueco respondeu: "Creio ser impossível realizar um filme sobre a bomba atômica. Mas posso imaginá-lo numa só cena: o rosto aterrorizado de uma criança. Seria um filme muito curto. Um segundo talvez. E ninguém o veria jamais". Através do espelho e Os comungantes não foram exibidos no Brasil. As informações que obtivemos destes dois filmes, que formam com O silêncio um conjunto inseparável, foram colhidas em diversas publicações francesas. Além do já citado Êtude cinematographique, os livros de Jean Béranger e Francis D. Guyon e Jacques Siclier, as revistas especializadas Cinema, Image et son e Telé-ciné. VIII A censura de diversos países impôs cortes a O silêncio. A censura brasileira, particularmente, foi implacável: primeiro proibiu a exibição da fita em todo o país sob a alegação de imoralidade em várias cenas. A luta desigual com a censura durou cerca de dois anos, com o filme sendo liberado em 1966, mas não em sua versão 46

integral. Houve pelo menos três cortes básicos: 1) a masturbação de Ester, que ficou apenas sugerida; 2) o ato sexual em público do casal que Ana observa no cinema, do qual sobraram apenas alguns segundos; 3) a cena erótica entre Ana e o garçom, observada por Ester, na qual havia um ato de sodomia. Os cinéfilos brasileiros foram assim obrigados a ver O silêncio numa versão mutilada e como um filme autônomo, desvinculado das duas partes iniciais da trilogia. Como vimos, em Através do espelho a protagonista chegava à loucura como um refúgio para a dilacerante ausência de Deus no mundo dos homens; e Os comungantes era o drama do religioso que se debatia com a perda da fé. O silêncio resume e completa os temas colocados nas duas primeiras partes da trilogia, tendo como objetivo expor o que acontece quando Deus se torna ausente. Cada ser humano, irremediavelmente isolado, carrega seu próprio inferno no fundo de si mesmo e aguarda a morte quase que como uma libertação. Falando ao UExpress, em março de 1964, Bergman disse: Na Suécia, vivemos na ilusão de que temos tudo. Mas no meio dessa vida plena, nós temos um grande vazio, a ilusão perdida de Deus, chame isso como quiser, uma necessidade de segurança intelectual que venha compensar todas as insuficiências da segurança material, social. É esse vazio e tudo o que os homens inventam para preenchê-lo que eu descrevo em meus filmes, e creio que é um modo de fazer filmes engajados nos problemas contemporâneos e mesmo no único problema fundamental: o de dar um sentido espiritual ou humano a uma civilização de felicidade material. Em todo caso, é meu problema pessoal. Não me peça para falar de outra coisa, eu não saberia.

Duas irmãs, Ester e Ana, acompanhadas do pequeno filho de Ana, Johan, penetram num país desconhecido depois de uma viagem de trem. No trem, o calor é sufocante. Ester está tomada por uma misteriosa doença. Ela escarra sangue. Eles se hospedam num imenso hotel de uma cidade estranha, chamada Timoka. E passam a conviver num ambiente de pessoas cuja língua eles não compreendem. Então, em torno desses personagens, instala-se o silêncio. Um silêncio incômodo, sufocante: o silêncio da solidão, da impossibilidade de se comunicar. 47


Denis Marion (em Êtude cinematographique, n.os 46-47), observa o seguinte: "[...] Bergman quis marcar sua intenção de situar seu filme sobre o plano do sonho. Somos levados para um lugar insólito onde não compreendemos ninguém e onde ninguém compreende os protagonistas, portanto, uma situação tipicamente onírica". Na mesma publicação, Jos Burvennich assinala: "Entre as duas mulheres, se interpõe a criança, a única criatura luminosa desse drama profundamente sombrio". E Barthélemy Amengual conclui, ainda em Êtude: "[...] o inferno do sexo sem amor. O cenário em si mesmo participa dessa obsessão generalizada. Corredores, túneis, labirintos — cuja pequenez do menino e dos anões revela o caráter subterrâneo — construindo uma metáfora depurada da união carnal". Aí temos três caminhos a seguir para decifrar o enigma bergma-niano proposto em O silêncio, caminhos que no entanto se abrem todos numa só direção: o silêncio da incomunicabilidade humana que é também, simbolicamente, o silêncio de Deus Para exprimir esse doloroso estado de solidão, a câmera se aproxima com insistência dos personagens que se olham e que sofrem ao serem submetidos ao olhar dos outros. Muito poucas palavras, exceto para os momentos de extrema tensão. A faixa sonora se reduz a alguns ruídos realistas que, nessa atmosfera pesada, adquirem sempre uma dimensão obsessiva. Implacável no seu impudor, a câmera observa cada um dos gestos, cada uma das intenções exprimidas. Ela se identifica aos olhares, depois ultrapassa esses olhares. O olhar novo do menino Johan que explora os imensos corredores desertos do hotel e que descobre, com a despreocupação de sua idade, o espetáculo da miséria física (anões que organizam uma deplorável palhaçada em sua homenagem), impossibilitado de compreender a miséria moral que se desenrola sob seus olhos. A miséria moral é o confronto de olhares das duas mulheres, que duas naturezas diferentes opõem violentamente. O olhar de Ester é invejoso, exclusivo, reprovador. Ela é uma intelectual complicada, doente e sexualmente reprimida. Ela tenta compensar sua solidão pelos prazeres do álcool ou pelos prazeres sexuais solitários. Seu desespero é acentuado pela proximidade da morte, essa solidão suprema. Ana é o olhar agressivo, revoltado e cruej. Escrava de uma sensualidade que a atormenta, ela adora andar nua pelos quartos e ignora 48 todo pudor diante de seu pequeno filho. Excitada numa sala de espetáculo obscura, onde um casal "quase faz" (graças à censura brasileira) amor diante dela, Ana decide procurar o prazer efêmero nos braços de um desconhecido. Mas o remorso e o sentimento de pecado estragam o prazer livre que ela própria se concede. Também se satisfaz por uma espécie de sadismo que consiste em atormentar sua irmã pelo cinismo e pela provocação. O silêncio é, pois, a expressão de um conflito que, no filme, é paralisado no seu momento mais forte. Ele tenderá à ruptura completa por parte de Ana. E a câmera de Bergman se dedica a mostrar a recusa que cada uma das irmãs opõe a um desejo de expressão que se perde assim no vazio. É a incompreensão entre as exigências de um corpo que tem necessidade da nudez e de abraços, e as exigências de uma alma presa às mais dolorosas vertigens ( é a palavra "alma" que Ester traduz para sua irmã na língua do país desconhecido). Um dos mais admiráveis filmes do cineasta sueco, O silêncio é construído em planos longos, conforme a linguagem moderna. Esses planos são longos e com os movimentos de câmera de uma elasticidade e de uma eficácia notáveis. Alguns elementos do cenário exterior são muito significativos: visão da morte através daquela carroça puxada por um cavalo esquelético, vista duas vezes passando pelas ruas da niisteriosa cidade; atmosfera ameaçadora com viaturas blindadas e tanques evocando o fantasma de uma guerra iminente. O silêncio é o triunfo da câmera-olhar. É a expressão do voyeu-rismo integral. A lamentar a existência de uma censura que na época — o início de uma implacável ditadura no Brasil — confundiu obra de arte com pornografia e considerou o espectador brasileiro adulto como uma criança inocente e desprotegida. Para os censores da época a sexualidade era tida como uma doença vergonhosa, e assim, hipócrita e arbitrariamente, impuseram ao filme de Bergman uma deplorável versão elíptica. Mais tarde, numa entrevista com o crítico sueco Lars-Olof Lofh-wale, publicada pela revista inglesa Films and filming, o cineasta revelaria: "Sentir é primordial, compreender é secundário:


Primeiro sinta, experimente — depois compreenda". E à pergunta, "Por que O silêncio foi um filme mal interpretado?", ele responderia: 49


Não me pertubam as pessoas que se mostram indignadas ou confusas ou sexualmente excitadas ou furiosas. Mas sofro quando sua reação atinge minha vida particular, quando perseguem minha mulher e ameaçam meu filho. Hoje, O silêncio é inocente como uma criança do jardim de infância em comparação com os filmes feitos depois.

IX Entre O silêncio e outra obra-prima, Persona (1965), Bergman realizou, em 1964, uma comédia ligeira e picante que foi o seu primeiro filme em cores, Para não falar de todas essas mulheres que, segundo os críticos, significou uma parada, uma espécie de descanso, um parêntese importante e necessário. O roteiro foi escrito pelo ator Erland Josephson e por Bergman sob o pseudônimo de Buntel Ericsson. A história passa-se em 1920, quando um crítico decide escrever a biografia de um virtuose do violoncelo, o mestre Felix, que vive num castelo, rodeado por sete mulheres. Cornélius, o crítico, disposto a todas as baixezas, tenta deslindar os mistérios desse mundo, utilizando-se inclusive de chantagem. O músico acaba morrendo de repente de um ataque cardíaco, e o crítico, que queria ser melhor do que o artista que admirava, vê um novo virtuose tomar seu lugar no castelo e ser rodeado por todas aquelas mulheres. A intenção foi criticar os críticos, emitir um julgamento sobre arte, sobre si mesmo e sobre a vida através de uma perspicaz ironia, e uma galeria divertida de retratos femininos que, no fundo, seria uma alusão ao seu harém de amantes e esposas legítimas e ilegítimas. Na época, Bergman estava mais interessado em sua vocação do que em sua profissão, ou seja, dedicava-se mais ao cinema do que ao teatro. No entanto, em 1961, encenou no Teatro Dramático de Estocolmo, A gaivota, de Tchekov, e na ópera de Estocolmo, O libertino, de W. H. Auden e Igor Stravinsky. De 1963 a 1966, Bergman exerce a função de diretor do Dramaten. Cada vez mais horrorizado com todas as formas de arbitrariedades e violências da nossa época, ele monta peças que tratam de problemas políticos ou raciais: várias peças de Bertold Brecht; O vigário, de Rolf Hochhut; Blues para Mr. Charlie, do negro norte-americano James Baldwin. Dirige pessoalmente Quem tem medo de Virgínia Woolf, de Edward Albee; Tiny Alice, outra peça de Albee; A instrução, de Peter Weiss; Escola de mulheres, de Molière; Hedda Gabler, de Ibsen. Depois, desejoso 50 de se consagrar inteiramente ao cinema, ele abandona seu duplo posto de supervisor e encenador do Dramaten, encargo muito cansativo que não lhe deixava tempo livre para escrever e realizar seus filmes. Com Persona, em 1965, viria a maior fase da carreira de Ingmar Bergman, estendendo-se a mais dois filmes, A hora do lobo (1967) e Vergonha (1968). Nesses anos, a situação internacional começava a se agravar em proporções cada vez mais consideráveis. Vietnã, Biafra, o antagonismo árabe-israelense, a ditadura dos coronéis gregos, guerrilhas na América Latina... A violência e suas conseqüências se espalhavam por todos os lugares do mundo. John, depois Robert Kennedy, o pastor Martin Luther King... No meio de toda essa inquietação, a Suécia, país frio, persistia em viver aparentemente no gelo. Mas por trás de uma fachada de paz e neutralidade havia no rosto dos suecos sinais de angústia, marcas profundas de sofrimento, vestígios de descontentamento, tédio, frustrações, desespero... Filmes como Persona, A hora do lobo e Vergonha serviram para mostrar, entre muitas outras coisas, que mesmo vivendo num ambiente de paz, os seres humanos na Suécia se comportavam como soldados inimigos no campo de batalha: agredindo, violentando, destruindo uns aos outros. A guerra naquele país era uma guerra mental. Persona era a máscara no teatro grego. Persona era o artifício que escondia a alma. Persona era o vigésimo sétimo filme de Ingmar Bergman, o diretor sueco que se especializara em dissecar almas através de mergulhos cada vez mais profundos no íntimo dos seres humanos. Persona era mais um capítulo de sua obra sobre a dor humana. Tudo começa num palco. Enquanto interpreta "Electra", a atriz Elizabeth Vogler sofre um abalo emocional. Muda por alguns instantes, recupera sua consciência e retoma seu papel. No dia seguinte de manhã, Elizabeth, os olhos no vazio, é descoberta sobre sua cama: inerte. Numa clínica onde foi internada para tratamento, os médicos a consideram recuperada. Então, na companhia de Alma, sua enfermeira, ela parte para uma casa de campo no Báltico. Uma profunda amizade nasce entre as duas mulheres: Elizabeth pede a Alma para lhe contar sua vida. A seguir escreve uma carta para sua médica, rela-tando-lhe que encontrou novas forças nas


confiss천es de Alma. Mas Alma encontra um dia uma carta, e nasce um conflito entre as duas 51


mulheres. Pouco a pouco uma troca de identidades se processa, elas tomam o lugar uma da outra... E numa noite Alma substitui Elizabeth para ir ao encontro do marido da atriz. Diante dos dois, a atriz sofre um choque: ela está curada, volta para casa e continua sua carreira teatral. Béranger e Guyon no livro sobre Bergman falam de "vampi-rismo": [...] Persona, obra-prima de concisão, sonata para dois instrumentos, onde uma atriz em estado de depressão se nutre literalmente, durante sua convalescência, da vitalidade de uma jovem enfermeira. Mistura de sonho e transformações cotidianas. Os imbecis que não viram mais do que uma pequena história de lesbianismo protestaram. Mas o tema se revela muito mais vasto, na medida mesmo em que a ambigüidade e a imprecisão, sabiamente calculadas, unem-se para a denúncia desse vampirismo sempre latente na maior parte dos seres humanos, seja qual for o sexo.

Essa nova história de mulheres deixou perplexa a crítica mundial que não poupou elogios ao filme que gerou polêmicas em outras áreas, como por exemplo entre psicanalistas, já que Persona designa na obra de Jung, com a qual Bergman está familiarizado, a parte de nossa personalidade, a máscara com a qual nos apresentamos ao mundo. Persona é o oposto da alma, pois a alma é o que determina a individualidade e persona é o aspecto coletivo convencional da personalidade. Um dos traços psicológicos da nossa época é o enfraquecimento da fé na persona, o que caracterizava a época da moral convencional e a busca de diretrizes nos valores individuais. Em todo o mundo ocidental as instituições diminuíram seu poder em nosso século e o homem-massa, o homem-persona está desorientado. É nessa situação que a psicanálise adquiriu imensa importância como instrumento para a busca dentro de nós mesmos, das emoções individuais, de valores que devolvam um significado à vida, o que levou Jung a dizer que o homem moderno busca a alma. Até o teimoso e relutante Cahiers du cinema teve que se curvar diante dessa obra-prima de Bergman. No número 188, março de 1967, sob o título "O fantasma de Persona", Jean-Louis Comolli escreveu um ótimo artigo sobre o filme, precedido de um texto de apresentação de autoria do próprio cineasta, intitulado "A pele da serpente". 52 Mas a consagração maior de Persona em termos de crítica aconteceria sete anos depois de sua realização em 1965, quando, em 1972, a revista inglesa Sight and sound, em um pesquisa com críticos do mundo inteiro, o incluiu entre os dez melhores filmes de todos os tempos. Síntese asperamente dramática das inquietações bergmanianas, a fita pesquisa e explora, portanto, o corpo e a alma de duas mulheres, envolvendo suas personalidades, angústias e sonhos num enigma psicológico e analítico quase indevassável, para no fim diluir a possível solução em perguntas ainda mais indecifráveis. "O que diz meu filme? Uma simples representação dramática, como num palco? Sombras confusas que aparecem numa tela de cinema? Ou a vida?" — Como se vê, o próprio Bergman questionou na época o verdadeiro significado de Persona, que chegou também a ser interpretado como o drama da esquizofrenia no mundo moderno que viu a tragédia do gueto de Varsóvia (e Bergman mostra uma foto desesperadamente fixa de um menino judeu levantando as mãos diante dos ameaçadores fuzis dos soldados nazistas à saída de um gueto, e que estava vendo a tragédia do Vietnã (Bergman mostra a imagem na tela de uma televisão de um bonzo vietnamita se transformando em tocha humana). Outra novidade: a metalinguagem. Persona demonstra as relações e contradições entre o mundo da vida e o mundo dos signos, entre a vida e a linguagem. Daí os carvões do projetor queimando no início do filme; a imagem de um menino erguendo-se para apalpar uma tela onde se exibe um filme; desse filme que começa a passar e depois se queima, como por acidente de projeção. Alguns parágrafos atrás, vimos como Béranger e Guyon protestaram contra o fato de Persona ter sido confundido com um filme sobre lésbicas na França. Mas eles ficariam indignados se soubessem que no Brasil o filme foi exibido com o incrível título de Quando duas mulheres pecam, explorando o relacionamento entre as duas protagonistas como algo proibido e pecaminoso, iludindo assim o espectador despreparado para compreender a temática bergmaniana, seu processo criativo e dramático. Mas enquanto aquele público ávido por filmes escabrosos ia ao cinema para ver o que o título brasileiro prometia, saindo decepcionado, outro tipo de platéia não podia conter seu entusiasmo e fascínio diante da arte de Bergman, a arte da metafísica e da mestria cinematográfica.


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Bibi Andersson que foi descoberta por Bergman quando fazia parte de um grupo de teatro de Malmõe, e lançada no cinema em Sorrisos de uma noite de amor, tornou-se uma das atrizes prediletas do cineasta que a escolheu para fazer a enfermeira Alma. O cineasta estava procurando outra atriz que tivesse alguma semelhança física com Bibi para o papel da traumatizada Elizabeth Vogler, já que era necessário para reforçar a sugestão de interferência e troca de personalidades entre as duas mulheres, e ele queria acentuar ao máximo esse aspecto. Foi quando Bibi Andersson lhe apresentou uma amiga que havia trabalhado como atriz de teatro na Noruega e participado de alguns filmes suecos. A amiga de Bibi era Liv Ullmann que Bergman imediatamente convidou para interpretar Elizabeth Vogler. Não só estava nascendo uma grande atriz, como também um grande amor. Separando-se da pianista Kabi Loretei — que havia sucedido suas esposas oficiais, a bailarina Elsie Fischer,. a administradora de teatro Ellen Bergman e a jornalista Gun Grot —, Bergman foi viver com Liv Ullmann que se tornou a sua principal intérprete. X O passo seguinte foi a realização de "Daniel", episódio de Stimu-lantia (1966), filme em oito capítulo em que alguns diretores suecos foram convidados a ilustrar alguma coisa que consideravam estimulante na sua vida. Bergman falou então de seu filho Daniel, do casamento com Kabi Loretei. Remonta a essa época a elaboração de um roteiro não filmado, Manniskoatarna (Os Canibais), que serviu, entretanto, de base para A hora do lobo. A explicação para o título desse filme nos é dada através de uma seqüência-chave: uma casa no meio da noite. Um clarão na janela. É o pintor Johan Borg que acende fósforos em meio à escuridão. Ele aproxima a chama bem perto de seus olhos. Deseja lutar contra as trevas ou se interrogar sobre o fogo? Nem um nem outro, ele apenas quer falar sobre seus temores e define o momento: "A hora do lobo é o tempo entre a noite e a aurora. É a hora em que a maioria das pessoas morrem, em que o sono é mais profundo, em que os pesadelos são mais palpáveis. É a hora em que os insones são perseguidos pelas mais agudas ansiedades, em que os fantasmas e os demônios se 54 acercam. A hora do lobo é também a hora em que muitas crianças nascem". Na verdade, Bergman nunca filmou outra coisa que suas atrações, repulsões, fobias, obsessões e- outros tropismos pessoais. Por isso é que ele se torna cada vez mais admirável e cada um de seus filmes aparece como uma variação sobre temas já conhecidos. Assim se explica a coerência de sua obra e a estreita interdependência de todos os andares desse edifício. Embora cada um de seus filmes constitua um todo homogêneo suficientemente compreensível, eles não podem deixar de ser estudados em relação àqueles que o precederam e aqueles que o seguem. Para compreender, por exemplo, a "novidade" de A hora do lobo, é necessário procurar pontos de referência em Per-sona e na trilogia dos "filmes de câmara"; para saber qual tradição profunda ele retoma, é preciso se lembrar de Noites de circo. Essa idéia, em A hora do lobo, nós a descobriremos se nos deixarmos conduzir pela importância dos numerosos olhares sobre os quais o filme é construído. Mais do que um tema, o olhar tornase a estrutura fundamental nessa obra. A hora do lobo é um pouco a história de três olhares, talvez de quatro. Em primeiro lugar, o de uma mulher sobre o marido que ela procura compreender, conhecer. Em seguida, o de um homem sobre o mundo e os outros homens. Enfim, o dos outros homens sobre esse homem. Se existe um quarto olhar, é evidentemente o do criador... Bergman realizou A hora do lobo a partir de alguns documentos. Ele utilizou, por um lado, o diário íntimo de Johan Borg, pintor sueco misteriosamente desaparecido alguns anos antes e, por outro lado, as confidencias da mulher do pintor. Seria, então, particularmente interessante ver de que maneira o autor se situou face a esses documentos, o que corresponde ao olhar mais importante do filme, o do próprio Bergman fascinado por uma aventura que poderia ser a sua. Logo no início, uma velha sugere à mulher do pintor, Alma (Liv Ullmann), que, se ela quiser conhecer seu marido, o melhor é examinar os seus quadros e ler o seu diário. No diário, Alma lê três episódios recentes da vida do pintor. E imediatamente ela os imagina: é através de seu olhar que vemos Johan. 55


Ele se diz um homem doente, cansado e perseguido por obsessivos fantasmas. Suas alucinações se materializam no dia em que o casal aceita o convite de um inquietante morador da ilha, o barão Von Merkens. Numa recepção, as pessoas apresentadas ao pintor parecem fixá-lo, dirigindo-lhe lisonjas e afrontas. Embaraçado, Johan se sente mal e começa a beber. Alma ameaça intervir, mas indaga a si mesma: "Qual o segredo que atormenta Johan? Não seriam as lembranças de Verônica Vogler, sua antiga amante, de quem ele fala em seu diário?". Todos passam para a biblioteca onde o barão apresenta seu teatro de marionetes. O conteúdo é um pedaço de A flauta mágica, de Mozart. Todos os convidados parecem fascinados pelo espetáculo, à exceção de Alma, sempre inquieta, e de Johan, que baixa os olhos, pois aquilo tudo mortifica-lhe com recordações de Verônica Vogler. Em sua casa, ao se aproximar a madrugada, o pintor revive com uma intensidade cada vez mais dolorosa suas principais obsessões: a morte (real ou imaginária?) de um de seus filhos e a tumultuada ligação que ele teve com a amante, uma mulher casada. O medo apossa-se dele, malgrado os esforços desesperados de Alma que se sente, ela também, pouco a pouco devorada pelas angústias de Johan. Após uma série de pesadelos de características mórbidas, o pintor se refugia numa floresta depois de ameaçar de morte sua mulher. Como em Persona, Bergman abre e fecha A hora do lobo utilizando a metalinguagem: a câmera recua revelando a equipe de filmagem ou a equipe que fará o filme a ser projetado; assim como no final, quando a câmera afasta-se do rosto angustiado de Alma, e a palavra fim é substituída pela mesma imagem do início, ou seja, a equipe que fez o filme. Interpretado em vários níveis, inclusive como uma reflexão sobre a arte — o impasse de um artista que perdeu a fé em sua própria arte —, A hora do lobo é considerado como o filme mais rico, mais hermético, e, ao mesmo tempo, o mais simples e o mais aberto de Bergman. Liv Ullmann, que, em Persona, se apropria da mentalidade sadia de Bibi Andersson para continuar a viver, aqui é literalmente "vampirizada" por Max Von Sydow que interpreta o pintor angustiado. É através desse personagem que Bergman se manifesta: "Sou chamado de artista por falta de outro nome. Nunca lutei para ser um 56 artista nem para manter esse nome. Basta olhar a insignificância da arte no mundo para voltar à realidade". Em efeito, o que Bergman diz em A hora do lobo comunica um calafrio essencial. Entre o desespero deste mundo e o mistério da além, ele acaba por nos colocar questões insolúveis. E enquanto com isso ele se liberta, nós nos contaminamos, porque a angústia é conta-giante. XI Os filmes de Ingmar Bergman carregam consigo uma espécie de confissão biográfica e os seus personagens dão a impressão de se movimentarem dentro de sua própria cabeça, refletindo um permanente estado de inquietude e angústia existencial. Mas o que mais me fascina em Bergman não é esse extraordinário poder de auto-analise, e sim a maneira pela qual ele estende a sua vivência individual, a ponto de transformá-la em visão universal. Seus detratores poderiam argumentar tratar-se de falácia ou distorção, mas todos nós conhecemos a verdade atual e sabemos da tensão em que vive o homem moderno diante dos conflitos físicos e metafísicos de um mundo que parece caminhar definitivamente para a neurose total. O terror latente pela violência e pela morte não é só de Bergman, mas de toda a humanidade que se encontra transtornada diante da possibilidade futura de a guerra envolver e destruir a todos. Antes de realizar Vergonha, em 1968, entre A hora do lobo e O rito, feito em 1969 para a televisão, Bergman manifestou em declarações seu repúdio pela Guerra do Vietnã. O filme, entretanto, não contém referências diretas àquele conflito: é mais uma parábola contra todas as guerras, já que a guerra que vemos na fita é uma guerra sem nomes e sem fronteiras, apenas a guerra destruindo os que a provocam e os que tentam fugir dela. Mas recordemos que o horror belicista de Bergman já fora esboçado em filmes anteriores. O sétimo selo, por exemplo, era uma metáfora do apocalipse nuclear, expresso pelo cenário da Europa medieval assolada pela peste. Em O silêncio, outros sinais de guerra nas imagens do tanque que patrulha as ruas e da carroça carregada de móveis, indicando o êxodo dos habitantes da estranha cidade de Tymoka. Em Persona, era a seqüência em que 57


Liv Ullmann assiste pela televisão um bonzo se queimando vivo no Vietnã, ou a fotografia onde uma criança aparece de braços erguidos, ameaçada por soldados nazistas. Em Vergonha, Bergman abandona os signos visuais da guerra e parte para um aprofundamento do tema. O totalitarismo belicista surge em primeiro plano, agredindo brutalmente a estabilidade psíquica do homem. Ao mesmo tempo que denuncia a guerra como um ato aviltante e ignominioso, o cineasta coloca em causa os efeitos que ela produz nos seres humanos, no caso um casal de artistas que se refugia do mundo numa ilha e cuja crise íntima é precipitada pelo conflito bélico que gradativamente vai se apoderando do lugar. O filme curiosamente passa-se num futuro próximo: o ano é 1971 e o local é uma ilha que bem poderia estar situada na Suécia. Uma guerra de proporções catastróficas está assolando o país. Um casal de músicos, Eva e Jan Rosemberg, primeiros-violinistas numa orquestra sinfônica que acabou de ser desfeita, foram para a ilha à procura de refúgio. Jan está isento do serviço militar por ser cardíaco. Eles vivem num pequeno bangalô que receberam de herança. Aqui, a guerra é relativamente remota, porém aproximando-se cada vez mais com o passar dos dias. Nós nunca vemos a guerra em sua totalidade, com combates ou qualquer ação desse tipo, mas vemos ao que Eva e Jan estão expostos. Eles não têm partido político e não se interessam por qualquer dos dois lados que lutam. Temendo por suas vidas, a preocupação dos dois é sobreviver. O casal torna-se amigo do coronel Jacobi, um membro do pelotão do exército que está encarregado de defender a ilha. Interpondo-se entre os dois, esse terceiro personagem deflagra a incompreensão, a desconfiança, a delação, o adultério. Nas últimas cenas do filme, o desespero, a fuga em direção a um futuro completamente desconhecido. O enfoque da guerra como causa da degradação humana ganha foros aterrorizantes na figura do músico vivido por Max Von Sydow, cujo estado emocional doentio o leva a sair da mais obscura covardia para um assassinato brutal. Já a mulher, sem qualquer possibilidade de uma reação da mesma ordem, acha a saída no adultério. São as 58 vítimas que se transformam em algozes, os agredidos que se tornam agressores. Malgrado a narrativa adotada, linear e direta, da qual estão ausentes a complexidade estrutural, os símbolos e o rigor formal, características próprias das obras do cineasta, Vergonha está ao alcance apenas de um pequeno público. É um filme austero e profundamente trágico — somente aqueles que sentiram uma dolorosa comoção diante daquele plano cruel da criança morta, ou perceberam o significado da última cena da fita, o barco boiando na imensidão do. mar rodeado de cadáveres humanos, é que puderam avaliar e compreender o porquê de uma visão tão pessimista do mundo. Em tempos de violência — conclui implacavelmente o filme de Bergman — não há criação e, sim, destruição; a vergonha não é tanto do indivíduo e, sim, dos regimes e dos mecanismos de violência que aviltam os direitos humanos. Vergonha é agredir, proibir, reprimir. Bergman resolveu protestar contra o seu tempo e o fez com classe infinitamente superior aos contestadores profissionais. Porém, Vergonha pode significar a infâmia diante de outra situação que o próprio Bergman explicou: "Este filme está ligado ao sentimento de culpa que envergonhava a Suécia inteira, neutra durante a Segunda Guerra Mundial e testemunha do horror". XII As cenas principais de Vergonha foram rodadas na ilha de Faro, no lado norte de uma outra ilha chamada Gotland, fora da costa sueca. Faro já havia servido como cenário para Através do espelho, Persona e A hora do lobo, e Bergman desde 1965 estava morando na ilha côm Liv Ullmann, ambos refugiados do mundo, entregues ao amor e ao trabalho. Em 1969, Bergman realizou um primeiro documentário em média-metragem sobre Faro, uma ilha bastante rochosa com poucos habitantes, ideal não apenas como "ninho de amor", mas também como local para meditação. Um local onde ele se enclausura para ler, escrever roteiros, peças de teatro ou ver filmes. Possui uma cinemateca privada com cerca de 350 filmes, e sua predileção por cinema se fixa nas fitas expressionistas alemãs dos anos 20, sobretudo as de Murnau que influenciaram A hora do lobo, 59


mas costuma projetar também os filmes franceses: Cais das sombras, de Mareei Carne; Pepe Le Moko, de Julien Duvivier; Brinquedo proibido, de René Clement, não importa qual Renoir, e mais Bunuel, Hitchcock, Fellini... Aliás, desde 1967, Fellini e Bergman trocavam cartas e havia um projeto que os reuniria num filme em episódios, intitulado Três passos dentro do delírio. O cineasta francês Robert Bresson seria o diretor de um terceiro episódio desse projeto que acabou sendo arquivado, já que os três realizadores estavam trabalhando intensamente em outros filmes. Em 1969, houve um encontro entre Fellini e Bergman em Roma promovido pelo produtor norte-americano Martin Poli. Nós já temos o tema — declarou Fellini — mas não podemos revelar ainda. Será uma obra em dois 'volumes'. Mas se for o caso, cada um terá o direito de dar sugestões ao outro. Nós não teremos segredos um com o outro — somente para o produtor. Será um pouco como um passeio noturno de dois homens que trocam confidencias.

Quando foi dada a palavra a Bergman, ele disse: "Admiro Fellini, tenho as cópias em 16 milímetros de seus filmes, e os revejo de tempos em tempos. Será maravilhoso realizarmos essa obra em comum. Nós não sabemos ainda onde ela será filmada, mas proponho como cenário a ilha de Faro [...]". — O título desse filme foi revelado nesse encontro em Roma: Dueto de amor. Mas o projeto não se concretizou. Fellini iniciou as filmagens de Satyricon e Bergman partiu para uma experiência nova: fazer um filme para a televisão. O rito, feito em 16 milímetros, em preto e branco, e com apenas 1 hora e 15 minutos de duração, aparece, como atesta o crítico Guy Braucourt na revista Êcran (n.° 8, setembro/outubro de 1972), como uma espécie de soma e concentração do universo de Bergman, tal qual ele se exprimiu na primeira (Através do espelho, Os comun-gantes, O silêncio) e depois na segunda trilogia (Persona, A hora do lobo, Vergonha. O cineasta parecia mesmo querer concretizar esse velho e impossível sonho da gota d'água, na qual o artista aprisiona seu universo inteiro: do problema de Deus (sua existência, seu silêncio, sua não-existência) ao problema da Arte (desequilíbrio ou equilíbrio enganoso para o indivíduo? Salvação ou engodo?), da vida cotidiana do casal à dimensão quase metafísica da solidão que esmaga o homem.

60 O filme divide-se em nove quadros onde um trio de atores forma o grupo dos "nadas". Um juiz passa em revista o passado, a vida, a arte desse trio. O juiz aparece em seu escritório nas seqüências ímpares (1 — 3 — 5 — 7 — 9), enquanto os artistas surgem nas cenas pares (2 — 4 — 6 — 8) num quarto de hotel, num confessionário, num camarim de teatro e num bar. A acusação, como em O rosto, se baseia sobre o caráter obsceno do espetáculo apresentado pelo grupo. O juiz interpretaria o papel de Deus que julga a Arte desses três artistas. A Arte, essa atividade humana, que é ao mesmo tempo uma ameaça para a sociedade, pois ela se permite colocá-la em representação — e pelo mesmo modo — um desafio à idéia de divindade, pois consiste em criar a vida. O rito foi exibido comercialmente nos cinemas europeus. No Brasil, é apenas mais um filme de. Bergman que, de maneira inexorável, permanece inédito. Em 1970, Bergman realiza seu segundo filme colorido, A paixão de Ana, onde predomina o verde matizado; e o cineasta persevera na fidelidade a si mesmo, ou ao seu cenário (a ilha de Faro), a seus atores (Liv Ullmann, Bibi Andersson, Max Von Sydow, Erland Jo-sephsson), a seus temas, aproveitados aqui na sua linha mais pura: a incomunicabilidade, a tirania do passado doloroso, a reflexão sobre a arte, a angústia obsessiva da violência física (a matança de animais). São quatro personagens numa pequena ilha do Báltico. Andreas, perseguido por recordações trágicas, suporta dificilmente a solidão que ele mesmo se impôs. A vida em comum que ele propôs à Ana é difícil, ameaçada por perpétua incomunicabilidade. Vergerus é um estranho colecionador de fotografias, que se refugia na indiferença do egoísmo. Sua mulher, Eva, sofre de sua própria incoerência que a faz confundir sonho e realidade. Cada um se exprime em função de um passado que vem à tona sem critério, desordenadamente e por confronto com os outros personagens. Bergman havia declarado numa entrevista que seu desejo mais forte era o de construir um filme que se desenvolveria em um só plano, todo ele em torno de um rosto. A paixão de Ana não é a realização desse desejo, mas o essencial do filme é a exploração dos rostos dos quatro personagens. A câmera capta suas menores expressões, seus olhares, suas reações as mais discretas. Depois ela dilui


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o personagem num plano geral que o integra ao cenário e o faz desaparecer. A paixão de Ana é desse modo a redundância de um estilo que recusa a linguagem brilhante e a narrativa explicativa. As elipses são numerosas e forçosamente desconcertantes. As explicações sobre fatos misteriosos (como a matança de animais) nunca nos são fornecidas. Golpes freqüentes quebram a narrativa. E o espectador é convidado a participar da criação cinematográfica. Os atores são liberados em sua interpretação. Cada um rompe a linha dramática do filme com uma entrevista onde propõe a compreensão dos personagens. O que eqüivale dizer que Bergman quebra a todo momento a ilusão do espetáculo, arrancando violentamente o espectador de seus hábitos acomodados de submissão e identificação. Bergman o contraria para conduzi-lo à reflexão, e depois à criação do filme. A paixão de Ana é, pois, o filme que rompe deliberadamente com os imperativos da linguagem cinematográfica tradicional. Um impacto na obra de Bergman, a obra-prima do cinema de direção de atores. Em 1971, surge o primeiro filme em inglês de Bergman: A hora do amor. Em inglês provavelmente porque os personagens (o casal sueco vivido por Bibi Andersson e Max Von Sydow e o professor norte-americano interpretado por Elliott Gould) só podiam se entender nessa língua. Mas isso não vem ao caso. O que interessa é que o filme não foi bem compreendido, gerando polêmicas e provocando um desabafo de Bergman, quando a fita começou a ser subestimada pelos críticos: "É a primeira vez que conto uma simples história de amor no cinema. Uma história de amor entre dois adultos, escrita e contada por um adulto". Veja, por exemplo, esse comentário extraído do jornal A Folha de São Paulo, quando o filme foi lançado no Brasil em 1971: "A hora do amor é apenas uma fotonovela bem encadernada. Depois desse dramalhão doméstico-sentimental, Bergman pode muito bem parar, porque já fez o que tinha que fazer: trinta e um filmes de alto nível e uma sensacional banalidade". E ao lado dessa equivocada depreciação, uma gafe imperdoável: a foto do ator Max Von Sydow com a legenda: "Ingmar Bergman — como comerciante é o fim". 62 Bergman disse que desejava contar uma simples história de amor. Mas é exatamente por ela que podemos constatar a diferença entre o clássico drama burguês — a mulher, o marido, o amante — e uma obra forte. Um arqueólogo norte-americano, David Kovac, é convidado para jantar na casa de um médico, o Dr. Andreas Vergerus, e se envolve com a mulher deste, Karin. Começam a sair juntos e o triângulo se forma. Mas David e Karin passam a viver juntos momentos de crise, durante os quais a rebeldia e o desespero de David atingem o conformismo e o convencionalismo de Karin, obrigando-a, pela primeira vez, a pôr em questão o seu mundo e o de Andreas. O mundo do arqueólogo, porém, a assusta. Ele vive sem amarras, é livre o suficiente para desprezar a liberdade, não tem raízes e vive à procura não se sabe de quê. Karin precisa da morna paz e do relacionamento superficial que a liga a Andreas, ao mesmo tempo que se sente dolorosamente atraída por David. No final, só resta a Karin recomeçar a monótona vida burguesa ao lado de seu marido e filhos. É natural que depois das profundas meditações bergmanianas sobre a vida, a morte, Deus, a perda da fé, a solidão, a guerra e a paz, a arte — temas de filmes como O silêncio, A hora do lobo, Vergonha, A paixão de Ana —, nos sintamos surpresos diante de uma obra aparentemente tão simples como A hora do amor, que coloca em cena o célebre triângulo do teatro popular. Mas ver nesse filme só o aspecto superficial revelado pela história é um erro. Através da história banal aparecem entrelaçados fios de todos os temas, de todas as obsessões, de todos os fantasmas do universo bergmaniano. A hora do amor — o importante é o título original, The touch, o toque, o amor físico provocado pelo contato da pele, em oposição à rotina da vida de casados — é antes de tudo um filme sobre o fracasso. Fracasso do Dr. Vergerus que não soube ou não pôde conservar o amor de sua mulher, malgrado o conforto burguês e a aparente vida feliz de sua família; fracasso de David que, ao ver Karin grávida, rompe sua ligação com ela; fracasso de Karin, enfim, que, depois de uma liberdade oferecida pelo amor, volta à "ordem burguesa". A hora do amor é também um problema de escolha, aquela que se apresenta a Karin, prisioneira


de uma vida social policiada e que ela n達o sabe como solucionar, salvo no final do filme, retornando 63


à sua vida costumeira e banal de boa esposa e mãe de família. Mas não se trata de um final feiiz, tranqüilizador e conformista na tradição da impoluta moral judeu-cristã. Não é um feliz retorno à "moral", à "normalidade"; a decisão final de Karin surge para o espectador como uma derrota, uma solução desesperada. £ nisso que o filme de Bergman é terrivelmente pessimista. A subestimação de A hora do amor não faz sentido. Por trás de uma simples e banal história de amor, oculta-se uma reflexão desesperada sobre a destruição dos seres humanos, que Bergman consegue sintetizar numa seqüência simbólica, onde David mostra a Karin uma antiga escultura de madeira: essa obra-de-arte está condenada a uma rápida desaparição. Devorada em seu interior por insetos, ela será destruída. Imagem representativa da paixão de Karin que revelada à heroína, a conduzirá à mais desesperada das solidões. XIII A resposta para os que detrataram A hora do amor não tardou e veio logo em forma de indiscutíverobra-prima com Gritos e Sussurros (1972), emocionante e admirável peça da filmografia bergmaniana, envolta em cores significativas: o vermelho profundo, o branco puro, o negro sombrio. Pensamos nos grandes pintores e procuramos uma significação simbólica para as imagens belíssimas que surgem na tela, ao som de delicadas partituras de Chopin e Bach. Imagens que contam a história de quatro mulheres que moram numa casa sem local determinado, mas cujo tempo se situa no fim do século passado. Todas se vestem de branco contrastando com a decoração da casa que é em vários tons de vermelho. Uma das mulheres está morrendo de câncer e as outras são suas irmãs e a governanta. Quatro rostos de mulheres minuciosamente estudados pela câ-mera, quatro histórias misturadas e separadas, quatro comportamentos são confrontados. Agnès, solitária, frágil e dócil — vítima expiatória consentida. Ana, sua criada, forte, devotada até a morte, digna de sua ativa resignação. Dois seres que aceitaram suas vidas sem rebeldia, nem desespero. Em face delas, instável e fugaz, Karin, culpabili-zada, dura, insatisfeita, e Maria, fútil, sem escrúpulos e sem remorso, conduzida pelo instante presente. Entre essas duas irmãs se trava uma 64 espécie de combate, elas se odeiam e se amam, unidas e divididas pelo passado, opostas pelo temperamento, unidas pela solidão e um condicionamento burguês. Onipresente, lá está a morte — aquela dos momentos passados, aquela da longa agonia de Agnès. Há uma seqüência de alucinação em que a morte pede ajuda para atravessar o caminho da solidão onde ela irá entender os vivos. Karin e Maria fogem. Ana nessa última noite oferece a Agnès moribunda o auxílio de sua presença física. Uma das preponderâncias da obra é exatamente essa tentativa constante de um contato físico que substitui a tentativa de comunicação verbal — esta última utilizando a situação presente, mas também a evocação do passado morto, quase sempre mais vivo, mais significante do que o momento vivido. Esse filme perfeitamente contido é de uma audácia extrema: tri-cotomia fundamental do cenário onde brilha às vezes a luminosidade de um Auguste Renoir, como na cena das recordações do jardim da infância morta. Quatro paredes prendendo quase inteiramente as mulheres, admiráveis atrizes. Os homens aparecem pouco e surgem como catalisadores da dramaturgia, exceto o pastor que introduz a meditação cristã subjacente à obra: ao ministrar a extrema-unção a Agnès, ele diz: "Rogue por nós, que permanecemos nessa terra sombria e suja, sob um céu vazio e cruel". Candura filtrada em ritmos lentos rompidos por atrozes ester-tores de agonia, pela automutilação sangrenta do sexo de Karin. Rostos de ódio ou de ternura. E essa ternura passando por uma aproximação gestual inocente ou perversa. Enfim, a presença constante de todas as formas de morte que desde os primeiros instantes atormenta o rosto de Agnès, traz as marcas do envelhecimento físico. Em contraste, a presença da vida, da energia, da espontaneidade no rosto de Maria. Só Bergman, talvez, pode se permitir a essas rupturas de códigos clássicos da arte cinematográfica. XIV As relações de Bergman com o grande público sempre foram ásperas. As platéias o hostilizavam porque não compreendiam seu 65


pessimismo, sua amargura, suas inquietações, sua dilacerante visão do mundo. Não é novidade, o público sempre preferiu ir ao cinema para sonhar, para fugir, para se divertir, e Bergman, ao contrário, propunha no lugar de sonhar, pensar, ao invés da fuga, o compromisso com a verdade interior dos seres, no lugar do divertimento, a arte. Por isso seus filmes não eram sucesso de bilheteria, não entusiasmavam os distribuidores e tampouco os exibidores ávidos de vender às grandes platéias os modismos, os sensacionalismos, os pie-guismos e as amenidades que, afinal, elas tanto queriam. E nada mais normal do que entre comerciantes e consumidores haver uma certa afinidade. Portanto, era perfeitamente compreensível a infalível prevenção por quem estava dizendo coisas profundamente pessimistas, mas sérias e verdadeiras. Ninguém estava querendo esclarecer suas próprias verdades, tinham predileção pela mentira que nos rodeia nesse mundo de vulnerabilidades. E Bergman era um artista que se negava a mentir, a fazer concessões, por isso entre ele e o grande público sempre houve um abismo. A hora do amor foi uma espécie de ponte sobre esse abismo, uma abertura relativa, uma inesperada mas válida e oportuna tentativa de comunicação com o grande público que o detestava. Não, evidentemente, uma amenização de sua visão do mundo, mas um ensaio acessível em busca de novos horizontes com o objetivo de conquistar um público adverso. O filme conseguiu ótimos resultados nas bilheterias do mundo inteiro, e Bergman pelo menos deixou de ser aquele ilustre desconhecido. A grande surpresa, entretanto, foi proporcionada por Gritos e sussurros, um filme bem mais complexo, mas que não ficou restrito aos elogios dos críticos e intelectuais, obtendo calorosa recepção por parte do grande público, inclusive no Brasil, onde foi atração nos cartazes, virando semanas nos cinemas das grandes cidades. Porém, Bergman iria atingir um novo tipo de marco em sua carreira — o da plena comunicação com o grande público — com Cenas de um casamento (1973), não obstante esse filme ter sido rodado originariamente em 16 milímetros para a televisão com uma profusão de doses e cenas exaustivamente dialogadas. Na verdade, embora mundialmente conhecido e admirado, Bergman nunca foi um cineasta muito popular nem mesmo em seu próprio país, a Suécia, 66 onde seus filmes só eram vistos por uma elite intelectual. Mas na primavera de 1973, todas as quartas-feiras, no horário que a televisão levou ao ar, durante seis semanas consecutivas, os episódios de Cenas de um casamento, a Suécia virtualmente parou para ver e ouvir o que Bergman tinha a mostrar e dizer sobre o casamento. Relata o crítico Stig Bjorkman que metade dos telefones do país foram retirados do gancho, para que as famílias suecas pudessem acompanhar, sem serem interrompidas, a história de Johan e Marian-ne, o casal protagonista. Condensado para 2 horas e 40 minutos de duração, Cenas de um casamento foi lançado nos cinemas da Europa e dos Estados Unidos em 1975, constituindo-se num sucesso impressionante de público. Na França, a fita figurou na lista dos melhores do ano, elaborada pelos críticos e "leitores" das principais publicações especializadas. Quando o filme estreou em Nova Iorque, todos os críticos elogiaram. Não apenas a direção, mas também, e principalmente, o trabalho da atriz Liv Ullmann. Tanto que ela teria ganho o "Oscar" de melhor interpretação feminina de 1975, se Cenas de um casamento não tivesse sido feito para a televisão. Agora, eram os distribuidores que apressavam a importação de um filme de Bergman, que os exibidores, igualmente açodados pela urgência de encher seus cofres, desejavam ver logo ocupando a tela de seus cinemas. Cenas de um casamento, portanto, chegou com rapidez ao mercado brasileiro, tornando-se além de um dos dez melhores filmes exibidos no país em 1975, conforme as tradicionais listas dos críticos, uma das fitas mais bem sucedidas em termos de bilheteria daquele mesmo ano, em que as livrarias aproveitaram e lançaram o livro do filme, editado pela Nórdica, com tradução de Jaime Bernardes. Os exemplares que narravam aquela impiedosa radiografia da vida a dois também se esgotaram rapidamente. Cenas de um casamento nada mais era do que uma incursão íntima na vida de um casal em processo de rompimento de relações após dez anos de plena felicidade. A fita estruturava-se em seis capítulos. 1) "Inocência e pânico" — Johan (Erland Josephsson) e Marian-ne (Liv Ullmann) vivem felizes e aparentam um equilíbrio perfeito. 67


São burgueses típicos: ele, engenheiro, poeta nas horas vagas; ela trabalha num escritório jurídico, especializado em divórcios. O casal, aparentemente ideal, é confrontado durante um jantar com um outro casal que não cessa de se agredir, Peter (Jan Malmsjo) e Katariná -(Bibi Andersson). É o primeiro signo de uma incompreensão entre Johan e Marianne. 2) "A arte de varrer para debaixo do tapete" — Marianne sente uma certa ansiedade, e a entrevista com a Sra. Jacobi, que deseja se divorciar depois de vinte anos de casada, lhe faz compreender que alguma coisa não vai bem entre ela e Johan. Este recebe telefonemas misteriosos. Depois de uma noite no teatro, eles brigam, mas varrem as mágoas para debaixo do tapete. 3) "Paula" — O que estava oculto aparece. Johan tem uma amante — Paula — e decide abandonar Marianne para viver com ela. Marianne se mostra aturdida e perplexa. Depois de agressões mútuas e discussões, eles fazem amor pela última vez. 4) "O vale das lágrimas" — O tempo passa. Eles se encontram uma tarde para jantar. Recordações embaraçosas, constrangedoras, infelizes. Marianne parece começar a se recompor, a se reencontrar. Ela lê para Johan seu diário íntimo. Ele adormece. 5) "Os analfabetos" — Marianne e Johan se encontram para assinar os papéis. E tudo explode. Todos os ódios e amarguras antes lançados sob o tapete. Cada um procura destruir o outro, tanto física como moralmente. 6) "No meio da noite" — Alguns anos mais tarde, Johan e Marianne se encontram ocasionalmente. Ela está casada com outro. Mas os dois vão para uma casa de campo emprestada por um amigo. O amor substitui a amizade, o equilíbrio é reconquistado, mas o casamento não se restabelece. O amor, livre, total, que deve ser dado, que deve ser recebido, como força comum. Para Bergman, eis aí uma afirmação quase religiosa dessa possibilidade. Como em A hora do amor, são os impulsos contraditórios da ânsia de liberdade e do desejo de segurança que conduzem ao fracasso todas as tentativas de uma relação matrimonial estável. Para Bergman, parece ser necessário separar amor e desejo. Muitos anos depois do casamento, e outros tantos depois da separação, Johan e Marianne descobrem enfim que não estavam apaixona68

dos, mas apenas se entendiam bem. Só separados eles se sentem em condição de se relacionarem de igual para igual, pois agora eles não são mais marido e mulher, mas duas individualidades distintas e livres. Na'verdade, durante o filme inteiro Bergman recusa as cenas ditas "conjugais" para se concentrar no processo, às vezes árduo, de rompimento, de "liberação". E talvez seja Marianne quem sofre mais, e mais cruel e sinceramente; irá atingir uma liberdade mais completa. No rosto expressivo de Liv Ullmann, o espectador consegue ler as menores variações de temperatura afetiva. Ela e Bergman acharam graça quando perguntaram se Cenas de um casamento refletia a história da própria união da atriz com o diretor. E explicaram a semelhança, dizendo que o filme parecia mesmo com a vida em comum deles, porque foi feito para se parecer com o casamento de todo mundo. O certo, entretanto, é que Bergman e Liv se separaram depois das filmagens de Cenas de um casamento. Bergman silenciou-se diante, do fato, mas Liv revelou que a vida amorosa dos dois tornou-se conflitante até um ponto de saturação. No livro autobiográfico, Mutações, ela confessa que errou ao se prender na solidão de sua convivência com ele durante quase dez anos, e aponta vez por outra as mentiras, exigências e manias do homem Bergman. "Conclui que como atriz devia tudo a ele, mas que ficaria louca se continuasse a ser sua mulher." — "Achei que devia me assumir sozinha". XV Agora também Ingmar Bergman está sozinho na sua casa na ilha de Faro, entre seus livros, seu estúdio de montagem, sua carpintaria ("Fazer uma mesa bem feita me dá a mesma e maravilhosa sensação de realizar um filme."), e seus filmes que fazem parte de uma cinemateca onde ele os exibe para si mesmo (filmes de Raoul Walsh, do japonês Kurosawa, de Fellini e também Casablanca, de Michael Curtiz, que ele redescobre, admira e repete várias vezes. Introspec-tivo e isolado como os personagens de seus filmes, ele de repente sente que já é hora de pensar no futuro e seguir avante com a vida e a imitação da vida, o cinema.


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Marca, então, um encontro com uma antiga paixão. Não com uma bela mulher, mas com uma magistral obra-de-arte: um encontro com A flauta mágica, obra-prima de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), que escreveu sua música para um libreto do ator-em-presário Emmanuel Schkaneder. Os especialistas em ópera afirmam ter sido esta a única das obras de Mozart em que "a ação interior" ascende ao primeiro plano cênico, situando-se no nível mais alto da espiritualidade do artista. Segundo consta, Mozart compôs A flauta fnágica já com a saúde em farrapos. Na casa dos 30 anos era um ser que se consumia inexoravelmente no exílio terreno, como Holder-lin se refugiava na loucura. Em 30 de setembro de 1791, A flauta mágica é encenada pela primeira vez no Freihanstheater de Viena, com escasso êxito público. A 5 de dezembro, contando apenas 35 anos, Mozart é sepultado na vala comum de um cemitério vienense. Era o último ato de uma tragédia cósmica que só os gregos saberiam escrever. A flauta mágica pode, portanto, analogamente ao Réquiem, ser considerada como o testamento musical de Mozart. Constitui a face feérica, paradisíaca, luminosa, apolínea, da moeda. A outra, trágica, solene, sombria, dionísica, é o Réquiem. Em ambas, porém, encontra-se superiormente expressa a visão metafísica de que a morte é o vestíbulo da imortalidade, a porta pela qual se penetra num mundo real, não-evasivo, onde a generosidade e o amor unem todos os homens, reino em que a Idade de Ouro é afinal reencontrada. Talvez tenha sido esse aspecto, o da inspiração mais profunda de Mozart, que tenha fascinado Bergman e o levado a filmar A flauta mágica em 1974, fazendo questão de recordar, porém, que ele viu a ópera pela primeira vez quando tinha 12 anos; ficou tão impressionado que passou a encená-la em seu teatrinho de marionetes. As referências indiretas a esse fato podem ser encontradas em A hora do lobo, na cena em que o anfitrião apresenta a seus hóspedes um pedaço da obra de Mozart num teatro de marionetes. Esse encantamento infanto-juvenil Bergman fez questão de colocar no filme, refletido em doses da platéia do teatro em que A flauta mágica foi filmada, especialmente no rosto de sua filha, várias vezes ocupando maravilhada todo o espaço da tela. Como Cenas de um casamento, A flauta mágica foi realizado originariamente para a televisão sueca e depois adaptado para ser 70

exibido nos cinemas. As filmagens duraram cinqüenta dias e foram feitas em uma réplica do Teatro Drottningholm, de Estocolmo, tal como era no século XVIII. Enquanto trabalhava, Bergman externou sua satisfação: "Estou vivendo os momentos mais felizes da minha vida. Sinto-me como se tivesse retornado à infância". A flauta mágica conta a história de Tamino que, ao extraviar-se de um grupo de caçadores, é ameaçado por uma terrível serpente. Salvo por três damas da Rainha da Noite, esta lhe pede que vá libertar sua filha Pamina, raptada por um demônio. Para que Tamino e seu ajudante, Papageno, estejam a salvo dos perigos, a rainha lhes dá uma flauta mágica e um sino encantado. Três gênios encarnando adolescentes os conduzem ao Templo do Sol, onde Pamina tenta escapar de Sarastro, que, embora não seja o malfeitor descrito pela Rainha da Noite, se recusa a permitir que Tamino leve a jovem, a não ser que comprove ser digno dela. Como primeira prova, ele e Papageno devem passar um longo tempo em silêncio. Tamino aceita, mas seu amigo tem dificuldades em resistir às tentações. A rainha tenta induzir Pamina a participar de um complô para eliminar Sarastro, o que lhe daria poderes sobre o domínio do Sol. Pamina recusa a assassinar Sarastro. Monostatus, mouro que serve ao sacerdote, oferece os seus préstimos, mas o golpe fracassa. Julgando-se traída por Tamino, Pamina tenta o suicídio, mas é salva. Tamino e Pamina passam juntos agora pelas últimas provações. Ao som da flauta, atrevem-se a passar pelo corredor dos horrores, enfrentando a água e o fogo. Ao fim do caminho, abrem-se as portas do Templo de Isis ao casal que suporta os transes, e Sarastro recebe os amantes consa-grando-os com todo o esplendor de seu templo. A flauta mágica, por sua realização e pelo caráter maravilhoso em que o filme se desenvolve, se apresenta sobretudo como um sonho de criança. De onde, verdadeiramente a escolha de uma direção teatral, ao invés do uso de efeitos cênicos, providencia milagres ao nível fantásticoonírico. Os puristas protestaram porque Bergman modificou o texto da ópera, mas a intenção era mesmo fazer um filme caloroso, bem ao alcance do grande público e, em particular, das crianças. Portanto, a procurada ingenuidade se justifica, ainda mais se atentarmos para o fato de


que o objetivo ĂŠ um total abaixo Ă monumen-talidade em proveito de um humanismo animado de paixĂľes. 71


Por outro lado, esse encontro emocionante de dois gênios serviu para demonstrar de forma categórica as potencialidades cinematográficas da ópera, gênero dramático musical sistematicamente ultrajado na tela por encenações de gosto duvidoso. Aqui, tanto os admiradores do cineasta sueco, como os cultores do músico austríaco encantaram-se com o carinho e a singeleza com que A flauta mágica foi "recriada", em esplêndidas imagens coloridas. Sem ser um filme de Bergman na linhagem de Noites de circo, Morangos silvestres, O silêncio, Persona, A hora do lobo e Gritos e sussurros, A flauta mágica é, porém, um saudável interregno numa carreira intensamente marcada por sufocantes psicodramas e densas reflexões metafísicas. Mozart ambicionava mais do que contar com música a história de um cavalheiro à procura da amada, prisioneira no castelo de um feiticeiro. Para ele o projeto deveria ser simultaneamente uma ópera-bufa e uma ópera dramática. Por isso, além de glorificar o amor, ele fez questão de exaltar a fraternidade e a igualdade segundo os princípios da Maçonaria, da qual faziam parte tanto ele como Schkane-der, o obscuro autor de libreto. Ê evidente que Bergman não omitiu esses elementos, mas preocupou-se mais particularmente com a exaltação do amor como forma de conhecimento humano. Esse filme cheio de surpresas, que fascina inicialmente pela insólita fusão de quatro meios de expressão — cinema, teatro, música e televisão — foi exibido pela primeira vez fora de competição no Festival de Carmes de 1975, onde os críticos viram assim a união BergmanMozart: A flauta mágica, feito para a televisão sueca, parece ter conquistado a unanimidade dos críticos e do público que assistiu ao filme em Cannes. Sem dúvida, a fita será sempre admirada como um modelo da adaptação escrupulosa e ao mesmo tempo maravilhosa da ópera para o cinema. O cineasta toca genialmente em muitas teclas, sem emitir qualquer nota falsa. Magia infantil tratada literalmente à maneira do Teatro de Dottingholm, a pequena ópera real da Suécia. Realismo do rosto dos atores com pouca maquilagem e nenhuma fantasmagoria nas roupas, a ingenuidade do Singspiel com sua unidade diante do público.

72 No Temoignage christien, Mireille Amiel observou o seguinte: Ainda que fiel à obra de Mozart, Bergman introduz certo colorido próprio de sua arte cinematográfica, mas sem jamais deturpar o sentido: com os movimentos mais simples, ele coloca a Rainha da Noite num mundo mais onírico do que fantástico, num universo de sonhos e pesadelos significativos ou inquietantes, e dá substância dramática mais rica opondo dois mundos como o noturno e o solar, o masculino e o feminino, o da ilusão e o da sentença.

A flauta, encantada, de Mozart, que se tornou encantatória nas mãos de Bergman, foi um grande êxito popular no mundo inteiro. No Brasil, o público chegou a formar filas nas portas dos cinemas, não se incomodando nem com as péssimas qualidades das cópias que lhe foram exibidas, em mais um monstruoso crime praticado contra uma obra de arte, num país avesso à cultura, onde às vezes, estranhamente, o povo é obrigado a rir para não chorar. Um país que, além da fama de não ser sério e de não ser governado por nenhuma cabeça inteligente, estava se tornando absurdamente xenófobo. Para proteger o cinema nacional, foi criada uma lei que obrigava todos os filmes estrangeiros que entravam no país a serem recopiados aqui em nossos laboratórios desequipados, que desfiguravam uma obra-prima como A flauta mágica, sobretudo em seu colorido original, profundamente adulterado. XVI Depois dessa viagem de Bergman pelo planeta das maravilhas ou o país das fábulas, segue uma outra viagem do cineasta, agora de novo visitando o interior humano, para nele procurar uma razão para a vida, o amor e a morte. Variações obsessivas de um cineasta, autor de um cinema metafísico praticado ao longo de uma carreira que completava trinta anos. Face a face, já o título convida ao jogo de espelhos, à ilusão e ao reflexo que serve de modelo ao rosto. O rosto de uma mulher que, diante de uma profunda crise de angústia, é colocada frente a si mesma para uma auto-analise. Liv Ullmann faz o papel dessa mulher de infância infeliz e que um dia, na maturidade, indaga a ela mesma sobre o sentido de sua vida vazia e sem 73


motivação. Sim, Liv Ullfiiann é de novo a intérprete de Bergman. O homem separou-se de sua mulher, mas o artista não pode afastar-se de sua musa, não pode criar sem ela. O diretor de cinema não pode separar de sua atriz predileta, Pigmaleão não pode desistir de modelar Galatéia. Face a face foi feito em 1975, era mais uma meditação bergma-niana sobre as angústias existenciais das pessoas de quem Deus esqueceu. Sem dúvida, um tema sempre presente nos filmes do cineasta sueco, mas houve quem enxergasse muito além disso na fita, admitindo haver uma metáfora nessa obra. Dessa forma, a mulher interpretada por Liv Ullmann seria a Suécia, um país onde os males sociais foram curados, mas cujo interior é um caos. Liv Ullmann personifica a Dr.a Jenny Isaksson, uma psiquiatra bem-sucedida na carreira, ajustada na sua vida pessoal e cujo comportamento equilibrado começa a sofrer confrontações no relacionamento com uma de suas pacientes. Esta a faz ver, pela primeira vez, que é ilusória a sua auto-suficiência e que seu equilíbrio pode, a qualquer momento, ser rompido. Enquanto o marido mantém-se ausente num congresso fora da Suécia, Jenny tem algumas aventuras, a mais profunda das quais a liga ao professor Thomas Jacobi, meio irmão de sua paciente. Jenny vai morar temporariamente em casa dos avós e os vê aproximarem-se sempre mais do fim da vida, especialmente o avô, enfermo. As difíceis experiências provocadas pela situação da paciente, que foge do hospital, e as pressões emocionais que cada vez mais a angustiam, levam a médica a tentar suicídio. Entre a aluci-nação e a realidade passa-se o período de convalescença da psicanalista, sempre assaltada pela imagem de uma mulher, que certa vez encontrou, caminhando de bengala e com um olho vazado. Seu marido vem visitá-la, sua filha também... Thomas comunica-lhe que vai para a Jamaica... A vida continua. Como se nota, temos novamente Bergman aprofundando uma temática crucial através de um código que lhe é peculiar (obsessões, fantasmas, desesperos). Chamado de cineasta metafísico, ele fez de Face a face um filme sobre a dificuldade de ser, uma incisiva reportagem sobre a crise depressiva de uma vida. Essa crise eclode após 74 uma tentativa de estupro de que Jenny é vítima numa casa vazia, onde fora atender uma paciente. Esse incidente, porém, que leva a protagonista a tomar consciência de sua total frigidez, é apenas a gota d'água que faz derramar a angústia há longo tempo contida. A Dr.a Jenny não era feliz. Estava em plena angústia existencial, usava "máscara", um falso ego — a cena onírica da pele que se desprende da face. Não querendo conscientizar-se do vazio de sua vida e não estando preparada para cuidar de psicóticos, explode em Jenny os sentimentos e as fantasias edipianas, matricidas e filicidas. Ela sonha que amava a mãe e depois a agredia. O sonho, durante a sua luta entre a vida e a morte no hospital, após tomar um vidro de soníferos, mostra Jenny vestida de Chapeuzinho Vermelho (a história que sua avó lhe contava quando criança e que tanto medo lhe causava) e revela o ódio inconsciente dela pela avó, que costumava castigá-la, fechando-a dentro de um armário. Este tema não é novo em Bergman. O processo de autodesco-berta foi um aspecto importante em Cenas de um casamento, através da esposa feita também por Liv Ullmann. Em Face a face, há ainda uma espécie de clima de reconciliação. Quando pela primeira vez o espectador estabelece contato com a avó de Jenny, parece-lhe que o tipo é de uma doçura indescritível. Nesse primeiro contato, a avó (Tore Segelcke) é uma senhora bonita, adorável e compreensiva. No neurótico sonho de Jenny, ela aparece em roupas negras, símbolo e realidade de um mundo reprimido sexual e afetivamente. Ela impõe à protagonista a noção de inibição e controle. Na cena final, a visão de tristeza e amor com que Jenny olha o velho casal é uma forma de compreensão. Ela descobre uma nova realidade e uma nova forma de relacionamento humano. É uma das cenas mais comoventes e belas que Bergman já filmou. Como aconteceu por ocasião do lançamento de Cenas de um casamento, a Editora Nórdica colocou nas livrarias o livro Face a face, acompanhando a trajetória do filme nos cinemas brasileiros. No prefácio do livro foi publicada uma carta que Bergman escreveu para os atores e membros da equipe pouco antes do início das filmagens, deixando claro que Face a face refletia o seu próprio estado de espírito na época. 75


Já há algum tempo — diz a carta — venho vivendo com uma angústia que não tem causa tangível. Um sofrimento agudo como uma dor de dente, cuja causa nem o mais consciencioso dos dentistas encontraria em meus dentes ou em qualquer outra parte do meu corpo. Depois de ter dado à minha angústia vários rótulos, cada qual menos conveniente do que o outro, decidi começar a investigar de modo mais metódico.

XVII No início de 1976, quando as cópias de Face a face estavam sendo preparadas para a distribuição nos mercados europeus e americanos, Bergman sofreu o maior susto de sua vida. Foi no dia 29 de janeiro. Ele estava ensaiando A dança da morte, de Strindberg, no Teatro Dramaten de Estocolmo, quando os agentes do fisco foram interrogá-lo. Depois revistaram sua casa na ilha de Faro, confiscaram seu passaporte e lhe proibiram de deixar a cidade. Os acontecimentos o levaram ao hospital. Três meses mais tarde, o Estado formulou a acusação: Bergman seria culpado de ter constituído em 1968, época em que já era mundialmente célebre mas não reconhecido na Suécia, uma firma chamada "Persona", com um de seus filmes, a fim de produzir em regime de co-produção, particularmente com Fellini. Segundo "o leão" sueco, essa empresa na verdade estava encarregada de ceceber ilegalmente os direitos dos filmes de Bergman no estrangeiro. À primeira acusação seguiu-se outra: o cidadão Ingmar Bergman teria deixado de declarar uma renda de dois milhões e quinhentos mil coroas suecas. Ordens e autoridades novamente ameaçavam-no. Era como se seu pai capelão ou seus professores tivessem voltado. Bergman ameaçou vir a baixo. Com a saúde abalada, e nessa altura já sofrendo de úlcera, o cineasta decide então emigrar definitivamente. Mas não foi apenas o grande diretor o atingido pela humilhação burocrática. A atriz Bibi Andersson, o ator Max Von Sydow e o fotógrafo Sven Mykvist foram perseguidos em bases idênticas. No exílio, Bergman atacou a burocracia, e em entrevista ligou-a à humilhação dos homens, considerando-a uma das ilustrações do mal. "A burocracia — declarava ele à revista francesa VExpress — baseia-se em um sistema de humilhações. A pessoa humilhada passa a 76

se interrogar como fazer para humilhar outra. Ê dos piores venenos de nossos dias." Em outra entrevista, concedida a três jornalistas suecos, Bergman foi ainda mais explícito: "Sempre achei humilhante e ridículo, quando era diretor do Teatro Dramaten, em Estocolmo, ter que me dirigir ao Ministério da Educação Nacional para explicar àqueles senhores coisas que eu tinha feito. Também não gostava de ver os contadores examinando nossos livros, procurando furiosa* mente qualquer erro... Humilhar e ser humilhado pela burocracia é um dos componentes do nosso sistema social, um de seus maiores venenos". Saindo da Suécia, o cineasta teve que desistir de um velho projeto: levar para o cinema Autodefesa de um louco, o famoso drama autobiográfico de August Strindberg. A rodagem da fita estava sendo planejada para os estúdios da Cinematograph, empresa que pertencia ao próprio diretor. A fita co-financiada pela televisão sueca obedecia um esquema semelhante ao de Cenas de um casamento, ou seja, seria dividida em cinco partes para a programação televisiva, com duração de 50 minutos cada uma. Depois, com oportunos cortes e uma montagem apropriada, seria feito também um filme de duração tradicional — 90 minutos — destinado à tela dos cinemas. Na fita, Strindberg seria interpretado por Hasse Ekman, e Bibi Andersson interpretaria, por sua vez, o papel de Siri Von Essen, a primeira mulher de Strindberg, o qual cometeu verdadeiras loucuras quando tomou consciência de que sua mulher estava se afastando dele. Siri foi uma espécie de pré-feminista empenhada nas campanhas dos sufragistas internacionais daquela época, com todas as suas reivindicações a respeito do papel e dos direitos da mulher na sociedade. Ao deixar a Suécia, Bergman passou rapidamente pela Suíça e visitou Charles Chaplin no seu refúgio em Corsier Sur Vevey. Conversaram sobre tudo, inclusive cinema, naturalmente, e, aos 87 anos de idade, Chaplin revelou a Bergman seus projetos, um dos quais — a história de um condenado à morte que, depois de fugir da prisão, descobre uma nova vida — impressionou o cineasta sueco. Mais tarde, em Paris, Bergman confessa que o exílio de agora em diante lhe serviria de estímulo. Voou, então, para Los Angeles, acompanhado de uma "nova" esposa, a condessa Ingrid Van Rosen. Enquanto a opinião pública do mundo inteiro fazia críticas indignadas 77


contra o suposto paraíso sueco, Bergrnan visitava os estúdios de Hollywood que lhe abriram suas portas para ele fazer qualquer filme; mantinha conversas com diretores, produtores e atores, e num desses contatos nasceu o financiamento para o quadragésimo filme, O ovo da serpente, o primeiro que ele iria fazer fora de seu país. Quem se interessou pelo projeto foi o produtor italiano Dino De Laurentis que havia transferido seu "império" para os Estados Unidos, fugindo ao fisco italiano. Bergrnan havia esboçado o roteiro em 1965, agora só faltava dar os últimos toques complementares na história de dois trapezistas na Berlim pré-nazista de 1923. Daí para frente, só faltava Bergrnan começar o filme. Quatro milhões de dólares era o orçamento para o grande espetáculo. Primeiro foi feita a reconstituição de um bairro de Berlim nos estúdios da Baviera de Munique, e o diretor, tendo à sua disposição Liv Ull-mann, David Carradine, Gert Froebe, Heinz Bennent, James Whitmo-re, mais quarenta e cinco atores e atrizes, três mil figurantes, iniciou as filmagens que duraram dezesseis semanas. Foi magnífico — extravasou o cineasta. — Tive tempo de atravessar a Alemanha em busca de meus atores. Para isso a Alemanha é ideal. Tem cem mil teatros municipais, trinta e dois só na cidade de Munique. Quanto ao estúdio... Pedi ao cenógrafo Rolf Zehetbauer, que já se superara em Cabaret, que reconstituísse para mim uma rua de Berlim, com seus bondes e seus carros. De que comprimento precisa — Não sei, 150 metros, talvez. — Muito bem, prepararei 200 metros, respondeu ele. E o fez.

Para suas pesquisas, Bergrnan conseguiu um fichário de mil fotos, além dos conselhos epistolares de Lotte H. Eisner, que trabalhou com Henri Langlois na Cinemateca Francesa: "Ela me indicava os filmes antigos sobre Berlim a que eu devia assistir". No entanto, a melhor documentação de Bergrnan ainda foi a sua memória: "Aos 17 anos de idade, em 1936, eu estava na Alemanha. Vi Hitler durante as festas do Partido Nazista. Em 1923, a brutalidade ainda era verbal. Mas minha intenção era mostrá-la como seria dez anos depois". O filme passa-se na Berlim de 1923. Do sábado, 3 de novembro, ao domingo, 11 de novembro. Um clima de pavor e de miséria reina sobre uma cidade que parece se resignar diante da vertigem de uma 78 inflação galopante. Um maço de cigarros custa quatro milhões de marcos. Ninguém confia mais no futuro, nem no presente. Abel Ro-senberg (David Carradine), ao voltar a uma pensão onde morava, constata o suicídio de seu irmão Max, com o qual ele executava um número de trapézio, voando dois meses antes, em companhia de Manuela (Liv Ullmann), mulher de Max. Depois de um interrogatório na polícia onde lhe perguntam se é judeu, Abel vai ao cabaré "Zun Blauen Esel" ("O Jumento Azul"). Lá ele encontra Manuela e lhe conta a morte de Max. Convocado ao necrotério para uma identificação do cadáver, Abel é colocado em presença de outros cadáveres, todos vítimas de mortes misteriosas. O inspetor Bauer (Gart Froebe) lança suspeitas ao antigo acrobata e o prende. Ê Manuela que o faz sair da prisão e que o conduz para o Jumento Azul. No cabaré decidem que devem tentar sobreviver juntos e encontram o Dr. Vergerus (Heinz Bennent), um cientista que em tempos passados conheceu Abel e oferece-lhe a oportunidade de terem um apartamento alugado, graças ao salário que lhes pode pagar para trabalharem em sua clínica. Abel encontra ocupação nos arquivos e Manuela é engajada na lavanderia. Durante esse tempo, os nazistas começam suas expedições punitivas e assassinam o proprietário judeu do Jumento Azul. Abel fica intrigado pela natureza do arquivo que ele deve proteger. Ali as atitudes e a documentação são carregadas de mistério. Fala-se em estarrecedoras experiências que o Dr. Vergerus pratica com pessoas que se dispõem a tudo por um prato de comida. Abel não acredita, mas logo faz uma horrível descoberta ao voltar para casa: Manuela jaz aparentemente morta sobre o leito, com um fio de sangue escorrendo da boca. Abel compreende, então, a proveniência do odor bizarro que havia notado desde a sua instalação no apartamento. Um gás tóxico entrava no local por um tubo, provocando os mais diversos distúrbios em seus ocupantes. Ao descobrir câmeras ocultas por trás dos espelhos do guardaroupa, Abel associa o fato com o que ouvira nos arquivos. Vergerus conduzia suas cobaias voluntárias à loucura, depois ao suicídio. Antes de pôr fim à sua existência, engolindo uma cápsula de cianureto, o cientista projeta para Abel vários filmes, em que uma mulher fechada durante dias num quarto com um bebê, que


grita sem 79


parar, acaba por suicidar-se com uma pistola colocada à sua disposição. Um outro jovem se faz injetar produtos tóxicos e, após uma fase de depressão, bate a cabeça contra as paredes. Essas experiências, às quais se prestaram também Manuela e o irmão de Abel, eram destinadas aos estudos dos limites da resistência humana. Manuela é salva, mas terminará sua vida num hospício. Abel é novamente preso, mas obtém autorização para deixar a Alemanha e ir trabalhar num circo suíço. Porém, durante o trajeto que o leva à estação, ele salta para fora do veículo. Qual será seu fim? Assim resumido, O ovo da serpente parece emprestar timidamente seu tema à ficção científica e seus aspectos "retrós" à moda. Os críticos se embaraçaram. Um disse que Bergman havia dirigido um filme que nada tinha a ver com Bergman. Outro confundiu o filme com um "policial". E houve os que afirmaram tratar-se de um filme produzido para levantar milhões de dólares. No entanto, O ovo da serpente não deixou também de angariar elogios. Por exemplo, o crítico François Forestier, da revista francesa UExpress, chama a atenção para o que ele classifica como "sintomas do universo obsessivo do cineasta, seus temas favoritos: a humilhação, o pesadelo, o silêncio de Deus, o suicídio, os espelhos. Esse medo do vazio, essa agonia apavorante na humilhação mais total (aqui, a de ser judeu na Alemanha pré-nazista)". Diz também que a chave para a compreensão do filme está numa de suas cenas mais fortes: "Liv Ullmann, entrando numa igreja, implora o perdão de um padre: Toda essa culpa — diz ela —, é mais do que eu possa suportar. Comovido com a súplica, é o religioso quem, no fim, lhe pede perdão. É o padre que se abaixa." O padre é interpretado pelo ator norte-americano James Vhitmore e o que ele diz para Liv Ullmann é textualmente o seguinte: "Vivemos muito longe de Deus, tão longe que com toda certeza ele não nos ouviria se lhe pedíssemos ajuda. Por isso, devemos ajudar-nos uns aos outros. Devemos dar uns aos outros este perdão que um Deus remoto nos nega. Eu lhe digo que você está perdoada pela morte do seu marido, você não tem mais culpa alguma. Eu lhe peço perdão pela minha apatia e indiferença. Você me perdoa?". Quando O ovo da serpente estreou no Rio, o Jornal do Brasil pediu a opinião de um padre — o padre Machado, professor de Filosofia da Linguagem da PUC. Ele assim se manifestou: 80 A religião significa um esquecimento, perdão, confiança, esperança e a visão de Bergman da religião me pareceu uma visão muito justa, porque mostra o padre também com necessidade de perdão. Para mim foi a cena mais bonita do filme, aquela hora em que ele se ajoelha e Manuela, com as mãos sobre sua cabeça, o perdoa. É de uma densidade dramática excepcional.

Pode parecer heresia um padre defendendo um filme de um cineasta ateu, mas heresia maior cometeram os críticos que acusaram Bergman de romper com sua obra anterior. O ovo da serpente é um filme perfeito e absolutamente coerente com toda a obra bergmania-na, com seu pensamento, com sua visão do mundo. Basta acompanhar as figurascentrais do filme e verificar que elas conduzem à reflexão e ao pensamento. O trapezista Abel não precisa discursar, porque a intensidade de seus olhares revela o absurdo do mundo em que vive. Ele se acha absolutamente fora da sociedade alemã, na qualidade de americano, judeu, artista de circo, bêbado e desempregado. Manuela o acompanha nessa espécie de martírio, onde Bergman reitera a forma pessimista com que visualiza o destino da humanidade. Parece que coloca suas próprias idéias na boca do médico-monstro, que criou — provavelmente inspirado no Dr. Mabuse de Fritz Lang — para quem "o homem é uma aberração da natureza". E é o mesmo sinistro Dr. Vergerus quem define com uma frase esses tempos sombrios e prenunciadores: "Ê como um ovo de serpente, no qual se vê, através da fina membrana, o réptil já em formação". A alusão é clara aos dias mais trágicos que se sucederiam depois que Hitler conquistasse o poder. Num cenário caótico, opressivo e ameaçador, os heróis de Bergman são perseguidos, humilhados, esmagados. Além de Abel, o trapezista judeu, há Manuela, sua cunhada viúva, cantora de cabaré que se prostitui. O Dr. Vergerus prefigura os carrascos dos campos de concentração com suas experiências humanas nos laboratórios de torturas. O Comissário Bauer é xenófobo e anti-semita, e James Whitmore faz um padre que não acredita em Deus. Na verdade, é a primeira vez que Bergman insere num contexto histórico bem definido os seus temas metafísicos da angústia, da solidão, do amor e da morte. Como um grito abafado pela história, o alarme de que a serpente do nazismo está chocando um ovo novo e 81


já claramente delineado em seus contornos maléficos, este filme nos adverte sobre os dias atuais, com as suas inseguranças, doenças e crises. Ele nos chama a atenção para o processo de desumanização pelo qual passamos e que a ciência, a tecnologia e os mecanismos políticos estimulam. XVIII Pouco mais de um ano depois dos graves problemas de Berg-man com o fisco de seu país, veio o perdão, com a Suécia retirando formalmente todas as acusações e convidando o cineasta a retornar. Mas Bergman só voltou para receber em Estocolmo a Grande Medalha de Ouro da Real Academia de Letras da Suécia, homenagem só prestada a dezessete pessoas neste século. Em seguida, o artista partiu para a Noruega, onde rodaria seu quadragésimo primeiro filme, Sonata de outono (1978), a nona fita de Bergman com Liv Ullmann e a décima nona com o fotógrafo Sven Nykvist, também o encontro inesperado entre o Bergman diretor e a Bergman atriz, o que acontecia pela primeira vez. Ingrid Bergman, a estrela que brilhou em Hollywood, a atriz-musa dos filmes de Roberto Rossellini, aos 62 anos, se une ao compatriota e homônimo Ingmar, para ter o melhor desempenho de sua carreira, como Charlotte Andergast, que para se firmar como pianista teve que descuidar do papel de mãe e esposa. Provável alusão nessa personagem à quarta esposa de Bergman, a pianista Kabi Loretei que se casou com o cineasta em 1959. No cenário calmo e ordenado de um presbitério no campo, Eva (Liv Ullmann) redige uma carta endereçada à sua mãe, Charlotte, pianista profissional, convidando-a para passar alguns dias em sua companhia. Elas não se viam há sete anos. Victor, pastor protestante e marido de Eva, virase para o espectador e comenta as preliminares do confronto a que mãe e filha serão conduzidas. Depois das manifestações de afeição provocadas pela longa separação, o tom muda. Eva e Charlotte se opõem diante da presença de Helena, a jovem irmã de Eva que sua mãe também reencontra aqui. Ao piano, Eva toca desajeitadamente um prelúdio de Chopin. Depois é a vez de Charlotte interpretar o mesmo trecho da música, deixando clara a sua superioridade técnica e teórica. Humilhada, Eva passa do estado de admiração para uma súbita posição de rejeição, e não hesita em 82 acusar a mãe de omissão, denunciando com violência a nocividade de seu egoísmo. Detona, então, uma espécie de acerto de contas, movido por vários acontecimentos do passado e por uma estrondosa diferença de estilos de vida. A vida agitada de Charlotte, as constantes tournées que determinaram sua ausência nos momentos mais cruciais da família, como o da paralisia da outra filha, e o nascimento e morte prematura do filho de Eva, que traz lembranças do desprezo que a mãe lhe dedicava, da castração de sua individualidade e das freqüentes fugas de Charlotte diante dos problemas cotidianos. No fim de uma noite de discussões, a mãe toma consciência do fracasso nas suas relações afetivas com as filhas; e a filha reconhece suas fraquezas, seu conformismo, como por exemplo a sua relação platônica com o marido, quase que na área da religiosidade. Na manhã seguinte, Charlotte deixa o presbitério em companhia de seu empresário e de seu amigo Paul. Eva, diante do túmulo do filho, se deixa tomar por uma angústia suicida. Mas afasta da mente essa idéia, entregando-se de novo ao lar e à irmã carente. Pede, então, ao marido para que deixe no correio uma segunda carta convidando novamente a mãe para uma temporada, agora sim de compreensão e afeto. Segundo Bergman, a Sonata é uma discussão sobre o amor, a presença e a ausência do amor, a ânsia de amor, o amor deturpado, as mentiras de amor e o amor como nossa única chance de sobrevivência. [...] Pensei no tema por vários anos — disse ele — e nunca tendo sido, obviamente, uma filha, conheço inúmeras e sempre achei que o relacionamento entre mãe e filha nunca é igual ao de um pai e filho. Devido talvez à sua educação, as mulheres temem mais do que os homens mostrar seus sentimentos de agressividade; elas o reprimem, embora os vivam profundamente. E, no relacionamento, a mãe pode identificar-se com a filha e a filha com a mãe. Geralmente um pai e um filho são bem mais abertos um ' com o outro, e seu relacionamento não é tão complicado. De certa forma é estranho que este assunto tenha sido tão pouco abordado na literatura e no cinema.

Meditação sobre a condição do artista, a impossibilidade de comunicação, a solidão, o amor e os "interiores" femininos, Sonata de outono é um filme onde, uma vez mais, a câmera escruta rostos, dois rostos que se transformam à medida que ó conflito entre eles se in-


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tensifica, até surgirem na sua dramática nudez. Bergman retoma as situações entre quatro paredes que ele sempre utilizou: o presbitério, um trem. Uma cor outonal onipresente (roxo, amarelo, marrom) serve de quadro expressionista para essa tardia vingança de uma filha para com a mãe que ela outrora admirava, e depois passou a odiar, antes de conhecer a angústia que colore todas as suas maneiras de pensar e de agir. Desta vez, porém, a dilacerante avalanche emocional não leva as personagens a uma atitude desesperada. Aqui tudo tem valor catártico, é uma explosão que varre a alma e abre caminho para a esperança de um entendimento futuro. No início de 1979, Bergman volta à ilha de Faro, mas não para — como costumava fazer — refugiar-se ali no silêncio e na solidão. Seu objetivo agora é realizar um novo documentário sobre aquela pequena ilha na Suécia com 113 quilômetros quadrados e 754 habitantes, situada a 4 horas de barco de Estocolmo. Bergman a descobriu em 1961, procurando um cenário para Através do espelho, e lá rodaria a maior parte de seus filmes dos anos 60, notadamente Versaria e Vergonha. Construiu na ilha uma casa onde escreveu, depois de 1966, alguns de seus roteiros. Ele se considera como um habitante dessa ilha e diz: "É aqui que tenho minhas raízes, sinto em mim mesmo que sou daqui". Em 1969, ele já havia realizado um primeiro documentário sobre Faro, que, segundo os poucos que conseguiram vê-lo, era bastante pessimista com relação às perspectivas do futuro da ilha. Na fita de agora ele utiliza pedaços desse antigo documentário, mas, conforme críticos franceses que o assistiram em março de 1980 num cinema parisiense, para colocar em relevo uma certa evolução através do otimismo. O resumo do filme publicado no número fora-de-série da revista Image et son — Écran, de 1980, diz o seguinte: Os camponeses, os pescadores, os habitantes falam de suas condições de vida na ilha. Homens, mulheres criticam, então, a burocracia e a rigidez administrativa que deviam permitir a cada um o direito de viver livre na ilha. São numerosas as entrevistas com jovens, adultos, velhos, que falam de seus problemas cotidianos. O trabalho durante as quatro estações, o longo período de inverno com frio, neve, tempestades e o curto período de verão, quando a ilha é invadida por turistas. Esse turismo poderia levar à ilha uma melhoria de vida, de atividade e de progresso* mas nada é organizado.

84 Segundo o crítico André Cornaud, "Minha ilha, Faro não é somente um belíssimo documentário; é também um filme crítico, político, que sugere proposições concretas para assegurar o futuro de um canto da natureza que ainda se mantém em estado de pureza". XIX Em 1980, iria nascer o quadragésimo terceiro filme de Ingmar Bergman, contando com os dois documentários sobre Faro e o episódio "Daniel" para Stimulantia, o terceiro trabalho que ele realizou fora da Suécia. Da vida das marionetes foi filmado em Munique, a mesma cidade em que ele rodou O ovo da serpente e na qual passou a residir depois que teve de abandonar seu país perseguido pelos "leões" do Imposto de Renda sueco. Quando algum entrevistador lhe pergunta sobre aquele episódio negro em sua vida, ele comenta: Foi há quase cinco anos e está acabado. As autoridades cometeram um grande erro. Ê raro que uma burocracia peça desculpas, mas o que aconteceu quase me matou. Claro, foi também estimulante e até me fez bem, já que até então eu jamais admitira a idéia de trabalhar no exterior. Tive de ir embora. Fui ver outros países. Foi fascinante. Mas acho que não vale a pena ficar lembrando disso tudo novamente.

Falando sobre Da vida das marionetes, Bergman disse que instintivamente as pessoas têm sempre medo das emoções. Na minha geração, no meu meio, educar não era formar um ser humano, mas criar uma pequena marionete, destinada a existir e a andar numa sociedade autoritária. Para que um menino não se comporte como uma menina, é preciso ser duro com ele e assim, muito cedo, aprendemos, meninos e meninas, a interpretar nossos papéis. Por isso, seriamente, creio que é, que seria maravilhoso ensinar o ABC das emoções. Com esse ABC eu tento trabalhar e gostaria de atingir o D do abecedário, mas nós somos todos analfabetos nesse campo. Mesmo agora não sei se é demasiado tarde para mudar tal situação.

Da vida das marionetes é um filme em preto e branco que flui entre um prólogo e um epílogo coloridos. No prólogo, num quarto à meia-luz e vulgarmente decorado, um homem e uma mulher trocam carícias e parecem compreender um ao outro. Comportam-se como qualquer casal normal. Aparência, apenas. De repente, o clima 85


muda: rudemente e sem qualquer explicação, o homem mata a mulher. No epílogo, esse mesmo homem que matou a mulher é mostrado em um quarto, numa clínica psiquiátrica, deitado ao lado de um ur-sinho de pelúcia. Esse homem é Peter Egerman, alto executivo que assassina uma prostituta sem motivo aparente. Antes de matá-la, ele havia consultado seu amigo e psiquiatra Mogens Jensen, como tantas outras vezes, mas desta, para lhe confessar a estranha compulsão que sentia, desejando matar sua própria esposa, Katharina. Depois da consulta, Peter se esconde no consultório de Jensen e assiste a um encontro entre este e Katharina, acreditando que há uma ligação entre eles, embora tenha visto que sua esposa repele os avanços de seu amigo. A partir daí, o filme começa a analisar a personalidade de Peter, marcado pelo relacionamento com uma mãe dominadora e pelo medo de se sentir inferior diante da mulher, sempre segura e equilibrada. Uma frase de Katharina no meio do filme dá uma explicação para o desajuste do casal: "Lá em casa não há crianças e, por isso, somos o filho um do outro". Mas a crise explode quando a mulher se recusa a ir a um jantar na casa da mãe do marido, depois de ter passado a tarde com Tim, seu sócio — eles dirigem juntos uma casa de alta-costura. Este confidencia a Katharina suas angústias e problemas de homossexual envelhecido, sua busca de um relacionamento verdadeiro e durável. Na verdade, foi ele quem apresentou Peter à prostituta, esperando assim pouco a pouco desviálo de sua mulher e torná-lo seu amante. O psicanalista declara no fim que Peter é um homossexual reprimido, por ter sofrido em excesso a dominação da mãe, e diz que ele mata porque é somente através do assassinato que ele pode possuir totalmente outra pessoa, e a partir disso classifica-o como um suicida em potencial. Porque, se matou uma homônima de sua mulher num ato de paixão possessiva, acabará também matando a si próprio como forma de possuir-se completamente. Da vida das marionetes é sem dúvida, entre os últimos filmes de Bergman, p menos atraente, o mais discreto, como uma volta à inspiração de suas primeiras obras, enriquecido somente de detalhes temáticos modernos, notadamente a psicanálise, explicitamente citada e envolvida aqui nesse novo labirinto de enclausuramento do indivíduo que entra em pânico diante da sociedade. A escolha do preto 86 e branco revela uma intenção estética toda particular, a cor só intervém na abertura e depois no desfecho do filme, na cena do crime e na do quarto isolado da clínica. Não há aqui nenhuma fuga possível através de qualquer emoção estética ou dramática. A depuração do filme, seu despojamento, sua austeridade, sua técnica, são tais que, em uma perfeita adequação à direção de Bergman, o espectador fica encurralado num impasse do fundo do qual não pode tirar nenhuma solução. Há também um enérgico distanciamento, contribuindo para uma ruptura sistemática com a continuidade cronológica que, independente de toda noção de passado e presente, a narrativa está "organizada" em capítulos anunciados por intertítulos de modo que o único ponto de referência, a única seqüência que se passa no presente, é a do assassinato da prostituta. Por outro lado, se o filme se apresenta como uma enquete, é para melhor acentuar a vaidade das investigações colocadas em prática, tanto psicanalítica como judiciária. Em ambas o homem não escapa de maneira alguma de ser uma marionete de um determinismo que lhe torna totalmente impotente. Da vida das marionetes é um filme sobre a impotência (e não somente no sentido sexual), que deixa o espectador também impotente como num espetáculo de fantoches que, por mais que se rebelem, não conseguem fazer outra coisa senão obedecer os fios. Peter e Katharina Egerman, personagens centrais de Da vida das marionetes, podem ser reconhecidos pelos mais íntimos da obra de Bergman. Eles tiveram uma passagem-relâmpago por Cenas de um casamento, interpretados por Jan Malmsjo e Bibi Andersson. Formavam o casal aparentemente oposto a Johan e Marianne, que viviam se agredindo. Para interpretá-los agora nessa história que revela o que lhes aconteceu, Bergman escolheu dois jovens atores do teatro alemão: Robert Atzorn e Christine Buchegger que, ao lado de Martin Benrath (o psiquiatra), Lola Muetchel (a mãe de Peter), Rita Russek (a prostituta) e Walter Schmidinger que personifica Tim, constituem um elenco impecável. XX Nova pausa para meditação e uma declaração até certo ponto surpreendente:


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Tenho muitas idéias e ainda sinto vontade de fazer filmes. Tenho muitas coisas sobre as quais falar, pois me sinto cada vez mais fascinado pelo ser humano, pela face humana, que me atrai sempre mais, por todas as dimensões da realidade, as condições de vida das pessoas. O problema é que estou com 63 anos. Há 36 tenho estado nesse negócio e começo a sentir isso a nível físico. Ando cansado. Fazer filmes é esgotante. Fica cada vez mais difícil e sinto que minha saúde já não é a mesma. Não acho que isso já esteja afetando o meu modo de fazer cinema, mas existe a possibilidade disso vir a acontecer.

Em julho de 1981, os jornais anunciavam: [... ] Bergman já está submerso em novas aventuras: a primeira se inicia em setembro, quando começará as filmagens de uma nova obra, a de maior duração. Terá cinco horas na versão para a televisão e três horas para as salas de cinema. O título original é Fanny Och Alexandre. Este filme será o mais caro de toda a carreira de Bergman, com orçamento previsto de sete milhões de dólares. Será filmado em Estocolmo, e o roteiro contém 150 papéis falados, exigindo a participação de mais de mil figurantes. É a história de uma família da burguesia sueca, no início do século, que Bergman define como uma mistura de gêneros: crônica, memórias, comédia, tragédia, humor, dor, amor... Mas, como sempre, será conduzida por uma filosofia que deixa estreita margem para o otimismo, já que Bergman é um crítico implacável de uma sociedade que acusa de implacável castradora.

Mas antes de iniciar as filmagens de Fanny e Alexandre, Ingmar Bergman foi aplaudido de pé, numa estrondosa ovação, quando terminou a apresentação de estréia da peça Rei Lear, a primeira que ele dirigiu depois de voltar ao país natal que abandonara há cinco anos. No final do último ato, todos se levantaram e gritaram "bravo". Acusado de sonegação fiscal, quando teve que interromper um ensaio para responder um interrogatório, Bergman foi inocentado cinco anos depois, e aceitou as desculpas do governo. Quando subiu ao palco, emocionado, para agradecer os aplausos a Rei Lear, o ator Jarl Kulle pediu silêncio e lhe ofereceu uma rosa vermelha, dizendo apenas duas palavras: "Bem-vindo à casa". Novamente o teatro quase veio abaixo com os aplausos. As filmagens de Fanny e Alexandre ocuparam sete meses de trabalho, e quando o filme abriu o Festival de Veneza de 1982, fora 88 da competição, a crítica e o público ficaram encantados. Os críticos não pouparam elogios e não conseguiam acreditar que Bergman ia abandonar o cinema, embora o próprio filme enunciasse essa decisão, colocando na tela uma espécie de soma total da obra bergmaniana, um retrospecto de todos os temas do cineasta sueco. O amor, a morte, Deus, a vida, a arte, nostalgia, ilusões, fatos, fantasias, sonhos, pesadelos, interrogações, viagens, pontilhavam essa crônica familiar narrada entre a comédia e a tragédia, entre risos e lágrimas. Todos os filmes de Bergman são mais ou menos autobiográficos, mas Fanny e Alexandre é completamente autobiográfico, afirmaram os críticos. Alexandre, interpretado por Bertil Guve, tem doze anos; sua irmã, Fanny, tem dez. Os dois descobrem as maravilhas da lanterna mágica na casa da avó. Alexandre é Ingmar Bergman e Fanny é sua irmã Margareta, casada com o tradutor Paul Austin. Foi ela quem ajudou o pequeno Bergman a construir seu primeiro teatro de marionetes. O filme é a história dessas duas crianças na cidade provinciana de Uppsala (a cidade em que Bergman nasceu). Em volta deles, toda a família, mas principalmente a avó, a mãe viúva que se casa com um pastor protestante de costumes rígidos e intolerantes (como Bergman costumava descrever seu pai). E para reforçar a idéia de autobiografia, o filme estrutura-se através da visão do menino Alexandre, abordando um notável leque de temas que nada mais é do que a quintessência da obra bergmaniana. Em 1984, Bergman surpreende o mundo novamente com um novo filme, lançado no Festival de Cannes, e que os críticos consideram como uma pequena-obra-prima, simples, direta e dedicada ao teatro, uma de suas paixões ao lado do cinema. E para justificar a declaração que havia dado antes, de que Fanny e Alexandre era o seu último filme, Bergman insiste em dizer que Depois do ensaio não tem nada de cinema, que é só uma peça de câmera feita para a televisão. Na verdade, a fita tem apenas uma hora e dez minutos de duração e foi filmada originalmente em 16 milímetros num único cenário, um palco de teatro desarrumado e quase sem luz, depois de uma tarde de ensaio de uma peça de Strindberg (O sonho). Em cena 89


somente três atores: Eriand Jasephsson, Letia Olin e Ingrid Thulin, que na realidade passa rapidamente pela história. No início as imagens (fotografadas por seu habitual e genial colaborador, Sven Nykvist) focalizam só a figura de Henrik Vogler (Josephsson), um velho diretor de teatro que analisa a tarde de trabalho recém terminada. Pouco depois entra na imagem Anna Eggerman (Olin), jovem e inexperiente atriz escolhida pelo diretor para a peça porque aparecera muito mal num filme que ele viu pela TV. A outra mulher, Karel (Thulin), passa rapidamente pela imagem, no meio da conversa de Vogler com Anna, como uma recordação do diretor. Depois do Ensaio é quase todo o tempo um diálogo tenso e quase sem pausas entre o diretor e a atriz. Durante 72 minutos fala-se sobre arte, teatro, mas também de recordações existenciais, marcas indeléveis que o próprio tempo não conseguiu que fossem esquecidas. Após a estréia de Depois do ensaio, Bergman disse aos jornalistas que desejava descansar e que pretendia aproveitar as coisas boas da vida. Dois meses depois, ele já estava montando em Munique uma das mais difíceis obras do norueguês Henrik Ibsen, o drama "John Gabriel Borkman". Esta peça foi a penúltima obra escrita por Ibsen (1828-1906) e estreou em 1896. É um completo drama psicológico sobre a mentira, o egoísmo, a frieza de sentimentos, tendo como protagonista um banqueiro arruinado. Descansar, aproveitar as coisas boas da vida. Acredite se quiser, mas para Bergman as coisas boas da vida são o teatro e o cinema. Portanto, à beira de completar 68 anos de idade, não pense que Bergman vai parar. A vida para ele é o cinema e o teatro. 90

O cinema sueco antes de Bergman


Os suecos descobriram o cinema quase cinqüenta anos antes de Bergman, logo após os noruegueses e dinamarqueses, seis meses depois dos franceses. A competição entre os diferentes inventores e pioneiros foi grande, e os historiadores até hoje não dissiparam todas as dúvidas e incertezas. Atribui-se ao fotógrafo sueco C. V. Roikjer o mérito de ter apresentado o Cinematógrafo Lumière na Feira de Malmõe, a 28 de junho de 1896, mas segundo Rune Waldekranz, esse primeiro programa — intitulado "O cinematógrafo parisiense'* — era provavelmente composto de obras de Méliès ou de filmes de Pathé, projetados por um aparelho de Henry Joly. A seguir houve apresentações do francês Charles Mareei, em Estocolmo, de 21 a 31 de julho; do alemão Max Skaladanowsky, com seu Bioscop, em Estocolmo, no mês de agosto quando ele realizaria o primeiro filme sueco, Encontro cômico num jardim público; e da inglesa Anette Tenfel, que exibiu em Estocolmo o Theatrograph de William Paul. Enfim, os alemães Ornaz e Buschau difundiram, a mando da Sociedade Lumière, o Cinematógrafo por inúmeras cidades suecas. Em 1897, o francês Georges Promio filmou A chegada do rei Oscar à inauguração da Exposição de Estocolmo. Ernest Florman, empregado do fotógrafo Numa Peterson, roda alguns documentários. De 1898 a 1908 expande rapidamente o cinema ambulante, e algumas cidades, como, por exemplo, Goteborg, ganham salas fixas. Em 1909, Charles Magnusson funda a produtora Svenka Bio e faz uma série de filmes sonorizados por discos sincronizados. A produção cresce nos anos de 1910 (doze filmes) e 1911 (vinte e três filmes); 1912 foi marcado pela estréia de George Af Klercker, um artesão que realizou mais de trinta dramas populares entre 1912 e 1918, e sobretudo o surgimento de futuros mestres: Mauritz Stiller e Victor Sjostrom, recrutados no teatro por Charles Magnusson. Em 1912, 93


trinta e sete filmes de ficção foram produzidos, dos quais vinte e cinco pela Svenka Bio, que controlava cinqüenta salas.

A grande época Quase todos os historiadores — incluindo o sueco Bengt Idelstan-Almquist, o francês Georges Sadoul, o italiano Roberto Paolella — concordam que a grande época do cinema sueco foi entre 1916 e 1924, com Sjostrom e Stiller à frente, mas também com outros cineastas como o já citado George Af Klercker, Jolm W. Brunius, Ivan Hedqvist e Carl Barcklind, que contribuíram com obras importantes na evolução cinematográfica daquele país que, no seu apogeu, atraiu os dinamarqueses Benjamin Christensen e Carl Theodore Dreyer. Nascido em 1879, Victor David Sjostrom desenvolveu intensa atividade teatral antes de se integrar ao cinema em 1912, primeiro como ator, fazendo o papel principal de um seriado policial intitulado As máscaras negras, depois como diretor, mas quase sempre aparecendo como intérprete de seus próprios filmes. Entre O jardineiro (seu primeiro filme, em 1912, que foi proibido pela censura por causa de sua audácia sexual) e O engenheiro Lebel, que marca em 1916 o início de sua grande fase, Sjostrom realizou cerca de trinta filmes, infelizmente a maior parte deles destruídos por um incêndio. Bengt Idelstan-Almquist afirma que seus primeiros ensaios foram comédias e melodramas influenciados pela voga dos filmes dinamarqueses que, em 1910-1912, estavam no auge. Diz: "Eles tinham o segredo dos dramas heróicos lacrimosos que fascinavam os espectadores europeus, os mais vulgares. Eles tinham acabado de inventar um tipo de mulher cruel e destruidora, denominada vamp, cujo sucesso suscitou uma multidão de imitações do outro lado do Atlântico". Sua primeira obra importante, segundo o mesmo autor, data de 1913, Ingeborg Holm, drama naturalista e panfleto social. O engenheiro Lebel abordava a elucidação de um crime e — segundo Almquist — "surpreendeu o cinema da época pela sua construção em flash backs sucessivos". Antes daquilo que, conforme ainda seu biógrafo Almquist (Anthologie du cinema, Tomo I), "foi um trovão no céu do cinema", ou seja, Os proscritos (1917), Sjostrom 94 faria outros filmes ambiciosos como Terje Vigem (1916), "poema cinematográfico extraído de uma balada de Ibsen e adaptado pelo jovem Gustaf Molander" (Almquist ainda em Anthologie), e A filha da turfeira (1917). Os proscritos, considerado como sua obra-prima, iria revelar Sjostrom ao mundo e colocar o cinema sueco num lugar de honra. A ação se desenrola no esplêndido cenário das montanhas da Islândia onde dois amantes se refugiam para escapar da vingança de um ciumento: eles vivem como animais encurralados durante anos e acabam morrendo numa tempestade de neve. A seguir, o encontro com a grande romancista, Selma Lagerlof, resultaria em outros filmes admiráveis como A voz dos ancestrais (1918), dividido em duas partes e famoso por sua riqueza simbólica, e A vitrine quebrada (1919), obra que flui ao ritmo das estações mostrando o homem e a natureza integrados. Também baseado num romance de Lagerlof foi o famoso A carroça fantasma (1920), filme fantástico e místico, no qual Sjostrom utilizava flash backs, trun-cagens, ações paralelas e simultâneas, realizando uma obra audaciosa para a época, que além de influenciar Murnau e todo o cinema alemão dos anos 20, quarenta anos mais tarde ainda lançaria influxos na obra de Bergman que, em O silêncio, presta uma homenagem a Sjostrom através de um vínculo simbólico: um cavalo esquelético puxando uma carroça que é vista duas vezes passando pelas ruas da misteriosa cidade de Timoka. Até 1923, quando Sjostrom deixou-se iludir pelo canto das sereias e partiu para Hollywood, numa época em que os opulentos produtores americanos agitavam um punhado de dólares debaixo do nariz dos melhores realizadores europeus, sua filmografia foi enriquecida por três ou quatro filmes de qualidade: O mestre Samuel (1920), A prova de fogo (1921), A casa cercada (1922) e O navio trágico (1923). Contratado pelo chefão da Metro, Samuel Goldwyn, como tantos outros europeus em Hollywood, Sjostrom perdeu sua liberdade e tornou-se uma vítima da voracidade comercial e da incompreensão. Rebatizado Seastrom, ele dirigiu filmes medíocres em Hollywood, mas num esforço titânico ainda conseguiu realizar Vento e areia (1928), considerado como uma das cinco ou seis obrasprimas dos últimos anos do cinema mudo. Foi também seu canto de cisne: em 95


1930 ele voltaria à Suécia, decepcionado, para dedicar-se a uma carreira somente de ator. O outro grande líder do cinema sueco na sua época de ouro, Mauritz Stiller, segundo seus biógrafos, entre eles o inglês Peter Cowie, era finlandês de origem judaica, nascido em 1883, mais tarde naturalizado sueco. Os historiadores habitualmente costumam opô-lo a Sjostrom, que tinha um físico robusto e a força lenta de seus ancestrais, camponeses e lenhadores acostumados à natureza. Stiller, franzino e elegante, era um cidadão culto, um esteta pensativo. Suas obras traziam as marcas dos temperamentos diferentes: Sjostrom manifestava um instinto viril e o desejo de exprimir diretamente e no seu contexto vivo as verdades simples dos temas que escolheu; Stiller, mais refinado e de uma sensibilidade mais delicada, não tinha os mesmos motivos para aderir a essa filosofia da natureza. Mas há os que afirmam ser uma discussão estéril esta de confrontar os dois grandes patriarcas do cinema sueco que, na verdade, se completavam. Stiller dirigiu Sjostrom no seriado policial As máscaras negras e em vários outros filmes. Pouco, entretanto, se sabe a respeito das trinta fitas que ele rodou antes de Amor e jornalismo (1916), porque as cópias se perderam. Mas em O vampiro (1912), historiadores registram que Sjostrom interpretava um policial vítima de uma vamp — a dinamarquesa Lili Bech —, que se encarregava de desonrá-lo. Em outras dessas primeiras fitas, a mesma Lili Bech assassinava o homem que ela "vampirizava", aqui não mais Sjostrom, mas Lars Hanson, que se tornaria o ator preferido dos dois mestres. Outros filmes desse período inicial de Stiller citados por Peter Cowie (em Swedish cinema, A. Zwemmers, Londres, 1966): Como se doma um marido (1912), O manequim (1913), Por causa de seu amor (1913), As atrevidas (1914). "Amor e jornalismo é uma pequena obra-prima de observação e humor, admiravelmente interpretada por Karin Molander, Sjostrom e Stina Berg" — diz Cowie (em Swedish cinema) — que afirma que Stiller foi menos feliz com a farsa Alexandre, o Grande (1917), mas faria uma saborosa comédia no mesmo ano com uma sátira à produção de filmes com roteiro de Gustaf Molander, intitulada O melhor filme de Thomas Graal. Duas outras fitas adaptadas por Molander também se destacaram: O primeiro não e No redemoinho, 96 ambas de 1918, antes de Stiller realizar em 1919 sua obra-prima: O tesouro de Ame (1919), baseado num romance de Selma Lagerlof, história de uma jovem que se apaixona por um dos três ladrões que haviam massacrado seus pais adotivos. A seqüência final é considerada antológica: mostra as mulheres da aldeia vestidas de negro, no cortejo fúnebre da heroína, na neve. A majestosa curva de pessoas caminhando sobre a neve inspirou sem dúvida Eisenstein em uma cena famosa de Ivan, o terrível. Em 1920, Stiller realiza uma notável comédia sofisticada, Erotikon, gênero que ele já havia esboçado com Amor e jornalismo. Trata-se da história de Irene, casada com um professor de ento-mologia, muito distraído, e cortejada por um jovem escultor e aviador amador, o barão Félix. Essa é a visão de um mundo frívolo sob a lente de Stiller em meio a uma profunda amoralidade, ligeira, simpática e natural. A fita foi considerada ousada para a época, e uma de suas ironias é que, enquanto o professor se consagra exclusivamente ao estudo das mariposas polígamas, sua jovem esposa dedica-se à aventura. Seu filme foi comparado às comédias que Cecil B. De Mille fazia em Hollywood e viria a influenciar o cinema de Lubitsch. Trinta e cinco anos mais tarde, Bergman realizaria Sorrisos de uma noite de amor, elegantemente baseado no mecanismo da comédia de Stiller. Os proscritos (1921) — que não pode ser confundido com o filme homônimo feito por Sjostrom em 1917 — descrevia o ambiente dos emigrantes russos, tendo como base um romance finlandês. O velho solar (1922), novamente adaptado de uma novela de Selma Lagerlof, "mistura — segundo Peter Cowie na fonte já citada — sonho e realidade, medos e fantasias idílicas, e possui uma força visionária que no cinema europeu da época não tem paralelo". Em 1924, Stiller descobre a atriz Greta Loysa Gustafsson no Royal Theatre dirigido por Gustaf Molander e a lança no principal papel feminino de A saga de Gosta Berling (adaptação de outro livro de Selma Lagerlof), com o nome de Greta Garbo. Era um filme gigantesco, e foi muito mutilado. A epopéia cinematográfica sueca acabava com uma cerimônia majestosa e fria. No ano seguinte, Stiller desembarcava com Greta Garbo em Nova Iorque, e seguiam para Hollywood, contratados pela Metro Goldwyn Mayer. Mas,


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enquanto sua musa em pouco tempo atingiria o ápice como estrela; Stiller foi relegado a segundo plano e muito perseguido pelo jovem chefe de produção, Irving Thalberg, principal assessor de Louis B. Mayer, habituado a lidar com artesões submissos. Realizou fitas como Hotel imperial (1926) e Coração de eslava (1927), que serviram como veículo de estrelismo para a germano-polonesa Pola Negri. Acabou adoecendo e A UOU para Estocolmo onde morreu no dia 8 de novembro de 1928. Entre as obras restantes da escola sueca destacaram-se também A quarta aliança da Sr.a Margarida, realizada em 1920 pelo dinamarquês Carl Dreyer; Carl XII (1924), co-dirigida por John W. Brunius e pelo romeno Lupu Pick; Peregrinação à Kevlaar (1922), de Ivan Hedqvist; Os malditos e A herança de Ingmar, ambos de 1925, dirigidos por Gustaf Molander. Grande sucesso de bilheterias em toda a Europa foi A feitiçfâia através dos tempos (1921), feito na Suécia pelo dinamarquês Benjamin Christensen. O impacto que o filme causou junto ao público foi enorme por causa da ousadia de suas imagens, até hoje ainda consideradas chocantes. As cenas mais famosas são: a dança das feiticeiras nuas em torno de um caldeirão fervilhante, um detalhe de possessão nessa reunião de bruxas, uma missa sacrílega e o célc&re beijo no ânus do Diabo. Até hoje o filme figura na história do cinema como uma das mais violentas denúncias dos delitos das superstições cristãs. Um filme contra todos os conformismos e contra todos os aspectos mais tenebrosos e abjetos da bestialidade e da ignorância.

O declínio A competição internacional torna-se depois de 1925 cada vez mais intensa: os americanos fecham seu mercado e inundam o mundo com seus filmes; na Europa a poderosa U.F.A. domina seus rivais. A atração exercida pelo filme sueco cessa: mesmo o público local começa a se cansar dos temas até então explorados e reclama novidades. Mas sem Sjostrom, Stiller, Greta Garbo, e agora também sem o ator Lars Hanson que partira para a América, o cinema sueco estava decapitado. Apenas Gustaf Molander mantinha-se em atividade, assegurando a transição entre a grande escola do cinema 98 mudo e a invasão do filme falado que foi catastrófica para o cinema sueco. De volta ao seu país, Sjostrom não rodou mais que um filme falado — em 1931: A família Markurell, tido como medíocre. Ê na Inglaterra, em 1936, que ele realiza o último filme: O poder de Richelieu, uma produção de capa-e-espada. Cineastas como Brunius, Hedqvist, Barcklind fracassam e desaparecem. Nessa mediocridade geral, Gustaf Molander sobreviveu como um mestre. Realizou muitos filmes nos anos 30, dos quais, entretanto, só se salvaram dois: Uma noite (1931) e Intermezzo (1936), história de um amor culposo entre dois músicos, interpretados por Gosta Eckman e uma jovem futura estrela, revelada por ele, mas que Hollywood iria também "vampirizar": Ingrid Bergman. Alguns ensaios esporádicos merecem considerações, mas não tiveram futuro. A esperança reapareceu em 1939, como um filme de Anders Henrikson: Os pescadores de baleia, cujas qualidades lembravam as de O mais forte (1929), o último filme sueco mudo, concebido na tradição dos grandes documentários de Robert Flaherty. Simbolicamente, a queda qualitativa da produção sueca coincide com o aparecimento de Alf Sjoberg, o cineasta estreante de O mais forte, cujo retorno às atividades marcou, em 1940, o fim dos maus dias.

O renascimento O crítico, historiador e produtor Rune Waldekranz assinala em seus estudos (O realismo psicológico — herança literária do cinema sueco) que, antes de Sjoberg assumir a liderança do cinema sueco nos anos 40, houve a importante participação de outro cineasta: Per Lindberg, precursor do moderno cinema escandinavo. Cita um filme de 1938, O velho chega, com Victor Sjostrom no papel principal, como renovador. Mas considera sobretudo Alegre-se com sua juventude (1939) como um marco, classificando Lindberg como o pioneiro do filme erótico. "A tentativa de Lindberg de quebrar os tabus para chegar a uma descrição mais aberta e mais honesta do despertar sexual foi proibida pela censura. Sua direção apresenta uma procura de forma, um temperamento e uma intensidade que anuncia Ingmar Bergman." Waldekranz destaca outros 99


filmes de Lindberg — O aço (1940), A noite de junho (1940), A cidade fala (1941) — e acrescenta: "O desaparecimento de Lindberg em 1944 foi um acontecimento trágico para o cinema sueco". Alf Sjoberg, durante os anos 30, se dedicou à direção do Real Teatro Dramático, reapareceu em 1939 com o filme Arriscaram sua vida. Jean Béranger (em seu livro A grande aventura do cinema sueco) o considera como o primeiro renovador importante do cinema daquele país. Escreve: No seu regresso à indústria cinematográfica dirigiu sucessivamente, no espaço de alguns meses, dois filmes ainda que parcialmente deficientes, mas recheados de boas intenções e interessantes achados técnicos: Arriscaram sua vida e Tempo de florir (1939). Em 1941, transferiu-se para a Wive Film, onde prosseguiu a sua busca de perfeição caligráfica, com Desejos ardentes, e veio a atingir pouco tempo depois, com Caminho do céu (1942), uma mestria que o classificou desde já como o digno continuador de Sjostrom e de Stiller.

Em 1942, o Dr. Carl Anders Dymling, então chefe da Rádio Sueca, foi nomeado diretor da Svenka Filmindustri e muda a política da empresa habituada à produção de filmes teatrais e comédias ligeiras. Dymling contrata Victor Sjostrom como supervisor artístico da companhia numa espécie de gesto simbólico que marcava uma volta à tradição da grande época do filme sueco. Sjostrom começa abrindo as portas para toda uma nova geração. Em 1943, ele contrata Ingmar Bergman e Lars-Eric Kjellgren como roteiristas; Hampe Faustman, Arne Sucksdorf e Alf Sjoberg como diretores; Gunnar Fischer como fotógrafo. Em 1943, Sjoberg realiza Caçada real, que advertia para os perigos que a Segunda Guerra Mundial trazia para a Suécia, rigorosamente neutra, mas não isenta de ser invadida. No ano seguinte, Sjoberg faz sua obra-prima, Tortura de um desejo, um filme expres-sionista, com a utilização inteligente da cenografia e dos intérpretes. A história girava em torno de um sádico professor de latim, Calígula, que aterroriza seus alunos até que é reconhecido como um caso patológico. O roteiro, escrito por um jovem poeta rebelde — Ingmar Bergman — tinha uma significação alegórica que fazia do professor 100 Calígula uma figura simbólica do nazismo. O grande sucesso que foi Tortura de um desejo permitiu a Sjoberg prosseguir com êxito sua carreira com Viagem ao longe (1945). Diante da ameaça nazista, o cinema sueco voltou-se para os valores do humanismo, procurando, através de uma série de filmes, mostrar a solidariedade da Suécia com os países ocupados. Essa solidariedade se exprimiu sobretudo em três filmes de Gustaf Molander: Cavalgo esta noite (1942), A chama eterna (1943) e Ordet (1944), com Victor Sjostrom no papel principal. Outras fitas importantes dessa época foram: O doutor Glas (1942), de Rune Carlsten, Noites no Porto (1943), de Erik Hampe Faustman, O ator (1943), de Ragnar Frisk, A floresta é nossa herança (1944), de Ivar Johansson, A feiticeira (1944), de Faustman. Em 1945 — escreve Jean Béranger — Dymling propôs a Ingmar Bergman que este experimentasse a realização. Desse acordo nasceu Crise (1945), que foi a primeira mensagem direta daquele que pode ser hoje considerado não só como o maior gênio cinematográfico da Suécia, mas também como a revelação mundial deste pós-guerra, o possuidor da personalidade mais marcante.

No entanto, Rune Waldekranz contradiz de certa forma o depoimento de Béranger, afirmando: "Logo depois da guerra a Svenka Filmindustri utiliza Bergman, que se destacava como ótimo roteirista na função de diretor. Sua estréia como cineasta, com Crise, foi um fiasco. Bergman faria também outros filmes ruins nos seus anos de aprendizado." De qualquer maneira estavam lançadas as bases de um cinema que se expandiria no futuro rumo ao infinito, através de um cineasta que se tornaria um dos quatro ou cinco realmente revolucionários e importantes em todo o mundo. Como fez questão de escrever mais tarde o próprio Waldekranz, numa espécie de desagravo a si mesmo: "Um eminente historiador do cinema, o americano Lewis Jacobs, declarou que a obra de Ingmar Bergman, imbuída de forte personalidade e liberta de qualquer compromisso, anunciava uma nova época da arte cinematográfica". 101


O cinema sueco depois de Bergman


A fase de aprendizado de Ingmar Bergman no pós-guerra coincidiu com a florescência do neorealismo italiano; a revelação de novos cineastas franceses como Jacques Becker, René Clement, Henri-Georges Clouzot, entre outros; o surgimento de uma nova geração de diretores americanos — as bruxas que iriam ser caçadas pela inquisição marcathista; o apogeu do cinema inglês que se deveu muito ao Ealing Studio, de Michael Balcon; e com a ascensão de Akira Kurosawa dentro do então desconhecido cinema japonês. A verdade é que a arte cinematográfica começava a entrar num período de renovação, uma fase de transformação de toda ordem, em que quase tudo se modificava, desde a estrutura narrativa dos filmes até a relação entre o filme e o espectador. Vejamos como o historiador francês Georges Sadoul, no seu livro História do cinema mundial, registrou o despontar de Bergman: Tortura de um desejo, de tom completamente diferente, marcou a estréia de um roteirista de 26 anos, já encenador, juntamente com Sjoberg do Real Teatro Dramático. Tratava-se aparentemente de um estudo psicológico sobre o comportamento de um professor covarde e sádico. Porém o filme foi, na realidade, um ataque ao nazismo, tâo virulento quanto o permitia a censura num país neutro [...]■ Após ter sido o roteirista de Sjoberg, Ingmar Bergman tornou-se diretor com Crise e Chove sobre nosso amor. Embora adaptassem peças suecas, esses dois filmes foram muito impregnados da influência francesa, principalmente de Carne. O estreante deveria realizar dez filmes em cinco anos; sua fecundidade fez com que o comparassem em seu pais a Hasse Ekman, que não tinha o seu valor — é Sadoul quem continua traçando o perfil de Bergman em início de carreira. Ingmar Bergman, que escrevia além de roteiros, romances e peças de teatro — observa o historiador — permaneceu em sua primeira fase

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um adaptador e seus filmes, ainda de desigual interesse, não pareciam muito melhor que dos realizadores da nova geração. Entretanto, neles transparecia um tom novo e original. Barco para as índias, Música na obscuridade e Porto tiveram laços comuns com seus primeiros filmes: uma violenta revolta contra a família, a religião e o preconceito, a pesquisa de uma atmosfera, no mais das vezes urbana, e a vontade de dizer tudo, sem deter-se por causa do falso pudor.

Concluindo: Após ter-se firmado com Porto, Bergman passou a ocupar uma posição de destaque com Prisão, cujo roteiro original ele escrevera. Embora nesse filme Bergman negasse apaixonadamente Deus e o Diabo, manifestava certa inquietação metafísica em Sede de paixões, no qual o drama de um casal tinha por fundo o mundo devastado pela guerra. Mostrou no cativante e nostálgico Juventude uma leveza desenvolta e uma graça displicente que não eram até então a dominante de sua obra. O hábil arabesco psicológico aliava-se a uma plástica sem falhas, dentro da melhor tradição sueca.

Durante os anos de evolução de Bergman, entre 1945 e 1950, historiadores como B. I. Almquist, R. Waldekranz e J. Béranger destacam a boa qualidade dos filmes de Erik Hampe Faustman, todos contendo temas sobre o proletariado, como Lars Hard (1948), celebrando um jovem operário revoltado contra a sociedade; Um lobo solitário (1948), Porto estrangeiro (1948), sobre um motim num cargueiro sueco num porto polonês; ou ainda como Ela vem como um sopro de vento (1951), descrição autêntica da vida cotidiana num ambiente operário. Em Deus e a Cigana (1953), Faustman demonstra a existência da discriminação social na sociedade sueca daquela época, onde a cigana representa a sobrevivência da classe mais desprezada nos campos. Os filmes de Faustman, com sua crítica social, foram uma espécie de exceção no cinema sueco dos anos 40 e 50. O único equivalente foi Lars-Eric Kjellgren com suas duas raras aparições: Violência (1955), um filme sobre a oposição de consciências entre recrutas, e O jogo selvagem (1956), que tomava posição contra o boxe profissional, forma moderna de combates de gladiadores. 106 O veterano Gustaf Molander, que atravessara a época de ouro dos anos 20, a crise da década de 30 e o renascimento em 1940 do cinema sueco, sempre filmando, iniciava uma série de filmes abordando temas sobre a condição feminina: A mulher sem rosto (1947) e A mulher e a tentação (1948), principalmente, ambos escritos por Bergman e cheios de densidade humana e profundidade psicológica; mas também Divórcio (1950), obra intensa, plena de atmosfera, cruel desenho da condição humana, e O espírito da contradição (1952), Coração de cristal (1953) e O tesouro de Ame (1954), refilmagem do clássico de Stiller de 1919. Alf Sjoberg, em 1946, realiza íris e o tenente, com o mesmo casal de atores de Tortura de um desejo, Alf Kjellin e May Zetterling, filme romântico com cenas de ternura e poesia. Depois de um hiato de três anos, ele reaparece em 1949 com Apenas uma mãe, análise das relações do presente com o passado, na qual o cineasta procura mostrar como a inadaptação social do homem pode ter como causa as experiências negativas de sua juventude. Esse mesmo tema Sjoberg continua a tratar nos seus filmes depois de 1950: Senhorita Júlia (1951), Barabbas (1952), Karin Mansdotter (1953). Sobretudo em Senhorita Júlia, Sjoberg utiliza ao máximo todos os recursos cinematográficos para uma narrativa de audaciosas associações. Sjoberg quebra a unidade de lugar e tempo que dá o poder de expressão ao drama de Strindberg, mas cria uma construção mais livre, uma síntese do sonho e da realidade que faz do drama profundamente realista de Strindberg uma espécie de magia cinematográfica. Ele descreve, na sua versão, o drama interior da senhorita Júlia, sua fixação nas experiências traumatizantes de sua infância. O diretor emprega uma técnica nova, quase mágica, que consiste em fazer encontrar o presente e o passado no mesmo plano através de uma montagem interna: Júlia adulta e Júlia criança se encontram na mesma imagem, unidas somente pela unidade de motivo e pela lógica interior do acontecimento. O curta-metragem sempre teve uma situação extremamente modesta dentro da produção sueca. Ao lado de Gosta Werner, conhecido como realizador de Sacrifício do sangue (1945) e O trem (1946), Arne Sucksdorff foi o único que imprimiu características mais pessoais e artísticas aos pequenos documentários como Um conto 107


de verão (1943), A gaivota (1944), A aurora (1945), O ritmo da cidade (1946), Um mundo dividido (1948). No seu primeiro longa-metragem, A grande aventura (1953), Sucksdorff fez uma síntese daquilo que ele havia mostrado em seus curtas-metragens: sua visão da vida e suas experiências da natureza. Vemos a natureza e as paisagens do ponto de vista infantil, ao mesmo tempo que ele nos mostra os humanos tal como vêem os animais. É exatamente esse encontro de dois mundos inconciliáveis que dá à sua narrativa beleza e intensidade. Antes desse documentário, ele havia rodado curtas no ambiente exótico da índia: Uma cidade indiana (1951) e O vento e o rio (1951). A fera e a flecha (1957) foi sua primeira e única tentativa de trabalhar com a cor. No fim dos anos 50, Sucksdorff deixou a Suécia e veio para o Brasil, onde rodou pequenos documentários, deu cursos de cinema e vários cineastas revelados pelo Cinema Novo brasileiro foram seus alunos. Em 1965, ele realizou no Brasil o semidocumentário Fábula, história de quatro crianças dos morros cariocas, através da qual é esboçado um estudo das contradições sociais que caracterizam a estrutura do mundo de Copacabana. Sucksdorff, Sjoberg e Bergman foram os cineastas que mais ajudaram o cinema sueco a sair de seu isolamento, de seu provincianismo sufocante. Mas é preciso também reconhecer a contribuição de Ame Mattsson, diretor substimado pela crítica, mas cujos filmes tornaram-se um atrativo em todo o mundo por causa de seu erotismo audacioso. Ele começou, em 1944, com E todas essas mulheres, e daí para a frente realizou uma série de melodramas erótico-sentimentais: Você está prestes a entrar (1945), Ovos podres (1946), Papai procurado (1947), Primavera perigosa (1949), Quando o amor chega à cidade (1950), cujo ápice foi A última felicidade (1951), o filme que revelou a bergmaniana Ulla Jacobsson, história de amor entre um jovem estudante e uma moça que acaba se suicidando, célebre pela seqüência em que o casal se banha inteiramente nu no lago e a seguir se ama à sua margem. Mattsson prosseguiu com sua carreira nos anos 50 e chegou até a década de 60, sempre explorando o erotismo em filmes sem maiores qualidades. Mas nesses novos tempos, o cinema precisava de novos cineastas, e a Suécia não ficou só assistindo ao surgimento de uma intensa movimentação no mundo 108 da sétima arte: olhou para o futuro, viu suas possibilidades, procurou os caminhos da revolução.

O retrato de um país A Suécia, situada ao norte da Europa, passou por um longo período de isolamento. Só os recentes desenvolvimentos dos meios de comunicação puderam diminuir as distâncias. Mas este afastamento do mundo favoreceu a divergência cultural com a Europa e o resto do planeta. Cinqüenta anos foram suficientes para os suecos passarem da pobreza à riqueza. Uma das razões, mas não a única, da rapidez desse desenvolvimento, está ligada ao fato de os suecos não terem participado da guerra. No entanto, eles padecem de sua riqueza como se ela fosse um bem mal adquirido, sobretudo quando eles o comparam com a pobreza de certos países. O isolamento, portanto, não foi somente geográfico, ele foi igualmente histórico. Para os suecos, a guerra é o mal supremo. E isso pode ser notado particularmente em alguns filmes de Bergman: Vergonha, principalmente, mas também O silêncio e Persona. Os suecos não desejam tirar egoisticamente proveito de suas riquezas. Eles formaram uma sociedade onde cada um tem as mesmas possibilidades, as mesmas chances e os mesmos direitos. São os mais dóceis contribuintes do fisco. Existem listas à disposição do público, onde quem quiser pode tomar conhecimento de quanto ganha cada cidadão e verificar sua contribuição financeira para o bem comum. O sentido da democracia é absoluto. Mas, por mais influentes que sejam sobre a mentalidade sueca, estes diversos elementos não são tão predominantes como o clima do país. Na Suécia, o inverno é muito longo, muito frio efetivamente, mas sobretudo muito sombrio. É um longo período onde reinam as trevas. Quase não há primavera, e o verão parece com uma explosão pela sua força, sua rapidez e sua breve duração. Os suecos são muito marcados pelo clima e pela natureza. Uma das grandes causas do famoso "suicídio sueco" é o que eles chamam de "a angústia da floresta": é o sentimento violento de um isolamento quase que total como se uma pessoa estivesse perdida no meio de uma floresta, mergulhada no fundo da natureza hostil. 109


Conta-se a história de um grande poeta sueco que, quando chegou aos 50 anos e nada mais esperava da vida, se isolou numa pequena ilha e deixou-se ser encoberto pelas águas de um lago. Num de seus poemas, ele narrava essa velha lenda escandinava: um jovem marinheiro descobriu que o amor não era aquilo que ele tinha sonhado e deixou-se tragar pelas águas com seu barco. Chegando ao fundo do Báltico, ele encontra o repouso porque aquele mar comunicase com todos os mares do mundo e porque, no mar, o homem volta à sua substância original. Os suicídios, na Suécia, podem ser uma manifestação de esperança. Os suecos tiram de seu gosto pela natureza um dom intuitivo muito profundo. Mas esse dom pode tornar-se doentio e eles têm medo. Refugiam-se, em conseqüência, num racionalismo exacerbado. Acreditam que tudo pode ser provado, não só moral, mas também matematicamente, como dois e dois são quatro. E o resultado desse racionalismo é um materialismo integral. Na verdade, eles têm medo de que sua intuição não seja mais do que uma ilusão, mas sabem também que o materialismo só conduz ao tormento. Preso dentro desse materialismo, o homem sueco necessita de calor humano e novamente ele procura alguma coisa superior, mais profunda, Deus talvez.

O novo cinema sueco No fim dos anos 50, o cinema volta a fazer um giro em torno de si mesmo: na França eclode a Nouvelle Vague, propondo um modo de fazer cinema tão maleável quanto a palavra escrita; e segue-se, a partir daí, a tendência no mundo inteiro de reformular o cinema. Surge na Inglaterra o Free Cinema, nos Estados Unidos o Underground Movie, no Brasil o Cinema Novo, e na Itália, Polônia, Tchecoslovaquia e em outros países, aparece muita gente nova, com muitas idéias e uma vontade quase que indômita de fazer cinema. Em 1960, a Suécia tinha 7.600.000 habitantes, 1.400 salas de exibição, 80.000 espectadores de cinema. Começa, nesse ano, a renovação do cinema sueco. 1960 é o ano em que Bo Widerberg publica, nas diversas revistas suecas, artigos famosos comparáveis aos de 110 Truffaut, publicados nos Cahiers du cinema no despertar da Nouvelle Vague. Ê também em 1959-1960 que Vilgot Sjoman se interessa pelos novos filmes franceses e vai a Paris entrevistar Jean-Luc Godard. Os textos de Bo Widerberg foram acusações contra uma certa tendência do cinema sueco: a tendência bergmaniana. Nós, os jovens cineastas suecos, somos totalmente ateus — afirmava Widerberg em um de seus artigos. — Para nós Deus nunca existiu e nós estamos? mais preocupados em abordar na tela temas mais importantes, como a igualdade de classes, igualdade que, malgrado a revolução econômica e social que nosso país conheceu, está ainda longe de ser uma das bases de nossa sociedade.

Widerberg aprofunda-se: Em nossos filmes procuramos, antes de tudo, dar da Suécia uma imagem real, positiva: devo confessar que nós, os novos, consideramos uma brincadeira, quando lemos em revistas estrangeiras esta frase a respeito do cinema sueco: "o reflexo da tristeza num mundo sem Deus". Por que um mundo sem Deus seria triste? Nós cremos no diálogo do homem com o homem e não no diálogo do homem com Deus. Bergman é triste porque, para ele, Deus se retirou, e essa tristeza que encontramos em toda a sua obra lhe serve sobretudo para explicar ele próprio, Bergman. Bergman representa Bergman e não a Suécia.

A seguir, os jovens críticos iriam trocar suas teorias pela prática e passar à direção com as orientações novas de um cinema novo. Depois de uma vitoriosa carreira como jornalista, Bo Widerberg desafiou os produtores, dizendo que poderia fazer um filme pela terça parte de um orçamento normal sueco. Fez, em 1962, O pecado sueco, filme político e de implicações sociais, recusando explicações metafísicas para os problemas da juventude do país. O quarteirão do corvo (1963), na mesma linha, tinha como personagem um jovem que abandona a família para estudar em Estocolmo e dar vazão aos seus ideais reprimidos. Amor 65 (1965), exibido durante o I.° FIF (Festival Internacional do Filme), no Rio, fazia uma reflexão sobre o próprio cinema, mostrando um cineasta e sua vida, ou um 111


cineasta e a vida. Olá, Roland (1966) descreve os meios comerciais e intelectuais de Estocolmo. Mas foi com Elvira Madigan (1967) que Widerberg se tornaria um cineasta de renome internacional, contando uma belíssima história de amor, ilustrada com imagens e cores de sonho, que terminava na mais negra tragédia, porque a preconceituosa e puritana sociedade sueca do século passado não podia admitir o amor entre um nobre tenente desertor e uma jovem equilibrista de circo. A cena final — em que a violência de um suicídio a dois é omitida em favor de um plano lírico — será sempre inesquecível: o tiro desfechado pelo tenente contra a imagem fixa da amada, de cujas mãos escapa uma borboleta, enquanto o outro disparo endereçado a ele é apenas ouvido, permanecendo o mesmo fotograma na tela. Em 1969, Widerberg realizaria Adalem 31, filme até hoje absurdamente inédito no Brasil, muito elogiado pela crítica francesa que o elegeu entre os melhores do ano, exibidos em Paris. Narra a grande greve sueca de 1931-1932. O enfoque principal é a violência sanguinária da repressão, contrastada com a generosidade, o estoi-cismo e as manifestações pacíficas dos grevistas para defender seus direitos. O estilo se mostrava intimista e lírico, sem esconder seu amor pelas belas paisagens e a natureza em si — como nos filmes de seus grandes ancestrais, Stille e Sjostrom. Esteta e homem de esquerda não-conformista, Bo Widerberg passou com este filme a se preocupar com as formas modernas da contestação, o que vale dizer, com tudo aquilo que reivindica uma sociedade ao mesmo tempo mais justa e mais humana. Seus filmes falam do passado, mas funcionam como uma metáfora do presente. Sua obra-prima, O desejo final (1971), levou dez anos para ser exibida no Brasil. O filme parte de um fato acontecido em 1902 — o desembarque de Joel Emmannuel Hillstron (1879-1915), um jovem imigrante sueco, e seu irmão em Nova Iorque. No prólogo, enquanto os letreiros se sucedem ao som de uma linda canção-tema, entoada por Joan Baez, a câmera, colocada como se fossa os olhos dos dois personagens, contempla em giros a Estátua da Liberdade. Widerberg estende seu filme até 1915, ano em que Joe Hill (o nome americanizado do protagonista) morre numa manhã, fuzilado por um crime que ele não cometeu, depois de um processo corrupto e um 112 julgamento marcado, dos quais o caso de Sacco e Vanzetti, alguns anos depois, foi quase uma reedição. Composto como uma balada, O desejo final é formado por estrofes que se sucedem sem ligação aparente: são acontecimentos desses treze anos durante os quais Joe Hill, o imigrante, torna-se um dos militantes mais ativos nos primeiros movimentos sindicais norte-americanos. Um militante pouco comum que coloca em canções os protestos dos trabalhadores empenhados numa luta difícil por melhores condições de vida e de trabalho. Nos anos 70, Widerberg deu seguimento à sua carreira com filmes como Tom Foot (1974), Victoria (1975) e O homem abominável (1976), todos inéditos no Brasil. Victoria não saiu da Suécia; Tom Foot foi uma espécie de fábula filosófica e uma crítica ao mundo dos adultos, denunciando os meios comerciais do esporte, no caso o futebol profissional; O homem abominável faz críticas impiedosas à polícia, expondo sua impotência, sua ineficiência, seus erros que fazem vítimas fatais. Vilgot Sjoman também saiu da crítica para a prática do cinema, estreando em 1962 com A amante sueca, um de seus raros filmes exibidos no Brasil. Trata do dilema de uma secretária, indecisa entre os fugazes momentos de felicidade e as humilhações que lhe acarretam uma ligação com um homem casado, e a dedicação de um estudante sincero que a ama. Dizem que o argumento foi escrito para Bergman que se recusou a realizar o filme, o qual traz no elenco os nomes bergmanianos de Bibi Andersson e Max Von Sydow nos papéis principais. 491, segundo filme de Sjoman, feito em 1963, é uma veemente crítica à assistência social sueca e ao mesmo tempo uma descrição da vida de um grupo de jovens delinqüentes. Devido a cenas de sexo incomuns e uma linguagem rude, o filme foi proibido pela censura sueca. Os produtores apelaram e foi necessária a intervenção do primeiro-ministro para liberar a fita. Em 1964, Sjoman dirigiu O vestido; em 1965, um dos episódios de Stimulantia, e, em 1966, o escandaloso Minha irmã, meu amor, amor incestuoso entre irmãos num filme que causou celeuma pela franqueza com que esse tema-tabu era tratado no cinema. Mas os dois filmes seguintes de Sjoman foram mais ousados ainda: Sou curiosa — Amarelo (1967) e Sou curiosa — Azul (1968);


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as cores da bandeira sueca são o amarelo e o azul, e os filmes são complementares, juntando ao erotismo a política e a sociologia. As fitas denunciam a falta de consciência política e o desconhecimento da situação de outros países, por parte dos suecos. Mostra o cinismo dos que fazem política, interessados apenas em se manter no poder, sem qualquer ideologia. Lena, a jovem protagonista, dialoga com Martin Luther King, com Sjoman, seu diretor, trocando às vezes o papel da política pelo papel da atriz. O presidente dos E.U.A., Lyndon Johnson, é caricaturado num desfile contra a guerra do Vietnã; e os olhos de um retrato do generalíssimo Franco são apanhados por Lena num ataque de fúria. Há ousadíssimas cenas de sexo, uma das quais irreverente ao ponto de ter sido filmada no parapeito do Palácio Real numa provocação à monarquia sueca. Sjoman atravessou toda a década de 70 realizando filmes, mas foram raros os que chegaram ao Brasil. Blushing Charlie (1970), por exemplo, não chegou. Na cena inicial, um grupo de homens gordos se exibem nus em uma sauna. São as primeiras imagens de contestação contra uma sociedade acomodada, calma e silenciosa. Através da história de um chofer de caminhão, desiludido do amor de uma dançarina de cabaré, o diretor confronta política e erotismo num filme que os críticos consideraram confuso e que faz constantes alusões aos guerrilheiros da Revolução Cubana. Até que o sexo nos separe (1971) é a curiosa história de um casal que recusa o ato sexual, porque o considera como impuro e perigoso. Sjoman critica uma sociedade ainda repleta de tabus e hipocrisias. A garagem (1975), um filme que foi exibido no Brasil, mostra um relato nada estimulante do chamado paraíso nórdico, abordando um drama de infidelidades e homicídio em um triângulo amoroso. Linus (1979) passa-se em Estocolmo de 1937, e o personagem-título é um adolescente de 16 anos, pobre, ingênuo e ignorante. Sjoman o faz circular numa sociedade sórdida e vulgar, explorando o tema da baixeza humana, num filme muito elogiado e que marcou a volta ao cinema sueco de uma de suas grandes atrizes, Viveca Lindfords. May Zetterling foi a atriz de Tortura de um desejo, de Sjoberg, e de Música na obscuridade, de Bergman. Ela atuou na Inglaterra, destacou-se em Hollywood, mas preferiu retornar à Suécia, abandonando tudo para realizar seus próprios filmes. Começou fazendo 114 pequenos documentários para a televisão e estreou no longa-metragem de ficção, em 1964, com Casais amorosos, que tratava de problemas como a maternidade, o amor e o casamento, vistos sob a ótica feminina. Foi sentida a influência de Bergman nesta fita que demole o homem e o mundo que ele condicionou para as mulheres, fazendo com que estas descubram sua própria força, o sentido da vida e se libertem de uma tirania sistemática. Há cenas ousadas de homossexualidade feminina e de colegiais sexualmente reprimidas e revoltadas contra o regime autoritário de certos internatos para moças. Mas foi Jogos da noite (1965), o segundo filme de May Zetterling, que causou furor quando foi proibida a sua exibição para o público no Festival Internacional de Veneza de 1966. A fita provocou escândalo por suas cenas de perversão sexual, e no Brasil foi mutilada pela censura. O protagonista é Jan, incapaz de satisfação amorosa por culpa de traumas psíquicos do passado. O filme é estruturado por uma seqüência de flash-backs em que Jan é visto em momentos de sua infância, onde Ingrid Thulin aparece no papel de uma mãe sensual, dominadora e fútil, símbolo e produto de uma classe social apodrecida. Na verdade, a fita é quase um inventário completo das doenças, obsessões e perversões sexuais, inibição de infância, impotência sexual, homossexualidade masculina e feminina, incesto, complexo de Êdipo, que aparecem como um cancro carcomendo um mundo burguês de ociosos e ricos desocupados. O que causou mais polêmica foi o fato dessa amarga visão sueca do sexo ter sido colocada na tela por uma mulher. Doutor Glas (1968) relata a anatomia subjetiva de um crime, descrevendo um tipo mórbido na figura antipática do personagem-título. Há cenas oníricas ou passadas na imaginação do protagonista, mas o filme é arrastado e monótono, decepcionando bastante. As garotas (1969), que não chegou a ser exibido no Brasil, narra a situação de três mulheres, interpretadas por Bibi Andersson, Harriet Andersson e Gunnel Lindblom. Elas são atrizes ao longo de uma tournée, que representam Lisístrata, de Aristófanes. Como a heroína grega, elas decretam a greve do amor para punir os respectivos maridos. Trata-se de um estudo da condição feminina na Suécia. que coloca em questão o desejo da mulher de fugir da dependência e da tutela dos homens,


impostas por tradiçþes seculares. 115


Em 1971, Zetterling dirigiu o média-metragem Van Gogh, a respeito de um ator que se prepara para interpretar um pintor no teatro e, aos poucos, transforma-se no personagem. O tema da transferência de identidade, muito relacionado com a própria vida de May, a atriz que virou cineasta. May Zetterling foi um dos oito diretores que rodaram, em 1972, o documentário sobre os Jogos Olímpicos de Munique, A visão dos oito. Sua parte, The Strongest, focalizava o regime nutricionista dos atletas. Pouco ou nada conhecido no Brasil, Jorn Donner foi um crítico menos virulento do que Bo Widerberg e acabou influenciado por Bergman na sua estréia, em 1963, com Um domingo de setembro, um filme dedicado a Harriet Andersson, sua mulher e musa inspira-dora. Os críticos viram também influências de Antonioni numa história de amor que se degrada progressivamente e que tinha no prólogo uma enquete jornalística, indagando às pessoas o que elas achavam do amor. Amar (1964), com Harriet Andersson e o falecido ator polonês Zigbniew Cybulski (de Cinzas e diamantes, de Andrzej Wajda), foi dedicado a Mauritz Stiller e apresentava o caso de uma mulher que não encontrando a satisfação física com o marido, vai descobri-la com um homem encontrado ao acaso. Em 1965, Donner assina um dos episódios de Stimulantia e a seguir realiza Aqui começa a aventura, sobre um casal em crise e que tenta se renovar. Na Suécia, Donner ainda dirige, em 1966, O telhado e depois em seu país natal, a Finlândia, roda Preto no branco (1968), Retrato de uma mulher (1969) e Anna (1970). O último de seus filmes conhecidos fora da Suécia e da Finlândia foi As aventuras de um produtor de filmes rosas (1971), a história de um jovem cineasta que depois de realizar o filme de seus sonhos, tem o dissabor de vê-lo jogado dentro do mar pela mulher que ele ama. Ex-professor, ex-fotógrafo, Jan Troell entrou para o cinema profissional ao fotografar o primeiro filme de Bo Widerberg, O pecado sueco. Passou à direção de longa-metragens, depois de realizar vários curtas, com Aqui está sua vida (1966), história de um adolescente pobre na Suécia do princípio do século, um país agitado por lutas sociais e engajado no idealismo político. Seu segundo filme, Quem o viu morrer? (1967), conquistou o "Urso de Ouro" no Festival de Berlim de 1968 e abordava o problema da difícil passagem 116 dos velhos métodos pedagógicos autoritários para um sistema de educação democrático. O protagonista, intepretado pelo ator Per Oscarsson, é um professor, vítima de alunos rebeldes, que acaba morrendo afogado numa brincadeira perigosa. Apesar do sucesso internacional de seus dois primeiros filmes, Troell ficou quatro anos sem filmar e reapareceu nos Estados Unidos com Os emigrantes (1971). O filme baseia-se numa história de um escritor muito conhecido na Suécia, Vilhelm Moberg, e todo o povo sueco sabe de cor a saga de Karl-Oskar e seus parentes que, em 1850, emigraram para os Estados Unidos. A epopéia da família é narrada em vários volumes e se prolonga até a época atual. Numa longa narrativa que consome 150 minutos de projeção, Troell divide a fita em três partes: primeiro apresenta singelamente uma história sobre a romântica pobreza dos camponeses suecos; depois, faz jorrar, através deles, uma distante mas consciente admiração pela América; e, finalmente, perpetra ingênuas batidas críticas ao próprio american way of life. Interpretado por Max Von Sydow e Liv Ullmann, o filme teve uma continuação com o O preço do triunfo (1972), que partia da última imagem do filme anterior e evocava o árduo processo de fixação dos imigrantes suecos na nova terra, desfazendo as ilusões acalentadas por eles a respeito do paraíso americano. Em 1974, Troell rodou nos E.U.A. A esposa comprada, com Liv Ullmann e Gene Hackman, sobre um fazendeiro da Califórnia que casa-se com uma solteirona do leste através de um anúncio de jornal. Ele, rústico, áspero e rebelde. Ela, educada, meiga e submissa. O drama roça às vezes a tragédia, mas acaba com uma lição moralista: os seres humanos devem aceitar-se reciprocamente. Uma refilmagem de Furacão (fita dirigida por John Ford em 1937), produzida por Dino de Laurentis e inicialmente destinada a Roman Polanski, acabou nas mãos de Troell em 1979. O filme, inédito no Brasil, redundou num fracasso artístico e comercial e tornou-se alvo de críticas iradas que o acusaram, entre outras coisas, de fazer apologia de um colonialismo cultural sem-vergonha. Entre outros cineastas suecos menos famosos, destacam-se: Jonas Cornell, elogiado por Beijos e abraços (1967), fita que narra episódios da vida de uma modelo profissional, de seu marido, um 117


rico homem de negócios, e de um amigo dele, pobre e desempregado, que se torna o mordomo da casa. Cornell é um diretor que saiu dos meios teatrais, assim como Hans Abranson que foi assistente de Bergman e que realizou, em 1966, A serpente, filme que abordava a liberdade sexual, face à hipocrisia burguesa. Jan Halldoff, com O mito (1966) e A vida é formidável (1967), renega os valores impostos pela sociedade e descreve o inconformismo inarticulado dos jovens suecos. Outro de seus filmes, Ola e Júlia (1968), tem como tema a juventude daquele país e seu interesse crescente pela música pop. Acke Falck, egresso da televisão, estreou em 1963 com Adão e Eva e, em 1966, dirigiu Com infinito amor, melodrama narrando o romance entre um escritor e uma enfermeira condenada pelo mal de Hodgkin (uma espécie de câncer). Seu filme mais curioso parece ser Núpcias suecas (1968), sobre ânsias e revoltas numa pequena aldeia de ciganos. Lars Magnus Lindgren sobressaiu com Adorado John (1964), sobre a evasão erótica dos suecos. A história de um homem e de uma mulher desencantados, que se conhecem em circunstâncias curiosas e atraídos um pelo outro recobram a felicidade perdida. As cenas de amor tidas como ousadas foram mutiladas pela censura por ocasião da exibição do filme nos cinemas brasileiros em 1969. Podem ser acrescentados ainda como cineastas componentes da Nouvelle Vague sueca os nomes de Johan Berganstrahle (Made in Sweden, 1969), Yungve Gamlin (A caça, 1965 e Os banhistas, 1967), Olle Hellbon (diretor de uma série de filmes para crianças), Gunnar Hoglund (Sensualmente sueca, 1968), Costa Agren (Balada, 1969), Torbjorn Axelman (O verão do leão, 1969), Lars Lambert (Desertor U.S.A., 1968) e o dinamarquês Henning Carlsen, realizador de inúmeras co-produções sueco-dina-marquesas, destacadamente A fome (1966), sobre a preservação da dignidade de um escritor em 1890 que, corroído pela miséria, se evade em sonhos. Numa das cenas o protagonista, interpretado por Per Ocarsson, é obrigado a disputar um pedaço de carne com um cão. A florescência do cinema sueco nos anos 60, revelando cineastas de talento e acompanhando, de certa forma, as transformações e tendências do cinema mundial, reduziu consideravelmente nos anos 70, quando a produção de filmes entrou em crise, e os diretores que 1Í8 surgiram com a Nouvelle Vague sueca arrefeceram sua criatividade e praticamente desapareceram de cena depois de 1975. Por essa época a moda do filme erótico, do cinema pornográfico, já havia dominado a produção mundial, e a Suécia, com sua fama de estar à frente em termos de liberdade sexual, não podia ignorar o fenômeno. Sob a égide de pequenos produtores, a Suécia realizou e exportou filmes eróticos ou pornográficos, com ou sem cenas de sexo explícito: Bibi (1974), de Joseph Sarno; Mulheres excitadas (1976), do mesmo diretor; Carrossel de amor (1976) de Andrew Wlyte; Ingenuidade perversa (1975), de Torgny Wickman; Duas suecas em Paris (1978), de Ted Mottet. Porém, quem mais explorou o gênero foi o medíocre e prolifero Mac Ahlberg: As experiências sexuais de Flossie (1973), Justine e Julieta (1973), Adolescentes diante do prazer (1974) Molly, a ingênua perversa (1975), Sensual e meiga (1975), Corpos quentes (1976). Muito esporádicas foram as manifestações artísticas no cinema sueco na década de 70, exceto naturalmente a presença de Bergman, indefectível, indeclinável e imperturbável, durante todos esses anos de renovação. Assinalem-se os elogios da crítica francesa a O recém-nascido, coprodução turco-sueca de 1973, dirigida por uma mulher, Barbro Karubuda, autora de documentários políticos para a televisão, que com este filme realizou uma ilustração patética e exemplar do subdesenvolvimento e da desigualdade social, sobre um camponês turco e sua mulher que lutam desesperadamente para alimentar um bebê recém-nascido. Giliap (1975), de Roy Andersson, foi apresentado na Quinzena de Realizadores do Festival de Cannes de 1976. É a história de um homem e de uma mulher solitários que se encontram numa pequena cidade e vivem alguns momentos de felicidade, antes que o personagem masculino, tomado pelo ciúme e depois pela loucura, mate um amigo por acreditar ser ele o seu rival no amor. O estranho amor de Mannia Becker (1976), de Marianne Ahrne, se desenrola no quadro de um hospital psiquiátrico, onde a protagonista é a mais nova integrante de uma equipe médica. Sua grande força é saber que está ali para escutar os pacientes, descobrindo espontaneamente que o amor constitui o melhor dos remédios. Particularmente atraída por um rapaz que se refugia no mudismo, ela tudo fará para que ele reencontre as palavras. No fundo, o filme se 119


propõe a provar que a cura das doenças psicóticas está no relacionamento afetivo entre médicos e pacientes. As loucas aventuras de Picasso (1978), de Tage Danielsson, é uma versão deliberadamente absurda e muito louca da vida do pintor espanhol, seu início de carreira, sua viagem a Paris fugindo da família, a súbita criação do cubismo, o idílio com uma cantora de cabaré, viagem a Nova York, etc. Resta verificar que, muito provavelmente, as melhores promessas do cinema sueco dos anos 70 surgiram carregando o lastro do cinema bergmaniano. Gunnel Lindblom, a atriz de vários filmes de Bergman, notadamente O silêncio, onde ela interpreta Anna, a irmã sensual, estréia na direção com Paraíso de verão (1976). Várias gerações de uma família burguesa se reúnem, durante as férias, no "paraíso", uma mansão incrustada no arquipélago sueco. A ambien-tação logo faz o espectador mergulhar no centro desse "sonho nór-dico", com suas belas paisagens e seus costumes civilizados. Toda essa felicidade, porém, é um contraponto para o clima terrivelmente opressivo que aparece já no início de Paraíso de verão. As seqüências do cotidiano de seus personagens permitem entrever que algo está mal, que algo se quebra. A crise da família tradicional é a cortina de fundo da crise de relações sociais: o sonho de mais de quarenta anos de governo social-democrata. A desigualdade social, a discriminação sexual, os valores tradicionais são o pão diário dessa sociedade erigida em modelo de civilização para o Ocidente. Um filme que muito provavelmente não desmerece o mestre, que aliás foi um dos produtores dessa primeira obra de uma de suas admiráveis atrizes. No Festival de Cannes de 1978, foi lançado na "Semana da Crítica" um filme co-realizado por Erland Josephsson, Sven Nykvist e Ingrid Thulin, um ator, um fotógrafo e uma atriz que sempre trabalharam com Bergman. A fita intitulada Um e um conta a história de uma mulher de 45 anos, artista plástica, que decide romper com o amante e com uma vida que a sufoca. Tenta convencer um primo, por quem nutre uma secreta paixão desde a infância, a acompanhá-la numa viagem. Esse homem solitário e ingênuo, cujo único prazer é a leitura, aceita, depois de resistir muito, a tentar essa aventura. Na paisagem calma do campo, a mulher começa a 120 oferecer ao primo o mundo de sensualidade que ele ignora. Há cenas patéticas de tentativas de conquista e reações de repulsa que culminam com uma dramática discussão numa praia, onde cada um decide retornar à sua solidão. Um e um foi considerado como um filme muito bergmaniano, a análise do comportamento de dois seres humanos diferentes em tudo, cujos destinos não podem ser somados porque nunca formariam dois. Em 1979, Erland Josephsson realiza A revolução dos doces, filme sobre uma crise conjugai que leva o marido e a mulher, paralelamente, a quebrarem o sistema de valores estabelecido pelo casamento. Bergman aparece oculto por trás do tema e do estilo deste filme que parece demonstrar que o cinema sueco ainda por muito tempo vai precisar do toque mágico de um cineasta que, mesmo quando ausente, se mostra predominantemente presente. Sem Bergman é bem possível que a arte do cinema deixe de existir na Suécia, país que acredita que a morte é um mundo onde o ser humano encontrará sua imortalidade. 121


O universo de Bergman


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Bergman diretor de cinema surgiu em 1945, quando a Segunda Guerra Mundial acabou. Portanto, eis um cineasta moderno, mas não só porque o fim da guerra marcou uma nova era para o mundo e determinou transformações estéticas e temáticas para a arte cinematográfica. Moderno porque ativo, intenso, inquieto, laborioso, e porque adotou uma atitude precisa diante da vida e diante do cinema, que é uma imitação da vida. E o que significa a vida, não só de uma maneira particular, mas de um modo mais geral, ou seja, o que exprime a existência das pessoas no mundo, no nosso planeta, no qual nós não somos mais do que passageiros temporários? Eis a grande interrogação que não tem outra resposta a não ser o silêncio e que está presente em todos os filmes de Bergman, cineasta polêmico, incompreendido por uns, exaltado por outros, mas sempre importante para todos, apologistas ou detratores, porque sua obra, fecunda e multiforme, toca em problemas essenciais, questões transcedentais que muito têm a ver com Deus, vulto invisível e duvidoso, mas que se relaciona bem mais com os seres humanos, de carne, osso, sangue, implantados numa autêntica realidade que é a vida. O universo que este cineasta nos propõe é de uma importância mais do que considerável, porque envolve o mundo dos seres humanos, abarca o pensamento do homem que acredita em Deus, embora a recíproca não seja verdadeira. Eis, portanto, por que é indispensável ficar sabendo um pouco sobre: A VIDA

O nascimento de uma criança é celebrado por Bergman com um fervor extremo, como se a criança representasse a esperança (Quando as mulheres esperam, No limiar da vida). Mas ao mesmo 125


tempo ele apaga essa esperança, constatando a tristeza do mundo que se apresenta na idade adulta: os casais desencantados (A paixão de Ana); os personagens odiosos ou covardes (Vergonha); o amor destruído (Cenas de um casamento); as relações da morte com o nascimento e que estabelecem o valor da vida (Morangos silvestres). Ê particularmente em No limiar da vida que o debate sobre a existência humana se eleva através da descrição de um universo fechado, um pouco inquietante, daquelas três mulheres que se encontram numa maternidade e confrontam, a partir do filho que vão ter, seus destinos. Uma das mulheres se recusa a conceber uma vida e quer recorrer ao aborto, a outra dá à luz uma criança morta e a terceira dá a luz uma criança viva. Para Bergman, a vida não é um mar de rosas. Ela é feita de todas as decepções, de todas as quedas, de todas as humilhações, de todos os pavores. Prisão, este título serve para definir todos os seus filmes. Nele, a vida é descrita como um inferno e o destino como uma rua de mão única e sem saída. Viver é, em síntese, conhecer o encantamento da juventude e depois afrontar a crueldade do mundo. Alguns, muito sensíveis ou muito fracos, passam pela experiência da solidão, o perigoso caminho que conduz ao desespero (O silêncio, Vergonha), às portas da loucura (Através do espelho, Persona, Face a face) ou à morte (Prisão, O sétimo selo, A hora do lobo). O AMOR

Mas a força de viver, de se proteger da solidão e da infelicidade pode estar no amor. O amor que cicatriza depressões, crises e angústias e devolve à Dra. Jenny Isaksson o gosto pela vida (Face a face). O amor — tema central de todas as histórias que escreveu e filmou — é encarado por Bergman como um estado subjetivo da alma que não resiste ao tempo e aos desencantos da vida em comum. Sua mensagem não é outra senão esta: não se pode viver só, mas antes de se multiplicar a vida por dois, há que se dividir o peso das angústias e das frustrações. O amor — é preciso descobrir o significado real dessa palavra, para que ela não vire lixo e seja varrida para debaixo do tapete (Cenas de um casamento), não torne rotina e sature os amantes (A paixão de Ana, A hora do amor), não 126 se transforme em ódio e desprezo e humilhe os cônjuges (Noites de circo, Da vida das marionetes). O casal é, de certa forma, colocado em todos os filmes de Bergman, como um modo de dar corpo à sua meditação sobre o relacionamento humano. Entre marido e mulher, Bergman abre o espaço natural para o confronto onde todos os ódios, todas as humilhações e todas as degradações da personalidade são possíveis. Karin, a irmã que mutila seu sexo em Gritos e sussurros, chega à constatação de que seu casamento é um fracasso. Seu marido, vinte anos mais velho do que ela, não lhe ofereceu outra coisa senão desgosto físico e mental. Nenhum orgasmo, nenhuma alegria, nenhuma satisfação interior. Sua fidelidade ao casamento esconde o ódio impotente contra o marido e uma revolta constante contra sua vida. Mas não existe nos filmes de Bergman um só casal que não tenha temporariamente descoberto a felicidade. O amor é sempre efêmero, entretanto, malgrado sua intensidade e limitação em conformidade com o tempo. Não obstante esse inexorável obstáculo, amar para Bergman é um verbo que pode ser conjugado se houver sinceridade, se existir amor verdadeiro e se os casais não forem formados fortuita e acomodadamente, para satisfazer as convenções da sociedade burguesa (Sorrisos de uma noite de amor). Portanto, amar para Bergman significa estabelecer a igualdade dos sexos, ser igual nos sentimentos, nas emoções e nos temores. Amar é viver em fraternidade como Tamino e Pamina, em A flauta mágica, ou como Jos e Maria, em O sétimo selo, o casal que atravessa imune e imperturbável o inferno da hipocrisia humana. A MORTE

Nascer, viver, amar e depois morrer. Então o que é a vida? Terá ela algum sentido? As perguntas poderiam ser endereçadas à própria morte, personagem importante em O sétimo selo, mas que nada sabe revelar sobre a vida e a existência de Deus. "Não há nenhum segredo", responde ela. Ou seja, nada há a perguntar porque nada há a saber. Mas talvez haja a explicar. A morte nos filmes de Bergman é o limite do desespero, o ponto final e a paz desejada pelos seres fatigados como o professor Isaak Borg (Morangos silvestres), o avô senil e doente (Face a face) que aparece em uma cena acertando


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um relógio, este símbolo sempre utilizado por Bergman para representar o tempo que passa e deixa as pessoas mais perto da morte. Pessoas que sofrem como Agnès (Gritos e sussurros), a mulher que está morrendo de câncer numa casa sombria e mergulhada em absoluto silêncio, quebrado apenas pelo bater dos pêndulos de grandes relógios espalhados pelas paredes. Agnès não escapa, a morte é o epílogo da vida. Não há como fugir dela. Em O sétimo selo, o cavaleiro Antonius Blok propõe à Morte uma partida de xadrez para ganhar tempo, a fim de encontrar conforto para sua fé angustiante. Mas, abandonado por um Deus invisível e fechado em seu silêncio, Blok, à beira do abismo e de mãos dadas com outros seres humanos, é puxado pela Morte para uma dança macabra e depois levado por ela para longe da vida. Vida para a qual o homem procura um significado e não encontra, e então se transforma numa aterradora espora, na passiva expectativa de um fim trágico e contingente. Um fim que muitos buscam como solução para a angústia de viver, como a protagonista de Face a face e o personagem principal de Da vida das marionetes, que tentam o suicídio, cujos candidatos nos filmes de Bergman formam uma legião. A ARTE

Um título de filme que serve para definir todos os outros filmes de Bergman: O rosto. Na verdade, a arte de Bergman pode ser considerada como uma série de variações sobre o rosto humano. Rostos iluminados ou sombreados, rostos alegres, sofridos, crispados, rostos em desespero, descontraídos, assustados, céticos, rostos em vida e rostos inquietos que se olham no espelho e através dele gostariam de atingir a alma. Esse famoso espelho bergmaniano que reverbera e multiplica a realidade para contradizê-la num futuro insólito. Rostos diferentes entre si, mas que podem se constituir em duas faces de uma mesma pessoa, como em Persona. Persona, que na obra de Jung designa uma parte de nossa personalidade, a máscara com a qual nos apresentamos ao mundo. A máscara que Liv Ullmann arranca numa das cenas de Face a face para mostrar seu verdadeiro rosto. 128 Onde acaba a realidade e onde começa a ilusão? Onde estão os rostos e onde estão as máscaras? Onde estão os atores e onde estão os personagens? A arte de Bergman não oferece as respostas às perguntas que o homem contemporâneo formula. Apenas sugere que nós nos tornemos duas pessoas: uma, nós mesmos, com o nosso silêncio, desejos, solidão, certezas e dúvidas. A outra, aquela que temos de adotar para o uso externo, no trabalho, no lar, na rua. Somos nós e nossa máscara. O homem e o lobo do homem, ou seja, nós e os nossos medos, nossos temores e ansiedades. A psicanálise tem um lugar importante nos filmes de Bergman, que às vezes se faz de analista, arrancando de seus personagens confissões, desabafos, recordações essenciais para fornecer ao espectador subsídios para compreender a infelicidade e as neuroses, principalmente das mulheres desadaptadas e inadaptadas ao ato de viver. Face a face é um filme-síntese na obra de Bergman, entre os que ilustram temas ligados à psicanálise. Nele o ator Erland Josephsson atua como se fosse um observador. Ele está ali como se fosse um analista que examina atentamente o comportamento de uma cliente, no caso Liv Ullmann, vista, "voyeurizada", violada, dissecada, aberta como se fosse uma boneca. Ela é o objeto da câmera de Bergman que substitui o olhar de Erland Josephsson, discreto e interrogativo. Esse olhar e a barba do ator inspiram confiança e fazem lembrar a figura de Freud. Bergman-Freud. O FANTÁSTICO

Para muitos o fantástico no cinema não significa outra coisa senão uma história impossível, povoada de monstros gigantescos e de figuras tétricas, na qual tudo pode acontecer, desde assassinatos sádicos praticados por criaturas sanguinárias, até apocalípticas invasões de discos voadores e seres extraterrestres. Para esses, um filme fantástico é A maldição do lobisomem, de Terence Fisher ou A guerra dos mundos, de Byron Haskin. Nós preferimos definir o fantástico no cinema como a materialização dos mais profundos traumas do homem, uma projeção de seus fantasmas, suas obsessões, sua agitada vida interior, enfim. Para nós, um filme fantástico é A hora do lobo, por exemplo, onde Bergman dinamita o real em imagens oníricas para 129


fazer aparecer assim os tormentos incessantes que se ocultam sob o silêncio dos rostos, sob a indiferença e a neutralidade das pessoas. Bergman é nesse sentido um verdadeiro "autor de filmes de terror", um terror que existe nos seres humanos, causado pelos monstros que habitam a sua mente, provocando atritos e dores capazes de i levá-los à beira da loucura. Em Bergman o fantástico nasce da própria vida (da mente humana), como no caso do pintor Johan Borg, de A hora do lobo, que mergulha nas trevas da loucura e é devorado por seus próprios demônios. "O artista tem seus demônios pessoais. Eles nascem das lembranças da infância que permanecem latentes no subconsciente. Seus objetivos são retirar do artista suas possibilidades de viver e gradualmente destruí-lo destruindo a si mesmos", explica Bergman. Outro exemplo é o velho professor de Morangos silvestres, que faz um balanço de sua existência e se vê perdido num cenário terrificante, onde encontra um relógio sem ponteiros que indica a não-existência do tempo e o seu próprio cadáver dentro de um caixão, mostrando que não há saída para o homem, senão viver o seu próprio absurdo. A visão de um bonzo vietnamita se transformando em tocha humana ou a fotografia de uma criança judia de mãos para cima, diante das ameaçadoras armas de soldados nazistas, fazem de Per-sona um filme de terror, como se não bastasse o "vampirismo" da atriz em estado de depressão, que suga progressivamente a vitalidade da jovem enfermeira. Também em Vergonha, a guerra é enfocada como uma entidade fantasmagórica, imaginária, como um ato gerado pelo mecanismo do inconsciente. Em Prisão, Bergman nos abre as portas do inferno: mostra o alcoolismo, a prostituição, o homicídio e o suicídio, os fantasmas e a loucura. A vida é como um pesadelo, uma prisão contra a qual todas as revoltas são inúteis. Em Através do espelho há a mulher louca que crê ter visto a imagem de Deus no helicóptero que chega para transportá-la, sob a forma de uma imagem simbólica, induzindo à assombrosa comparação de Deus com uma aranha ameaçadora e gigantesca. A alucinante visão, durante os pesadelos de Liv Ullmann em Face a face, da velha senhora de olhos vazados, corresponde à cena de horror metafísico em que Max Von Sydow, em estado onírico, vê uma velha que, ao tirar o chapéu, tira também o rosto em A hora do 130

lobo, filme influenciado pelo expressionismo alemão e por Murnau, particularmente, contendo referências a Drácula, Nosferatu, Fausto, Tartufo, e incluindo imagens dignas de todos os grandes ilustradores do inconsciente, de Hieronymus Bosch a William Blake, de Gustavo Doré a James Ensor. Filmes como O sétimo selo e A fonte da donzela, com a ação passada na Idade Média — e aí caberia observar que Carl Jung, o mais brilhante discípulo de Freud, comparou a Idade Média (leia-se a Idade das Trevas) ao inconsciente humano —, são alegorias cujo tema é o homem e a sua eterna procura de Deus. Obra-prima do cinema fantástico, O sétimo selo contém as cenas mais admiráveis desse gênero de filmes, não bastasse a própria Morte, toda vestida de preto, encarnada pelo ator Bengt Ekerot: a procissão de flagelados, a feiticeira queimada viva, a antológica partida de xadrez com a Morte e a admirável seqüência final com todos os personagens de mãos dadas conduzidos pela Morte numa dança macabra. O próprio cineasta revelou que O silêncio lhe foi sugerido em parte por um sonho. E observemse as situações tipicamente oníricas, com a misteriosa cidade de Timoka onde reina um clima de guerra, com tanques nas ruas e uma carroça fantasma puxada por um cavalo esquelético, sobre a qual estão móveis empilhados, indicando um provável êxodo. O cinema de Bergman propõe, dessa forma, não o fantástico de histórias extravagantes, cheias de monstros gotejando sangue para interessar espectadores excêntricos, mas um fantástico que evoca um universo situado além do nosso, um universo subjetivo, fechado, que só pode ser aberto com a chave de Freud. A MULHER

"Por que as mulheres têm um papel tão importante nos meus filmes? Eu não posso dizer. As atitudes, as reações, o comportamento, a psicologia das mulheres me fascinam, me comovem, me estimulam..." A declaração é de Bergman, o mais feminista de todos os cineastas. Ele está sempre mergulhando no fundo da alma da mulher um busca de seu sentimento, sua emoção, sua


concepção do amor e da 131


vida. Seus personagens femininos são ao mesmo tempo líricos e sensuais, dóceis e excitados. Formam um universo cujas coordenadas, traçadas e alteradas pelos homens, sucumbem ao imperativo das frustrações e dos desapontamentos da vida. Num filme de Bergman, a mulher nunca aparece totalmente liberada. Surge sempre mais ou menos confortavelmente instalada no seio de uma sociedade tradicional, à qual ela se opõe por instinto. Na verdade, a mulher emancipada, a mulher preocupada com problemas sociais nunca foi objeto do cinema de Bergman, que a situa em relação ao homem, à tirania masculina, muito embora a mulher bergmaniana não consiga viver afastada do homem e do amor. "Se o amor é um mal, vive-se o mal", diz Harriet Andersson em Sorrisos de uma noite de amor. O problema do casal sempre apareceu com destaque nos filmes de Bergman, e em muitos deles vamos encontrar casais em crise, separados, divorciados, desunidos, numa visão pessimista do casamento e numa constatação realista de que o amor entre um homem e uma mulher é um efêmero período de felicidade. Nos seus primeiros filmes, Bergman abordava o romance entre casais jovens, inexperientes, seres perdidos na vida, à margem da sociedade, à margem de si mesmos, cujos amores acabavam sempre em infortúnios, abortos, perda de crianças, crise de nervos, suicídios, tragédias que punham fim às ilusões. Crise, Chove sobre nosso amor, Barco para as Índias, Música na obscuridade, Porto, Prisão, Sede de paixões, Rumo à felicidade, Juventude, em todos esses primeiros e pouco conhecidos filmes de Bergman, suas jovens heroínas, ávidas de amor, são incapazes de romper com seu passado de mulheres-objeto e sofrem diante do orgulho e da vaidade masculina. Em Sede de paixões ouvia-se o seguinte diálogo entre um casal: "Eu não quero viver sozinha e independente. Isso é pior", (a mulher) — "Pior do que o quê?" (o homem) — "Que o inferno em que estamos vivendo. Afinal cada um de nós tem o outro." (a mulher). Só Monika (em Monika e o desejo), jovem mulher inquieta, mulher-amante, a que mais agrada aos homens, teve a coragem de abandonar o marido e o filho, consciente de que nada tinha de mãe de família e esposa-modelo. Mas Monika, interpretada por Harriet Andersson queimando de erotismo, já era de certa forma a nova mulher bergmaniana. A mulher às portas da maturidade, a mulher em 132 transição, passando de um estado de inconsciência para uma fase de confiança em si. "Se uma mulher mostra que é verdadeiramente uma mulher, eles passam a considerá-la como uma prostituta." Essa frase de Eva Dahlbeck, em Uma lição de amor, ilustra o equilíbrio da mulher, conquistado após uma tomada de consciência perante o homem. A partir de Quando as mulheres esperam, é o homem que passa a ser um personagem indeciso, inseguro, infantil mesmo nos seus atos e gestos. O homem-criança, incapaz de dominar a mulher ou de compreendê-la, apenas a vê como um objeto, quando não procura nela o mistério de sua natureza. O latente complexo de Êdipo do homem é mostrado por Bergman em Noites de circo, na cena antológica em que o palhaço Frost narra o seu sonho, no qual ele desaparece no ventre de sua mulher: "Eu nada mais era do que um feto. E depois uma pequena semente... e então desapareci". — Esse medo de viver, de existir, que persegue o herói bergmaniano, contrasta efetivamente com a realização da mulher através da maternidade. No limiar da vida aborda esse tema: a magia transcendente de dar à luz, as frustrações resultantes da impossibilidade dessa graça, a tragédia do aborto natural ou provocado. Gritos de parturientes, um mundo de seringas hipodérmicas, de aventais brancos manchados de sangue. As mulheres que esperam filhos e, principalmente, as que os perdem são as que merecem o maior carinho do cineasta. Em todos os filmes de Bergman, há em maior ou menor escala os choques conjugais e, em todos eles, é a mulher quem resiste melhor à humilhação, à angústia, à solidão, como bem demonstram A hora do lobo, Vergonha, A paixão de Ana, A hora do amor. Mas, mesmo mais forte do que o homem, a mulher bergmaniana permanece ligada a ele e ao seu destino, assim como o homem agarra-se à sociedade em que vive. Todos num mesmo barco, e quando o barco afunda... "Só não sendo um casal perfeito é que se consegue ser um casal perfeito", propõe ironicamente Bergman em Cenas de um casamento, o filme em que ele atinge o paroxismo na dissecação da


vida conjugai. E conclui que, apesar de tudo, as necessidades devem ser assumidas, o amor deve ser buscado. 133


Enfim, a mulher em relação a si mesma: Ester e Ana em O silêncio, duas irmãs formando duas partes de um mesmo ser. Ester é a alma que agoniza e Ana, o corpo que vive. A animalidade instintiva do corpo feminino numa convivência infernal com sua alma repres-sora, tomada pelo complexo de Electra. Elizabeth e Alma em Perso-na, uma atriz e sua enfermeira, envolvendo suas personalidades, angústias e sonhos num enigma psicanalítico quase indevassável. Charlotte e Eva em Sonata de outono, mãe e filha que se confrontam depois de uma longa separação e que externam suas mágoas uma pela outra, seus sofrimentos, seus desesperos: egoísmo, solidão, diálogos, solilóquios, evocação de lembranças dolorosas e uma carta que ameniza o desentendimento, mas não apaga os ressentimentos. Agnès, Maria, Karin e Ana em Gritos e sussurros, quatro mulheres e a morte de uma delas que faz as outras três sofrerem um brutal desnudamento psicológico, saírem de um vago estado de magia e regressarem à realidade, onde a felicidade é fugaz, a vida um instante e a existência humana apenas um inferno de esperanças abortadas e vaidades derrisórias. Na obra de Bergman, a galeria de tipos femininos é imensa e rica. E para falar de todas essas mulheres, Bergman usa sempre atrizes maravilhosas. Atrizes que fogem aos padrões variados, adotados pelas estrelas para se tornarem belas. Naturais, sem maquilagem, penteados ou roupas elegantes, todas as atrizes de Bergman estão na tela para servir a verdade intrínseca da mulher. A mulher face a face consigo mesma, como a Dr.a Jenny Isaksson, que duela com seus fantasmas, vence suas contradições, descobre suas verdades e volta à normalidade. Fotografadas de todos os ângulos, as mulheres de Bergman são belas, lúcidas, sensíveis, generosas, capazes de encontrar a eternidade no momento do amor. Mas Bergman prefere que a câmera fixe com insistência seus rostos, enquanto estes olham no olho da câmera. Para Bergman, o meio de expressão mais belo de uma atriz é seu olhar. E os olhares e rostos que se orquestram em luzes e sombras traduzem o talento e a beleza de Liv Ullmann, Ingrid Thulin, Bibi Andersson, Harriet Andersson, Eva Dahlbeck, Gunnel Lindblom, Barbro Hiort af Ornas, Ulla Jacobsson, Anita Bjork, May-Britt Nilsson, Signe Hasso, Kari Sylvain, entre outras. 134 OS ATORES

A dirigir atores com grande mestria, Bergman aprendeu no teatro de onde recrutou quase todos os nomes de seu numeroso staff. Para Bergman cada estado de espírito, cada condição interior de um personagem deve encontrar seu equilíbrio exterior num movimento, num gesto, num esgar apropriado. Os estados de crise, os paroxismos sempre integram a ação, mas o espetáculo é quase essencialmente feito de rostos que são a razão de seus filmes em si. Mas, freqüentemente, Bergman gosta de alternar doses e planos aproximados com planos gerais, quase estáticos, com a câmera contemplando a conversa dos atores. A falta de mobilidade da câmera e a importância do cenário concorrem para dar ao filme uma característica quase que imóvel. O perigo desse estilo é a saturação da cena e o filme transformar-se em teatro filmado. Mas Bergman se justifica afirmando: "Para mim, o cinema é antes de tudo uma variação do teatro. Ninguém irá me tirar da idéia que o cinema é um teatro com regras mais flexíveis". Bergman considera o ator como o instrumento mais precioso do cinema. O ator é tão importante para Bergman que ele gosta de filmá-lo bem de perto: "A possibilidade de se aproximar do rosto humano é, sem dúvida alguma, a originalidade primeira e a qualidade distintiva do cinema". E, como meio de expressão do ator, ele privilegia o seu olhar — "Os planos aproximados, objetivamente compostos, perfeitamente dirigidos e interpretados, são para o diretor o mais extraordinário meio de investigação". Em todos os seus filmes, Bergman se inclina sobre os rostos. Ele enquadra o personagem de maneira que possamos acompanhar os movimentos complexos de seus pensamentos através de suas fisionomias. Mas há também os diálogos que se revezam com longos silêncios. Diálogos fechados, diretos, percucientes. Esse desejo de fazer os rostos falarem, de apresentar suas antinomias, seus esforços, suas insolúveis questões, Bergman traduz por numerosos planos americanos que confrontam dois personagens. Porém, as palavras nunca dirigem os personagens e nunca determinam uma situação. Há sempre um diálogo brilhante, que não é elaborado para sustentar a ação, mas para integrar-se a ela com perfeição. O que os personagens dizem 135


através dos atores que os interpretam são palavras do autor, pensamentos de Bergman. Resta a constatação de que, nos filmes de Bergman, com poucas exceções, os atores são menos exigidos que as atrizes. Eles se demoram menos em cena, ocupam um lugar mais distanciado no cenário, são menos olhados pela câmera, em suma, são coadjuvantes. Os papéis principais são das atrizes, sempre observadas com uma precisão clínica. Os atores lançam olhares indefinidos para as atrizes, olhares que se confundem com os de Bergman — e em última instância — com os do espectador. 136 ri

Retrato do elenco


LIV ULLMANN

Atriz norueguesa, nascida em Tóquio a 10/12/38, onde seu pai ocupava um posto de engenheiro de minas. Passa sua infância em Toronto, no Canadá. Faz cursos de arte dramática na Noruega e na Inglaterra. Estréia no teatro Stavanger (Noruega), numa adaptação de O diário de Atine Frank. Estréia cinematográfica em 1957, numa ponta em Fjolls TU Fjells, de E. Carlmar. Em 1966, é lançada por Bergman no papel principal de Persona, tornando-se a intérprete preferida do cineasta. Foi Bibi Andersson quem a apresentou a Bergman, nascendo daí um romance, que durou quase dez anos, entre a estrela e seu pigmaleão. Em Persona Liv Ullmann interpreta a atriz Elizabeth Vogler que sofre uma comoção no palco e, mais tarde, numa clínica, "vampiriza" a vitalidade de sua enfermeira Alma (Bibi Andersson). Trabalha seguidamente com Bergman em A hora do lobo (Alma, a mulher do pintor Johan Borg que tenta conhecê-lo lendo seu diário); Vergonha (Eva, a esposa de Jan que, diante da covardia deste, comete adultério); A paixão de Ana (ela faz a personagem-títu-lo, a mulher de Andreas, aleijada por um acidente no qual perdeu o primeiro marido e o filho; o casal passa por problemas de incomuni-cabilidade); Gritos e sussurros (Maria, á irmã frívola que se opõe diretamente a Karin, a irmã austera); Cenas de um casamento (Ma-rianne, a parte feminina do casal aparentemente ideal e que se esfa-cela ao longo do filme, para descobrir no final que a felicidade não está no casamento, mas no.amor em si); Face a face (Dr.a Jenny Isaksson, a psiquiatra em crise existencial); O ovo da serpente (Manuela, uma das vítimas das espirais do terror nazista) e Sonata de outono (Eva, a filha que entra em conflito com a mãe, virtuose do piano). 139


Em filmes de outros cineastas, ela não se mostra tão brilhante como nas fitas de seu descobridor. Atua em Os visitantes da noite (1970), de Terence Young; O visitante noturno (1971), de Lazlo Be-nedek; Joana, a mulher que foi Papa (1972), de Michael Andersson; Horizonte perdido (1973), de Charles Jarrot; Os emigrantes (1971), O preço do triunfo (1972) e A esposa comprada (1974), todos de Jan Troell; Leonor (1975), de Juan Bunuel; Uma ponte longe demais (1977), de Richard Attenborough. No Teatro de Estocolmo interpretou Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello, e Pigma-leão, de Shaw, com direção de Bergman. Em 1976, Liv Ullmann escreveu um livro, Mutações (Editora Nórdica, tradução de Sônia Coutinho, 222 pp.), que se revelou uma grata surpresa. Nele, a atriz faz um balanço profundo e comovedor de suas múltiplas facetas: como criança, adolescente, atriz provinciana, mulher e intérprete favorita do gênio cinematográfico sueco, Ing-mar Bergman, estrela internacional. Dedicado a Linn, sua filha com Bergman, tudo o que o livro diz pode ser resumido no seu próprio título, Mutações, pois ela fala das mudanças, das transformações que foram ocorrendo em sua vida. Fala também da experiência de ser atriz, no que "deve haver um equilíbrio interior entre a técnica e a intuição". Fala ainda dos sentimentos, da solidão, da mulher, da mãe, da companheira de Ingmar Bergman. E o tom expressivamente feminista do livro, em sua epígrafe, reproduz a cena da anunciação do seu nascimento à sua mãe num hospital de Tóquio: "Infelizmente, é uma menina. A Sr.a prefere informar pessoalmente a seu marido?". MAX VON SYDOW

Ator sueco, nascido em Lund a 10/4/29. Seu pai foi professor de literatura na Universidade Real. Estudos na Escola de Arte Dramática de Estocolmo. Estréia modesta no teatro; em seguida, Teatro de Hasingbord (prêmio da Fundação Cultural Real, em 1954), Teatro de Malmõe, dirigido por Bergman de 1955 a 1960. Estréia cinematográfica em 1949, num filme de Alf Sjoberg (Apenas uma mãe). Trabalha também em Senhorita fúlia (1951), do mesmo cineasta, mas 140 sõ se impõe em 1956 com O sétimo selo, no qual interpreta o cavaleiro medieval Antonius Block, que pergunta à Morte qual o significado da vida. Depois, tem papel episódico em Morangos silvestres (um empregado de posto de gasolina) e em No limiar da vida (marido de uma das parturientes), tornando-se o ator preferido de Bergman, mesmo porque tem uma certa aparência física com o cineasta, representando às vezes seu alter ego. Ótimas atuações em O rosto (Vogler, o ilusionista), A fonte da donzela (Tore, o pai da virgem violentada e assassinada por três pastores, que depois vinga barbaramente o crime), Através do espelho (o médico Martin, marido da doente mental) e Os comungantes (o pescador suicida Jonas Person). Em A amante sueca (1962), de Vilgot Sjoman, ele faz o homem casado que se lança numa aventura extraconjugal. Convidado para fazer o papel de Cristo em A maior história de todos os tempos (1965), de George Stevens, Von Sydow torna-se famoso e atua em Viagem para a morte (1965), de Serge Bourguignon, Havaí (1966), de George Roy Hill, e A morte não manda aviso (1966), de Michael Andersson. Em 1966, volta à Suécia para trabalhar em Aqui está sua vida, de Jan Troell, e inicia uma nova série de interpretações em filmes de Bergman: A hora do lobo (o pintor Johan Borg, angustiado e perseguido pelos seus próprios fantasmas); Vergonha (o músico Jan, covarde, que a guerra transforma em assassino); A paixão de Ana (Andreas, artista solitário e insatisfeito que exerce o "vampirismo moral" sobre sua mulher Ana) e A hora do amor (o médico Vergerus, abandonado pela esposa, Karin, cansada da rotina de um casamento burguês). Protagonista ao lado de Liv Ullmann em Os emigrantes e O preço do triunfo, de Jan Troell, e com papéis destacados em Carta ao Kremlin (1970), de John Huston; O visitante noturno (1971), de Lazlo Benedek; O exorcista (1973), de William Friedkin; Os três dias do condor (1975), de Sidney Pollack; Cadáveres ilustres (1976), de Francesco Rosi; // deserto dei tartari (1976), de Valerio Zurlini; A viagem dos condenados (1976), de Stuart Rosemberg; O exorcista II, O herege (1977), de John Boorman; Marcha ou morre (1977), de Dick Richards, entre outros. 141


BIBI ANDERSSON

Atriz sueca, nascida em Estocolmo a 11/11/35. Estudos na Academia de Artes Dramáticas de Estocolmo e no Conservatório Nacional. Engajada por Bergman no Teatro de Malmõe, em 1955. Estréia no cinema em 1953 com Dum — Bom, de Nils Poppe. A seguir troca o nome Brigitta pelo seu diminutivo "Bibi" e faz um papel secundário na refilmagem de O tesouro de Ame, de Gustaf Molander, em 1954. Em 1955, aparece numa ponta em Sorrisos de uma noite de amor e atua depois em O sétimo selo (Mia, a mulher do malabarista Jof, casal em quem está simbolizada a alegria de viver) e Morangos silvestres (a jovem que pede carona ao professor Isaak Borg e que lembra uma outra Sara, a mulher amada, que casou com seu irmão). Seu talento é consagrado em No limiar da vida, interpretando Hjor-dis, a jovem mãe que deseja abortar, papel com o qual conquista o prêmio de melhor atriz do Festival de Cannes de 1958. Desempenhos destacados em O rosto (Sara, a criada que aceita a vida sem formular problemas) e em O olho do diabo (Britt-Marie, a filha virgem de um pastor, a qual Don Juan, enviado à terra pelo Diabo, tenta seduzir). Em 1962 faz com Vilgot Sjoman A amante sueca e, em 1966, volta a ser dirigida por ele em Minha irmã, meu amor. Antes de estrear no cinema americano em Duelo em Diablo Canyon (1966), western de Ralph Nelson, trabalha ainda com Bergman em Para não falar de todas essas mulheres (Humlan, a amante do violinista) e em Persona (Alma, a enfermeira que troca de identidade com sua paciente). Foi ela quem apresentou Liv Ullmann a Bergman, em 1965, antes das filmagens desta última obra, na qual contracena com a amiga norueguense. Com Bergman ainda em A paixão de Ana (Eva, mulher atormentada que sofre pela falta de significado de sua vida); A hora do amor (Karin, a dona-de-casa exemplar, que larga tudo para viver uma aventura com o amigo de seu marido) e Cenas de um casamento (Katarina, mulher de Peter, o casal de coadjuvantes, cuja vida conjugai é um inferno). Filmes importantes com outros diretores: Você é contra ou a favor do divórcio? (1976), de Alberto Sordi; As garotas (1969), de May Zetterling; Carta ao Kremlin (1970), de John Huston; // pleut 142 sur Santiago (1975), de Helvio Soto; An enemy of the people (1977), de George Schaefer; Uamour en question (1978), de André Cayatte. Estes três últimos inéditos no Brasil. E Aeroporto 1980, de David Lowell Rich. ERLAND JOSEPHSSON

Ator sueco, nascido em Estocolmo a 15/6/23. Começa no teatro em 1945. No cinema, aparece em 1946, num pequeno papel no segundo filme de Bergman, Chove sobre nosso amor. Em 1948, faz uma ponta em A mulher e a tentação, de Gustaf Molander, e em 1949 é um dos coadjuvantes de Rumo à felicidade, oitava fita de Bergman. Passa um longo período dedicandose exclusivamente ao teatro e reaparece em 1957, no papel de um médico. No ano seguinte interpreta o cônsul Egerman de O rosto e faz mais um longo interregno de quase dez anos para trabalhar apenas no teatro. Em 1967 assume novamente papéis cinematográficos, fazendo o barão Von Merkens de A hora do lobo. Atua em As garotas (1969), de May Zetterling, e outra vez com Bergman, personifica o estranho colecionador de fotografias, o doutor Vergerus de A paixão de Ana. Figura em Gritos e sussurros no papel do amante da irmã frívola, vivida por Liv Ullmann. Interpretando o marido de Cenas de um casamento, Josephsson consegue seguramente sua melhor performance no cinema. Trabalha a seguir em Face a face e Sonata de outono. Em 1977, desempenha o papel do filósofo alemão Friedrich Nietzche no filme de Liliana Cavani, Além do bem e do mal. Com o fotógrafo e a atriz, ambos bergmanianos, Sven Nykvist e Ingrid Thulin, experimenta a direção, em 1978, com Um e um. No ano seguinte, realiza A revolução das dores, nitidamente influenciado por Bergman. INGRID THULIN

Atriz sueca, nascida em Solleftea a 27/1/29. Fez o curso de dança de Lalla Cassell e arte dramática em 1946. Estréia no cinema, em 1948, em papel secundário em Kann Dej Som Hemma, de E. Holmsen. No Teatro Nacional de Arte Dramática, interpreta Ardèle ou A Margarida, de Jean Anouilh. Em 1949, aparece como coadju143


vante num filme de Gustaf Molander, O amor é vencedor, e na mesma condição atua, em 1950, na fita de Ame Mattson, Quando o amor chega à cidade. De 1951 a 1955, pequenos papéis em filmes de diversos diretores suecos de segunda linha e vários telefilmes da série Foreign intrigue para a televisão americana, realizados por Steve Previn. Nos E.U.A., fez também Tramas da traição (1957), de Shel-don Reynolds, aparecendo curiosamente com o nome de Ingrid Tu-lean. Em 1957, o encontro com Bergman em Morangos silvestres, no papel da nora do Dr. Isaak Borg. Desempenhos destacados, a seguir, em No limiar da vida e O rosto. Em 1960, atua em O juiz, de Alf Sjoberg, e surge novamente a oportunidade de trabalhar no cinema americano, agora dirigida por Vincente Minnelli em Os quatro cavaleiros do apocalipse (1961). Na Itália, em 1962, faz Agostino com Mauro Bolognini, e de volta à Suécia faz Os comungantes e O silêncio com Bergman, obtendo neste último a sua interpretação mais marcante no papel da irmã intelectual e doente. Ainda sob a direção de Bergman, Ingrid Thulin se impõe como atriz de grande talento em A hora do lobo, O rito e Gritos e sussurros (notável no papel de Karin, a mulher que se castra por ódio ao marido). Mostra-se também admirável como a mãe sensual e dominadora de Jogos da noite, de May Zetterling. E requisitada por outros cineastas de escol, como Alain Resnais (A guerra acabou) e Luchino Visconti {Os deuses malditos). Mas aparece em interpretações inexpressivas em filmes realizados por diretores medíocres como John Lee Thompson {De volta das cinzas), Brunello Rondi {Amanhã não estaremos mais aqui), Pierre Granier-Deferre {La cage), Tinto Brass {Salão Kitty), George Pan Cosmatos {A travessia de Cassandra). Em 1965, Ingrid Thulin dirigiu o curta-metragem Devoção e, em 1978, colaborou com Erland Josephsson e Sven Nykvist na realização de Um e um. GUNNAR BJORNSTRAND

Ator sueco, nascido em Estocolmo a 13/11/09. O mais constante e tradicional do staff bergmaniano. Personagem episódico de 144 Chove sobre nosso amor e Música na obscuridade, segundo e quarto filmes do cineasta. Depois, papéis destacados em: Quando as mulheres esperam (o homem de negócios que fica preso no elevador com sua esposa); Noites de circo (o cerimonioso diretor de teatro); Uma lição de amor (o marido desiludido); Sonhos de mulheres (o velho cônsul apaixonado por Harriett Andersson); Sorrisos de uma noite de amor (o advogado casado com uma mulher jovem, mas bem mais atraído pela amante de meia-idade); O sétimo selo (o escudeiro zombeteiro e cético); Morangos silvestres (o filho insensível à velhice de seu pai e à gravidez de sua mulher); O rosto (o médico materialista); O olho do diabo (o apresentador conferencista); Através do espelho (o pai torturado de uma filha demente); Os comungantes (o pastor que duvida de sua fé); Persona (o marido burguês da atriz Elizabeth Vogler); Vergonha (o coronel do exército encarregado de defender a ilha); O rito (um dos atores acusados de interpretar um espetáculo licencioso); Face a face (o avô enfermo); Sonata de outono (Paul, empresário e amigo da pianista Charlotte, interpretada por Ingrid Bergman). Seria injusto ignorar que ele estreou no cinema em 1931, com Falso milionário, de Paul Meryback, e que marcou a sua presença em dezenas de outros filmes, entre os quais: Maria do moinho (1945), de Arne Mattson; Bom pai de família (1949), de Lars Eric Kjellgren; O quarteto dissociado (1950), de Gustaf Molander; Gabriela (1954), de Hasse Ekman; A luz da noite (1957), de Kjellgren; O jardim dos prazeres (1961), de Alf Kjellin; Meu amor é uma rosa (1963), de Hasse Ekman; Stimulatia (1966), episódio de Vilgot Sjoman; O destruidor de casamentos (1965), de H. Ekman. O único filme que fez fora da Suécia foi O sádico de alma negra (1968), do italiano Flores-tano Vancini. HARRIET ANDERSSON

Atriz sueca, nascida em Estocolmo a 14/1/32. Começou como dançarina de teatro de revistas em 1949. Foi estrela do Music-Hall Scala em 1950. Participações insignificantes em vários filmes rodados entre 1950 e 1952, todos inexpressivos. Papel destacado de uma operária em Trost ou O espírito de contradição (1952), de Gustaf Molander. Entusiasmado pela sua atuação nesse filme, Bergman es145


creve especialmente para ela o roteiro de Monika e o desejo. E em Noites de circo ela obtém uma grande interpretação como Ana, a amante sensual do dono do circo, papel quase inverso ao que ela faria depois em Uma lição de amor, uma jovem frígida, assexuada e vagamente lésbica. Aparece também como uma modelo da alta-cos-tura em Sonho de mulheres e como a criada Petra em Sorrisos de uma noite de amor. A essa altura de sua carreira, já conquistara o coração da crítica mundial, especialmente a francesa, que lhe dedicou elogios e declarações de amor. O crítico Roger Tailleur chegou a escrever na revista Positif um poema sobre e para ela. Filmou a seguir com Gunnar Hellstron (Nascida para a noite — 1956); Alf Sjoberg (O último par que corra — 1956); novamente com Hellstron (A pequena fada de Solbakken — 1957); Lars Eric Kjellgren (Crime no paraíso — 1959). Casa com um fazendeiro de Skaul e ameaça abandonar o cinema, mas Bergman a chama para interpretar Através do espelho (papel de Karin, a doente mental). Em 1961, trabalha com o diretor alemão Frank Wisbar em Bárbara e os homens, depois em Siska (1962), de Alf Kjellin, e Sonho de oportunidade (1963), de Hans Abransson. Em 1964, novamente com Bergman, obtém com Para hão falar de todas essas mulheres o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza. Antes havia feito, com Jorn Donner, Um domingo de setembro (1963) e, com este cineasta, ela restauraria sua vida conjugai, trabalhando sob sua direção em Amar (1964), Aqui começa a aventura (1965) e Anna (1969). Atua como coadjuvante em Chamada para um morto (1967), de Sidney Lumet. Com May Zetter-ling rodou Casais amorosos (1964) e As garotas (1969). Com Robert Siodmak fez O último romano (1968). Com Bergman, Harriet ainda faria Gritos e sussurros, personificando Agnès, a mulher que sofre de câncer e aguarda a morte no seu leito, afastada de seus parentes, tendo como única amiga a governanta Anna. Nesse papel, aos 40 anos, ela se mostra magnífica. JARL KULLE

Ator sueco, nascido em Ekeby a 27/2/27. Considerado em seu país como um dos intérpretes mais populares de sua geração. 146 Seu nome em um cartaz de teatro era o suficiente para encher as salas. Aluno do Dramaten, ele faria uma carreira brilhante a partir de 1946, atuando alternadamente em dramas e comédias. No cinema começou em 1950, fazendo um estudante em Viver de esperança, de Goran Gentele. Papéis secundários em O quarteto dissociado (1950) e O espírito de contradição (1952), ambos de Gustaf Molander. Bergman lhe confiou seu primeiro papel importante em Quando as mulheres esperam, o amigo de infância e amante da mulher casada. Com Alf Sjoberg faz Karin Mansdotter (1953), contracenando com UUa Jacobsson. Sua melhor caracterização foi o conde Malcolm, o oficial de monóculo apertado em seu uniforme de Sorrisos de uma noite de amor. Em 1956, volta a trabalhar com Sjoberg, em O último par que corra, e com Molander em Canto da flor escarlate. De novo com Bergman, faz o Don Juan de O olho do diabo. Em 1959, interpreta Senhorita Abril, de Goran Gentele. Depois de se dedicar vários anos somente ao teatro, reaparece no cinema em Adorado John (1964), de Lars-Magnus Lindgren, e no papel do crítico de música Cornelius de Para não falar de todas essas mulheres. EVA DAHLBECK

Atriz sueca, nascida em Saltsjo Duvnas a 8/3/20. Curso de arte dramática em Bosta Tesserus, em 1939, e no Teatro Dramático de Estocolmo, em 1941, do qual torna-se uma atriz importante, interpretando Strindberg, Ibsen e numerosos outros atores clássicos e modernos. Estréia no cinema em 1942, no filme de Gustaf Molander, A carruagem noturna. Torna-se nos anos 50 uma das intérpretes preferidas de Bergman, encarnando na maioria de seus filmes a amante madura ao mesmo tempo terna, espiritual, impulsiva e sensual. Ela é a mulher do elevador em pane de Quando as mulheres esperam; a bela viajante de Uma lição de amor; a amante do oficial do monóculo em Sorrisos de uma noite de amor, mas que nunca deixou de amar o advogado Egerman; a esposa do virtuose do violoncelo em Para não falar de todas essas mulheres. Seus cabelos louros e seu tipo de mulher inquieta ajudaram muito suas composições cômicas, mas ela interpretou figuras femininas mais melancó147


licas, como a independente Suzanne de Sonho de mulheres, ou mais dramáticas, como Stina de No limiar da vida, a mulher que dá à luz um bebê morto. Atriz de primeira grandeza no teatro e no cinema sueco, e não somente nos filmes de Bergman já citados, Eva Dahlbeck teve papéis destacados em: O espírito de contradição (1952), de Gustaf Molander; Barabbas ('1952), de Alf Sjoberg; O último par que corra (1956), de Sjoberg; Reencontro ao crepúsculo (1957), de Alf Kjellin; Procura-se uma cidade para o verão (1957), de Hasse Ekman; Uma questão de moral (1960), de John Cromwell (filme americano rodado na Suécia); Passagem para o paraíso (1962), de Arne Mattsson; O falso traidor (1962), de George Seaton; Casais amorosos (1964), de May Zetterling; As criaturas (1965), de Agnès Varda; Sofia de 6 às 9 (1967), de Henning Carlsen. BIRGER MALMSTEN

Ator sueco, nascido em Grasso a 23/12/20. Aluno do Dramaten em 1943. Estréia no cinema como figurante em Não leve em conta a não ser os momentos felizes (1944), de Rune Carlsten, e em Tortura de um desejo (1944), de Alf Sjoberg, onde empresta seus traços a um dos alunos do sinistro professor "Calígula". Bergman observa o aprendiz de ator e lhe entrega, em 1946, o papel principal do seu segundo filme, o jovem desempregado de Chove sobre nosso amor. A partir daí, durante toda a primeira parte da carreira de Bergman, Malmsten vai interpretar jovens expostos à incompreensão e à intolerância da sociedade. Ele encarna sucessivamente Johannes, o marinheiro corcunda de Barco para as índias; Bengt, o pianista cego de Música na obscuridade; Thomas, o jornalista atormentado de Prisão; Bertil, o jovem marido insatisfeito de Sede de paixões; Henrik, o estudante de juventude; Martin, o pintor de Quando as mulheres esperam. Rosto macilento, com maçãs salientes, ele é em todos esses filmes o jovem bergmaniano por excelência. Por amizade ao diretor, aceitou assumir um personagem secundário em Rumo à felicidade. Com outros cineastas trabalhou em: Quando os prados florescem (1946), de Hampe Faustman; A mulher e a tentação (1948), de 148 Gustaf Molander; Toda a alegria do mundo (1953), de Rolf Husberg; A filha do vendedor de cavalos (1954), de Egil Holmsen; Gabriela (1954), de Hasse Ekman; Reencontro ao crepúsculo (1956), de Alf Kjellin; A luz da noite (1957), de Lars Eric Kjellgren. Durante muitos anos dedicou-se exclusivamente ao teatro. Bergman utilizou-o depois em O silêncio, dando-lhe o papel episódico do garçom que, sem pronunciar uma única palavra, seduz Ana, a ninfomaníaca interpretada por Gunnel Lindblom. Ponta em Face a face. GUNNEL LINDBLON

Atriz sueca, nascida em Goteborg a 18/2/31. Estudos no Go-teborgs Stadteater em 1950. Trabalha no Teatro Municipal de Mal-mõe de 1954 a 1959, na Companhia de Bergman. No cinema estréia em 1952, num filme de Gustaf Molander, intitulado Amor. Figura em vários filmes inexpressivos de 1953 a 1956, quando volta a trabalhar com Molander em Canto da flor escarlate, e Bergman a escolhe para o papel da muda de O sétimo selo. Em um pequeno papel (uma jovem pura vestida toda de branco), aparece também em Morangos Silvestres e faz a meia-irmã ciumenta e mal-humorada de A fonte da donzela. Em Os comungantes, Bergman a desfigura com um chapéu ridículo e uma grande barriga para interpretar Karin, a esposa do pescador suicida, antes de fazer dela a personagem inesquecível de O silêncio. Papel secundário em Cenas de um casamento. Filmes com outros diretores: Meu amor é uma rosa (1963), de Hasse Ekman; Casais amorosos (1964), de May Zetterling; Ultraje à inocência (1965), de John Guilhermin; A Fome (1966), de Henning Carlsen; O círculo vicioso (1967), de Arne Mattsson; As garotas (1969), de May Zetterling; O pai (1969), de Alf Sjoberg; Os gêmeos (1971), de Susan Sontag. Em 1976, Gunnel Lindblon experimenta a direção com Paraíso de verão, filme co-produzido por Bergman. HASSE EKMAN

Ator, diretor e roteirista sueco, nascido em Estocolmo a 10/9/15. Filho do ator Gosta Ekman (1887-1937). Ainda adoles149


cente começa a freqüentar os ambientes artísticos suecos e, em 1933, aparece num filme de Ragnar Widestedt, Os escravos da casa. Ele atua ao lado de seu pai e de Ingrid Bergman em Intermezzo (1936), de Gustaf Molander. Depois de estudar em Hollywood a técnica dos filmes, volta à Suécia disposto a tornar-se um autor completo, escrevendo e dirigindo seus próprios filmes. Passa a escrever também peças teatrais e, depois de um aprendizado como assistente de direção de Molander, estréia como cineasta com Contigo em meus braços (1940). Como realizador se dedicou à comédia e nem sempre se saía bem. Seu melhor filme como diretor segundo o historiador B. I. Almquist, foi A filha da planta (1948), estranha história de homossexualidade feminina. Tinha melhor vocação para ator, atuando em seus próprios filmes como O valete do coração (1950), Gabriela (1954), O grande amador (1958), O signo do jazz (1958) Chamas nas trevas (1942), O sexto golpe de fogo (1943), As pessoas tais como elas são (1944), Uma dinastia de cabotinos (1945), Reencontro na noite (1946). Em Prisão, sexto filme de Bergman, interpreta um diretor de cinema a quem o jornalista conta a história de Birgitta Carolina, uma prostituta de 17 anos de idade. Aparece depois como um psiquiatra sarcástico em Sede de paixões. Em Noites de circo tem um papel marcante como Franz, o sedutor de Anne, a mulher do proprietário do circo. EVA HENNING

Atriz sueca, nascida em Nova York a 10/5/20. Filha do ator Uno Henning. Loura, afável e de olhar doce. Requisitada por Bergman depois de uma vitoriosa carreira no cinema sueco para interpretar o papel de Sofia, a esposa compreensível, mas incompreendida, do jornalista vivido por Birger Marmsten em Prisão. E em Sede de Paixões, personifica Rut, a jovem casada e revoltada que quase chega à depressão nervosa. Estreou na primeira versão de Elvira Madigan, intitulada A tragédia do circo e dirigida por Ake Ohberg. Logo depois, passa a ser a heroína dos filmes de Hasse Ekman, des-tacadamente em: Uma dinastia de cabotinos (1945) e A filha da 150 planta (1948). Mais tarde voltaria a trabalhar com Ekman em Gabriela (1954). Trabalhou ainda com Ake Ohberg em A rosa de Tistelon (1945) e A montanha de vidro (1953), de Gustaf Edgren. Em 1955, Eva abandona o cinema, partindo para Oslo e se consagra exclusivamente ao teatro norueguês. ALF KJELLIN

Ator e diretor sueco, nascido em Lund a 23/2/20. Ê considerado como o ator n.° 1 do cinema sueco nos anos 40, assim como Lars Hanson havia sido na década de 20. Formado pela Real Academia de Arte Dramática (Dramaten). Pequeno papel em John Ericsson (1937), de Gustaf Edgren. Figura depois em Amigos da Escola Naval (1939), de Per Lindberg. Ê esse diretor quem lhe dá seu primeiro papel importante em Jovem, alegre-se com sua juventude (1939). Com o mesmo cineasta, ele faz O testamento do senhorio (1940). Em 1943, trabalha em Noite no Porto, de Hampe Faust-man, depois se consagra totalmente com A tortura de um desejo (1944), de Alf Sjoberg, onde interpreta o jovem estudante perseguido pelo sinistro professor Calígula. A seguir sua carreira evolui com Passeio sob a lua (1945), de Hasse Ekman; Depois do orvalho vem a chuva (1946), de Gustaf Edgren; Íris e o coração do tenente (1947), de Alf Sjoberg; A mulher sem rosto (1947), de Gustaf Molander; Singolla (1949), do francês Christian-Jacques. Em 1949, vai para Hollywood e trabalha em Madame Bovary, de Vincente Minnelli, e em Meus seis criminosos (1951), de Hugo Pregonese. Na volta à Suécia, é dirigido por Hasse Ekman, em O gato branco (1951), e por Gustaf Molander, em Divórcio (1951). Passa para o outro lado da câmera em 1956, realizando Uma mulher na chuva. Depois dirige: Reencontro ao crepúsculo (1957), Dezessete anos (1958); Swing no castelo (1959); O jardim dos prazeres (1961), este com roteiro de Bergman e Erland Josephsson. Sua carreira como diretor continuaria nos anos 60 a 70 nos Estados Unidos, onde dirigiu filmes sem expressão para a televisão e cinema. Em 1965, foi coadjuvante de A nau dos insensatos, de Stanley Kramer. Personagem bergmamano em Juventude onde disputa com 151


Birger Malmsten o amor da bailarina interpretada por Maj-Britt Nilsson e em Isto não aconteceu aqui, no qual faz o policial Almkvist, defensor de uma refugiada (Signe Hasso), perseguida pela polícia secreta stalinista. MAJ-BRITT NILSSON

Atriz sueca, nascida em Estocolmo a 11/12/24. Aluna do Dramaten. Alf Sjoberg lhe dá sua primiera oportunidade no cinema em Viagem ao longe (1945). Aparece depois em Maria (1947), de Gosta Folke. Mas é sobretudo no papel de prostituta em A rua (1948), de Gosta Werner, que ela se torna rapidamente conhecida. Bergman a aproveita, então, no papel da esposa-modelo em Rumo à felicidade e a faz a estrela de Juventude, a bailarina que hesita entre as recordações de seu amor por um estudante e seu impulso atual por um jornalista. Ela se revela admirável nesse notável papel de Maria, e não menos brilhante na personagem mais episódica de Marta que Bergman lhe confia em Quando as mulheres esperam. Arne Mattsson a utiliza em Por causa de minha juventude (1952) e, em seguida, Hasse Ekman vale-se dela em Três debutantes (1953). Em 1954, Maj-Britt Nilsson interpreta uma suicida em Pássaros selvagens. Ainda trabalha duas vezes com Mattsson (Jovem doméstica — 1955 e A mulher de hábito — 1956) e uma com Ekman (Entrada proibida — 1955), antes de transferir-se para a Alemanha e filmar Amor imortal (1957), de Geza Von Bolvary, sua última aparição no cinema. NILS POPPE

Ator sueco, nascido em Malmõe a 31/5/09. Abandonou os estudos de agricultura para dedicar-se ao teatro. Cômico de Vaude-ville em 1930, destacou-se quatro anos depois como bailarino, acrobata e mímico. Ator de cinema desde 1937. Seu primeiro grande sucesso foi O rei do riso (1943), de Ragnar Fisk, comédia em cujo roteiro colaborou. Sua popularidade cresceu e ele tornou-se astro do cinema cômico sueco numa série dedicada ao recruta Bom, personagem no qual se pretende fundir o humor e o lirismo, mas cuja 152 vulgaridade acabou por condená-lo como um discípulo de Chaplin. Bem melhor do que nos filmes da série Bom, quase sempre dirigido por Lars Eric Kjellgren, Poppe apareceria de uma maneira surpreendente e admirável no único filme em que foi dirigido por Bergman: O sétimo selo, como Jof, o saltimbanco de coração puro. ANITA BJORK

Atriz sueca nascida em Estocolmo a 10/1/23. Dotada de uma sólida formação teatral, adquiriu prestígio por suas atuações no Teatro de Estocolmo desde 1945. Entre diversas obras representou: As mãos sujas, de Sartre; Ardèle ou A Margarida, de Anouilh; Pigmaleão, de Shaw; Orestes, de Esquilo, etc. Sua estréia no cinema aconteceu em 1942 com Caminho do céu, de Alf Sjoberg. Este diretor lhe proporcionou seu melhor papel na tela com Senhorita Júlia (1951), no qual ela contracena com Ulf Palme. Nos E.U.A. fez A sombra da noite (1954), estréia na direção do roteirista fordiano Nunnally Johnson. Bergman a escolheu para fazer Rakel, a que trai o marido com um amigo de infância em Quando as mulheres esperam. Depois de um longo parêntese teatral, Anita Bjork voltou ao cinema para trabalhar em Casais amorosos (1964), de May Zetterling. ULF PALME

Ator sueco, nascido em Estocolmo a 2/11/20. Em 1942 ingressou na Escola de Declamação do Teatro Real de Estocolmo. Muito elogiado por suas interpretações no teatro, que o destacaram entre os atores de sua geração. Seu grande sucesso foi Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams. No cinema desde 1945, conseguiu fama interpretando Senhorita Júlia (1951) e Barabbas (1952) sob a direção de Alf Sjoberg. Fez também Sangue cigano (1953), de Hampe Faustman; O tesouro de Arne (1954), de Gustaf Molander; A bruxa (1956), de André Michel; A mulher do capote de leopardo (1958), de Jan Molander; O juiz (1960), de Sjoberg; O falso traidor (1961), de George Seaton e O diabo (1963), de Gian Luigi Polidoro. Trabalhou com Bergman em Isto não aconteceu aqui, mas seu gran153


de papel com este cineasta foi o de Lobelius, o homem casado e amante egoísta de Sonho de mulheres. ULLA JACOBSSON

Atriz sueca, nascida em Goteborg a 23/5/29 e falecida em Viena a 24/8/82. No cinema pela primeira vez em pequeno papel em A mãe que nós procuramos (1951), de Ame Mattsson. Logo depois esse diretor lhe confia o principal papel feminino de A última felicidade (1951), a jovem camponesa Kerstin, terna e apaixonada. O filme tornou-se sucesso mundial e motivo de escândalo em vários países por causa da cena em que a exuberante adolescente se banhava nua. Quase como estrela fez Toda a alegria da terra (1953), de Rolf Husberg, e, em 1954, Karin Mansdotter, de Alf Sjoberg, antes de rodar na Alemanha Eterno amor (1954), de Wolfang Liebeneiner, e, de novo na Suécia, a refilmagem colorida de O tesouro de Ame (1954), assinada por Gustaf Molander. A seguir ela atingiria o ápice de sua carreira de atriz, quando Bergman lhe entregou o papel de Ana, a muito jovem esposa do advogado Egerman em Sorrisos de uma noite de amor. Faz na França Crime e castigo (1956), de Georges Lampin, e de novo na Suécia Canto da flor escarlate (1956), de Molander. Em 1958, interpreta na Espanha Vieram dois homens, dirigido por seu compatriota Ame Mattsson, que volta a utilizá-la em A carruagem fantasma, do mesmo ano. Na Alemanha, em 1959, é dirigida pelo italiano Luigi Comen-cini em Aconteceu na segunda-feira. Sob a rubrica americana ela atua em Mercado de corações (1963), de David Swift, e Os heróis de Telemark (1965), de Anthony Mann. ANDERS EKK

Ator sueco, nascido em Goteborg a 7/4/16. Considerado como o melhor ator característico do teatro sueco, tendo interpretado personagens como Calígula, Macbeth, e o Joseph K. de O processo, de Kafka, entre outros. Começou no cinema em 1943 no filme de Gun-nar Olsson, Quando a juventude desperta. Trabalhou depois em Pare! Pense em outra coisa (1944), de Ake Obberg, e em Rosas 154 Negras (1945), de Rune Carlsten. Papéis destacados em A filha da planta (1948), de Hasse Ekman; O caminho de Klockrike (1952), de Gunnar Skoglund; antes de se tomar bergmaniano interpretando o palhaço Frost em Noites de circo, um dos personagens secundários mais impressionantes e trágicos de toda a história do cinema. Ekk reaparece igualmente admirável em O sétimo selo, encarnando o monge louco e fanático que prediz o fim do mundo. Participou também do elenco de Gritos e sussurros e de O rito. SIGNE HASSO

Atriz sueca, nascida (Signe Aigke Larssen) em Estocolmo a 15/8/15. Curso de arte dramática no Dramaten. Depois atriz preferida de Schamyl Bauman, hábil artesão de comédias, que roda sucessivamente com ela A noite das bruxas (1937), Carreira (1938) e Nós dois (1939). Dirigida a seguir por Gustaf Molander (Emilie Hogqvist — 1939), Per Lindber (Stal — 1939) e de novo Bauman (Nós três — 1940). Transfere-se para os E.U.A. em plena guerra e integra o elenco de Pelos vales das sombras (1943), de Cecil B. De Mille. Emst Lubitsch a nota e lhe oferece um papel em O diabo disse não (1943). Em 1944, trabalha em A sétima cruz, de Fred Zinnemann. Em 1945 em A casa da rua 92, de Henry Hathaway. Em 1946, participa de dois filmes de gângsteres, ]ohnny Angel, de Edwin L. Marin, e Os quatro testamentos, de Edward L. Cahn. Em 1947, ela aparece no melhor filme que fez em Hollywood, Fatalidade, de George Cukor. Ültimos filmes nos E.U.A., antes de voltar à Suécia e filmar com Bergman: Até os confins da terra (1948), de Robert Stevenson, e Terra em fogo (1950), de Richard Brooks. Ela é Vera, a refugiada báltica perseguida em Estocolmo pela polícia secreta stalinista em Isto não aconteceu aqui. Na Suécia ainda fez Táxi (1954), de Torgny Anderberg, antes de encerrar sua carreira na Alemanha em O sol de Saint Moritz, de Arthur Maria Rabenalt. STIG JARREL

Ator sueco, nascido em Malmberget a 27/2/10. Aluno de Gosta Ekman. Começou no cinema em 1935 no filme Noite de primavera, 155


de Gustaf Edgren. Logo depois passou a ser um dos principais galãs da tela sueca. Trabalhou em Serei como você me deseja (1943), de Gosta Cederlund; A Tortura de um desejo (1944), de Alf Sjoberg; O muro invisível (1944), de Gustaf Molander; O que custa ser estrela (1947), de Lars Erik Kjellgren. Nos anos 50, tornou-se um notável ator característico e suas atividades se estenderam também à televisão. Com Bergman em O olho do diabo, fazendo o papel do próprio. MAY ZETTERLING

Atriz e diretora sueca, nascida em Vosteras a 24/5/25. Sua carreira como cineasta já foi focalizada. Aluna do Dramaten. Interpreta várias peças famosas como A casa de Bernardo Alba, de Garcia Lorca. Em 1949, estréia no teatro londrino e depois na Broadway. Suas primeiras aparições cinematográficas aconteceram em alguns filmes medíocres realizados de 1941 a 1944. Alf Sjoberg lhe permite a sua primeira criação importante em A Tortura de um desejo (1944), onde ela interpreta a humilde Berta, vítima do sádico professor Calí-gula. Ainda com Sjoberg faz Íris e o coração do tenente (1947). Sua fama ultrapassa as fronteiras da Suécia, e em Frida (1947), do inglês Basil Dgarden, ela interpreta uma alemã. Seus principais filmes fora da Suécia foram: Torturada (1948), de Terence Fischer; O fantasma assassino (1952), de Guy Hamilton; Cabeça de pau (1953), de Nor-man Panamá e Melvin Frank; Um momento de desespero (1954), de Compton Bennett e Ouro maldito (1955), de Mark Robson. Na Suécia rodou, em 1956, As esposas, de Anders Henrikson e, em 1958, Brincadeira em torno do arcoíris, de Lars Erik Kjellgren, com roteiro original de Vilgot Sjoman. May Zetterling foi a atriz principal do quarto filme de Bergman, Música na obscuridade, a jovem operária Ingrid que suaviza o sofrimento do pianista cego. VICTOR SJOSTROM

Diretor, roteirista e ator sueco, nascido em Sibodal a 20/9/1879 e falecido a 3/1/60. Sua importância como cineasta já foi ressaltada. Ator dos primeiros filmes de Mauritz Stiller e depois de suas pró156 prias obras na grande época do cinema sueco mudo (1912-1924). Antes de fazer o papel principal de Morangos silvestres, interpretando o velho professor Isaak Borg que revê seu passado e compreende que cometeu muitos erros em sua vida por ter sido insensível e egoísta, Sjostrom foi dirigido por Bergman em Rumo à felicidade, personificando um maestro que, à certa altura do filme, resume numa frase o sentido da obra: "E preciso que você cante a alegria, não a alegria comum, mas a alegria que se encontra além da felicidade". INGRID BERGMAN

Atriz americana de origem sueca, nascida em Estocolmo a 29/8/15. Aluna do Dramaten. O único encontro entre Bergman-di-retor e a Bergman-atriz aconteceu em 1978, no filme Sonata de outono, em que ela interpretava, aos 63 anos, Charlotte Andergast, a concertista de piano que renunciou, por amor à arte, à carreira de mãe, e depois de muitos anos de separação entra em choque com a filha Eva (Liv Ullmann), que a acusa de omissão num momento crucial de suas vidas. Intérprete de dezenas de filmes suecos a partir de 1934, sobretudo nos de Gustaf Molander, destacando seu papel em Intermezzo (1936), como a amante de um célebre violinista casado (Gosta Ek-man). Em 1939, chega a Hollywood como uma nova Greta Garbo para interpretar a versão americana de Intermezzo, dirigida pelo russo Gregory Ratoff. Torna-se a partir daí uma típica estrela hollywoo-diana, até que, fascinada pelo trabalho de Roberto Rossellini e cansada de fazer papéis estereotipados, integrou-se ao neo-realismo italiano. Principais filmes no cinema americano até 1949: Fúria no céu (1941), de W. S. Van Dyke; O médico e o monstro (1941), de Victor Fleming; Casablanca (1943), de Michael Curtiz; Por quem os sinos dobram (1943), de Sam Wood; À meia-luz (1944), de George Cukor; Os sinos de Santa Maria (1945), de Leo McCarey; Quando fala o coração (1945), de Alfred Hitchcock; Mulher exótica (1945), de Sam Wood; Interlúdio (1946), de Hitchcock; O Arco do Triunfo (1948), de Lewis Milestone; Sob o signo de Capricórnio (1949), de Hitchcock; e Joana D'Are (1949), de Victor Fleming. 157


Filmes dirigidos por Rossellini: Stromboli (1950), Europa 51 (1952), Nós, as mulheres (1953), Viagem à Itália (1954), Giovana D'Arco Al Rogo (1954) e Angst (1954). Em 1956, Ingrid Bergman trabalha na França com Jean Renoir em As estranhas coisas de Paris e prossegue uma carreira anglo-americana cujos principais filmes foram: Anastácia, a princesa esquecida (1956), de Anatole Litvak; Indiscreta (1957), de Stanley Donen; A morada da sexta felicidade (1958), de Mark Robson; Mais uma vez adeus (1961), de Litvak; A visita (1964), de Bernhard Wicki; O Rolls Royce amarelo (1965), de Anthony Asquith; episódio de Stimu-lantia (1966), na Suécia, dirigido por Gustaf Molander; Flor de Cactus (1969), de Gene Sacks; Caminhando sob a chuva da primavera (1970), de Guy Green; Assassinato no Orient Express (1974), de Sidney Lumet. Em 1981, interpretou Golda Meir, a ex-primeira-ministra de Israel, no filme de Gene Gorman, Uma mulher chamada Golda, produção da TV israelense. Ingrid morreu a 28/8/82. ELLIOTT GOULD

Ator americano, nascido (Elliot Goldstein) no Brooklyn (Nova York) a 29/8/38. De família judia, sua infância foi vivida entre a escola e o show business. Em 1958, a família se fixa na Flórida e Elliott se torna chorus-boy em revistas da Broadway, captando a atenção e o amor da estrela de / can get it for your wholesale, Barbra Streisand. Em 1963, torna-se seu sócio e marido. A união termina em 1970. Estréia no cinema em 1968 num filme de William Fried-kin, Quando o streap-tease começou, e passa a ser um dos atores preferidos dos novos cineastas americanos, trabalhando com Paul Mazursky (Bob e Carol, Ted e Alice — 1969), Robert Altman (Mash — 1970); Richard Rush (A procura da verdade — 1970), Stuart Rosemberg (A mudança — 1970), Mel Stuart (Seu caso era mulher — 1970), Alan Arkin (Pequenos assassinatos — 1971), Peter Hyans (Mãos sujas sobre a cidade — 1972), Jack Gold (O homem de metal — 1973), Irvin Kershner (Espiões — 1974), Ted Post (Whiffs — 1975). Mais duas boas atuações em filmes de Robert Altman (Um perigoso adeus — 1973 e Jogando com a sorte — 1974), depois pou158 cos ou nenhum filme significativo, entrando numa fase de declínio. Mas ele seria o primeiro ator não escandinavo a figurar num filme de Bergman, A hora do amor, papel do arqueólogo norte-americano, David Kovac, que entra na vida de Karin (Liv Ullmann), esposa de um médico, deflagrando a crise conjugai. DAVID CARRADINE

Ator americano, nascido em Hollywood a 8/12/40. Filho do ator John Carradine e irmão de Keith e Robert Carradine. Depois de estudar música no San Francisco State College, ele estréia na Companhia de Teatro Golden Hind, interpretando Macbeth, Hamlet, Othelo. Na televisão, torna-se o astro da memorável série Kung Fu. Principais filmes: Taggart (1964), de R. G. Springsteen; O céu à mão armada (1968), de Lee H. Katzin; Basta, eu sou a lei (1969), de Burt Kennedy; Macho Callahan (1970), de Bernard L. Kowalski; Sexy e marginal (1972), de Martin Scorsese; Um perigoso adeus (1973), de Robert Altman; Caminhos perigosos (1973), de Scorsese; Ano 2000, corrida da morte (1975), de Paul Bartel; O grand prix da morte (1976), de Bartel; Esta terra é minha terra (1976), de Hal Ashby Charlie, o trambiqueiro (1977), de Steve Carver; Trovões e relâmpagos (1978), de Corey Allen; Cavalgada de proscritos, de Walter Hill. David Carradine foi escolhido por Bergman para o papel do trape-zista, Abel, de O ovo da serpente, por causa do seu rosto e da expressividade do seu olhar. STIG OLIN

Coadjuvante de vários filmes de Bergman. Ator principal de Crise, personificando um problemático ator de teatro. Participou do elenco de Porto, Prisão (o gigolô Peter), Rumo à felicidade (papel principal do violinista Stig), Isto não aconteceu aqui e Juventude. SIF RUUD

Atriz coadjuvante usual de Bergman. Tomou parte no elenco de Chove sobre nosso amor, Porto, Rumo à felicidade, Morangos silvestres, O rosto, Face a face. 159


AKE GROMBERG

Ator principal de Noites de circo. Ele interpreta Albert, o infeliz dono do circo humilhado e traído pela mulher. Coadjuvante em Monika e o desejo e Uma lição de amor. AKE FRIDELL

Papéis secundários em: Barco para as Índias, Prisão, Monika e o desejo, Sorrisos de uma noite de amor, O sétimo selo, Morangos silvestres, e O rosto. INGA LANDGRÉ

Atriz principal do primeiro filme de Bergman, Crise, interpretando Nelly, a jovem hesitante entre a mãe adotiva e a mãe verdadeira. Mais tarde, coadjuvante em Sonho de mulheres, O sétimo selo (papel de Karin, a mulher do cavaleiro Antonius Block) e No limiar da vida. BENGT EKLUND

Destacado coadjuvante de vários filmes de Bergman, notada-mente pela sua caracterização da Morte em O sétimo selo e do ator agonizante Spegel (Espelho) de O rosto, que de certa forma é uma projeção do ilusionista Vogler (Max Von Sydow). Ele interpretou o terceiro papel do quarto filme de Bergman, Música na obscuridade, o operário que causa ciúmes no pianista cego. Ator principal de Porto, personificando o desempregado Gosta. Papel secundário em Sede de paixões e Monika e o desejo. NAIMA WIFSTRAND

Ela interpretou a mãe quase centenária do professor Isaak Borg, de 78 anos, em Morangos silvestres, e a velha mãe da atriz Désirée Armfeld (Eva Dahlbeck) em Sorrisos de uma noite de amor, a castelã que oferece aos seus convidados o líquido mágico que faz com que os casais errados descubram o par certo e o verdadeiro amor. Outros filmes de Bergman em que ela faz curta aparição ou figuração: Sede 160 de paixões, O rosto, A hora do lobo (a velha que, ao tirar o chapéu, tira também a cabeça). BARBRO HIORT AF ORNAS

Atriz constante em papéis coadjuvantes em vários filmes de Bergman a partir de No limiar da vida, no qual faz o papel de uma médica. Participações também em Para não falar de todas essas mulheres, Vergonha (papel da mulher do coronel Jacobi), A paixão de Ana, A hora do amor e Cenas de um casamento. GUDRUM BROST

Ela faz Alma, a mulher do palhaço Frost em Noites de circo, que se banha nua no rio diante dos soldados. Trabalhou também em O sétimo selo (papel da mulher da taberna) e em A fonte da donzela. SIGGE FURST

O pescador Filip de Vergonha. Atuações secundárias em Monika e o desejo, Uma lição de amor e A paixão de Ana. BIRGITTA PETTERSSON

Figurante em O rosto e atriz principal em A fonte da donzela, a jovem que encontra três pastores num bosque, reparte com eles sua comida e acaba violentada e morta por dois deles sob o olhar de um terceiro, que é apenas um menino. JORGEN LINDSTRON

Ator infantil, aproveitado por Bergman em O silêncio, o filho de Ana que perambula pelos corredores e quartos do hotel. KARY SYLWAN

A mais nova integrante do staff bergmaniano. Notável em Gritos e sussurros como a governanta Ana e depois, em Face a face, como a paciente Maria. 161


Filme por filme


Crise "Numa pequena cidade do interior, lngeborg Johnsson (Dagny Lind) dá aulas de piano para viver. Mora com sua filha adotiva, Nelly (Inga Landgré), de 18 anos, e um jovem veterinário, Ulf (Allan Bohlin). Este mostra-se interessado na moça, mas ela apenas o considera como um irmão mais velho. Vai ser realizado um baile na cidade e Nelly, cheia de euforia juvenil, sonha com a festa; mas lngeborg não tem dinheiro para pagar o seu vestido de baile. Diante disso, Nelly recorre à sua mãe verdadeira, Jenny (Marianne Lofgren), dona de um salão de beleza em Estocolmo, que lhe manda um vestido luxuoso, e, surpreendentemente, no dia do baile aparece na cidade e decide levar Nelly com ela. Instala-se, então, uma grande rivalidade entre as duas mulheres, uma tentando resguardar sua filha adotiva, a outra procurando reconquistar sua filha verdadeira. Entra em cena um novo personagem, Jack (Stig Olin), amante de Jenny, que veio também para participar do baile e acaba convencendo a moça a ir para Estocolmo com sua mãe verdadeira. Jack começa a cortejar a moça na tentativa de seduzi-la. Acaba surpreendido por Jenny, e, num acesso de desespero, Jack acaba se suicidando. Durante a ausência de Nelly, lngeborg contrai uma doença incurável. Quanto a Ulf, que havia deixado a cidade, volta e casa-se com Nelly. A vida continua." (Resumo extraído do livro de Jean Béranger e Francis D. Guyon.) "Desta encruzilhada de situações por vezes sórdidas, nasciam, num clima negro, as primícias da obra futura. Mas em Crise o destino simbólico em roupa esportiva, os esgares teatrais de alguns dos intérpretes prejudicam a sutileza de uma análise psicológica em favor 165


da qual se opõem dois mundos paralelamente desencantados: o de ontem, gemendo sinistramente no limiar da velhice, e o de hoje, aterrorizado pela existência e já desiludido; ambos voltando-se em vão para as recordações da infância, desmentidas pelo presente. Tanta literatura deprimente e uma poesia sombria e nauseante indispuseram o público contra o novo realizador que iria muito em breve ampliar sua atitude pessimista e revoltada." (Jacques Siclier, em seu livro sobre Bergman.) CRISE (Kris) — 1945 — Produção: Svensk Filmindustri — Lech Fischer. Roteiro: Ingmar Bergman, da peça dinamarquesa Modtrdyret (O animal natural). Fotografia: Gosta Roosling. Cenografia: Ame Ake-mak. Música: Erland Von Kock. Outros nomes do elenco não citados ao longo do artigo: Ernst Eklund, Signe Wirff, Svea Holst, Ame Lind-bland, Hjordis Pettersson.

166

Chove sobre nosso amor "David (Birger Malmsten), um jovem desempregado, encontra, numa estação ferroviária, uma moça do interior, Maggie (Barbro Kolberg). Ele lhe propõe passarem a noite num hotel. Depois dessa noite decidem ficar juntos. Eles se instalam num casebre miserável, onde Hakansson (Gosta Cederlund), o proprietário, verdadeira personificação do mal (que cria uma porção de gatos, os únicos seres vivos que ele pode suportar), se esforça para tornar a vida impossível pela sua hipocrisia. A discórdia social se faz cada vez mais presente. E não é o primeiro pagamento de David que irá mudar as coisas. Maggie está grávida. O pastor que eles procuram parece haver perdido todas as relações com a idéia de caridade cristã. Constatando o estado da jovem mulher, ele não somente recusa casá-los como ameaça denunciá-los à polícia, se ela não se albergar num centro social para mães solteiras. Finalmente a morte da criança, antes de nascer, torna-se um alívio para ela." (Resumo extraído do livro de Jean Béranger e F. D. Guyon.) "O fato dos personagens da história, David e Maggie, um homem e uma mulher sós e desesperados, se encontrarem numa estação de trem e decidirem bruscamente, depois de passarem uma noite juntos, unir os seus destinos, faz com que o tema do filme se avizinhe muito de Cais das sombras e, em geral, dos filmes de Carne e Duvivier que Bergman admirava muito aos vinte anos. Que, além do mais, os personagens estejam desempregados e sem casa e lutem desesperadamente para ter um teto,, o direito de se amarem livremente e ter um filho sem que a concepção seja santificada pelo casamento, eis o que já é menos conformista. Não faltam referências a um clima social exato: o proprietário, o patrão, o pastor e o juiz são os representantes de uma burguesia velha e esclerosada e, além disso, farisaica, que opõe à juventude o muro de cimento de suas instituições e das suas convenções implacáveis." (J. Siclier em seu livro.) 167


CHOVE SOBRE NOSSO AMOR (Del Regnar Pa Va Karlek). Produção: Loren Marmstedt para a Sveriges Folkbiografer. Roteiro: I. B. baseado na peça norueguesa Bra menneskcr (Brava geme), de Oskar Braathen. Fotografia: Hilding Bladh e Goran Strindberg. Outros nomes do elenco não citados ao longo do artigo: Ludd Gentzel, Douglas Hage, Hjordis Petersson, Julia Caesar, Gunnar Bjornstrand, Magnus Kesster, Sif Ruud, Ake Fridell, BenktAke Benktsson, Erik Rosen, Sture Eriksson, Ulf Jobansson. Birger Malmsten e Barbro Kolberg em Chove sobre

Barco para as índias "O capitão de um barco de salvamento, Alexander Blon (Holgei Lowenadler), encontra a jovem Sally (Gertrud Fridh), cantora de um cabaré, e lhe propõe acompanhá-lo em sua volta ao mundo. No barco, ainda viajam o filho do capitão, Johannes (Birger Malmstem), que é corcunda, e Alice (Anna Lindahl), sua resignada mãe. O pai e o filho disputam o amor de Sally, cujos sentimentos começam a pender para o lado de Johannes. Enciumado, Alexander tenta matar seu próprio filho embargando a passagem de ar de seu escafandro. Este, no entanto, consegue escapar, e é o pai que acaba sendo morto ao cair no mar. Para esquecer tudo, Johannes vai trabalhar em navios de cargas, prometendo a Sally voltar um dia. A guerra eclode. Sete anos se passam. Sally retorna para o cabaré e para os marinheiros bêbados. Mas Johannes cumpre a promessa e volta para restituir-lhe a vontade de viver, partindo os dois num barco para as índias." (Resumo extraído do livro de J. Béranger e F. D. Guyon.) O filme participou discretamente do Festival de Cannes de 1947, e é interessante recordar o que André Bazin escreveu em L'Ecran Français a seu respeito: "O diretor, que é igualmente um dos melhores roteiristas suecos, vai direto ao assunto, mas às vezes com uma falta de habilidade desastrosa, gerada por suas origens teatrais (Ingmar Bergman é um pouco o Jean-Louis Barrault sueco). Consegue outras vezes suscitar um mundo de uma pureza cinematográfica surpreendente. Uma boa parte do filme se passa dentro de um barco desencalhador de navios. Deve-se criticar o convencionalismo de seu roteiro e certos aspectos melodramáticos de seu argumento. A redenção de uma prostituta por amor a um corcunda é digno de Mareei Pagnol. Mas é indispensável tomar o seu partido. As mães solteiras e as prostitutas são as heroínas favoritas do cinema nórdico. Todavia, um roteiro se julga também pelos personagens. Aqui estes existem com uma intensidade e um mistério que não são só do melodrama, mas que têm origem nos primórdios do cinema sueco. A fotografia é admirável e os principais atores são muito comoventes". 169


BARCO PARA AS ÍNDIAS (Skepp ttíl Indialand) — 1947 — Produção: Lorens Marmstedt para a Sveriges Folkbiografer. Roteiro: I. B. da peça de Martin Soderhjelm. Fotografia: Goran Strindberg. Musica: Erland Von Kock. Cenografia: P. A. Lundgren. Intérpretes não citados ao longo da crítica: Lasse Krantz, Jan Molander, Erik Hell, Nemi Briese, Hjordis Pettersson, Ake Fridell, Peter Lindgren.

170 Música na obscuridade "O pianista Bengt Vyldeke (Birger Malmsten) fica cego num acidente num campo de tiro, durante o serviço militar. Pouco a pouco, ele se adapta à sua nova vida de eterna treva, sob a compaixão de seus familiares. Um dia, Bengt conhece uma jovem operária, Ingrid Olofsdotter (May Zetterling), que acabara de perder seu pai. Empregada como doméstica, ela torna-se a pessoa que alivia os tormentos do pianista e o ajuda a prosseguir seus estudos musicais. Mas infelizmente Bengt não passa no exame para a Academia e se vê forçado a aceitar um lugar de pianista num cabaré, onde é obrigado a suportar as mesquinharias de seus colegas. Uma noite, passeando num parque, ele reconhece a voz de Ingrid. Ela o apresenta a seu companheiro, um jovem operário, Ebbe (Bengt Eklund), que Bengt se propõe a ajudar. Mas, muito intenso, o ciúme se instala entre eles. O pianista vai se suicidar, convencido de sua inferioridade e de seu ridículo, depois de um incidente num baile. Mas Ingrid, que havia percebido suas intenções, o salva a tempo com a ajuda de Ebbe. Um soco dado por seu rival reconduz literalmente Bengt à vida, porque ele se sente tratado enfim em igualdade. Ingrid e Bengt decidem se casar, apesar do aviso de um pastor que tenta dissuadi-los sob pretextos médicos e sociais." (Resumo extraído do livro de Béranger e Guyon.) A sinopse acima pode ser completada pelas observações de Jac-ques Siclier em seu livro sobre Bergman: "A cegueira corresponde aqui concretamente à corcunda simbólica de Johannes no filme anterior. Uma jovem operária interessa-se pelo cego, com uma atenção isenta de sensibilidade piegas. O amor vai permitir-lhe quebrar sua solidão. Aparece, porém, um rival ciumento que, indo contra todas as regras da humanidade admitidas, agride o cego. Este volta a sentir-se feliz, porque finalmente houve alguém que o considerou como um homem normal". 171


MUSICA NA OBSCURIDADE (Music I morker) — 1947 _ Produção: Lorens Marmstedt para Terra Film. Roteiro: I. B do romance de Dagmar Edqvist. Fotografia: Goran Strindberg. Cenografia: P. A. Lundgren. Música: Erland Von Kock. Intérpretes não citados ao longo da crítica: Oloff Winerstraus, Bibi Skoglund, Hilda Borgstrom, Douglas Hage, Gunnar Bjornstrand, Ak Claesson, John Elfstron, Bengt Logardt, Marianne Gyllenhammar, Ulla Andreasson, Rune Andreasson, Sven Lindberg, Barbro Flodquist. Birger Malmsten e May Zetterling em Música na obscuridade.

Porto "Um jovem desempregado, Gosta (Bengt Eklund), encontra, enfim, trabalho nas docas de Gotemburgo. Ele impede uma moça de se suicidar. Convida Berit (Nine-Christine Jonsson) para ir a um restaurante. Nasce entre eles um sentimento de simpatia, e ela lhe conta seu passado com franqueza. Depois de fugir do inferno familiar onde ela era vítima do seu pai divorciado, começa uma vida degenerada, deixando-se seduzir por qualquer rapaz que encontra. Acaba sendo internada num reformatório onde há mulheres lésbicas. Depois dessa confissão, Gosta desesperado a deixa e vai tentar esquecê-la nos bares do porto. Ele se sacia com uma prostituta cujo protetor, um negro, lhe rouba a carteira e o atira na rua. Enfim, furioso, ele caminha em direção à casa de Berit. Como ninguém lhe abre a porta, dorme na entrada. Berit o encontra e o acolhe. Gosta se diz apaixonado, eles sorriem [...]" (Resumo extraído do livro de Béranger e Guyon.) "Porto foi exibido no Brasil, em 1977, dentro do ciclo O Jovem Bergman, em sessões especiais no Museu de Arte de São Paulo e pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna, no Rio. Sobre o filme, o crítico Ruben Biáfora comentou o seguinte na sua coluna de indicações em O Estado de S. Paulo: 'A história tem alguma coisa de Docas de Nova Iorque que Sternberg dirigiu, em 1928, com George Bancrofort e Betty Compson, de Noite após noite que Don Siegel fez em 1949 na Warner, com Ronald Reagan e Viveca Lindfords, e de Escrava do pecado, que a mesma Viveca interpretou na Suécia antes de vir para Hollywood. Gira em torno de uma menina que foge de um lar indigno desse nome, para logo se perder numa Gotemburgo de pesadelo, até que encontra a redenção graças ao amor de um trabalhador das docas. Embora se falasse em Carne a propósito de Porto, o romantismo está ausente: o lirismo que pode ser encontrado provém da intensidade na visualização (muito cúmplice) de seus personagens desafortunados, como nos melhores momentos de Vittorio De Sica. Os cenários naturais de Gotemburgo foram aproveitados com uma cenografia que, à exceção de poucos momentos, é de caráter realista' — 173


escreveu no Jornal do Brasil o crítico Ely Azevedo, que continua assim suas observações: "O quinto filme de Bergman, Porto, começa quando Gosta presencia a tentativa de suicídio de uma adolescente, Berit, por afogamento. Aproximam-se, mas suas relações esbarram em obstáculos da situação passada e presente de Berit. Os flash backs contribuem para enriquecer psicologicamente esta personagem (protagonista com ampla margem de destaque sobre Gosta), e, em especial, frisam com freqüência o papel dos infortúnios materiais que o dispositivo estatal do bem-estar só fez agravar: o meio familiar conflituoso, o ambiente sórdido de uma instituição correcional de onde chegou a fugir uma vez. Gosta e Berit pensam em partir para a Alemanha, mas, na última hora, resolvem lutar pela vida ali mesmo. Essa perspectiva de recomeçar do outro lado das ilusões é uma constante do jovem Ing-mar Bergman, sem qualquer afinidade com o clássico final feliz". A notar: o encontro de Bergman com o fotógrafo Gunnar Fis-cher, colaborador de grande parte da obra do diretor, até ser substituído por Sven Nykvist, na fase moderna do cineasta nos anos 60. PORTO (Hamstad) — 1948 — Produção: Svensk Filmindustri. Roteiro: I. B., baseado numa história de Olle Lansberg. Fotografia: Gunnar Fischer. Cenografia: Nils Svenwall. Música: Erland Von Kock. Intérpretes não registrados na crítica: Berta Hall, Mimi Nelson, Brigitta Valberg, Sven-Erik Gamble, Erik Hell, Nils Dahlgren, Stig Olin, Sif Ruud, Hans Straat, Nils Hallberg, Harry Ahlin, Britta Billsten, Inge Nordwall, E. Merete Heiberg.

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Prisão "De todos os filmes de Bergman, este é um dos mais difíceis de resumir" — adverte Jean Béranger no livro que escreveu em colaboração com Francis D. Guyon. E continua: "Martin (Hasse Ekman), diretor de cinema de categoria inferior, recebe no estúdio a visita de seu antigo professor de Matemática (Anders Heriksson), que havia saído de uma clínica para neuróticos. Martin lhe propõe a realização de um filme sobre esse tema: 'Nosso mundo é o inferno e o diabo dirige tudo'. Uma tarde, Martin vai contar a Thomas (Birger Malmsten), um jornalista alcoólatra, seus planos. Este lhe sugere uma idéia, a seu ver, bem melhor: ele trabalha atualmente numa enquete sobre a vida noturna de Estocolmo onde encontrou uma prostituta de 17 anos, Birgitta Carolina (Do-ris Svedlund). A história dessa jovem pode dar um bom roteiro. A ação principal volta-se, então, para a personagem de Birgitta que vive sob a proteção de um proxeneta, Peter (Stig Olin), e de sua irmã, Linnea (Irmã Christiansson), que afogam o bebê da protagonista numa banheira. O jornalista, que teve uma briga com sua mulher, Sofi (Eva Henning), durante a qual ela lhe quebra uma garrafa na cabeça, decide ir viver com Birgitta num quarto miserável. Birgitta tem um pesadelo horrível a propósito de morte de sua criança. Durante esse tempo, Peter recebe a visita da polícia, que encontrara o cadáver e intensifica suas investigações. A jovem mulher compreende que ela não escapará de seu impiedoso destino, e, para poupar seu amante, ela o abandona e volta para Peter. Nós assistimos então a uma cena na qual Birgitta tem como cliente um homem que ela odeia e que por sadismo a queima com um cigarro. Não podendo suportar as repetidas crueldades a que é submetida, ela entra numa crise nervosa, refugia-se num porão e abre as veias. No estúdio de Martin, o trabalho continua e a vida segue seu curso. Ele toma conhecimento do suicídio de Birgitta e da volta de Thomas para Sofi, o que significa para ela o fim de suas relações com o diretor, iniciadas durante a ausência de seu marido. O professor de Matemática aparece de novo e indaga sobre o roteiro. Martin lhe responde què ele renunciou ao projeto, porque o filme não poderia ter nenhuma conclusão." 175


Prisão, até hoje inédito no Brasil, só foi lançado na França dez anos após sua realização. Numa crítica da época, na revista Image et son, n.° 122-123 (maio e junho de 1959), Raymond Lefèvre dizia o seguinte: "Bastante desligado da concessão ao melodrama realista que caracteriza o primeiro terço da obra de Bergman, não é um filme sem falhas: personagens convencionais (a prostituta, o jornalista alcoólatra, o velho professor); simbolismo às vezes ingênuo; expressionismo e pesquisa do barroco. Todavia, o filme anuncia grandes qualidades de direção e, sobretudo, marca um ponto culminante no itinerário do pensamento de Bergman. Mais distintamente ainda do que em Noites de circo, o cineasta professa um pessimismo absoluto: triunfo do mal, solidão invencível, absurdidade e torpeza da vida. O filme começa por um longo diálogo de uma grande profundidade. Nele constata-se o poder do Diabo, que a Igreja sempre valorizou; nele afirma-se a morte de Deus, o que simplifica bem as coisas. Nada poderá salvar os personagens desse inferno onde nada se encontra a não ser o Diabo e a Morte (valores simbólicos do velho filme mudo projetado no celeiro). Nem mesmo o amor, aqui impossível ou vencido, dando a impressão de tristeza deprimente que envolve essa interessante meditação sobre a miséria física e a dor moral." PRISÃO (Fangebe) — 1948 — Produção: Lorens Marmstedt para Terra Film. Argumento e roteiro de I. B. Fotografia: Goran Strindberg. Cenografia: P. A. Lundgren. Música: Erland Von Kock. Intérpretes não registrados na crítica: Bibi Lindqvist, Marianne Lofgren, Curt Marsreliez, Ake Fridel, Carls-Henrik Frant, Inge Juel, Arne Ragneborn.

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Sede de paixões "Um jovem casal, Ruth (Eva Henning) e Bertil (Birger Malms-ten), viaja num trem de Bale para Estocolmo, atravessando uma Alemanha devastada pela guerra. (A miséria, tomada como um leitmotiv a cada parada, não tem aqui uma significação social, mas serve de acompanhamento à pobreza dos dois heróis cada vez mais afastados um do outro pelas lembranças que o assaltam.) Ruth havia sido antes a amante de um homem casado, Raoul (Bengt Eklund), que a leva de férias para uma cidade de veraneio do arquipélago de Estocolmo. Um belo dia, aparece a mulher de Raoul (Gaby Stenberg), que revela a Ruth o homem sem escrúpulos e cheios de vícios que é seu marido, e o carrega com ela, deixando Ruth só, depois desse primeiro amor, grávida e desiludida. Ela aborta e se torna estéril. A seguir, Ruth recorda a ligação de seu marido com uma outra mulher, Viola (Birgit Tengroth). A ação, então, bifurca-se e nós travamos conhecimento com Viola que, depois de um novo fracasso amoroso, isolada à beira de uma crise mental, vai ter-se com um psiquiatra sarcástico, o doutor Rosengren (Hasse Ekman). Antes de escutar sua cliente, ele lhe faz propostas amorosas, e, diante da recusa, aconselha-a a se internar. De novo, perambula em desespero pelas ruas de Estocolmo, quando ela encontra uma antiga amiga de pensão que a convida para ir ao seu apartamento. No momento em que Viola encontra algum conforto, sua amiga, Valborg (Mimi Nelson), deixa escapar suas tendências lésbicas. Viola foge. Algumas ondas na superfície da água; nós sabemos que ela pôs fim à sua caminhada. No trem, Bertil sonha que está matando sua mulher; acorda bruscamente, constata que ela está viva ao seu lado e a abraça [...] (Resumo tirado do livro de Béranger e Guyon.). Exibido no Brasil em 1955 e na França somente em 1961, Sede de paixões tem uma importância capital na obra de Bergman. Descobriremos aqui, ainda em forma germinante, todos os temas que o cineasta iria tratar a seguir, centralizados em torno do drama maior, a crise do casal. Num outro aspecto, pode-se considerá-lo também como um estudo sobre a mulher, face às suas obsessões, seus amores, desejos, a maternidade recusada, o suicídio. 177


Quando o filme foi projetado no MAM dentro do ciclo "O Jovem Bergman", o crítico carioca Ely Azeredo anotava que Sede de paixões "surgiu em seguida a Prisão, que muitos consideram como a primeira manifestação do gênio de Bergman. Herbert Grevenius escreveu o roteiro a partir de quatro histórias curtas de Birgit Ten-groth (que aparece no filme interpretando Viola), que se amoldam numa só". Observa ainda o crítico: "A relação ao mesmo tempo conflituosa e positiva do casal em seu sartreano compartimento será, em outras circunstâncias, uma das preocupações mais profundas da obra de Bergman. Mas especificamente, segundo o críticocineasta Jorn Donner, Sede de paixões se refere ao medo do envelhecimento e da esterilidade que, em última análise, é o medo da solidão". Uma das preocupações muito suecas de Bergman se reflete no diálogo em que Bertil se refere aos alemães, quando alguns flagelados pela guerra aparecem famintos à janela do trem: "Eles vivem tão ocupados tentando manter o corpo e a alma que não têm tempo para pensar em qualquer vida interior. Não posso negar que os invejo". Na revista francesa Cinema (n.° 57, junho de 1961), René Gilson escrevia que Sede de paixões "é de 1949; Bergman não estava mais no seu início, mas também não era ainda o Bergman que nós descobriríamos pelas obras de 1953-1955; é a época de Prisão, exatamente anterior à grande época bergmaniana que se abrira em 1950 com Juventude. Mas todo o bergmanismo está lá não decantado, como em Prisão, quer dizer não tão intensamente sob o peso da teatra-lidade strindbergniana. Mas isso não tem muita importância quando a personalidade do autor é forte e quando a obra encontrou seu equilíbrio. A desordem cronológica na qual descobrimos a obra de Bergman é que nos confunde e nos faz julgá-la por etapas, mas Sede de paixões é um filme indispensável ao cinéfilo que a seguiu nos últimos anos, mesmo com algumas voltas ao passado, inesperadas". SEDE DE PAIXÕES (Torts) — 1949 — Produção: Svenk Filmin-dustri. Roteiro: Herbert Grevenius, baseado numa coleção de contos de Birgit Tengroth. Fotografia: Gunnar Fischer. Cenografia: Nils Svenwall. Musica: Erik Nordgren. Montagem: Oscar Rosander. Outros nomes do elenco não citados ao longo da crítica: Gaby Stemberg, Naima Wifstrand, Sven-Erik Gamble, Gunnar Nielsen, Astrid Hesse, Helge Hagerman, Calle Flygare, Else-Merete Heiberg, Monica Weinzierl, Herman Greid.

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Rumo à felicidade "Durante a execução da Nona Sinfonia de Beethoven, Stig (Stig Olin), um jovem violinista, toma conhecimento de um acidente em que morre sua mulher Martha (Maj-Britt Nilsson). Então, Stig começa a recordar... Ele lembra seu encontro com Martha, uma novata egressa da Orquestra Sinfônica de Halsingborg. Depois, é seu casamento e o fracasso de um concerto que arruina suas ambições de solista. Stig encontra um ator decadente (John Ekman), que vive com Nelly (Margit Carlquist), sua jovem e mal-humorada amiga. Martha está a caminho da maternidade. Nós assistiremos, em seguida, a algumas cenas de felicidade no campo, iluminado pela luz irradiante do belo verão sueco, enquanto Sonderby (Victor Sjostrom), o velho maestro, vem visitar o casal. Mas a vida conjugai conhece seus primeiros embaraços. Stig se separa de sua mulher e começa uma ligação com Nelly. Martha abandona a casa com seus dois filhos. Porém, Stig ainda a tempo se arrepende e sente a falta de Martha. O retorno desta é um pedaço de uma nova felicidade, interrompido pelo acidente. A música passa, então, a ser para Stig uma nova vida. Ele se entrega por inteiro à execução da Nona Sinfonia, um hino à alegria na qual ele esquece sua personalidade marcada pela dor." (Resumo extraído da crítica de Raymond Lefèvre em La revue du cinema image et son, n.° 299, outubro de 1975.) Inédito no Brasil, o filme foi lançado na França com 26 anos de atraso, e, na ocasião, o citado Lefèvre, um dos especialistas franceses em Bergman, escreveu que o cineasta "em tudo se mantém fiel a uma série de preocupações essenciais (o casal, a maternidade, a criação artística), apenas muda de inspiração e anuncia seus célebres filmes de verão: Juventude, Quando as mulheres esperam, Monika e o desejo, Sorrisos de uma noite de amor". "Vindo após o pessimismo dos filme anteriores — prossegue Lefèvre —, Rumo à felicidade toma o valor de um manifesto. É uma homenagem à extraordinária luminosidade das paisagens suecas, à música de Mendelssohn, de Mozart, de Smetana ou de Beethoven, à beleza da mulher amada e à felicidade simples." 179


No seu livro escrito em colaboração com Francis D. Guyon, Jean Béranger afirma que "não é a pintura psicológica das dificuldades da vida do casal no matrimônio o mais importante. O que nos seduz, sobretudo, é a narrativa. Bergman, um autodidata na matéria, eleva a sutileza da linguagem cinematográfica a um degrau quase desconhecido. Ele propõe como Joyce, Proust e Pirandello, uma profunda e orgânica unidade de fundo e forma. Flash backs, evocações oníricas desembocam sobre um estilo fotográfico muito barroco, apesar de sua austeridade e seu realismo". RUMO Ã FELICIDADE (Till Gladje) — 1949 — Produção: Svensk Filmindustri. Roteiro: I. B. Fotografia: Gunnar Fischer. Cenografia: Nils Svenwall. Montagem: Oscar Rosander. Música: Mendelssohn, Mozart, Smetana, Beethoven. Outros intérpretes não mencionados acima: Sif Ruud, Rune Stylander, Erland Josephsson, Gerg Skarstedt, Berit Holmstron, Bjoen Montin, Carin Svenson, Svea Holts, Agda Helin, Maud Hyttenberg.

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Isto não aconteceu aqui "Trata-se de uma obra de circunstância, de uma espécie de nota falsa que, de resto, não temos que comentar já que não a conhecemos" — escreveu Jacques Siclier em seu livro, passando as considerações a um terceiro. — "Eis o que diz Jean Béranger, no seu livro: Uma refugiada política, Vera (Signe Hasso) é perseguida em Estocolmo pela polícia secreta stalinista. Na história onde ela e outros refugiados se recusam a servir sua causa, os espiões os ameaçam de medidas de repressão contra os membros de suas famílias que ficaram no seu país de origem." Voltando a Siclier, ele observa: "Sendo 1950 o ano da Guerra da Coréia, será de espantar ver a Suécia (em equilíbrio instável entre os dois blocos e não excessivamente segura de ser poupada numa nova guerra) se sacrificar a um gênero que, na América, já proliferava e que se batizou de 'série antivermelha'. A estrela Signe Hasso interpretava o papel da refugiada encurralada em Estocolmo por 'agentes de uma potência estrangeira' não revelada, mas que todos sabem o nome". Saltando de novo para Béranger: "Bergman lamenta ter realizado este filme porque lhe foi proibido tocar no nome de um certo país, quando ele procurava, sobretudo, denunciar os métodos de pressão que são um pouco a realidade das polícias secretas de todas as grandes nações. A história de Grevenius não se prestava apenas a alusões genéricas, e Bergman foi empurrado na politização das suas idéias generosas. Jurou, depois disso, nunca mais participar de nenhum empreendimento de propaganda, qualquer que fosse". ISTO NÃO ACONTECEU AQUI (Sant hander inte haf) — 1950 — Produção: Svensk Filmindustri. Produção: Herbert Grevenius. Fotografia: Gunnar Fischer. Música: Erik Nordgren. Cenografia: Nils Svenwall. Montagem: Lennart Wallen. Elenco: Signe Hasso, Alf Kjellin, Ulf Palme, Gosta Cederlund, Inge Nordwall, Stig Olin, Ragnar Kango, Hanno Kompus, Sylvia Tael, Eis Vaarmant, Edmar Kuus, Rudolf Lipp.

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Juventude "Não se pode dizer que há uma intriga em Juventude. O que há é um desenrolar, unais que uma história." — Garantem Béranger e Guyon no livro n.° 34 da Coleção Premier Plan. E os autores resumem assim o filme t "Na ópera de Estocolmo, Maria (Maj-Britt Nilsson), a bailarina principal, recebe um» encomenda postal: o diário de um amigo de sua adolescência. Dep>ois de uma discussão com David (Alf Kjellin), jornalista que a ama sem ser correspondido, ela parte em busca das relações de outrora. Ela reencontra, numa ilha próxima de Estocolmo, seu ligeiro romance com Henrik (Birger Malmsten). No fim desse rápido e magnífico veíão, Henrik morre acidentalmente. Ela procura, então, se reconfortar fia companhia de seu tio Erland (George Funk-vist) e, sobretudo, na sua arte de dançar. De volta a Estocolmo ela descobre a diferença que havia entre Henrik, seu primeiro amor, e David, de quem ele havia sentido falta. Quando termina a noite de gala que marca o seu triunfo, ela se precipita em seus braços. A partir desse argumento muito simples, Bergman conserva constantemente o tom de um poema lírico" — continuam escrevendo Béranger e Guyon, já agora entrando numa análise do filme. — "Toda a construção" — prosseguem os autores — "repousa sobre duas conjugações 'espaçotemporais': o presente, portador de uma ação dramática em pleno desenvolvimento da vida futura de Maria, e o passado que traz consigo a morte, visto que não é mais do que recordação. Um comentário confirma freqüentemente uma ligação entre esses dois tempos. Passado e presente tornam-se pouco a pouco a não ser mais que uma mesma realidade: a vida de Maria. É na dança que o filme encontra sua continuidade: na cena, Maria dança seu amor de outrora e sua vida de amanhã. Trata-se da explosão de um momento de amor, quase abstrato na sua pureza, que retoma contato com o lento e desesperado desenvolvimento da existência." "A exemplo dos primeiros filmes de Bergman, depois de Prisão e de Sede de paixões (continuando a ser, parece, Rumo à felicidade, juntamente com Música na obscuridade, uma exceção), Juventude termina num comprorrüsso: a vida aceita com conhecimento de causa, ao lado de um outro ser, porque não se pode viver só." — Afirma 182

Jacques Siclier no seu livro. — "Em conclusão" — escreve ele —, "escapa-se provisoriamente à angústia de viver escapando à solidão. Mas, em Juventude, a utilização do espaço e do tempo permite alargar o tema e preludiar uma reflexão mais vasta. Deixando a 'porta fechada', o mundo de Bergman toma naturalmente uma outra dimensão. Pela primeira vez (excetuando-se sempre Rumo à felicidade, com outras preocupações), o erotismo encontra-se aí em estado puro. Ê o prolongamento natural do amor, a aproximação instintiva para o 'outro', a fusão. O amor resolve o problema da solidão, e, por isso mesmo, resolveria todos os outros, se a morte não viesse quebrar o idílio estivai." "Em 1950, o ano de Juventude, Bergman não havia alcançado a maturidade. Mas já caminhava para lá. Capaz de qualquer virtuosismo — como até hoje o é — o diretor exibe essa tendência no enquadramento, muitas vezes obtendo fascinantes resultados: com a mão de Maj-Britt subindo para o quadro, depois da 'revelação'; ou com espelhos (o reflexo da bailarina à direita, a cara de Coppelius — o maitre de bale, à esquerda), e também ao recortar, pela metade ou pela quarta parte, o rosto da heroína. Também a 'invenção' às vezes trai o diretor: não se aceita, porque é por demais ingênuo (e arbitrário), o uso de desenhos que se animam na capa do disco. E a história está sempre tentando arrastar o diretor para o melodrama: não é nova, nem tem brilho — deve ter sido mesmo escrita aos 17 anos. Mas Bergman tinha 32 ao retomá-la. O que salva é a habilidade do diretor, que começava naquela época a dominar sua arte." (Antônio Moniz Vianna, no extinto O Correio da Manhã) JUVENTUDE (Sommarlek) — 1950 — Produção: Svensk Filmin-dustri. Roteiro: I. B. e Herbert Grevenius, baseado numa história de I. B. Fotografia: Ounnar Fischer. Música: Erik Nordgren. Cenografia: Nils Svenwall. Montagem: Oscar Rosander. Intérpretes não citados ao longo do artigo: Renée Bjorling, Mimi Pollak, Annalisa Erikson, Stig Olin, Gunnar Olsson, John Botvid, Douglas Hage, Julia Caesar, Carl Stran, Olaw Riego, Torsten Sillierona, Sten Mattsson, Marianne Schuler, Ernest Brumman.

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Quando as mulheres esperam Quatro mulheres esperam seus maridos, durante as férias de verão. Elas trocam confidencias sobre suas experiências, conversando sobre os homens que esposaram. O primeiro episódio (com Anita Bjork, Jarl Kulle e Karl-Arne Holmsten) é da linha trágica de Sede de paixões e nos mostra uma mulher casada com um homem indiferente e que, por circunstâncias especiais, tem um caso com um antigo namorado, vindo a confessar o fato diante dos dois, o que provoca uma terrível crise no marido. O casal evita o rompimento, entretanto, e continua unido apesar de tudo, pois a infelicidade a sós é pior ainda. O segundo episódio é de natureza lírica, apenas tocado pela tragédia, e lembra muito a atmosfera de Juventude: uma jovem (Maj-Britt Nilsson) conhece em Paris um jovem pintor boêmio (Birger Malmsten) e por ele se apaixona, largando seu namorado soldado. Complicações sobrevêm, entretanto, e a moça, prestes a dar à luz, está brigada com o jovem, devido à sua leviandade e inconseqüência. O nascimento da criança faz com que reconsidere e resolva a reatar a ligação. No terceiro episódio, amargamente satírico, um casal de meia-idade (Eva Dahlbeck e Gunnar Bjornstrand), que raramente tem oportunidade de estar a sós, devido principalmente às ocupações do marido, fica preso num elevador e é obrigado a passar a noite inteira dentro do cubículo. Pela primeira vez, em muitos anos, falam sinceramente confessando os deslizes mútuos e concluindo que precisam de uma segunda lua-de-mel. Ao amanhecer, quando conseguem afinal sair do elevador, o marido esquecido imediatamente de tudo o que aconteceu, atende a uma chamada telefônica, partindo para um compromisso comercial. O quarto episódio é uma rememoração, feita apenas oralmente (pela atriz Aino Taube), sem dúvida a mais patética de todas, contando-nos o drama do casal mais velho, já com filhos grandes. O drama da efemeridade do casamento e da solidão conjugai raramente foi expresso em diálogos tão pungentes quanto os da atriz Aino Taube: ".. .não posso amarrar seu corpo junto ao meu, nem arrancar-lhe os olhos para que fique cego e passe a depender de 184 mim". Ou "... hoje mais nada somos do que dois bonecos que se cumprimentam". Entre as quatro mulheres, uma quinta, em idade adolescente (Gerd Andersson), observa as outras quatro e escuta atentamente seus relatos, recusando-se a viver sem ilusões nem excessos. E ela acabará fugindo com seu noivo. De novo, um dos temas básicos do cineasta sueco: a vida conjugai, com suas alegrias e decepções, esperanças, pequenos dramas abafados, dissimulados por conveniência. O filme seria desesperado se ele não comportasse uma comovente lição de lucidez. Todas aquelas mulheres são sinceras para com elas mesmas, se isto não for mais do que resignação. E a verdade exige também que a vida social, o mundo burguês, que é o que elas habitam, também seja estudado. Bergman é um cineasta da "verdade", e se a psicologia dos sentimentos o apaixona acima de qualquer coisa, ele não negligencia do mesmo modo a descrição crítica do meio. Três histórias principais nos são contadas, duas onde o drama domina, a terceira é dominada pelo humor. Pelo humor bergmaniano que é também um humor dramático. Se Bergman nos faz rir é sempre entre a emoção e o patético. O face a face entre Eva Dahlbeck e Gunnar Bjornstrand no elevador em pane é um dos pedaços de cinema mais engraçados que conheço, mas é também um dos mais amargos. Os admiráveis intérpretes prefiguram diretamente o casal de Sorrisos de urna noite de amor, e Jarl Kulle, na primeira história, já tem os traços do futuro conde Malcoln, sarcástico, brincando com as armas de fogo e com o fogo das paixões sem futuro. Os episódios n.os 1 e 2 são desiguais, mas possuem cenas marcantes, principalmente a de MajBritt Nilsson sozinha em sua casa, à espera do parto, quando telefones, objetos, vultos entrevistos através de portas, pias transbordando água, elevadores e sinos se fundem numa notável seqüência audiovisual. Ou o cancan do cabaré parisiense, estilizado exoticamente, com uma atmosfera barroca e paga. Ou ainda a estranha seqüência de Anita Bjork confessando o adultério ao marido, diante do amante. O quarto episódio parece sugerir uma vida conjugai sem história, ou sem passado, enquanto os dois adolescentes em fuga, num


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quadro complementar, não irão sem dúvida mais longe do que o jovem casal de Monika e o desejo. QUANDO AS MULHERES ESPERAM (Kvinnore vantan) — 1952 — Produção: Svensk FUmindustri. Argumento e roteiro: I. B. Fotografia: Gunnar Fischer. Música: Erik Nordgren. Cenografia: Nils Svenwall. Montagem: Oscar Rosander. Intérpretes não citados na crítica: Bjorn Bjelvenstam, Hakan Westergren, Marta Arbin, Kjell Nordenskold, Carl Strom. Birger Malmsten e Anita Bjork em Quando as mulheres esperam.

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Monika e o desejo "Adaptado fielmente de um romance naturalista de P. A. Folgestron, o roteiro é sobretudo clássico — observam Béranger e Guyon no seu livro e a seguir passam a narrar a história: "A jovem Monika (Harriet Andersson), empregada de um armazém, vive entre os galanteios de seus colegas de trabalho e seu lar onde o pai bêbado semeia o terror entre os filhos. Ela se nutre de sonhos lendo revistas americanas, enquanto espera o grande amor. Conhece um dia Henrik (Lars Ekborg), empregado de uma livraria. Ela se beneficia de sua candura para fazer com que ele decida fugir com ela para uma das praias desertas do arquipélago de Estocolmo. Lá, eles vivem uma vida naturalista, mas que se degrada pouco a pouco com a chegada de um estranho. O verão acaba. Monika está grávida. Eles se casam. Henrik trabalha de noite para ganhar mais dinheiro. Mas Monika não tem nada de uma mãe de família, nem de uma esposamodelo. Ela abandona Henrik e o filho para ter uma vida livre." "Deixa-os partir. Voltarão um dia. O essencial é que tenham a sensação de fazer algo proibido... Deixa-os aproveitar o seu verão. As feridas, a sabedoria e outros embrutecimentos os farão voltar bem depressa." Essa frase, proferida em Quando as mulheres esperam por um personagem com relação à fuga dos adolescentes, funciona como um prelúdio ao que iria acontecer a Monika e Henrik, os jovens fugitivos de Monika e o desejo, numa prova que um filme de Bergman é inseparável de uma obra que forma um todo, no qual cada parte se completa, se explica, se desenvolve pelas outras. O personagem feminino central do filme, Monika, revela a cada seqüência seus diferentes traços de caráter. Bergman utiliza cada estado de alma, cada aspiração e cada relacionamento da protagonista como mola dramática da história realista que narra, história natural, conforme a vida natural e cotidiana das pessoas de todos os dias. Os cabelos despenteados, o cigarro na boca, Monika espre-guiça na cama. Ao redor dela, o cenário cotidiano de sua vida familiar: uma moradia exígua onde os irmãos pequenos brincam, enquanto a mãe trabalha dura e intensamente. O pai é alcoólatra. 187


Exposta a realidade da vida de Monika, nós compreendemos sua evasão pelo sonho róseo lendo fotonovelas e assistindo a filmes. Compreendemos sua revolta para escapar daquilo que a fere. Depois desse confronto de Monika com seu meio familiar, Bergman a confronta com seu ambiente de trabalho, também pobre e insano, e com os homens, que a desejam, e ela resiste a cada ataque. A seguir será o confronto de Monika com Henrik. Ela em busca de um homem para suprir suas aspirações sexuais e materiais. Ele ainda adolescente, mas aberto a seu amor nascente por Monika, passa pouco a pouco ao estado adulto. A vida sonhada por Monika torna-se realidade quando Henrik decide fugir com ela no pequeno barco do pai. Os amantes se isolam do mundo e começam a saborear a tranqüilidade e o encanto de uma vida livre. A primeira noite passada num único saco de dormir é o presságio da felicidade tanto desejada. Os dias correm, a vida rústica continua: o canto dos pássaros, a luminosidade da paisagem, o sol que brilha na água, a natureza enfim parece em harmonia com a vida livre dos jovens. E Monika se integra à beleza da natureza. Mas um instinto gregário vela. O som de um acordeon escapa de um pequeno baile ao ar livre e chama Monika para o meio da festa. Henrik não sabe dançar e este é o primeiro passo em falso do casal. Entra em cena René, um rapaz que faz camping nos arredores, estabelece-se o conflito que traz os dois de volta para a grande cidade. A gravidez de Monika, o filho que nasce, o trabalho duro e obstinado de Henrik para ascender a um nível social mais elevado, a solidão de Monika que sente a necessidade de outros contatos humanos. Ela reencontra René, Henrik os surpreende. É o desmoronar de uma felicidade frágil, construída sobre o sonho das fotonovelas e dos filmes sentimentais. Convém assinalar a sobriedade das imagens e a simplicidade das tomadas que dão um tom realista a esta meditação sobre o ser humano e sua felicidade efêmera. Nesse aspecto, podemos dizer que Bergman é um documentarista (a cidade de Estocolmo, a vida operária, lojas, a natureza). Sua câmera não procura ângulos insólitos. Os planos gerais são empregados para mostrar os ambientes naturais (cidade, natureza, interiores). Os personagens aparecem bem perto 188 de nós, em plano médio para os personagens secundários, e quase sempre em primeiro plano para Henrik e Monika. Os dois jovens nos fazem assim participar de sua intimidade psicológica, recurso dramático que suscita nossa atenção. MONIKA E O DESEJO {Sommaren med Monika) — 1952 — Produção: Allan Ekelund para Svensk Filmindustri. Roteiro: I. B. e Per Anders Fogelstron do romance deste último. Fotografia: Gunnar Fischer. Música: Erik Nordgren. Cenografia: P. A. Lundgren. Montagem: Tage Holmberg e Gosta Lewin. Outros nomes do elenco não citados ao longo da crítica: John Harryson, Georg Skarstedt, Daggmar Ebbesen, Ake Fridell, Naeme Briese, Ake Gromberg, Gosta Eriksson, Gosta Gustafsson, Sigge Furst, Gosta Pruzelius, Arthur Ficher, Torsten Lilliecrona, Bengt Eklund, Gustaf Kesster, Carl-Axel Elfving, Bengt Brunskog, Harry Ahlin, Gordon Lowobadier, Anders Andelius.

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Noites de circo Foram poucos os críticos que, na época do lançamento desse filme — tido como o mais "maldito" da carreira de Bergman —, sentiram e viram que algo de insólito, inaudito e perturbador havia acontecido com o cinema. A construção de Noites de circo era algo desconcertante para o seu tempo (e aí se explica sem dúvida a dificuldade dos críticos em seguir as intenções do cineasta): um flash back no início narra um acontecimento de alguns anos antes com um casal de personagens secundários e que será a chave dramática da fita, pois um caso semelhante irá acontecer com o casal protagonista. O filme é com efeito estruturado em forma de espiral: as situações se fecham em círculos apertados e depois se repartem por saídas estreitas e aneladas. Um circo paupérrimo e ambulante chega a uma pequena cidade, que é o lugar em que morava seu dono, Albert (Ake Gromberg) e onde ainda vivem sua mulher, Agda (Annika Tretow) e seu filho. Albert vive com Anna (Harriet Andersson), a amazona do show, vulgar e ambiciosa, e como ele cansada daquela vida. Frost (Anders Ek), um velho palhaço, sua mulher Alma (Gudrum Brost), o anão Dvargen (Kiki) e outros seres vencidos pela vida constituem os elementos restantes do pequeno circo, que levanta sua velha lona sob uma chuva implacável. Ao chegar, Albert ouve da boca de um de seus homens a história de Frost, o palhaço do circo (o flash back inicial). Almada mulher de Frost e domadora do urso, sete anos antes, naquela mesma cidade, se banhara nua diante de um pelotão de soldados em manobras, episódio que terminara em humilhação para o marido e para ela própria. Essa história resume de certa forma os acontecimentos que se passarão nesse dia, quando Albert será vítima de humilhação semelhante, traído futilmente por sua companheira, repudiado por sua esposa e espancado por seu rival, Franz (Hasse Ekman), um ator de segunda classe do teatro local, diante de toda a platéia do circo, no meio da qual há inclusive soldados enver-gando o mesmo uniforme da seqüência de humilhação do palhaço. Albert ainda se deparará com outra situação vergonhosa, quando 190 vai pedir roupas emprestadas a Sjuberg (Gunnar Bjornstrand), diretor do teatro local que lhe namora a amante e ri de sua aparência. Depois de ser espancado por Franz, Albert em desespero vai tentar o suicídio: a primeira bala falha, e, sem coragem para tentar novamente, ele vai matar o urso doente, único ato de coragem de que é capaz. Chora então ao seu cavalo, até que chegue a hora do circo partir. Lonas e acessórias circenses são recolhidos, Albert e Anna trocam olhares em silêncio. As imagens são idênticas às que abrem o filme, só que as velhas carroças em pequeno cortejo se dirigem em sentido contrário. Em Noites de circo, o tema do espetáculo constitui o elemento de unidade do filme. Bergman opõe dois aspectos: de um lado, o circo face aos seus problemas; de outro, o teatro com sua superioridade. Daí ele passa a focalizar a miséria de um mundo sem amor, representado pelo casal Albert-Anna. Ele mais cheio de ternura do que de amor; ela ciumenta e ao mesmo tempo traiçoeira, acaba se comportando como uma prostituta e desencadeia todo o processo de humilhação de Albert que procura a esposa para tentar uma reconciliação. Esta seqüência, uma das mais admiráveis do filme, é alternada com a cena de sedução de Anna por Franz. Assim, com a recusa de Agda e a traição de Anna, Albert é duplamente humilhado. Mas, além de um estudo implacável sobre a humilhação humana, Noites de circo eleva-se ao plano da indagação filosófica e moral ao abordar o drama desesperado de dois seres que negligenciam seu amor para atender a apelos da falsa felicidade, tornando-se assim uma cruel meditação sobre o sentido da vida. A antológica seqüência do flash back da mulher do palhaço, exibindo-se nua para os soldados, é tratada em termos surrealistas, imagens esbranquiçádas e sem palavras, canhões fálicos, música fúnebre, e abre todo o sentido cíclico da história e volta-nos imediatamente à memória, quando a situação se repete com Albert, em circunstâncias diferentes na aparência, mas idênticas na essência. A personagem de Frost — a contrafigura do proprietário do circo — é a mais impressionante do filme: ele é reduzido a uma máscara de sofrimento, a máscara ao mesmo tempo trágica e cômica que ele carregará por toda a sua vida, mesmo porque no filme ele não aparece uma única cena sem maquilagem. 191


O medo da morte, que frustra o suicídio de Albert, vai de encontro ao sonho que Frost conta no final; que nada mais é do que uma outra forma de fugir da vida quando não se pode mais tolerála: "Ouvi minha mulher me dizer: 'pobre Frost, você parece cansado e triste, venha descansar um pouco. Você será pequeno como um feto e dormirá no meu ventre'. Fiz como ela disse, entrei no seu ventre e dormi como uma criança. Tornei-me cada vez menor, e desapareci". Um circo miserável, todo esburacado, com seus artistas em decadência, é o cenário onde Bergman concentra sua tragédia — "o menor espetáculo da terra" — como bem frisou o crítico uruguaio Homero Alsina Thevenet, fazendo uma ironia com o grandioso filme de Cecil B. De Mille, que na época enchia as telas dos cinemas. NOITES DE CIRCO (Gycklarnas afton) — 1953 — Produção: Rune Waldekranz para a Sandrew Film. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist e Hilding Lindstron. Música: Karl-Birger Blomdahl. Cenografia: Bibi Lindstron. Montagem: Carl-Olof Skeppested. Outros nomes do elenco não mencionados na crítica: Erik Strandmark, Curt Lowgren, Vanjek Hedberg.

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Uma lição de amor Prenunciado pelo terceiro episódio de Quando as mulheres esperam, este filme preparava o admirável Sorrisos de uma noite de amor. O prólogo mostrava personagens do século XVIII dançando numa caixa de música: uma condessa hesitando graciosamente entre dois marqueses. A seguir somos introduzidos no consultório do Dr. David Emerman (Gunnar Bjornstrand), ginecologista. Ele está rompendo com sua amante, Suzanne (Yvonne Lombard), uma mulher morena e sensual. Chama seu motorista, entra em seu carro, e, olhando através do vidro, começa a recordar como começou seu caso com Suzanne. Voltando ao presente, comenta com seu motorista sobre a criação do homem, da mulher e da natureza de Deus. Olhando novamente através do vidro, agora molhado pela chuva, lembra mais um episódio com Suzanne: eles estão num pequeno iate e conversam sobre o amor. De novo a cena volta ao presente e o carro pára diante da estação. O médico diz para o motorista que vai a Copenhague e toma o trem. David entra numa cabine já ocupada por um homem de má aparência, um casal de velhos e uma bela mulher loura. David assenta ao seu lado, mas a mulher não demora a sair. O homem, então, aposta com David que ele a abraçará antes da próxima parada. David se diverte com essa aposta. Mas logo, deixado só, ele folheia um álbum de fotografias. Os retratos são de seus filhos. Ele coloca os óculos e mergulha na reflexão. Seu rosto tremula sobre o vidro da janela do trem... E ele começa a lembrar passagens com sua família. O médico ainda está olhando as fotos, quando a porta da cabine se abre violentamente: é a mulher loura perseguida pelo homem de má aparência. Ela parece furiosa, e o homem parece confuso. Ele pega sua bagagem, entrega a David o dinheiro apostado e sai. David e a mulher começam, então, a conversar como se já se conhecessem, e pouco a pouco ficamos sabendo que ela é Marianne (Eva Dahlbeck), a esposa de David. Deixando-a só, David vai até o carrorestaurante onde está o homem de má aparência e aposta com ele que abraçará a mulher antes da próxima parada. 193


Só, Marianne pensa. Seu rosto é triste e preocupado. Começa a relembrar o momento em que surpreendeu o marido e a rival em flagrante. Na seqüência seguinte, David está lá, ao seu lado, oferecendo-lhe um cigarro. Conversam, e Marianne fala de Carl-Adam, o amigo comum do casal, dando a entender que ela vai se casar com ele. Continuam conversando à medida que David vai avançando, até abraçá-la. Esta situação os leva a recordar outra: um jantar do casal com um pastor e Carl-Adam. O trem apita: a ação volta ao presente, e Carl-Adam (Ake Gromberg) recebe-os em Copenhague. O triângulo amoroso vai a um cabaré, onde uma prostituta assedia o médico, e Marianne sente ciúmes, terminando tudo num tumulto. O casal volta para o hotel, entram num luxuoso quarto, olham um para o outro, enquanto a porta se fecha atrás deles. Aparece um menino, carregando um arco e flecha. Ele entra no quarto sorrindo. No epílogo, a caixa de música volta a funcionar, os dançarinos em miniatura representam as mesmas figuras reais. Na sua crítica, no extinto Correio da Manhã, Moniz Vianna assinalava o seguinte: "Assim, Uma lição de amor — obra menor na carreira do cineasta, mas fascinante e um show de bom gosto, audácia e inteligência — vem a ser o prolongamento de um dos três episódios, o do elevador enguiçado, de Quando as mulheres esperam. E com os mesmos protagonistas, Gunnar Bjornstrand e Eva Dahlbeck, novamente marido e mulher, e ainda insatisfeitos. Naquele filme, o desarranjo do elevador propiciava ao industrial e à mulher, que ele não notava ser ainda bonita e jovem para o amor, uma nova chance. Em Uma lição de amor, também o ginecologista descobre, antes que seja tarde — mas a luta já é necessária e, aliás, valorizará a reconquista —, a necessidade de ser melhor marido e enfrenta, capaz de qualquer coisa, o problema. Isso, no método, pode ser igual ao que reaproximou Gary Grant e Irene Dunne — o happy end, à parte o símbolo de cupido, é o mesmo também (ele se refere ao filme de Leo McCarey, Cupido é moleque teimoso). Mas o trajeto não se faz sem paradas no terreno ético, ou filosófico, onde o problema da morte (e isso seria uma arbitrariedade numa comédia convencional) assoma à discussão e onde a moral burguesa é satirizada no que concerne à infidelidade conjugai, um de seus 194 pontos-chave. A elegância não obriga, naturalmente, ao banimento do erotismo; a pornografia, entretanto, nunca consegue insinuar-se na narrativa, porque a classe não deixa uma fresta e só o cinismo (qualidade bergmaniana) a atravessa". Walter Hugo Khoury, num texto intitulado "Mostra do cinema sueco", observava o seguinte com relação a Uma lição de amor: "... toda a história é contada em flash backs anacrônicos, e a maior parte da ação passa-se na cabine do trem, a exemplo de Sede de paixões, focalizando um drama semelhante, visto desta vez por olhos mais calmos e compreensivos. Quem está familiarizado com a estrutura dramático-formal de Bergman sente que a fita está a um passo da grandeza trágica, e que bastaria uma mudança de tom para que tivéssemos um novo Juventude ou uma angustiada e desesperada repetição de Sede de paixões. Não se pense que haja algum constrangimento da parte do realizador, porém Bergman é um comediógrafo nato, sua versatilidade e sua força encontram plena expansão nessa brilhante comédia sobre a reconciliação de um casal de meia-idade; é a esfusiante atmosfera de Sorrisos de uma noite de amor, onde se desenvolvem paralelamente quatro tramas amorosas: líricas, sensuais e amargas a um só tempo". Resta ainda anotar, depois dessas duas opiniões, que a concepção de amor para Bergman é ainda, e sobretudo, o desejo. A mulher do médico acusa-o de não acreditar que ela foi a sua melhor amante. Brincadeira conjugai, certo, e magistralmente conduzida, mas brincadeira marcada pela tristeza e pela amargura. Se o casal se reconcilia, é fisicamente, sobre um leito de hotel, depois de sentir voltar o desejo na evocação dos anos passados e animados pelo álcool. Seu fracasso profundo, nós o sentimos plenamente na revolta da filha, Nix (Harriet Andersson aos 22 anos de idade, completamente deslocada no papel de uma menina de 14), traumatizada pela separação dos pais. No mais é notar, em Uma lição de amor, influências não só das antigas comédias mudas de Mauritz Stiller (o tipo vamp da amante interpretada por Yvonne Lombard, o amo-ralismo de Erotikon), mas também dos filmes americanos de Ernst Lubitsch (o mundo frívolo, os diálogos picantes, o símbolo do cupido, as portas que se fecham). Como aquele realizador alemão, Bergman começava a transformar tudo o que tocava em ouro: o cinema, nas


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suas mãos, tornava-se um instrumento de precisão que ele usava com uma felicidade de expressão sem igual. A ação ia crescendo de jlash back em flash back, forma que misturava intimamente a realidade do passado e a realidade do presente, em direção ao desfecho e um toque de humor raro. As marionetes do século XVIII se assemelham aos seres humanos do nosso século. UMA LIÇÃO DE AMOR (En lektion i karlek) — 1954 _ Produção: Allan Ekelund para Svensk Filmindustri. Roteiro- I B Fotografia: Martin Bodin. Música: Dag Wiren. Montagem: Oscar Rosander. Outros intérpretes não mencionados na crítica: Olof Wimmerstrand, Bngitte Reiner, Renée Bjorling, John Elfstron, Dagmar Ebbssen, Helga Hagerman, Gosta Pruzelius, Sigge Furst, Carl Strom, Arne Líndblad, Torsten Lilliecrona, Yvonne Brosset.

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Sonhos de mulheres O filme tem uma nítida construção teatral: uma seqüência num estúdio de fotografia introduz rapidamente e sem precauções os personagens. Depois, em Gotenborg, desenvolvem-se os acontecimentos centrais. E finalmente voltamos a uma rápida seqüência final, no mesmo cenário do início. A história passa-se num intervalo de um pouco mais de 24 horas, o tempo de uma viagem. Suzanne Frank (Eva Dahlbeck), a dona de uma agência de fotografia de modas, mulher independente, diz para a jovem Doris (Harriet Andersson), sua modelo, que elas vão viajar juntas para Gotenborg para fotografar uma coleção. Cochicha-se no estúdio que ela tem um amante casado naquela cidade. Enquanto isso, Doris briga com Palie (Sven Lindberg) num restaurante. No trem, Suzanne acha que vai reencontrar seu amante. E no hotel, em Gotenborg, ela hesita em telefonar-lhe. Toma um táxi e vai até a sua casa, mas Marta Lobelius (Inga Landgré), a mulher de Henri, a surpreende. De qualquer maneira acaba conseguindo um encontro para a noite. Na rua, Doris sonha diante das vitrinas. Um velho senhor elegante se aproxima e lhe oferece o vestido branco suntuoso que ela contemplava. Depois, numa loja onde é conhecido por ser cônsul, ele apresenta Doris como sua sobrinha e lhe presenteia com um colar de grande valor. Na cena seguinte, Suzanne e Doris reencontram-se e conversam. Reaparece o cônsul (Gunnar Bjornstrand), que sente-se mal numa rua deserta. Doris o ajuda e o leva para casa, onde o cônsul diz que se chama Otto, fala que sua mulher é louca e aconselha Doris a partir. Ela, no entanto, fica, e eles bebem champanha. A filha do cônsul entra na sala para pedir-lhe dinheiro e os surpreende. O cônsul pede a Doris que se vá. No seu quarto de hotel, Suzanne recebe Henri Lobelius (Ulf Palme). Quando eles conversam, o telefone toca: é Marta a mulher de Henri que pede para vê-los. Depois, no quarto, ela afronta Suzanne sem ódio, mas com uma grande consciência de sua superioridade, e a faz reconhecer que seu marido não a ama. Quando sua mulher parte, Henri enche-se de vergonha e se vai. Doris reencontra Suzanne e pede perdão pela falta ao trabalho. Na cena seguinte, no estúdio, Doris recebe uma visita e Suzanne uma carta. 197


A visita é Palie com quem Doris vai reconciliar-se. A carta é de Henri que convida Suzanne para reencontrá-lo em Oslo. Sonhos de mulheres volta a falar do amor e dos problemas do casal, um dos temas favoritos do cineasta, ou o tema essencial mesmo de Bergman. É um relato paralelo de duas esperanças que se acabam. A esperança de Suzanne, ainda apaixonada por um amante que a deixou e que tenta em vão reconquistá-lo, mas se apercebe de que ele é indigno de seu amor. E a esperança de Doris, que se deixa tentar por um momento por um velho e rico senhor. É tudo. O filme se abre e se fecha sobre uma admirável seqüência muda num estúdio de fotografia: rostos em primeiro plano, o tique-taque de um relógio, estalos dos dedos de um homem muito gordo, voyeur e administrador da casa, vã e enganosa agitação que não esconde o ar patético da cena, mas revela ao contrário a invisível realidade. Todo o filme é um confronto do sonho e da realidade. Para Suzanne, a verdade fará explodir suas recordações; para Doris, ela destruirá as ilusões, alguns sonhos vagamente afagados. Dolorosas e amargas experiências: as duas mulheres voltarão magoadas dessa viagem ao país da realidade. Viagem reparadora? Não sabemos! Bergman nada afirma, nada julga, nada conclui. Mas ele atinge seu objetivo: nos fazer penetrar na solidão de duas mulheres, nos fazer sofrer com elas, para que melhor possamos compreendê-las. SONHOS DE MULHERES (Kvinnodrom) — 1955 — Produção: Rune Waldekranz para a Sandrew Films. Roteiro: I. B. Fotografia: Hilding Bladh. Cenografia: Gittan Gustafsson. Outros nomes do elenco: Naima Wifstrand, Benket Age Bentksson, Cit Gay, Ludde Gentzel, Kerstin Hedeby, Jessie Flows, Marianne Nielsen, Siv Ericks, Bengt Schott, Axel Duberg.

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Sorrisos de uma noite de amor Comédia de costumes passada na Belle Êpoque, Sorrisos,.. denuncia o gélido mecanismo de uma sociedade burguesa que ignora o amor, reduzindo-o a outros sentimentos e a outras emoções. Ambientado no seio de uma estranha família sueca, cujas relações internas já se encontram em fase adiantada de rompimento, por causa do comportamento preconceituoso e hipócrita de seu chefe, o advogado Egerman (Gunnar Bjornstrand), um dominador de pessoas que vai sendo despido de sua arrogância e falsa moralidade com o desenvolver da história. E quando a história começa, os casais estão formados segundo os caprichos do acaso e da sociedade, independente do modo de pensar e do amor. Uma tristeza profunda reina em torno de cada um deles. Entre Egerman e Anna (Ulla Jacobsson), a oposição está na idade. O advogado já passa dos 50 anos e esteve casado uma primeira vez. Esse casamento lhe deu um filho, Henrik (Bjorn Bjelvenstam), que tem a mesma idade de Anne, a sua segunda esposa. Egerman é um homem experiente e vivido, um tanto quanto ferido, egoísta e talvez cínico. Trata Anne paternalmente, e esta no limiar dos desejos amorosos só conhece a vida através de sua pureza e de sua ternura. Com o correr do filme, vamos ficar sabendo que seu casamento não foi consumado. Eles vivem juntos, mas sem se amarem e sem se desejarem. Henrik forma com a criada Petra (Harriet Anderson) o segundo casal da história. Trata-se de dois seres completamente opostos: ele, um seminarista, um teólogo neófito que gosta de se torturar meditando sobre o pecado e a virtude. Petra, ao contrário, é uma jovem que não tem problemas. Ela é toda sensualidade, conhece a eficácia de seu charme e não hesita em convidar Henrik à tentação. Desirée (Eva Dahlbeck) e Malcolm (Jarl Kulle), o terceiro casal de Sorrisos ..., constituem a incrível aliança da poesia e da antipoesia. Ela, uma mulher madura, mas ainda desejável e bela. Ele, um militar rígido, geométrico, ruidoso, sem a menor flexibilidade de corpo e muito menos de alma. A grande originalidade de toda a obra de Bergman é uma diferença profunda quanto à ótica dos personagens masculinos e 199


femininos. Ele se interessa particularmente pelas mulheres e lhes dá mais importância. Os homens são presas da ironia do cineasta que os coloca quase sempre em situações ridículas: Egerman com cami-sola de dormir e toca, seu olho preto depois da roleta russa; Henrik com seus sermões, seu piano e sua tentativa de suicídio; Malcolm e a sua caricatura machista. O que falta na galeria masculina de Sorrisos... sobra evidentemente no grupo feminino: segurança, equilíbrio, vontade de viver intensamente. A mulher conserva sempre a dignidade, mesmo se ela é traída (Charlotte, a esposa de Malcolm), derrotada no amor (Desirée), ou se sua virgindade começa a pesar (Anne). Destaque-se, entretanto, a personagem de Petra como a favorita de Bergman, pela sua simplicidade e compreensão do sentido da vida. "Se o amor é um mal" — diz ela —, "viva o mal." Um lugar especial está reservado, porém, para a mãe de Desirée — interpretada pela magistral Naima Wifstrand, uma atriz essencial no staff de Bergman. Será ela que, durante o jantar, oferecerá aos convidados uma bebida mágica, fazendo com que as coisas mudem de rumo e exploda a crise entre os casais atormentados pelo amor ou pela falta de amor. Depois daquela noite de verão, como que por encanto, então, tudo se resolve. Bergman mistura os reis, valetes e damas, reparte de novo as cartas e faz com que cada figura desse baralho amoroso encontre seu verdadeiro par. Para o advogado Egerman, a mulher certa é Desirée, porque existe realmente entre os dois o amor-afeição, o amor que resistiu à prova do tempo. Eles são ligados por uma amizade profunda e uma sólida confiança mútua os une. O amor-prisão fará com que Henrik quebre seus votos religiosos e que Anne saia de sua ingenuidade para se amarem, abandonando tudo, família, dinheiro, sacrificando uma vida de conforto e riqueza material pelo amor. Malcolm voltará para sua esposa, Charlotte (Margrit Carlquist), refazendo assim o casal que já estava legitimamente formado, ainda que os acenos de felicidade conjugai sejam bastante incertos. Finalmente Bergman concebe um casal ideal, na figura dos seres simples: a criada Petra e p cocheiro Frid (Ake Fridell), tomados pelo amor sensual e seu pleno desabrochar no meio de uma natureza amiga e cúmplice. É o último sorriso da noite de verão... 200 Em 1956, o júri do Festival de Cannes conferiu a este filme um prêmio especial, denominado "humor poético". Se fosse possível, esse mesmo júri deveria se reunir de novo, rever Sorrisos de uma noite de amor e reformular esse veredicto óbvio e de caráter conso-lativo. Afinal, a característica principal do filme é o humor, já que a poesia não é mais do que um dos elementos formais do estilo bergmaniano. Sorrisos... merecia mesmo era a Palma de Ouro (o prêmio foi dado ao documentário O mundo do silêncio, de Jacques-Yves Cousteau), e não apenas por causa de seu humor e sua poesia, mas por inúmeras outras qualidades: ironia, caricatura, romantismo, dramaticidade, suas imagens magníficas captadas pela câmera de Gunnar Fischer, e que, num artigo nos Gahiers du cinema, Jean-José Richer encontrou a expressão exata para defini-las: "... diríamos um filme iluminado pela lua". Não há dúvida, Sorrisos de uma noite de amor é uma obra-prima absoluta e inconfundível, um filme que se mostra à frente de sua época na abordagem de um tema que sempre existiu, mas que nunca foi tão vivenciado e estudado como agora, nesses tempos de transição: o relacionamento homem-mulher dentro de uma sociedade que até então só aceitava a regra do jogo quando esta determinava a posse masculina e a submissão feminina, jamais a igualdade de direitos. Mas trocando os casais, misturando os personagens e propondo outras regras para o mesmo jogo, Bergman quer provar que a sociedade é cega e não pode ver a realidade profunda da vida: o amor. SORRISOS DE UMA NOITE DE AMOR (Sommarnattens leende) — 1955 — Produção: Allan Ekelund para Svensk Filmindustri. Roteiro: I. B. Fotografia: Gunnar Fischer. Música: Erik Nordgren. Cenografia: P. A. Lundgren. Montagem: Oscar Rosander. Outros intérpretes não citados na crítica: Julian Kindahl, Gull Natorp, Birgitta Valberg, Bibi Andersson.

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O sétimo selo Este filme sucedeu imediatamente, na carreira de Ingmar Bergman, a Sorrisos de uma noite de amor, a obra que o consagrou na Europa, e novamente o cineasta sueco foi injustiçado em Cannes, quando a Palma de Ouro do Festival de 1957 foi dada a Sublime tentação, de William Wyler, cabendo a O sétimo selo o prêmio especial do júri exasecquo com Kanal, de Andrzej Wajda). Inacreditavelmente a fita só foi lançada no Brasil em fins de 1974, permanecendo, portanto, dezoito anos inédita comercialmente em nosso país, tempo em que foi exibida algumas pouquíssimas vezes nos circuitos alternativos de cinematecas e cineclubes através de uma única e precária cópia em 16 milímetros com legendas em espanhol. Por volta de 1966, Ricardo Pinheiro Cury, que dividia conosco a coluna de cinema do jornal O Diário (hoje Jornal de Minas), teve o privilégio de assistir a O sétimo selo numa dessas espe-cialíssimas sessões em que a fita foi mostrada, e num artigo sobre Bergman no jornal acima citado dava uma panorâmica sobre o filme: "O sétimo selo, transcorrido na Idade Média, representa um macabro poema onde a presença da morte, personificada aliás, é permanente. Poucas vezes houve no cinema uma criação que traduzisse com tão grande fidelidade as maiores emoções e os mínimos detalhes daquele impressionante período da História, onde pessoas eram queimadas vivas sob a acusação de feitiçaria, e a peste assolava aldeias e florestas. Além do problema metafísico que nunca deixou de aparecer em toda a sua obra, Bergman procura principalmente expressar uma mensagem de justiça, esperança e dúvida, solidamente apoiada nos personagens marcantes que sabe criar. Em Max Von Sydow e Gunnar Bjornstrand ele lança diretamente a questão de descrença e fé, tendendo para o niilismo notadamente na cena dantesca em que a suposta bruxa é devorada pela fogueira, irremediavelmente só e desamparada." — Continuava escrevendo Ricardo — "As seitas religiosas da época, formadas por homens de rosto malévolo que usavam roupas negras com capuzes, semeavam o terror na mente do povo. A procissão de penitência, da qual participam também leprosos, desenrola-se sob os impropérios e ameaças daquelas horripilantes figuras numa das seqüências mais perturbadoras do cinema. Existem também os jograis e as pobres 203


equipes de artistas ambulantes, cujas canções falavam exatamente do medo religioso que vigorava. Bergman extrai intensidade dramática até mesmo da própria cenografia, em composições de cenas excepcionalmente artísticas, como no momento em que a carroça que leva a jovem para a fogueira percorre a floresta sombria. Os cavalos se empinam e emitem guinchos assustadores, batendo furiosamente as patas nas águas e pedras dos córregos. Os personagens de O sétimo selo" — ainda dizia o texto — "estão destinados a sucumbir sob o jugo da morte, havendo esperança somente para um casal mais humano e alheio às misérias dos outros. Ao final, num quadro de rara beleza, a morte, empunhando sua foice, arrasta-os com uma corda sobre a colina, vendo-se apenas as silhuetas cambaleantes. A maldade é repudiada no trágico fim da mais cruel figura do filme que morre de peste, estertorando-se de sede, no meio da mata. Seria quase impossível destacar momentos de O sétimo selo, um filme de hegemonia total e absoluta, um dos maiores de todos os tempos, deslumbrante mescla de lirismo, tragédia e demais sentimentos que compõe a visão incrivelmente aguda e generalizada de Bergman." O entusiasmo de Ricardo seria compartilhado oito anos depois por quase todos os críticos brasileiros, quando O sétimo selo estreou comercialmente entre nós e recebeu elogios unânimes. A fita deriva de uma peça em um ato, Pintura sobre madeira, que Bergman escreveu em 1954, e segundo o cineasta a idéia básica para conceber a obra veio de recordações de sua infância: seu pai — um pastor protestante — o levava a percorrer as igrejas medievais suecas, em cujas paredes se deparou com pinturas de santos, dragões, bruxos, ou ainda a figura da Morte. — "No meu filme, o cavaleiro regressa da cruzada como, em nossos dias, um soldado volta da guerra. Na Idade Média, os homens viviam sob o terror da peste. Hoje vivem sob o terror da bomba." — Com essas palavras, Bergman quis dizer que O sétimo selo é uma alegoria sobre o nosso tempo em forma de lenda medieval. — "O tema é bastante simples" — completa o cineasta —, "o homem e sua procura eterna de Deus, tendo apenas a morte como única certeza." Trata-se de uma alegoria onde o fantástico esconde uma realidade que Bergman situa no século XIV, no momento das grandes 204 epidemias de peste que assolaram a Suécia medieval. No filme, ele coloca a questão da existência de Deus e nos dá uma fita das mais resolutamente atéias da história do cinema. A trama nos apresenta como personagem central um cavaleiro mascarado por uma tristeza infinita, egresso de uma cruzada. Foram dez anos de fadiga, de privações e a consciência da inutilidade de uma tal expedição religiosa que vem despertar-lhe uma sede de conhecimentos. Ele deseja saber, e não crer. Encontra a Morte e também a última chance de saber coisas sobre a vida. Durante uma partida de xadrez com a Morte (cena antológica), ele a interroga sobre o sentido da vida. Mas a Morte também nada sabe. Fria como uma máquina, apenas está ali para executar o seu trabalho: retirálo do mundo. Temos aí uma perfeita introdução ao "nada". Pouco a pouco, a inquietude do cavaleiro irá recair numa idéia do "nada", proferida sistematicamente pelo seu companheiro de infortúnio, o escudeiro Jons, que não crê mais em nada, nem mesmo no amor de sua mulher. Antonius Block, o cavaleiro, descobre que o fundamento da religião é o medo, o pavor. Em tom áspero, p escudeiro diz para um personagem secundário: "Se você sentir medo, corra para os braços dos padres". — Este medo existe também com a Morte que ronda todo o filme. Algumas seqüências são admiráveis, como o da procissão de flagelados — como havia citado Ricardo Pinheiro Cury —, verdadeiro ápice do filme. Destacamos também o sermão do monge que faz do medo um instrumento de fé. A religião e o medo levam à intolerância, cuja vítima é uma jovem acusada de feitiçaria e que será queimada viva. O cavaleiro interroga a bruxa, esperando encontrar Deus através do Diabo, mas no olhar da torturada não descobre nada além do medo. O que sobra, então, após esse fracasso de saber sobre a vida? Sobra a alegria do amor humano, encarnado por um casal de jovens atores feirantes e seu bebê. Em imagens extraordinárias de poesia, Bergman diviniza o amor humano. Uma manhã, nos leva pela magia à mais bela das visões: aquela da virgem e sua criança. Esta imagem surrealista é uma das mais líricas já vistas na tela. E, no entanto, com essas almas simples, o cavaleiro percebe que a verdade está 205


sobre a Terra, na felicidade terrestre a que ele esteve privado por causa de uma tola cruzada. Esta compensação lhe basta. A Morte virá, então, buscá-lo, assim como os seus companheiros de drama, em outra seqüência notável. Só o casal de artistas e o bebê são poupados. Esta riqueza de inspiração de O sétimo selo é admiravelmente servida por uma linguagem cinematográfica sem falhas, grande variedade de planos e beleza plástica das imagens. A música que alterna a canção profana com o üies irae trágico das procissões, adapta-se à mistura de estilos (surrealismo, realismo, poesia, truculência, expressionismo) que caracteriza em conjunto o próprio filme. O rosto dos atores que exprimem um sentimento e ganham dessa forma uma intensidade dramática raramente igualada: o cavaleiro Antonius Block (Max Von Sydow) é a inquieta tristeza; o escudeiro Jons (Gunnar Bjornstrand), a lucidez cética; a bruxa queimada viva (Maud Manson), o medo desesperado; a jovem atriz feirante (Bibi Andersson), o amor terrestre; o mágico Jof (Nils Poppe), a felicidade simples; e finalmente a Morte (Bengt Ekelund), a única certeza que todos podem ter na vida. O SÉTIMO SELO (Del sjunde inseglet) — 1956 — Produção: Allan Ekelund para Svensk Filmindustri. Roteiro: I. B. Fotografia: Gunnar Fischer. Música: Erik Nordgren. Montagem: Lennart Wallen. Cenografia: P. A. Lundgren. Coreografia: Else Fischer. Outros do elenco não citados acima: Inga Gill, Erik Strandmark, Gunnel Lindblom, Anders Ek, Bertil Anderberg, Gunnar Olsson, Inga Landgre (Karin, a mulher de Antonius Block). 206 o

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Morangos silvestres A história do cinema não poderia respirar sem certos filmes. Cidadão Kane, O encouraçado Potenkin, Em busca do ouro, Ouro e maldição, As vinhas da ira são órgãos essenciais que outorgam ao cinema o direito apaixonante de continuar vivendo. Essas jóias de valor inestimável são guardadas a sete chaves nas cinematecas de todo o mundo como uma prova concreta de que o cinema, antes de ser uma indústria, é uma arte. A mais sensível das artes. Morangos silvestres já está incorporado àquela galeria de filmes maiúsculos. Mas a exemplo das outras obras citadas Morangos é um filme a ser visto sempre, nos cinemas ou na memória, ilustrando idealmente um caso particularíssimo de filme que, à medida que o cinema todo evolui, se torna a cada instante melhor. Melhor porque neste momento difícil em que o sonho materialista do homem ocidental começa a desfazer-se entre a crise energética e as inquietações de ordem social e política, chega novamente o momento de se inquirir sobre a vida em profundidade. E ninguém melhor do que o maior cineasta vivo, Ingmar Bergman, que penetrou no interior do indivíduo e ali plantou sua câmera, para fazer isto, tomando como ponto básico o mais magistral de seus filmes, aquele cuja chave estaria na reconhecida dialética entre dois tempos: a velhice e a juventude; a vida que um homem poderia ter e a vida que realmente teve. Morangos silvestres é a história de uma viagem, a viagem que o velho professor Isaak Borg deve fazer de Estocolmo a Lund, de carro, para receber as homenagens e o título de Doutor Honoris causa. O filme é a história dessa viagem e, ao mesmo tempo, a história da vida do professor. Uma profunda meditação sobre os seus erros e seus acertos, em que o positivo e o negativo se encontram e acaba predominando a ambigüidade. Toda a ação do filme transcorre no espaço do dia em que o professor viaja, mas na noite anterior ele teve um pesadelo: uma rua deserta, um relógio sem ponteiros, um carro funerário que perde uma roda e deixa cair o caixão. Dentro do caixão, um cadáver, o seu próprio cadáver que o leva pela mão e tenta conduzi-lo ao caixão. Bergman corta no ponto máximo, antes que a tensão entre

208 em descenso, construindo uma das mais geniais seqüências oníricas da história do cinema. O sonho acaba e começa a realidade, começa a viagem, e no caminho a idéia da morte cruza-se com a idéia da vida. Para os que vão morrer, importa saber como foi a vida, diz a tradição cristã. E Bergman, filho de um pastor protestante, não se liberta dessa idéia. A vida do professor, naturalmente, não foi feliz. A memória leva-nos em busca do passado, dos amores fracassados: o amor por Sara, a prima que preferiu casar-se com o irmão de Isaak, Sigfrid; e o amor pela esposa que não soube ser fiel. Como pano de fundo, um egoísmo que raramente se abriu para deixar passar um sentimento de compaixão. No entanto, a vida do professor foi um êxito social, pois os colegas vão condecorá-lo. Na estrada há dois encontros significativos: um, com o casal desunido que se odeia mas não quer separar-se, o que faz Isaak Borg lembrar-se de seu próprio casamento; o outro é dos três jovens em férias que tomam carona no carro do professor. A moça também chama-se Sara e namora dois rapazes, todos projeções dos personagens da juventude de Isaak, especialmente os dois rapazes que discutem se Deus existe e personificam as duas tendências interiores do professor. A visita à mãe traz à tona outra fixação de Bergman. "Eu tinha a impressão de que certas crianças nasciam de úteros frios. Acho que é um pensamento infame, pequenos fetos que tremem de frio." Daí a referência da velha a um certo frio que ela sente na região do ventre. Assim Bergman explica o egoísmo e a indiferença de que Isaak é acusado por parentes. Uma posição egocêntrica e alie-nante que não impede que lhe vejam, no campo da ciência, como um grande amigo da humanidade. Esta frieza adquire um caráter hereditário, comunicando-se através de várias gerações. Tanto a velha (que tem 96 anos), quanto Isaak (78 anos), ou seu filho Ewald (48 anos) se queixam de estarem vivos. E, em Ewald, a recusa da vida chega a lhe tirar o desejo de gerar um filho. Ao contrário, Marianne, a nora do professor, representa a própria vida em si. É uma criatura forte, firme, aberta e disponível ao amor. 209


Antes da cerimônia dos 50 anos de doutorado de Isaak Borg, ainda um último sonho revelador. O professor adormece no carro e sonha, é lançado em uma experiência tão fantástica quanto a própria aventura de viver. Isaak é submetido a um exame: não consegue ver o que há no microscópio (como descobrir o mundo?). Também não sabe pedir que o perdoem, tampouco decifrar uma mensagem escrita num quadro-negro, ou diagnosticar a morte. É a própria competência profissional de Isaak que é colocada em dúvida. Em seguida, é levado para fora e presencia a posse de sua mulher por outro homem. Atônito, pergunta ao seu interlocutor: "Qual é o castigo?" — Resposta: "O de hábito, a solidão". Todas as homenagens, sobretudo as que recebeu na velhice, têm algo de fúnebre. Assim, a seqüência em que Isaak recebe o título de Doutor Honoris causa tem o aspecto de um funeral. Logo após, ele volta para casa, e na despedida dos três jovens a quem deu carona o velho professor vê apagar sua última chama de vida. E pede inutilmente que mandem notícias. Depois adormece, sonha mais uma vez com Sara, a Sara de seus tempos de jovem, imagem permanentemente moça e pura. Ela lhe mostra um espelho e pede que ele se olhe. Ê o apelo da realidade: "Veja como está velho". E o filme acaba com um grande plano de Isaak adormecendo (morrendo). Em Morangos silvestres, Bergman atinge a síntese ideal da narrativa cinematográfica. Suas imagens são sempre sugestivas e, em algumas ocasiões, tocam o mistério. O homem salva-se dos símbolos e fica para o espectador uma inquietação de ordem metafísica que não é fácil suportar. A síntese de Bergman é de caráter expressivo, de caráter artístico. As tensões produzem um equilíbrio que é o filme acabado, feito, pronto, mas na ordem das idéias, mais do que a síntese, o que há é um mostruário onde cada espectador pode escolher à vontade. Nenhum cinema como o de Bergman se presta a tão variadas interpretações. E dentro da obra bergmaniana, Morangos silvestres é o filme que se apresenta com o sentido mais amplo e mais livre, e por isso mesmo ainda ocupa nela o lugar máximo. 210 MORANGOS SILVESTRES (Smultronstallet) — 1957 — Produção: Allan Ekelund para Svensk Filmindustri. Roteiro: I. B. Fotografia: Gunnar Fischer. Cenografia: Gitan Gustavsson. Música: Erik Nordgren. Montagem: Oscar Rosander. Elenco: Victor Sjostrom (Dr. Isaak Borg), Ingrid Thulin (Marianne, a nora), Bibi Andersson (Sara e a jovem caronista), Gunnar Bjornstrand (Ewald, o filho), Naima Wifstrand (a mãe), Folke Sundquist, Bjorn Bjelvenstan, Julian Kindhal. Gunnar Broston, Gertrud Fridh, Ake Fridell, Max Von Sydow, Sif Ruud, Ingve Nordwall, Per Sjostrand, Gio Petré, Gunnel Lindblom, Maud Hansson, Lena Bergman, Monika Ehrling, Goran Lundquist, Eva Morée, Gunnar Olsson, Josef Norman, Anne Maric Wiman. Victor Sjostrom e Ingrid Thulin em Morangos silvestres.

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No limiar da vida Realizado em 1957, lançado no Brasil em 1963, este filme obteve um sucesso considerável no Festival de Cannes de 1958. Mas o júri se negou mais uma vez a outorgar o prêmio principal ao filme de Bergman, dando a "Palma de Ouro" para a fita soviética de Mikail Kalatozov, Quando voam as cegonhas. Compensou, no entanto, a injustiça, premiando Bergman como melhor diretor e considerando Ingrid Thulin, Bibi Andersson e Eva Dahlbeck como as melhores atrizes do festival, numa conclusão óbvia. "Vinte e quatro horas na vida de três mulheres numa maternidade luminosa, limpa, bem equipada, modelo de realização social sueca" — resumem Béranger e Guyon. "A mulher que entra primeiro na clínica, Cecília (Ingrid), perde acidentalmente, no terceiro mês de gravidez, a criança. Seu casamento é uma união sem amor, e Cecília considera que ela e seu marido são responsáveis pelo infortúnio, porque no fundo eles não desejavam mesmo a criança. As duas companheiras de quarto de Cecília são Stina (Eva), esposa feliz prestes a se tornar uma mãe feliz, e Hjordis (Bibi), jovem emancipada que prefere abortar a dar à luz um filho. É sobre essa terceira mulher que se concentra pouco a pouco o interesse do filme. E depois que Stina perde seu bebê, que nasce morto, ela deixa a maternidade decidida a assumir seu papel de mãe." O filme é feito, quase por inteiro, de planos de rostos e a narrativa se desenrola entre as quatro paredes de um quarto de hospital. A dor é colocada no centro do filme, a dor do parto. As três personagens femininas são, em grande parte, definidas em relação à maneira de elas enfrentarem a dor e, paralelamente, desde a primeira seqüência, em comparação com a covardia e a fraqueza de um dos personagens masculinos, reveladas pela indiferença ao que sua mulher deverá suportar. Ao lado do problema da maternidade, Bergman desenvolve o tema do casamento, dando-lhe uma dimensão metafísica. A vida, assim como a morte, não surgem a não ser acompanhadas do sofrimento. Eis o que preocupa Bergman, e eis o que ele deseja demonstrar de novo em No limiar da vida. Essas mesmas preocupações demonstrativas nutrem também a construção dramática da obra. Sem falar dos personagens masculinos, sempre colocados num plano inferior por Bergman (mas raramente 212 também tão "pálidos" como nesse filme), podemos observar com que cuidado ele se esforça para ilustrar a ligação, para ele necessária, entre a morte e a vida, a felicidade e a adversidade, confundidas numa mesma fatalidade. A única de suas três heroínas que deseja ardentemente um filho, será precisamente a que dará à luz uma criança morta. E, diga-se de passagem, essas cenas admiravelmente interpretadas por Eva Dahlbeck são desconcertantes. Entretanto, como Bergman é um "pessimista-otimista", e como ele gosta de estabelecer seus motivos de viver sobre uma concepção desesperada da vida, seu filme ilustra não somente o caminho que conduz da vida para a morte, mas também o caminho inverso. E nova demonstração — a jovem mulher até então hostil ao nascimento de seu bebê, mas agora iluminada pelo exemplo de suas duas companheiras, compreende enfim que esse nascimento deve ser aceito ou mesmo desejado. Em No limiar da vida, em efeito, observa-se que raramente nos é dada a oportunidade de penetrar ao mesmo tempo com pudor e intimidade num universo feminino, tanto sobre o plano físico como sobre o plano psicológico. Naquela clínica de paredes brancas e divisórias de vidro, Bergman exclui toda música de acompanhamento e cobre seu filme só de ruídos reais. Os rostos lisos e indiferentes dos homens contrastam com os das mulheres (em branco), com os traços inquietos ou tranqüilos, sempre profundamente verdadeiros e humanos. Entre as quatro paredes do quarto da maternidade, em plena luz ou na obscurídade, a câmera procura ligações sutis, acompanha os olhares de leito para leito, sublinha os gestos mais secretos. Nada é dito, ou quase tudo é sugerido. Admiráveis imagens dessas mulheres que esperam num quarto de hospital, admiráveis de simplicidade e de naturalidade, o apogeu do conhecimento visual. NO LIMIAR DA VIDA (Nara livet) — 1957 — Produção: Nordisk Tonefilm. Roteiro: I- B. e Ulla Isaksson, baseado no livro desta, Dodens faster. Fotografia: Max Wilen. Cenografia: Bibi Lindstron. Montagem: KarlOlav Skeppsted. Som: Lennart Svenson. Outros intérpretes não mencionados no decorrer da crítica: Barbro Hiort Of Ornas, Ann-Marie Gyllenspetz, Max Von Sydow, Gunnar Sjoberg, Erland Josephsson, Inga Landgré, Inga Gill, Meud Elfsio, Margaretta Krook, Lars Lind, Sisi Kaiser, Monika Ekberg, Gun Jonsson, Gunnar Nielsen, Kristina Adolphsson.


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O rosto Em 1846, uma companhia de circo especializada em espetáculos de magia e ilusionismo, um grupo ambulante de prestidigitadores que apresenta suas demonstrações de magnetismo animal, com truques e projeções de lanterna mágica, dirige-se para Estocolmo. Da companhia fazem parte o diretor Tubal, o hipnotizador Vogler, seu discípulo Amam, que é na verdade sua mulher Manda disfarçada de rapaz, c a avó, uma velha bruxa. À entrada de Estocolmo, a polícia detém a companhia, que é levada para a casa do cônsul Egerman, onde este, o chefe de polícia Starbeck e o médico Dr. Vergerus, cético e cínico, pretendem avaliar o espetáculo. O médico verifica que a barba de Vogler é postiça e submete o grupo a um exame humilhante. A companhia fica retida em casa do cônsul Egerman para uma nova sessão no dia seguinte. Vogler e Amam retiram-se, mas os elementos restantes travam conhecimento com o pessoal da casa. A noite passa, terrível, e no dia seguinte os artistas vão prestar seus depoimentos. Vogler hipnotiza a mulher do chefe de polícia, obrigando-a a confidenciar sua triste vida conjugai. Depois, hipnotiza um criado que, desesperado, "mata" Vogler. Quando o Dr. Vergerus está no meio da autópsia, aparece Vogler. O cadáver autopsiado era o ator Spegel que a troupe encontrara moribundo na floresta, em quem no fim, morto, vestiram as roupas de Vogler. Humilhado e vencido pelo médico, o hipnotizador beneficia-se por fim de uma ordem que chega do Palácio Real de Estocolmo: o rei da Suécia deseja assistir a um espetáculo do grupo. Os jurados do Festival de Veneza de 1959 imitaram seus colegas de Cannes, dando a este vigésimo filme de Bergman um prêmio especial (leia-se de consolo) no lugar do "Leão de São Marcos", que acabou sendo dividido entre dois filmes italianos de qualidade inferior a O rosto. De crápula a herói, de Roberto Rossellini e A Grande Guerra, de Mario Monicelli. E, realizada em 1958, esta, que é uma das obras mais estranhas e mais difíceis de Bergman, esperou dezessete anos para ser lançada no Brasil. É um filme romântico-fantástico, repassado num expressionismo alemão sabiamente dosado e assimilado com rara intuição para o 215


ambiente nacional sueco, além de enriquecido de elementos estilísticos pessoais e próprios da escola cinematográfica nórdica. Sem ser uma sinfonia de terror como Nosferatu, nem um filme de terror clássico como Drácula, O rosto evoca Edgar Allan Poe na extraordinária história que narra o duelo de dois homens tão diferentes entre si e que, na verdade, constituem duas faces da mesma pessoa. Vogler e Vergerus, que se chocam e se digladiam, representando a posição espiritualista e o raciocínio científico, encontram inspiração direta na luta de William Wilson com sua própria sombra. O ilusionista Vogler (Max Von Sydow); o médico Vergerus (Gunnar Bjomstrand); Manda, a mulher que se disfarça de rapaz (Ingrid Thulin); uma velha que mais parece uma bruxa (Naima Wifstrand); Tubal, o comparsa (Ake Fiedell); Simson, o cocheiro de Vogler (Lara Ekborg); um ator moribundo chamado "Espelho" (Bengt Ekelund); um cônsul nervoso (Erland Josephsson); um policial cético (Toivo Pawlo), eis os personagens desse jogo metafísico. Qual é o verdadeiro rosto de cada um? É um rosto sem máscara, despojado da maquilagem dos chalatões e livre do disfarce da mentira. O verdadeiro rosto é aquele que coloca em evidência o revés ou a humilhação (termo caro a Bergman), ou aquele que aceita a vida sem formular questões, como a criada interpretada por Bibi Andersson. Descoberta a verdade dos rostos, Bergman termina o seu filme na mais absoluta ambigüidade, na mais cínica ironia: o artista angustiado, perseguido e humilhado pela sociedade terá um prêmio, pois o rei deseja apreciá-lo. O rosto é também uma meditação sobre o artista no mundo moderno. Segundo Bergman, "a arte é insignificante em nossa época, pois não tem mais o poder de influenciar pessoas". Seu protagonista nesse filme é um fabricante de ilusões que explora truques de mesmerismos para trapacear com pessoas, da mesma maneira que o cinema é para Bergman uma lanterna mágica capaz de corporificar fantasias e realidades com uma ambigüidade desconcertante. Seus filmes têm, por isso, mil e uma facetas, e quem quiser achar outras interpretações para O rosto é só olhar para a tela. Aliás, não faltou quem descobrisse na fita intenções e simbologias, como se a odisséia do ilusionista Vogler fosse uma evocação deliberada da Paixão de Cristo. Os filmes de Bergman estão sujeitos a muitas 216 interpretações, mas essas desmoronam-se quando não passam de divagações marginais. A história romântico-fantástica de O rosto tem um final de humor negro, acaba com o triunfo do ilusionista, ou seja, o do diretor sobre o público. O ROSTO (Ansiktei) — 1958 — Produção: Alan Ekelund e Carl Anders para a Svensk Filmindustri. Roteiro: I. B. Fotografia: Gunnar Fischer. Música: Erik Nordgren. Montagem: Oscar Rosander. Cenografia: P. A. Lundgren. Intérpretes não citados: Gertrud Fridh, Sif Ruud, Oscar Ljung, Ulla Sjoeblon, Axel Duberg, Birgitta Pettersson.

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A fonte da donzela Com este filme, Bergman volta à Idade Média, fascinado, como em O sétimo selo, por seus contrastes e seus excessos. Para escrever o roteiro Ulla Isaksson se serviu de um manuscrito do século XV que narrava uma lenda, na qual uma fonte brota no local onde jaz o corpo da loura Karin, violentada e morta por pastores. Ela cavalgava alegremente em direção à igreja para acender velas. Na tarde do mesmo dia, os dois pastores e o menino vão dar na fazenda do pai de Karin e pedem para passar a noite. Mais tarde, eles proporão à mãe a venda do vestido bordado e ensangüentado que tiraram do cadáver. Juntos, o pai e a mãe planejam a vingança. O homem se introduz silenciosamente no aposento onde dormem os assassinos. Ao amanhecer, ele se lança contra os dois primeiros e os mata selva-gemente, depois tira com extrema violência a vida do terceiro, um menino. Uma curiosa procissão se encaminha para o local do assassinato. Correndo e tropeçando, toda a criadagem atravessa a floresta, conduzida por Kateri, a irmã de criação de Karin, a maléfica, a paga, a ciumenta, aquela que, grávida de uma criança ilegítima, desejou a morte da pura donzela, chamando sobre ela a vingança do deus Odin, e, testemunha invisível e trêmula, assiste ao drama sem intervir. Diante do corpo inerte da filha, o pai grita a Deus que não compreende..., mas ele não procurará saber nada sobre o incompreensível e pedirá perdão pelo crime, que, na sua dor, ele cometeu. De suas próprias mãos, vermelhas de sangue dos assassinos, no mesmo local onde sua filha teve uma morte cruel, ele construirá um santuário. É então que a fonte brota, pura e impetuosa. Nela, Kateri lava seu rosto ferido que se ilumina com uma nova candura. Raramente podem ser vistas imagens tão violentas. O estupro e a morte, depois a vingança sangrenta, permitem a Bergman traduzir sua visão de uma época onde se confrontam, sem concessão, a candura e a brutalidade, a pureza e o instinto bestial; portanto, A fonte da donzela me parece ser, com No limiar da vida, o filme mais tranqüilo de Bergman. Tranqüilo, mas não satisfeito. Se ele não faz mais as interrogações apaixonantes de O sétimo selo, isso não significa que ele chegou ao fim de sua busca e encontrou as respostas. Bergman nunca será um cineasta objetivo. Seja qual for 218 a história que ele se propõe a contar, ela sempre será um pretexto de um engajamento pessoal; ele deposita nela suas preocupações, que podem ser suas obsessões, sempre arrebatadoras. Nesse sentido, é significativo que Bergman não mais questione Deus sobre sua existência, mas sobre o que ele pretende do mundo e dos homens. O que há de novo é que ele o aceita, embora não o compreenda, e que ele se entrega à fé dolorosa de total desse pai — fé que reconhece uma sabedoria mais alta. Seguindo bem de perto os passos da lenda,. Bergman a enriquece de significações simbólicas para fazer uma espécie de mito da "graça" e da "fé". Criança caprichosa e mimada, Karin traz, entretanto, em seu rosto a luz da inocência, enquanto Kateri se move na sombra. Mas Bergman ultrapassa o nível dessa correspondência elementar. Ê a intercessão de Karin ou a fé de seu pai que consegue abrir o coração fechado de Kateri? Os dois, sem dúvida, com uma graça misteriosa cuja fonte simboliza seu jorro para a vida. Uma vez mais, Bergman faz o milagre de nos envolver pela beleza de suas imagens arrebatadas num movimento rápido e tumultuoso como o de uma torrente. Mas se a plasticidade das atitudes, a perfeição da iluminação, a habilidade da montagem exercem um real poder de fascinação, Bergman as utiliza para fins que não são antes de tudo estéticos. Ele faz uso desse lirismo apaixonante para nos tornar quase perceptível a terrível e generosa presença de Deus. A FONTE DA DONZELA (Jungfrukallen) — 1959 — Produção: Alan Ekelund para Svensk Filmindustri. Roteiro: Ulla Isaksson baseado numa lenda do século XV. Fotografia: Sven Nykvist. Cenografia: P. A. Lundgren. Música: Erik Nordgren. Elenco: Max Von Sydow (Messire Tore, o pai), Birgitta Pettersson (Karin), Tore Isedal (primeiro pastor), Axel Duberg (segundo pastor), Gunnel Lindblon (Kateri), Birgitta Valberg (a mãe). Mais: Gudrum Brost, Ove Orath, Allan Edwell, Tor Borong, Leif Forstenberg, Axel Stangus e Oscar Ljung.

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O olho do diabo "Na misteriosa República do Inferno, seu chefe e senhor, o Diabo ou Satã (Stig Jarrel), olha num espelho para ver um terçol que o incomoda. Seus conselheiros e médicos descobrem rapidamente que a causa do mal é terrestre: uma donzela conserva a sua virgindade. Um só remédio existe para a cura: o defloramento. Com essa missão, Don Juan (Jarl Kulle), célebre no seu tempo por muitas conquistas femininas, é enviado à Terra. Acompanhado do seu fiel criado Pablo (Sture Logerwall) e de um diabo-polícia (Georg Funk-quist), encarregado de vigiá-los e de informar ao diabo-chefe sobre suas atividades nesse mundo dos mortais. Don Juan chega à Terra e encontra o pastor (Nils Poppe), pai da virtuosa Britt Marie (Bibi Andersson). O encontro acontece numa estrada onde o automóvel do pastor está enguiçado, mas Don Juan ajuda a fazêlo andar. Foi enviado por Deus! — diz-lhe o bom pastor. E convida Don Juan e o criado para visitar sua casa e conhecer a família. O diabo-polícia também entra transformado em gato preto. Estabelece-se a luta: o pecado e a virtude, o bem e o mal, o céu e o inferno. Don Juan ataca a donzela, enquanto Pablo procura satisfazer os desejos amorosos de Renata (Gertrud Fridh), a mulher do pastor. Durante as tentativas de conquista, o legendário sedutor é que vai sendo seduzido pela donzela, disposta a se entregar a ele, mas não por paixão e sim por compaixão. No momento exato, Don Juan não se aproveita e apenas lhe dá um beijo. Portanto, Pablo triunfa, Don Juan fracassa e volta ao inferno, enquanto o gato preto é trancado num armário pelo pastor. O ator Gunnar Bjornstrand, que nos conta a história, nos faz assistir à cura do terçol no olho do Diabo, mas no dia do casamento de Britt Marie." (Resumo extraído do livro de Béranger e Guyon.) O filme nunca foi exibido no Brasil, nem mesmo em programações alternativas de cineclubes e cinematecas, e a crítica européia nãq lhe deu a importância devida, considerando-o como um filme menor, no qual Bergman admite a derrota do inferno por virtude dQ c£u. Mas houve também qs que afirmaram que nem só as grandes vitória^ é que valem, como o francês Raymond Léfevre que, na sua crítica em Image et son, n.° 148 (fevereiro de 1962), disse ter seguido com imenso prazer esta "comédia louca, com diálogos muito .220 ricos e uma direção de atores perfeita". Garante ainda Léfevre que o "agradável divertissement termina sem grande fragor, como que exorcizado por uma hábil ambigüidade que dá uma outra versão para o resultado final do corpo-a-corpo entre o céu e o inferno, depois do último suplício infringido a Don Juan: a narrativa tumultuada da perda da pureza de Britt Marie". "Quem ganhou?" — continua Léfevre. — "A questão está revestida de pouca importância, tanto o Diabo e o bom Deus são inconsistentes. Esses malignos e benévolos gênios que fazem tudo para aborrecer os homens, esses desmancha-prazeres sobrenaturais são castigado pelo orgulhoso e desprezivo desafio de Don Juan. 'Que você e ele, lá no alto, tenham bom êxito na sua vil profissão!' — grita o conquistador para Satã". "É esta uma nova etapa na evolução espiritual do mestre sueco?" — conclui Léfevre. — "Em todo caso, O olho do diabo parece estar em continuidade com A fonte da donzela, um de seus filmes mais contraditórios". O OLHO DO DIABO (Djavulens oga) — 1960 — Produção: Svensk Filmindustri. Roteiro: I. B. Fotografia: Gunnar Fischer. Música: Trecho da obra de Domênico Scarlatti. Cenografia: P. A. Lundgren. Montagem: Oscar Rosander. Outros do elenco não citados na crítica: Gunnar Sjoberg, Axel Duberg, Torsten Winge, Kristina Adolphsson, Lenn Hjortzberg,, Allan Edwall, Ragner Arvedson, Borje Lund.

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Através do espelho Inédito nos cinemas brasileiros, este filme é a primeira parte de uma trilogia na qual Bergman debate a existência de Deus. Ou é a existência do homem que Bergman procura compreender? Üm parece depender do outro. O homem da imagem de Deus e Deus da imagem do homem. É o que transparece do pensamento do cineasta que hão acredita em Deus, mas crê no divino do homem. Mais uma vez recorremos a Béranger e Guyon para resumir a história desse filme, cujo título foi tomado de São Paulo, mais exatamente da primeira carta de "Epístola aos Coríntios" (XIH, I): "Agora nos vemos como através de um espelho, obscuramente; depois nos veremos face a face". "Na primeira cena, os personagens, em número de quatro, surgem juntos da água. Eles acabam de tomar um banho, e sua aparição reveste-se de um aspecto quase cósmico. Os quatro são: uma jovem mulher, Karin (Harriet Andersson); seu pai, David (Gunnar Bjorns-trand), escritor medíocre que concorda ter fracassado em sua carreira; Martin (Max Von Sydow), médico que sabe tratar dos corpos, mas que se revela impotente para curar as neuroses (leia-se as almas); e Minos (Lars Passgard), o jovem irmão de Karin, literalmente "o pequeno" na tradução da palavra. O pai acabou de chegar da Suíça e está preocupado com sua filha que já teve crises mentais, necessitando de períodos de readaptação em clínicas especializadas. A família se reúne à mesa para jantar. Depois Karin e Minos interpretam uma pequena peça, escrita pelo adolescente, para festejar o retorno do pai. Trata-se da história de um jovem poeta que se recusa a seguir na morte uma princesa. Como em Hamlet, quando os atores representam uma alegoria para a corte do rei da Dinamarca, David, que se escondeu de suas responsabilidades ao olhar dos seus, torna-se imediatamente uma alusão de seu próprio caso. E enquanto evolui o texto, a câmera fustiga freqüentemente seu rosto, sobre o qual se desenham a fadiga, o tédio, o abatimento e as feridas. Durante a noite, enquanto Martin dorme pesadamente, Karin erra através da casa. Ela entra no escritório do pai e descobre seu diário; lê a respeito de si mesma: 'Minha filha é incurável e eu me surpreendo ao observar com curiosidade o progresso do mal'. 222 De manhã, David e seu genro vão fazer um passeio de barco. Isolados, entre o céu e a água, eles conversam sobre a existência de Deus, sobre a doença de Karin, e o escritor confessa que, quando estava na Suíça, havia tentado suicidar-se, mas sentiu medo e se acovardou. Enquanto isso, Karin leva Minos para um navio abandonado e viola literalmente seu irmão nesse cenário insólito e curioso, instigando-o à prática do incesto. De volta do passeio de barco, David e Martin telefonam para uma clínica para que venham imediatamente transportar Karin, em helicóptero. Pouco depois, lá está ele no céu. E Karin, prostrada, murmura: 'Eu vi Deus... Ele veio me buscar. Ele é uma aranha. Desceu sobre mim e queria me penetrar, mas eu me defendi'. Martin também vai no helicóptero que transporta a pobre demente. David fica com seu filho e lhe diz: 'Estou convencido de que o amor existe nesse pequeno mundo... O que não sei é se o amor prova a existência de Deus, ou se o amor é Deus em si mesmo. Mas acho que Karin vai ser protegida por Deus, porque nós a amamos'. E Minos diz: 'Meu pai, enfim, falou comigo!'." Passaremos agora à excelente análise do filme feita por André Duverger em Telé-ciné, n.° 120 (março de 1965). Sob o título de "O Sofrimento Revelador", o crítico escreveu: "Podemos falar de atitude moral diante do respeito com o qual Bergman descreve a loucura. Esta se encontra no centro do drama como se estivesse testemunhando as duas longas mises-en-scêne de demência a que nós assistimos; mas nunca ela é considerada do ponto de vista científico-médico. Nenhum de seus movimentos de câmera ou nenhum de seus enquadramentos que procuram fornecer uma interpretação, uma tentativa de explicação, nos dão a ilusão de compreender a loucura. Somos conduzidos pelo exterior, diante de um mistério singular, na situação do marido que observa a doente pela porta entreaberta. É considerável que as indicações que nos são dadas nos ajudam um pouco a compreender a demência, mas nós nos esclarecemos em relação ao grupo familiar: loucura da mãe, ausência do pai, fraqueza do marido, cumplicidade com o. irmão. A doença trama. Nós não iremos examinar um caso, mas observar seres humanos. 223


KARIN — A loucura de Karin tem um lado espetacular: delírio místico e conduta sexual aberrante. A jovem mulher nos faz ver mais longe, quando ela se declara esquartejada entre dois mundos. Nós evocamos aqui a meditação de um outro grande cineasta. Suas preocupações morais e espirituais nos levam a ver na loucura um símbolo ou mesmo uma exigência de nossa época. Há dez anos Rossellini declarava: 'Há duas tendências no homem: aquela que vai em direção ao imaginário. E existe uma tendência hoje em suprimir brutalmente a segunda... Esquecendo a segunda tendência, a da imaginação, tendemos a matar em nós todo sentimento humano, criando o homem-robô, o qual não deve pensar mais que num só sentido, para atingir o concreto'. Ê essa tentativa inumana que é denunciada abertamente, violentamente em Europa 51. Ao lado de um marido mais velho, de comportamento paternal, bem mais do que conjugai, Karin manifesta uma nítida regressão à infância. À procura de um ponto de apoio, ela se volta principalmente para seu pai. DAVI D — Seu equilíbrio é simbolizado pela posição de seu carro na tentativa de suicídio: dependurado à beira do precipício. Poucas indicações sobre sua vida sentimental: depois da loucura de sua mulher, uma rápida alusão a uma ligação de compensação. Na família, ele é ausente e as crianças têm uma psicologia de órfãos. Ele não fala com seu filho. Monologa sua existência mais do que a vive. Sua fracassada tentativa de suicídio é que o leva a descobrir o lugar que ocupa o pai numa família. Sua simples presença começa a' adquirir um valor. MARTIN — Ao contrário de David, é o homem equilibrado do filme. Por sua formação médica, ele se coloca a serviço dos outros. Dos quatro personagens, é ó mais pálido; sem dúvida, porque Bergman preferiu colocar em relevo os limites dessa forma de equilíbrio. Ele é o marido-cão fiel e incapaz de ser o confidente de que Karin tem necessidade. Ê a Minos que ela relata suas visões e a seu pai que ela confessa o incesto. A escolha de Gunnar Bjorns-trand e de Max Von Sydow para interpretar os dois homens do filme lhe traz um sentido suplementar. Ê duvidoso que Bergman se deixou guiar por intenções simbólicas, mas nossa memória dá a esses atores uma certa independência em relação ao diretor. Na nossa 224 lembrança, de O sétimo selo a O rosto, eles dançam uma espécie de bale em que trocam de papéis: o do que não crê no céu e o do que tem desejo de crer. As duas faces do homem, talvez. MINOS — Ê um desequilibrado por causa de süa idade. Sua divisão entre o ímpeto e o desgosto sexual, que ele confessa numa crise de ódio, é um traço de sua psicologia adolescente. Nesse desequilíbrio interior, ele não encontra apoio exterior. O pai não desempenha seu papel de confidente e de conselheiro. A afeição da irmã é desviada por uma sexualidade que os conduzirá à catástrofe. Situado no degrau mais baixo da escada familiar, ele é a vítima da fraqueza dos outros. 'Pobre Minos!' — escreve Karin. Na construção do filme, tal qual a concebeu Bergman, o ponto de apoio deve ser situado no alto. O mal profundo de Karin e de Minos não é a ausência de um pai? É no sótão que Karin aguarda a chegada de Deus, e, num estado superior, que Minos e seu pai falam da divindade. Mas o espaço da abóbada permanece vazio e todos os três psicologia de órfão: o Pai divino é o grande ausente, aquele com quem não podemos dialogar. A existência humana torna-se a tragédia de ser condenada ao monólogo. Toda a descrição psicológica do filme será transportável em termos religiosos. Karin tem sua acuidade auditiva aumentada pela doença, Minos suspira depois de uma conversa verdadeira com seu pai: sentimos subjacente uma teologia luteroniana da palavra, da revelação divina. O roteiro nos apresenta algumas situações fundamentais da psicologia humana: o medo, a transgressão da lei, a vergonha, a fuga diante do juiz, a confissão, o sofrimento causado pelo silêncio do pai. Do pecado de Adão ao abandono de. Cristo sobre a cruz, nós a encontraremos na Bíblia. Não pensem em encontrar uma resposta positiva de Bergman para o problema da existência de Deus, mas seria muita ingenuidade ver na atitude do pai uma prudente retratação. A aproximação final entre Minos e o pai nada mais é do que a passagem de uma comunidade do sofrimento para uma comunhão do sofrimento. E por que a esperança de uma comunicação possível com o Pai divino? Pelo contrário, se é vão esperar que Deus vai preencher a abóbada da catedral humana, as pedras vivas desse edifício não devem se juntar 225


muito estreitamente em torno desse lugar destinado a permanecer vazio. ATRAVÉS DO ESPELHO (Sason i en speget) — 1961 — Produção: Alan Ekelund para Svensk Filmindustri. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist. Música: Seqüência n.° 22 para violoncelo de Johan Sebastian Bach, executada por Erling Blondal Bengston. Cenografia: P. A. Lundgren. Montagem: Ulla Ryghe. Gunnar Bjornstrand e Harriet Andersson em Através do espelho.

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Os comungantes "O pastor Thomas Erieson (Gunnar Bjornstrand) celebra a missa num domingo pela manhã. Ele não participa do ministério com seus minguados fiéis. Ele os olha. Thomas está sofrendo. Sente que a angústia está crescendo nele. Depois da missa recebe a visita de um paroquiano, a do pescador Jonas Person (Max Von Sydow), que, seguindo o conselho de sua esposa, Karin (Gunnel Lindblon), vem procurar reconforto com o pastor, depois de ler nos jornais que os chineses possuem a bomba atômica e vão usá-la. Mas o próprio Thomas, que se sente também infeliz, não sabe como consolá-lo, e suas palavras soam falsas. A seguir é Martha Lundberg (Ingrid Thulin), professora da aldeia e sua antiga amante, que vem procurá-lo. Atormentado pela lembrança de sua esposa morta, Thomas repele com irritação o amor de Martha. É quando ele recebe a notícia do suicídio de Jonas e sai para avisar a sua esposa. Em seguida, sempre acompanhado de Martha, o pastor vai até outra igreja, onde deve celebrar a última missa do dia. Agora a igreja está completamente vazia. Só Martha está presente. Ela se ajoelha e murmura: 'Nem só ele pode se livrar do seu Deus de mentira' E Thomaz celebra a missa como um autômato." Reduzida a poucas linhas, esta é a história contada em Os comungantes, segunda parte da trilogia bergmaniana sobre a existência de Deus. O resumo foi extraído da revista Image et son, n.° 192 (março de 1966), onde Philippe Pilard faz a crítica do filme: "A Bergman se fazem freqüentemente acusações de ser teatral: porque é à direção de atores que ele parece dar mais importância em detrimento da expressão cinematográfica propriamente dita, porque a construção e a ligação dramática de seus filmes repousam sobre o diálogo, e também, sem dúvida, porque sabemos que Berg-gan é igualmente diretor de teatro. Com Os comungantes, em razão mesmo do tema do filme, essas acusações não têm sentido. Nunca, talvez, Bergman esteve tão seguro de seus meios, nunca seus prodigiosos atores se mostraram tão agitados: todos são verdadeiros, cine-matograficamente verdadeiros. É Gunnar Bjornstrand que vemos na tela, mas é ao mesmo tempo Thomas. E Ingrid Thulin, apaixonante, míope, renitente, exasperante, nunca esteve tão admirável. 227


Podemos discutir o que Bergman diz, mas se o problema da existência de Deus (e de seu silêncio) não interessa a muitos, o problema da vida em si toca a todos, sem falar da ameaça atômica e da guerra, das dificuldades do casal. Para medir a importância desse filme é necessário compará-lo a A palavra, de Dreyer, ou melhor, ainda ao Rossellini dos anos 50, de Stromboli ou de Romance na Itália. A fé revelada, Bergman opõe a fé privada, a fé onde a Igreja logicamente não toma parte. Além dos mistérios, dos dogmas e das liturgias, além da reflexão cotidiana, além da psicanálise, a fé não pode ser mais do que a fé de cada um. Crer é desejar crer. Todo o resto são palavras das Igrejas, nada mais do que a hipocrisia, a mentira, o logro, o abuso da confiança. Uma das cenas mais marcantes do filme, a que o pastor vem comunicar a Karin o suicídio de seu marido, ilustra de maneira notável o caráter incomunicável, irremediavelmente pessoal e, sobretudo, perfeitamente ineficaz da fé ao olhar do outro: face a face se encontram Thomas, confuso em sua fé e que acredita que suas palavras contribuíram para conduzir Tonas à morte, e Karin, digna, sofredora, piedosa também (nós a vemos rezar na Igreja), mas sobretudo cheia de vida. A fé é a energia que ela possui e que a faz enfrentar cotidianamente o mundo. Essa fé, essa energia, é o que Thomas inveja e o que ele olha no momento de celebrar a missa. O pastor tem, então, a prova definitiva de sua inutilidade, da mentira social que ele representa. A Igreja só poderia mesmo estar vazia. A imagem do padre no cinema é geralmente complacente, quando não é simplesmente agiográfica: do "pároco dedicado" ao "padre admirável", essa imagem provém de um proselitismo tão cômodo, que, no cinema, os ateus ou mesmo os não-cristãos não têm a não ser raramente o "direito de resposta". Assim se vêem na tela bem mais Don Camilos do que Nazarins. Segundo esse fato, a figura do padre no cinema, por excelência, deve ser aquela que tranqüiliza. Em Os comungantes, através do personagem de Thomas Ericson, moderno primo do abade Suryn de Madre Joana dos Anjos, Bergman não tranqüiliza. Ele descobre a face oculta da fé: a ausência de Deus e seu silêncio."

228 OS COMUNGANTES (Nattvardsgrasterna) — 1961 — Produção: Alan Ekelund para Svensk Filmindustri. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist. Música: Seqüência n.° 22 para violoncelo de Johann Sebastian Bach (acompanhamento do filme anterior). Cenografia: P. A. Lundgren. Montagem: Ulla Ryghe. Outros intérpretes: Allan Edwall, Olof Thunberg, Elsa Ebbesen, Kolbjorn Knudsen. Gunnar Bjornstrand em Os comunpantes.

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O silêncio Sobre este vigésimo quinto filme de Bergman, ainda são válidas as palavras de Ricardo Pinheiro Cury, escritas no antigo O Diário: "O silêncio é a terceira parte de uma trilogia, onde Bergman aborda o tema central de sua obra através de um ângulo ainda mais denso e introspectivo. Esther (Ingrid Thulin) e Anna (Gunnel Lindblom), duas irmãs que se odeiam, viajam de trem, não importando qual seja o seu rumo. Em Bergman, convém assinalar, existe um constante simbolismo em relação às viagens, como em Morangos silvestres (automóvel), A fonte da donzela (cavalo), Sonhos de mulheres (trem) e ainda Sorrisos de uma noite de amor (os personagens vão da cidade para o campo). Embora No limiar da vida não tenha essa particularidade, não pode ser coincidência a viagem já ter aparecido em seis filmes, fora os que não conhecemos. Evidentemente, a humanidade sempre caminha de um ponto para outro. Anna e Esther acham-se finalmente numa cidade desconhecida, onde o estranho idioma falado agrava ainda mais a incomunicabi-lidade geral. Dessas duas impressionantes figuras Bergman parte para uma análise contundente da realidade sexual, aqui desnudada nas suas mais diversas manifestações para terminar num paradoxismo dantesco. Um hotel quase deserto serve de palco para este tempestuoso drama, onde cada participante enxerga à sua frente o próprio nada. Esther, tradutora de livros e mais culta do que a irmã, tenta afogar o seu desespero total em vícios de toda espécie, ao mesmo tempo em que pensa numa reabilitação. Anna, mulher exuberante e voluptuosa, acha-se no papel de uma ninfômana incansável. Bergman as apresenta na tela de duas maneiras radicalmente tão opostas como suas personalidades. A câmera que mostra Ingrid Thulin praticamente desfigurada e sem o menor atrativo feminino é a mesma que capta Gunnel Lindblom banhando-se e perfumando seu corpo bronzeado. No hotel estão vários anões que trabalham cm circo. Grotescos e disformes como vários exemplos da espécie humana. Um velhíssimo empregado, com ares de decrepitude completa, vive seus últimos dias. Apenas o garoto Johann, filho de Anna, 230 ainda conserva uma inocente tranqüilidade, se bem que ao chorar revele já perceber alguma coisa do mundo que o cerca. Nesse mundo também existe guerra, pois monstruosos tanques vagam à noite pelas ruas. Enquanto Esther, em violentos ataques de asma, debate-se no leito que é a sua prisão, Anna passa a noite com um homem da cidade, que fala apenas a língua local e não diz uma só palavra. Aqui Bergman sugere uma aproximação humana que só existe através do sexo. Entretanto, a convulsiva crise de choro e histeria de Anna, no fim dessa seqüência brutal, vai arrasar por completo esse último elo, atingindo então a frustração da própria carne. Evidentemente, Bergmman possui o mérito de ser o único diretor da história do cinema que abordou temática tão difícil e delicada do modo consciente e honesto como o faz, porque nunca se deteve em cenas contemplativas, preferindo levar essa realidade até suas últimas conseqüências, mostrando-a sob um ângulo essencialmente analítico. Os quadros avassaladores da degradação humana são talvez os maiores argumentos e advertências contra a mesma, porque se a crueza desses problemas em Bergman geralmente emudece as platéias, por outro lado é capaz de despertá-las. Lamenta-se apenas a visão de puritanismo hipócrita que tanta gente possui da obra do grande cineasta que, antes de deprimir, constrói e edifica." Pouca coisa a acrescentar. Só que quase todas as cenas, situações, personagens, atos são ambíguos. Bergman uma vez mais, e com mais inspiração do que nunca, coloca questões psicopatológicas. Um movimento pungente — "atração-desgosto" — move seres furiosos e reprimidos que parecem corroídos pelo demônio da sexualidade. E — apenas repetindo o pensamento de Ricardo Pinheiro Cury — Bergman, para oferecer um relato mais brutalmente carnal, vira e revira sua câmera, assim como Esther dobra e desdobra-se em seu leito com suas dores, suas crises de asma, de sufocação sexual mais ou menos lésbicas e de aspereza de alma. Menos, talvez, pela gravidade da doença, que ela não ignora e que a condena a poucos dias de vida, que por sua atitude psicológica diante dessa mesma via, Esther se opõe a Anna, esta uma mulher hipervitalizada e de extrema sensualidade, o que talvez compense a sua falta de inteligência e o seu ódio pela irmã, que por fim abandonará só e em 231


agonia na estranha cidade. Lá está Esther, certa de que vai morrer numa solidão absoluta, sem inclusive a presença ou a palavra de Deus. Tomemos agora a título de uma ilustração mais completa as palavras de Denis Marion no seu artigo "O silêncio — Dimensões oníricas", publicado em Êtudes cinématographiques, n.°s 4647 (primeiro trimestre de 1966 — "Ingmar Bergman.q A Trilogia"): "Anna é um animal governado pelo instinto" — diz ele. "Suporta com dificuldade seus vestidos leves, que ela tira na primeira oportunidade, anda com os pés descalços para manter um contato mais direto com o sol e Johann observa que seus pés parecem possuir um caminho independente. O pé é um símbolo fálico conhecido (e não faltam outros ao longo do filme: o canhão do tanque, o barulho das furadeiras partindo o asfalto, que contribuem para criar uma atmosfera de obsessão sexual). Mas é também o símbolo do andar, do progresso na vida. Anna ainda tem confiança no futuro, ela procura sair da situação em que se encontra. Esther está sendo consumida pela tuberculose. Bergman representa essa doença com um implacável realismo. Se ele atenuou, cortando duas hemorragias que figuravam no roteiro, insiste com crueza sobre a sufocação, os pulmões não conseguem mais aspirar o ar, imagem comovente da secura do coração que não obtém mais o alimento sentimental que lhe é indispensável. No lugar de lutar contra a doença, de procurar debelá-la, Esther se abandona e encontra no álcool uma euforia passageira. "Anna tem medo de Esther e Esther tem medo da morte" — prossegue Denis Marion com suas extraordinárias e esclarecedoras palavras a respeito de O silêncio. "Uma simples alusão é feita à origem dessa perpetuai angústia: ela veio do Pai que está morto e cujo lugar Esther quer tomar. Nós não sabemos mais nada sobre ele, mas faremos conhecimento com aquele que é seu substituto, seu sucedâneo, sua caricatura, o velho empregado do hotel. Como todo Pai, como todo Deus, ele apresenta uma dupla face: tranqüili-zadora e alarmante. Ele perdoa Johann por ter feito "pipi" no corredor e troca os lençóis do leito que Esther encharcou de álcool. Mas ele mostra a Johann fotos de um funeral e, quando mostra, 232 faz-se ouvir um tique-taque (o único efeito sonoro que não é real no filme), equivalente à inscrição do quadrante solar: 'Todos vão ferindo, o último mata'. Nunca essa figura do pai, ou esse símbolo de Deus, apareceu na obra de Bergman tão impotente e tão anacrônico, e igualmente tão complacente." Resta lembrar que, esteticamente, O silêncio talvez seja o mais admirável dos filmes de Bergman, com suas imagens quase abstratas em fosco preto e branco, acompanhadas por belíssimos trechos de músicas de Bach. A esse respeito, passemos novamente a palavra para Ricardo Pinheiro Cury. Completando sua crítica em O Diário, ele escreveu: "O silêncio contém um domínio estético avançadíssimo, pois sendo antes de tudo um filme onde a imagem em si tem predominância absoluta, limita consideravelmente o apoio dos diálogos, usados apenas como complemento e expressão oral do conteúdo. Os personagens mergulham num abismo de nudez permanente, pois entre eles solidificam-se barreiras descomunais. Esther, quando fala, diz ser totalmente inútil discutir a respeito da solidão, que geralmente tomamos atitudes que não conduzem a nada. Existem pavorosas forças estranhas. Anna, indignada com o frio raciocínio da irmã, pergunta-lhe, então, porque ela vive. Assim é O silêncio, um filme sobre a ausência de Deus e a presença do inferno na terra, com seres inconseqüentes, interrogações sem respostas, grilhões simbólicos de um cárcere mental. Sven Nykvist, extraordinário diretor de fotografia que trabalhou muitas vezes com Bergman, encarrega-se de refletir a intensidade dos estados psicológicos, dando forma a um roteiro meticuloso, repleto de planos aproximados e tomadas de longa duração, num ritmo lento como o próprio torpor de que estão acometidos os personagens. Se certas cenas sombrias os lançam nas trevas, outras possuem farta iluminação, principalmente quando os raios do sol tornam ainda mais causticante o calor da cidade dos mortos-vivos, onde a única linguagem universal é uma breve música de Bach. O silêncio representa uma das mais notáveis contribuições dadas à glória da arte cinematográfica por este autêntico sucessor do filósofo dinamarquês Kierkegaard que é Ingmar Bergman". 233


O SILÊNCIO (Tysinaden) — 1963 — Produção: Alan Ekelund para Svensk Filmindustri. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist. Cenografia: P. A. Lundgren. Música: Johann Sebastian Bach, seqüência n.° 22 para violoncelo (a mesma de Através do espelho e Os comunganies). Montagem: Ulla Ryghe. Som: Stig Flodin. Outros do elenco não mencionados acima: Jorgen Lindstron (Johann), Haakan Jahnberg (o velho empregado do hotel), Birger Malmsten (o garçom), os Eduardini (os sete anões), Eduardo Gutierrez (empresário dos anões). Mais: Lissi Alandh, Leif Forstenberg, Nils Waldt, Birger Lesander, Eskil Kalling, K. A. Bergman, Olof Widgren, Kristina Olanson. Gunnel Lindblom e o menino Jorgen Lindstrom em O silêncio.

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Para não falar de todas essas mulheres Primeiro filme em cores de Bergman e, segundo os críticos, um parêntese importante e necessário na sua densa obra. Realizado em 1964, entre O silêncio e Persona, dois pontos elevadíssimo na sua filmografia, permanece inédito no Brasil. Trata-se de um tema simbólico, conforme observação do crítico JeanJacques Arnault que, assim, resumiu seu argumento em Image et son, n.° 180-181 (janeiro-feve-reiro de 1965): "Em 1920, um crítico, Cornelius (Jarl Nulle), deve escrever a biografia de um violoncelista virtuose, o mestre Felix, que vive num castelo rodeado de sete mulheres, de seu empresário e de um neurastênico encarregado da faxina. Cornelius, disposto a tudo, tenta subverter esse mundo. Autor de uma sonata que deseja ver executada pelo mestre, ele negocia escusamente a troca da música interpretada por Felix por uma biografia extremamente elogiosa. Mas Felix, desgostoso, morre antes de começar a executar a sonata. Resta ao crítico abandonar o castelo, enquanto as mulheres, ajudadas pela mais rica entre elas, substituem o velho músico por um novo talento. "A sátira é geral" — escreve Arnault ao passar para a crítica do filme —, "todas as situações e todos os personagens são esquemáticos, mas Bergman trata de seu tema favorito: a solidão do indivíduo e do artista, em particular, rodeado de aduladores e de exploradores, a glória que não pode ser salva a não ser pelo acaso. O artista que não vive a não ser para a sua arte (Felix é um personagem invisível, só presente através da música) teme uma morte dupla: a sua e a de sua arte. O papel das mulheres parece secundário, mas de fato é decisivo. Finalmente, são elas que se libertam. Os processos empregados, tais como intertítulos, imagens fixas, golpes de vista da câmera, a passagem da cor ao preto e branco conduzem a um resultado curioso. A teatralidade é evidente. Mas ela permite a Bergman manter-se à distância de sua história pela interpretação exagerada dos atores, o uso de planos médios estáticos, de cenários de cartãopostal, de clichês de direção. É a teatralidade que forma o conteúdo do filme". Outra opinião interessante é a de Alain Taleu, em Talé-ciné, n.° 11." (janeiro-fevereiro de -965): "Em Cornelius, Bergman chega a parodiar a própria crítica de cinema, não hesitando em se referir de maneira flagrante a outros diretores como Mack Sennett, Alfred Hitchcock, Jacques Tati. Ê necessário Shakespeare para poder casar

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com felicidade e metafísica com o humor negro, e Bergman é visivelmente inspirado por aquele que é o maior dos poetas e dramaturgos de todos os tempos. Uma sábia ironia, uma galeria muito agradável de rostos femininos, uma caricatura de grandes traços finos. Tudo pintado em cores notáveis e visto através do olho do diabo, principalmente todas açuelas mulheres de olhares semilúbricos, semicáus-ticos". PARA NÃO FALAR DE TODAS ESSAS MULHERES (for att inte tala om alia dessa kvinnor) — 1964 — Produção: Alan Eklund para Svensk Filmindustri. Roteiro: Erland Josephsson e Buntel Ericsson (pseudônimo de Ingmar Bergman). Fotografia: Sven Nykvist Cenografia: P. A. Lundgren. Música: Erik Nordgren. Montagem: Ulla Ryghe. Intérpretes não citados na crítica: Eva Dahlbeck (Adelaide), Bibi Andersson (Humlam), Harriet Andersson (Isolde), Gertrud Fridh (Tra-viata), Mona Malm (Cecília), Barbro Hiort of Ornas (Beatriz), Karin Karli (Madame Tussand). Mais: Georg Funkqvist, Allan Edwall, Gosta Pruzelius, JanOlof Strandberg, Goran Graffman, Jan Blomberg, Axel Duberg, Ulf Johansson, Lars-Erik Liedholm, LarsOwe Carlberg, Carl Billquist, Yvonne Igell e Doris Funcke.

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Persona A sede de paixões sexuais, desencadeadas num tom quase anima-lesco em O silêncio, manifesta de maneira aguda a ausência de Deus no mundo dos homens. As duas irmãs enclausuradas num quarto de hotel na cidade de Timoka chocam-se e digladiam-se num exótico ritual de degradação. Esse inferno a dois salta de um filme para outro e ressurge em Persona, através do drama de Elizabeth e Alma, duas mulheres lado a lado, face a face, rosto por rosto. Alma se olha, Elizabeth observa Alma e se cala, Alma fala: no início por ela mesma, depois por Elizabeth. Esta última, que é atriz, se fechou no seu mutismo obstinado, e Alma, a enfermeira, deve velar por ela. Olhares, palavras, silêncio. Quem é Alma? Quem é Elizabeth? Nova história de mulheres, onde o real e o aparente se misturam, se confundem com uma sutileza demoníaca: triunfo da metafísica e da mestria cinematográfica. Lidando com os rostos de suas duas atrizes, como só ele no mundo é capaz de fazer, Bergman nos convida para uma viagem delirante ao país da solidão. A atriz Elizabeth Vogler (Liv Ullmann) toma subitamente consciência da mentira permanente em que vive. Essa explosão de lucidez a paralisa em pleno palco e ela se fecha no silêncio, recusa comunicar-se com aqueles que a rodeiam. A psicóloga à qual é confiada a atriz a entrega, por sua vez, aos cuidados de uma enfermeira, Alma (Bibi Andersson), que deverá acompanhá-la num período de repouso à beira-mar. E nesse cenário simples (o mar, os rochedos, a chuva, a casa, o dia, a noite), ainda que carregado de múltiplas significações, se desenrola o psicodrama a dois. Se a personagem central — personagem catalisadora, mas não propriamente personagem principal — é uma atriz, não é evidentemente por acaso. O título do filme (Persona, palavra grega: máscara) o confirma bem. Bergman estabelece a oposição rosto-máscara, reali-dadeaparência, própria da condição humana, mas particularmente evidente no caso de quem representa. E, a partir dessa oposição termo a termo, o filme desenvolve-se: eu-outro, realimaginário, silêncio-pa-lavra, vida-morte, criança-adulto, interior-exterior, mar-terra, chuva-sol, dia-noite; e ao nível estético mesmo da direção observa-se essa 237


preocupação: luz-sombra, claro-escuro, preto-branco (é impossível imaginar Persona como um filme em cores). Ainda uma vez, uma história de neuroses, de remorsos interiores, mas que evolui de maneira lenta, calma, com paciência e desvelo de detalhes, porém com violência também. É possível ler, entre as imagens do filme, os parágrafos da atualidade daquela época, o Vietnã, por exemplo, evocado por uma imagem televisada de um monge em chamas. E também um pouco a Suécia em parábola: trancada na sua felicidade material e invadida pela angústia, cercada pela má consciência. No mundo em que somos introduzidos, surgem sombras e desertos nos quais penetramos até o mais profundo da caverna: caverna psicológica onde sempre se esconde a consciência, a lucidez. Caverna metafísica, e, nesse último esconderijo, Bergman ainda uma vez acredita tocar o nada. A única palavra pronunciada por aquela mulher bloqueada pelas suas obsessões num mutismo selvagem será: "nada". A atriz neurótica que se refugia no silêncio vai se apoderando da personalidade despretensiosa da enfermeira, formando as duas mentes de um mesmo ser. E essa simbiose se concretiza na tela pela fusão das duas faces num mesmo rosto. A confrontação — aliás própria a todas as criações — não é nova no cinema bergmaniano, mas atinge com Persona o degrau mais elevado. A aparição de Gunnar Bjornstrand (no papel de Vogler, o marido de Elizabeth) dá uma prova disso: sua intervenção (real ou imaginária?), sua cegueira, é real ou de preferência é a réplica do mutismo de Elizabeth? Tudo parece confirmar que Vogler é um estrangeiro, um representante de um outro mundo. E aí se estabelece a diferença das condições masculinas e femininas, principalmente a diferença paradoxal do amor. A narrativa do filme desenvolve-se dentro de uma forma lenta e torturada, progredindo de acordo com o denso sentido psicológico do argumento. O começo e o fim de Persona são contrapontuados com os carvões de um projetor, que acendem e apagam sob os olhares perplexos dos espectadores, surpreendidos com o pensamento vivo do diretor refletido vinte e quatro vezes por segundo numa tela branca. 238 Alma e Elizabeth: duas mulheres face a face, mas também, confrontado com a mulher, o artista face à sua obra, a interrogação diante do silêncio. Cada um procura — e encontra? — a resposta que pode. PERSONA (.Quando duas mulheres pecam) — 1965 — Produção: Lars Owe Carlberg para Svensk Filmindustri. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist. Música: Lars Johan Werle. Cenografia: Bibi Lindstrom. Montagem: Ulla Rygghe. No elenco, além dos intérpretes citados na crítica: Margareta Krock e o menino Jorgen Lindstrom (de O silêncio). Liv Ullmann e Bibi Andersson em Persona

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A hora do lobo Na sociedade atual, regida pelos meios mecânicos de comunicação, o artista não passa de um estranho, de um ser insignificante que apenas por compulsão ainda insiste em manter uma luta de morte incessante, não só contra toda uma engrenagem tecnológica, mas também contra si mesmo, contra seu medo de continuar criando. E ninguém melhor do que George Lukács nos explica todas essas rupturas e tensões que existem nas atividades artísticas de hoje, quando nos diz que "a evolução moderna afasta a arte do caminho real da liberdade artística e que subjetivamente esse voltar-se para dentro de si mesmo dos artistas é um protesto, uma oposição às tendências antiar-tísticas da época e da sociedade". Assim é que essa quebra de relações com o público dos maiores cineastas do mundo nos anos 60 (Bergman, Antonioni, Resnais, Fellini, Godard, Bunuel), recusando-se ao racionalismo linear em favor de uma linguagem fechada, não é outra coisa senão um ato de revolta contra a desumanização e a mar-ginalização do artista. A história da A hora do lobo já é conhecida: um pintor atormentado, à beira da loucura, seus pesadelos, os demônios que o enlouquecem na "hora do lobo", isto é, na madrugada, quando ainda há obscuridade e o homem está fraco e indefeso. Sua mulher enfrenta o dilema de segui-lo ou abandoná-lo. Segue-o, e ela mesma se afunda nas obsessões tão terríveis, que um crítico disse: "O filme se baseia no patológico". A hora do lobo é um filme terrivelmente pessoal, ao contrário do que disse o seu autor "que o protagonista não tem características autobiográficas". Mas é também, e principalmente, um filme que reflete a sua violenta oposição ao vampirismo ético e social que se perpetua e persegue o artista para devorá-lo. O cineasta dinamita o real em imagens oníricas, fantásticas e macabras, para fazer explodir, assim, a indiferença e o desprezo que se ocultam sob o silêncio dos rostos das pessoas com quem e para quem ele vive e trabalha. O grupo social que habita o sinistro castelo são monstros em forma de gente e não simbolizam apenas os demônios que assaltam a mente do pintor Johan Borg, eles também exprimem com rara intensidade os organismos sociais que se dizem admiradores da arte, mas que no fundo querem destruí-la. 240 Borg é um artista que parece estar mais ou menos voluntariamente excluído da sociedade em que vive, em companhia de sua mulher Alma, numa pequena ilha do Báltico. Esse angustiado, patético e solitário personagem parece obcecado por uma experiência que o leva a comunicar com um outro mundo {Através do espelho), ao mesmo tempo que com outros homens (Persona). A cada tentativa, ele se choca com uma parede: a parede da morte para o cavaleiro de O sétimo selo, interpretado pelo mesmo Max Von Sydow, que é derrotado aqui pelos fantasmas, a parede da solidão e do silêncio. Interiorizando o drama de Johan até confundi-lo com as imagens da realidade exterior, Bergman nos faz voltar ao castelo e ao jantar de Sorrisos de uma noite de amor, às praias desoladas e à floresta de O sétimo selo, ao expressionismo de O rosto, ao surrealismo de Morangos silvestres. Os temas essenciais do cineasta estão todos presentes: a máscara das aparências cobre e sufoca a tragédia da vida e da morte, a máscara do teatro e da arte, verdadeira e falsa ao mesmo tempo; a luta entre os diversos rostos do amor: a pureza de Alma (Liv Ullmann), a sexualidade das lembranças de uma outra paixão transtornada com Veronika Vogler (Ingrid Thulin), uma mulher morta que volta à vida. Não há dúvida, o filme é quase tão negro e desesperado quanto O silêncio, e "a hora do lobo" não é apenas a hora das interrogações, das angústias e do medo, é sobretudo a hora da verdade ou a hora da própria criação da obra de arte, a única hora em que o artista foge à solidão e, por conseguinte, ao envelhecimento. É como disse Jean-Luc Godard: "Bergman é o cineasta do instante. Cada um de seus filmes nasce de uma reflexão de seus personagens sobre o momento presente". Desse modo, ninguém, pois, deve esperar que A hora do lobo desminta seu autor. A essência do filme é o horror, o horror metafísico do momento, e daí a intenção de se reverenciar um tipo de imagem do cinema mudo que expressa toda uma atmosfera de terror. Há também para as seqüências demoníacas uma composição de cena derivada do expressionismo de Murnau, assim como um jogo de imagens surrealistas que nos revelam a verdade interior dos seres, como, por exemplo, a velha que, ao tirar o chapéu, tira também o rosto e atira os olhos dentro do copo. 241


Obra-prima do cinema introspectivo, o opus n.° 28 da carreira bergmaniana simboliza a eterna luta entre a essência e o provisório e também o gesto mais revolucionário possível em face ao mundo exterior absurdo e contrário à arte. A HORA DO LOBO (Vargiimmen) — 1967 — Produção: Lars-Owe Carlberg para Svensk Filraindustri. Roteiro: t B. Fotografia: Sven Nykvist. Música: Lars Johan Werle. Montagem: Ulla Rygghe. Eíeitos especiais: Evald Andersson. Cenografia: Marik Vos Lundh. Outros nomes do elenco não mencionados na crítica: Erland Josephsson (barão Von Merkens), Gertrud Fridh (Gorine Von Merkens), Gudrun Brost (Gania Von Merkens), Bertil Anderberg (Ernst Von Merkens), Georg Rydeberg (Lindhort), Ulf Johanson (Heerbrand), Naima Wilfstrand (a velha que tira o chapéu), Agda Helin, Ulf Hyortzberg e Mikael Rundquist. Ingrid Thulin em A hora do lobo.

242 Vergonha Este trecho da crítica que Paulo Arbex escreveu para o jornal O Estado de Minas em 19/11/70 — "Júri de Cinema" n.° 123 —, resume bem o argumento do filme: "Jan e Eva Rosenberg, o casal de violinistas exilados durante quatro anos numa ilha, fugindo dos horrores da guerra que devasta um indeterminado país, vivem com seus pequenos problemas, sem tomar posição política entre vencedor ou vencido, e nem ao menos têm o rádio ou o telefone como meios de ligação com o mundo. Vivem com seu amor e suas recordações, colhem morangos e passeiam pela ilha, até que os bombardeios se tornam mais intensos e as pessoas mais cruéis. A chegada dos homens de uniforme e botas é o anúncio da destruição, da delação, do suborno, do adultério e do crime. Os amigos de ontem são os inimigos de hoje. Do amor passa-se ao ódio, a paciência transforma-se em agressão, a verdade em mentira e os dias da semana não contam. A casa em ruínas, os violinos quebrados, as rosas queimadas e os sonhos desfeitos, é preciso determinar, partir para bem longe, mesmo para um destino impreciso e desconhecido. Jan, que antes reclamava uma dor de dente e que seria incapaz de matar uma galinha, volta à condição primitiva do homem, apodera-se do dinheiro de um amigo e protetor, assassina um adolescente desertor para roubar-lhe as botas e leva consigo o fuzil para a última viagem. Eva diz que não irá acompanhá-lo, e ele diz: "Tanto melhor". Depois ela faz uma pergunta que não tem resposta: "Como duas pessoas podem viver juntas sem se comunicarem?" Na seqüência final, o barco levando os refugiados passa por um mar coberto de cadáveres. O fade in do epílogo abre para mostrar o barco perdido no silêncio do oceano e na incerteza de uma nova aurora. Eva relata o bonito sonho: 'Do alto da colina, com o filho que nunca tivera em seu colo, ela se depara com uma rua toda branca, de um lado e do outro um bosque sombrio. Um avião lança bombas e as rosas viram cinzas'". É isto: a guerra é essencialmente trágica. Ele aflige o homem como uma fatalidade. Ela o mergulha no estupor. Ê incompreensível, inexplicável e propõe interrogações de toda ordem. Mas sempre haverá, apesar de tudo, o heroísmo que permitirá salvar os móveis (leia-se a civilização). Vergonha nos comunica uma impressão física do que pode ser a vida em tempo de guerra. O espectador se encon243


tra mergulhado no seu sentimento de impotência e de culpabilidade cega. A guerra de Bergman é feita com meios modestos, contrariando o esquema das superproduções hollywoodianas ou não, que a fazem com grande brilho de explosões e de lágrimas. Para situar seu casal no meio da guerra, o cineasta retoma o cenário de seus filmes precedentes: a ilha de Através do espelho, Persona e A hora do lobo. O isolamento-refúgio. A ilha, o sol, a casa de madeira, Liv Ullmann e Max Von Sydow. Sim, estamos dentro de uma continuidade. O filme começa como se desenrolam os outros. A mulher bela, corajosa e decidida. O homem que com a menor contrariedade se revela fraco e covarde. As imagens e as situações exprimem a quintessência da temática bergmaniana. No início a aparente felicidade do casal que colhe morangos silvestres, compra vinho e goza a intensidade do momento presente, ignorando os graves problemas da violência e do genocídio. A seguir a progressiva tristeza de um cotidiano ameçado. A ameaça vem do exterior e, como a peste de O sétimo selo, a vergonha da guerra vai devastar os seres e revelá-los para eles mesmos. Foi a ameaça atômica que provocou o suicídio de Max Von Sydow em Os comungantes. Em Vergonha, ele reage matando para sobreviver, causando o desprezo de sua mulher que a ignomínia da guerra leva à traição e ao adultério. "A vergonha — como diz um dos personagens — é a invasão de cada um no pesadelo do outro". Ou, em outras palavras: a vergonha é o desprezo dos seres humanos quando se tornam vítimas, e as vítimas transformam-se sempre em monstros. VERGONHA (Skammeri) — 1968 — Produção: Lars-Owe Carlberg para Svensk Filmindustri. Fotografia: Sven Nykvist. Montagem: Ulla Rygghe. Som: Lennart Engholin. Elenco: Liv Ullmann, Max Von Sydow, Gunnar Bjornstrand, Sigge Furst, Barbro Hiort af Ornas, Raymond Lundberg, Hakan Johnberg, Ingvar Kjelson, Willy Peters, Ulf Johanson, Axel Dahlberg e Borge Ahlstedt.

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O rito Ê verdade que se trata de um Bergman menor, de um filme, diríamos, pouco ambicioso, mas os pequenos Bergmans costumam ser de uma qualidade e de uma segurança irrepreensíveis. O que os empresários de cinema no Brasil, evidentemente, desconhecem, e por isso até hoje não importaram esse pequeno filme de 75 minutos de duração e originalmente rodado em preto e branco para a televisão sueca. Mas vejamos o que dizem os críticos franceses que tiveram o privilégio de vê-lo: "É uma obra austera, quase inteiramente filmada a partir de planos aproximados de rostos e objetos. O filme coloca em cena quatro personagens (seria mais justo dizer quatro rostos) e se compõe de nove quadros. Escritório de um juiz, um quarto, um camarim de artistas, um bar. Três atores acusados de representar um espetáculo licencioso são confrontados no escritório de um juiz. O interrogatório torna-se espetáculo, os atores se entregam totalmente a esse nível de interpretação que as indagações lhes impõem. A inquirição dos acusados deve terminar pela reconstituição do espetáculo acusador. Os atores recolocam a máscara do teatro e representam até que a fascinação de sua arte mata o juiz. Retornamos aos grandes temas de reflexão que marcam a obra anterior de Bergman: os ambientes fechados, onde se manifestam as relações de crueldade e de humilhação, a reflexão sobre a negação de Deus, a obstrução da linguagem, a neurose que se torna espetáculo, a ambigüidade da arte, a osmose de consciências durante a representação artística." (Raymond Lefèvre em La revue du cinema — Image et son, n.° 263-264, setembro-outubro de 1972.) "Preto e branco, teatral, despojado de cenários como de personagens secundários, recusando particularidades e digressões, o filme concentra-se num estudo quase matemático de uma relação de forças. As aflições a se materializar são os problemas da mentira e do escândalo, da demência e da morte, que se enriquecem, se complicam, na neurose e no amor. Mas esses dados imediatos da consciência ocidental não fazem inelutavelmente parte do jogo? Quem se acusa? A sociedade, um juiz, o escândalo, três atores. Uma mulher (Ingrid Thulin) e dois homens (Gunnar Bjornstrand e 245


Anders Ek) são acusados de representar um número cuja obscenidade perturba a ordem pública. O juiz (Erik Hell) os interroga juntos, depois separados. Esses interrogatórios, numerados, recenseados, en-trecortados de algumas raras visões dos atores sós (nunca em cena, mas sempre em representação), constituem todo o filme. Levando até o fim sua rigorosa demonstração, Bergman nos faz, no final, assistir à morte do juiz, acometido por um ataque cardíaco, no momento em que, renunciando à utopia da compreensão psicológica, ele deseja 'ver'. Do número culpado, e mortal, não veremos grande coisa, a não ser as roupas fálicas dos homens, e o aspecto ritual, quase litúrgico, dessa profanação intolerável dos tabus: sexo e morte. O interesse do filme ultrapassa essa proclamação da desordem vencedora da ordem, essa vitória deslumbrante do dragão tricéfalo sobre um São Jorge da burguesia, e está sobretudo numa emocionante dialética onde se respondem os rostos diversos dos comediantes: juntos, face ao juiz, sós. Jogos de linguagem: mudez-simulação, doença da mulher. Jogo de máscara: desmaquilagem progressiva de um palhaço trágico que subverte todos os dados precedentes do filme e, por um instante, nos força a aceitar o sublime. Mas O rito é um filme terrível e sem contexto importante, talvez, porém, sem defeitos." (Mireille Amiel em Cinema 72 — n.° 170 — novembro.) O RITO {Riten) — 1969 — Produção: Televisão sueca. Persona Films. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist.

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A paixão de Ana Andreas Winkelman (Max Von Sydow) é um homem solitário que vive em uma ilha. Na vida desse lobo selvagem, uma mulher surge de repente. É Ana, interpretada por Liv Ullmann. Simultaneamente, Andreas conhece um casal, Eva e Elis Vergerus (Bibi Anderson e Erland Josephsson), que tem uma casa na ilha. Andreas e Ana vivem juntos e relacionam-se com o outro casal, enquanto um louco anônimo devasta o local, matando os animais nas fazendas e causando indiretamente a morte de um velho, injustamente colocado sob suspeita e que se suicida após ter sofrido violências de seus vizinhos enlouquecidos. Depois de um ano de vida em comum, um terrível confronto levanta Andreas e Ana um contra o outro. Eles se separam. Andreas fica só; numa paisagem desolada, ele anda de um lado para outro como um leão na janela, ou um louco no hospício. Andreas Winkelman, o solitário em sua ilha, é talvez o próprio Bergman, ou pelo menos é o que nos faz pensar o comentário inserido no último plano do filme: "Desta vez, ele se chama Andreas Winkelman..." A possibilidade de se tratar de um filme autobiográfico também aumenta a partir da observação de Mareei Martin, que descobriu que Winkelman significa etimologicamente "o homem que se retira para um canto" (em Cinema 70, n.° 150 — novembro). E há muito a dizer também sobre o recurso do comentário em off, sobre o cenário simbólico da ilha, que representa o indivíduo fechado em si mesmo, e sobre a irrupção de Ana, interpretada por Liv Ullmann, tornada Sr.a Bergman, na vida de Andreas, o homem que mora na ilha e que os dias de verão deixam inquieto. O homem, quer dizer o autor, o ator Max Von Sydow, projeção do autor Ingmar Bergman, passa da paixão à solidão, do amor feliz do momento ao amor doloroso e mais ou menos paralisante do passado. Na verdade, estamos diante de um dos filmes mais puros de Bergman, todo em meias-tintas, ou em cores claras, feito de pequenos fatos verdadeiros, de gestos lentos, de olhares perdidos, de abraços desajeitados. E é através da "metalinguagem", da qual Bergman é um dos precursores no cinema, que se estrutura A paixão de Ana, com o cineasta desviando a atenção do espectador, para solicitar-lhe a participação em sua criação cinematográfica, ao introduzir com uma 247


claquette os atores de seu filme, que, por sua vez, explicam suas concepções dos personagens que interpretam. Max Von Sydow vê o personagem de Andreas como um homem solitário, cujo confinamento voluntário numa ilha é visto por ele mesmo como uma imensa prisão. Liv Ullmann interpreta Ana como uma mulher cujo desejo de verdade não é aceito pelos outros, o que a faz refugiar-se paradoxalmente na mentira. Bibi Andersson afirma que Eva é uma mulher que vive na incoerência e termina por não mais suportá-la. Erland Josephsson vê em Elis o estranho colecionador de fotografias, um artista que se refugia na indiferença e no egoísmo. É claro que Bergman fala pela boca de cada um desses quatro personagens, reafirmando a sua identidade de artista que se isola do mundo, repetindo a sua luta contra si mesmo, ou contra os fantasmas que povoam a sua vida. A paixão de Ana, portanto, fala da solidão dos indivíduos, mas também aborda o dilaceramento do casal e se indigna com a violência do mundo, denunciando a absurdidade criminosa de nossa época, seja através da visão pela TV de um prisioneiro vietcong sendo executado, seja por uma série de matanças sinistras cujas vítimas são os animais domésticos. As atrocidades que acontecem no mundo, e que aumentam dia a dia, levam Bergman, a cada novo filme, a indagar uma vez mais: "Onde está Deus?". A PAIXÃO DE ANA (En passion) — 1970 — Produção: Lars-Owe Carlberg para Svensk Filmindustri. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist. Cenografia: P. A. Lundgren. Montagem: Siv Kanalv. Outros do elenco não citados na crítica: Erik Hell, Sigge Furst, Svea Holst, Annika Kromberg, Hjordis Petersson, Brian Wikstrom, Barbro Hiort af Ornas, Malin Ek, Britta Brunius, Lars-Owe Carlberg, Britta Oberg e Marianne Karlbeck.

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A hora do amor Primeiro filme em inglês de Bergman e o primeiro onde ele utiliza, por uma questão de escolha, um ator não sueco, um intérprete que não pertence ao seu staff. Alguns críticos puristas estranharam esse fato. Mas, se rebelaram mesmo, foi por causa do que chamaram "banalidade do roteiro" que continha uma nova versão de um tema esgotado: a mulher, o marido e o amante. Não é preciso dizer que a injustiça diante disso foi grande, e que poucos souberam olhar A hora do amor com os olhos que Bergman queria. Em uma só imagem do filme, está condensada toda a sua significação: Karin (Bibi Andersson) e David (Eliott Gould) descobrem, numa igreja, uma escultura de madeira muito bela, mas essa obra de arte está condenada à destruição, porque ela está sendo corroída no seu interior por insetos. Um plano de detalhe nos mostra o fervilhar monstruoso de uma pequena massa negra que decompõe a estátua por dentro. A hora do amor nada mais é do que a minuciosa descrição da corrosão que destrói os seres durante uma paixão. Por hora Bergman abandona a meditação sobre a comunicabilidade, sobre a osmose de personalidades, a solidão, a significação da arte e a morte de Deus, para fazer uma revisão de seus velhos temas, sobretudo a descrição do inferno do casal. E aqui, mais uma vez, ele faz da mulher seu personagem principal. A câmera não se separa de Bibi Andersson, vigiando as mínimas expressões de seu rosto. O próprio cineasta chegou a declarar que The touch era o filme de Bibi Andersson que interpreta Karin, mulher casada com o médico Andreas Vergerus (Max Von Sydow) e de posição social cômoda, o que lhe amolda no rosto uma máscara de mulher feliz. Mas, em breve, quando entra em cena David, o amigo que o médico Vergerus convida para jantar, estabelecendo assim a formação do triângulo, veremos a máscara de Karin afrouxar, depois cair. Quando se torna necessário para ela viver uma dupla vida com o marido e o amante, percebe então que sua existência não é feita senão de uma carapaça de aparência. Nesse aspecto, A hora do amor torna-se também uma meditação sobre a máscara e o rosto como em Persona, a partir da situação criada na qual a mulher tem de representar para sobreviver. Diante de Vergerus, Karin tem de compor seu personagem de esposa. O crítico e ensaísta inglês Robin Wood, autor de um livro sobre Bergman 249


(editado pela Movie Paperbacks, de Londres), diz, por outro lado, que o cineasta nesse filme "situa o casamento no contexto da morte, colocando o problema da capacidade que a instituição do casamento tem de responder a questões levantadas pela morte quanto ao sentido da vida". Ele, certamente, se refere ao prólogo, antes dos letreiros, quando vemos um face a face, no quarto do hospital, entre Karin e sua mãe que acaba de morrer. Diz Wood: "No momento em que Karin recebe as alianças retiradas do dedo da morta, um estranho, ao vê-la chorar, entra e lhe propõe ajuda. O estranho é David, o homem que vai entrar em sua vida e matar seu casamento". Todo o drama nasce da dificuldade da escolha, a partir do momento em que é impossível conviver ao mesmo tempo com o marido e o amante. Dois homens que representam duas vidas. O marido, um médico atarefado e acomodado no amor; e o amante, judeu nova-iorquino, arqueólogo jovem e impudico. Um homem que dá segurança, mas entedia. O outro que a aflige, mas que seduz. Portanto, Vergerus e David representam para Karin, uma mulher que sofre os efeitos da corrosão metafísica numa sociedade igualmente minada por dentro, duas maneiras de ser possuída, ou dois modos de existir, num mundo onde não mais se questiona e existência de Deus, mas o absurdo da própria vida humana. A HORA DO AMOR (The louch — Beroningen) — 1971 — Produção: I. B. para Persona Films. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist. Cenografia: P. A. Lundgren. Música: Jan Johansson. Elenco não mencionado na crítica: Sheila Reid, Steffan Hallerstrom, Maria Nolgrad, Barbro Hiort af Ornas, Ake Lindstrom e Mimi Wahlander.

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Gritos e sussurros Numa casa sem local determinado, mas cujo tempo se situa no fim do século passado, uma mulher escreve em seu diário: "Ê domingo de manhã, e eu estou sofrendo". Na verdade, essa mulher está morrendo de câncer. Ao seu lado estão as suas duas irmãs e a governanta, que assistem inquietas a sua agonia. Este é o tabuleiro em que Bergman movimenta as suas damas, para nos comunicar o efeito ex-teriorizado de uma representação vivencial da morte, segundo a qual "ter medo da morte é apenas uma implicação de vivê-la, carregá-la como uma cruz". A morte que, em O sétimo selo, vence a partida de xadrez com o cavaleiro Antonius Block, conquistando assim o direito de levá-lo consigo, é uma preocupação fundamental na obra de Bergman, já que para ele é a única certeza que o homem pode ter na vida. Vários de seus filmes propõem uma meditação sobre a vida e a morte, ou sobretudo a respeito do passar do tempo que precede a morte. Em Morangos silvestres, por exemplo, o professor Isaak Borg pressente a morte e, durante uma viagem de automóvel de Estocolmo a Lund, ele recapitula a sua vida numa espécie de exame de consciência. Nos filmes de Bergman, a idéia da morte cruza-se constantemente com a idéia da vida. No limiar da vida nos oferece uma lembrança exemplar desse paradoxo: a mulher que se sente indescritivelmente feliz, porque vai dar à luz uma criança, acaba perdendo esta criança; enquanto que uma jovem abandonada pelo sedutor, que carrega com ódio o filho no ventre, irá ter este filho. A morte é uma obsessão para Bergman e o ser moribundo um dos seus personagens de maior substância. Por isso Agnès (Harriet Andersson), a mulher que aguarda em agonia física o seu encontro com a morte, é paradoxalmente amável e doce, enquanto suas irmãs, cheias de vida, não são mais do que rostos mascarados por um insuportável sofrimento moral. Grandes relógios de parede marcam a presença inexorável do tempo. O bater dos pêndulos, os grandes períodos de silêncio e depois as crises de dor, os gritos, os sussurros e algumas notas musicais tocadas ao violoncelo. E aqui, talvez, pela primeira vez, Bergman nos coloca frente a frente com a morte clínica. Mostra-nos a longa e inútil defesa de um organismo contra um fim inexorável. Agnès morre e nos faz lembrar outras personagens bergmanianas que conheceram o mesmo destino, abandonadas por um Deus invisível e fechado em seu 252 silêncio. Um pastor entra em cena — todo cético — para um diálogo que ele sabe ser estéril: "Recomendo-a a Deus para nos liberar de nossa angústia nesta terra sombria e suja debaixo de um céu vazio e cruel". A morte de Agnès servirá também de elemento revelador. A partir daí suas duas irmãs subirão ao primeiro plano do filme. A arrogante Karin (Ingrid Thulin), culpabilizada, dura, insatisfeita, vive num estado neurótico constante. A seqüência em que ela mutila o seu sexo, para vingar-se do marido, é uma das mais ousadas e cruéis que o cinema já mostrou. A insegura Maria (Liv Ullmann), sem escrúpulos, sem remorsos, vive o instante presente e usa a inconsci-ência como álibi. Essas duas irmãs se comportam de maneira semelhante às duas personagens — também irmãs — de O silêncio, perdidas em tormentos ambíguos, entre corpo e alma, entre amores humanos mal satisfeitos e amores místicos incompreensíveis. Essa animosidade entre irmãs é uma forma bergmaniana de dizer que o inferno não está além da morte, mas aqui mesmo na Terra, onde os seres se odeiam e se destroem. A margem dos duelos odiosos entre Karin e Maria, e vãs tentativas de comunicação entre elas, encontra-se Anna (Kari Sylwan), a criada, que a tudo assiste em silêncio. Ela é a personagem positiva de Bergman nesse filme. Ela encarna o amor, a resignação, a piedade e a simplicidade. Pateticamente maternal, ela será a única a proteger e ajudar Agnès. Uma notável seqüência surrealista, em que a morta chama sucessivamente Karin e Maria, que a recusam e a repelem, nos conduz à generosidade de Anna. Bergman reconstitui então La Pietà, de Michelangelo, numa cena antológica em que a criada oferece à morta o calor protetor de seu corpo. Em Quando as mulheres esperam, quatro mulheres contavam os seus amores, em histórias onde os homens eram figuras indesejáveis e simples silhuetas. Em Gritos e sussurros, os homens também estão distantes: são frios, cínicos e egoístas e só têm sentido na história porque fazem parte das recordações femininas. Recordações feitas a partir de grandes planos dos rostos das mulheres na tela, encobertas pelo meio (composição que lembra Persona), e fundidos em


vermelho profundo. Esta, aliĂĄs, ĂŠ a cor obsessiva do filme: a cor do sangue, a cor do inferno, e, segundo Bergman, tambĂŠm a cor da 253


alma, ou a cor do interior humano. O tabuleiro vermelho em que o cineasta movimenta as suas damas, ora vestidas de preto, ora vestidas de branco, é o sustento simbólico de todo o filme. E apenas no final há o rompimento deliberado com a cor dominante e com a atmosfera asfixiante: Anna abre o diário de Agnès e recorda os tempos de felicidade, passados com as irmãs num jardim impressionista. As mulheres surgem de branco num verde esmaecido ao fundo, e a câmera aproxima-se do rosto de Agnès que se apaga lentamente da tela. Gritos e sussurros atinge o ápice estético da obra de Bergman. Ê o mais bem acabado de seus filmes. Não há um gesto, um enquadramento, um movimento de câmera, um detalhe do cenário sequer, que não tenha o seu justo lugar, a sua função. A construção do filme é admirável, e paradoxalmente coexistem o rigor clássico, a encenação teatral e o desprezo das leis habituais de encenação. Existem três tempos fortes que se definem: a exposição dos personagens e das situações; a eclosão e o desenvolvimento da crise; e finalmente a explosão dramática. Paralelamente, Bergman distribui suas atrizes em cena, oferecendo-nos uma excepcional direção de elenco, com Harriet Andersson, Ingrid Thulin, Liv Ullmann e Karl Sylwan em interpretações que deixam a platéia aturdida e maravilhada ao mesmo tempo. Perfeito na forma, o filme traz no seu conteúdo a permanente mensagem bergmaniana: a vida é um calvário de ilusões e a morte, a única realidade. Portanto, não resta nada ao ser humano senão viver o próprio absurdo. GRITOS E SUSSURROS (Viskingar och Rop) — 1972 — Produção: I. B. e Lars-Owe Carlberg para Svensk Filmindustri. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist. Cenografia: Marik Vos. Música: Excertos de Chopin e Bach, por Kabi Loretei e Pierre Fournier. Montagem: Siv Lundgren. Outros intérpretes, excluindo as quatro atrizes principais: Erland Josephson, Henning Moritzen, Georg Arlin. Andcrs Ek, Inga Gill, Malin Gjorup, Rossana Mariano, Lena Bergman, Monika Priede, Greta Johansson, Karin Johansson.

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Cenas de um casamento O problema do casal sempre apareceu com destaque nos filmes de Bergman, ao lado naturalmente das suas profundas indagações de caráter metafísico sobre a existência de Deus, sobre a vida e sobre a morte. Em muitos de seus filmes, vamos encontrar casais em crise, separados, divorciados, desunidos, numa visão pessimista do casamento e numa constatação realista de que o amor entre um homem e uma mulher é um efêmero período de felicidade. Já em Porto, seu quinto filme, Bergman mostrava com seco realismo os infortúnios amorosos entre um marinheiro e uma adolescente. E em Sede de paixões ouvíamos o seguinte diálogo entre um casal: "Eu não quero Viver sozinho e independente. Isso é pior." (o homem) — "Pior do que o quê?" (a mulher) — "Que o inferno em que estamos vivendo. Afinal, cada um de nós tem o outro." (o homem). A relação ao mesmo tempo conflituosa e positiva do casal em seu "sartreano" comportamento é uma das preocupações mais profundas da obra de Bergman. A história de Quando as mulheres esperam desenvolvia, através de rememorações, o caso conjugai de quatro mulheres, e Uma lição de amor era uma comédia sobre a reconciliação de um casal de meia-idade. Mas em Noites de circo, Sonhos de mulheres, Sorrisos de uma noite de amor, Morangos silvestres, No limiar da vida, havia em maior ou menor escala os choques conju-gais e alusões à impossibilidade da vida em comum, que se estenderam até os seus filmes mais modernos: A hora do lobo, Vergonha, A paixão de Ana, A hora do amor e mesmo Gritos e sussurros. Em cenas de um casamento, Bergman atinge o paroxismo na dissecação da vida conjugai. Conhecedor profundo da alma humana e de suas reações mais secretas, ele também se apoia nos fracassos de seus próprios casamentos, nas suas próprias frustrações e tormen-tos amorosos, e isso num certo sentido faz do seu filme um depoimento com ressonâncias autobiográficas. Mas, feminista, Bergman deixa cair apenas um véu transparente de neutralidade sobre o conflito conjugai e acaba mais uma vez exaltando o caráter feminino e sua força, enquanto o homem se revela, como sempre, a parte mais vulnerável do casal. Talvez, por isso, Cenas de um casamento se trate de uma obra dedicada a Liv Ullmann — o grande amor de sua vida —, exprimindo inclusive uma esperança de Bergman em voltar a uma 256 vida em comum com a atriz. E na cena final, o cineasta fala pela boca de seu personagem masculino, que se agarra à mulher amada: "Eu me permito imaginar — diz Johan a Marianne — que você me ama à sua maneira... Creio simplesmente que nós nos amamos. De uma maneira terrestre e imperfeita". — Reforçando essa suspeita, há uma seqüência admirável reconstituindo em fotos fixas a juventude de Marianne-Liv; suas relações com o pai, sua curiosidade sexual. Mas as pequenas situações e os personagens, possivelmente tirados da própria vida conjugai de Bergman, não atrapalham nem diminuem a importância da análise que o cineasta desenvolve sobre o casamento em tese e sobre o drama terrível do amor e da convivência dos dois sexos. O casamento que fracassa no tédio e na rotina cotidiana. Só não sendo um casal perfeito é que se consegue ser um casal perfeito — propõe ironicamente o cineasta sueco. E vai mais longe, insinuando que a vida a dois é obrigatoriamente feita de concessões. Mas tais concessões devem ser as essências e não se pode deixar que sogro, sogra, vizinhos, amigos — enfim, que todas as concessões do mundo externo deixem de ser uma troca vivenciada com amor entre dois e se transformem em rígidas obrigações com todo o universo. Cenas de um casamento é também o processo profundo, sofrido, e às vezes animalesco, da procura da verdade interior. As pessoas verdadeiramente corajosas não devem se contentar com o fato de que existem outras coisas como lealdade, amizade, conforto, segurança, como fala a Sr.a Jacobi (Barbro Hiort af Ornas), a mulher que Marianne entrevista. Bergman prova o contrário, as necessidades devem ser assumidas, o amor deve ser buscado. E que não sejam escondidos aqueles nossos vergonhosos sentimentos como o egoísmo, o mau-humor, o cansaço temporário do cônjuge. As crises constantes de Katarina (Bibi Andersson) e Peter (Jan Malmsjo), o casal amigo do par principal do filme, ostensivamente negativas, certamente serão menos perigosas que o simbólico tapete da sala de Marianne e Johan, para debaixo do qual são varridas as sujeiras da vida conjugai. Originalmente realizado para a televisão, Cenas de um casamento é um filme no aspecto formal menos brilhante do que muitos outros do diretor. Não há, por exemplo, aquela sutileza e aquela


magia que havia em Gritos e sussurros, em que pese o fot贸grafo, 257


Sven Nykvist, ser o mesmo. Para tornar-se claro na exposição do assunto (o filme, aliás, representa o trabalho que maior popularidade lhe trouxe), Bergman utilizou-se de diferentes meios de expressão: televisão, cinema-verdade, ficção, expressão pessoal ou autobiográfica, sem falar no teatro e na literatura. Em cena, Liv Ullmann e Erland Josephsson dialogam intensamente e dominam a tela impondo a elipse de outros personagens, como Paula, a amante de Johan, os filhos e os pais do casal, constantemente mencionados nos diálogos, mas que nunca aparecem em cena. O excesso de diálogos, porém, não empana o ritmo do filme, que se desenvolve admiravelmente sem oscilações e numa progressão dramática impecável: no primeiro episódio, "Inocência e pânico", o casal aparenta equilíbrio perfeito; no segundo, "A arte de varrer para debaixo do tapete", começam as angústias — presságios de crise; "Paula" é o nome do terceiro capítulo e da amante; a quarta parte intitula-se "O vale das lágrimas" e significa a explosão dos problemas; as brigas e a mútua agressão vêm com a parte chamada "Os analfabetos"; e na última seqüência, "No meio da noite", o equilíbrio é reconquistado, mas o casamento não se restabelece. CENAS DE UM CASAMENTO (Scener ur ett aktenskap) — 1973 — Produção: I. B. e Lars-Owe Carlberg para Cinematograph AB. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist. Cenografia: Bjorn Thulin. Montagem: Siv Lundgren. Em outros papéis, não mencionados na crítica, atuam: Anita Wall, Gunnel Lindblom e Arne Carlsson.

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A flauta mágica De Mozart ou de Bergman? A pergunta tem sua validade. Visto por um ângulo estrito, talvez o filme possa ser classificado como uma incursão fora da esfera cinematográfica, ou seja, trata-se de uma mera ópera filmada. Mas os que pensam assim se enganam. Em primeiro lugar, porque a fidelidade de Bergman a Mozart é relativa. O que prevalece na encenação é a ilusão da fidelidade com o exclusivo intuito de suplementar a matéria original através de um profundo sentimento de recriá-la em termos de cinema. Em segundo lugar, porque a maravilhosa música de Mozart não eclipsa o trabalho de direção de Bergman, tanto assim que as imagens são tipicamente bergmanianas, e, além de tudo, aqueles planos periódicos sobre o rosto enlevado da adolescente tanto significam que o filme foi concebido de acordo com as recordações do cineasta que viu pela primeira vez A flauta mágica, aos 12 anos de idade; quanto criado como um convite endereçado à platéia, para que volte ao fundo de si mesma e assista ao filme com o olhar da infância. De Mozart ou de Bergman? Continuamos insistindo na pergunta. Porque de Mozart ficou a face feérica, paradisíaca, luminosa, apolínea da medalha. A face do conto de fadas, da comédia bufa, da alegoria filosófica. Mas de Bergman transcendeu a outra face. A de utilizar A flauta mágica para renovar os seus temas habituais: a dúvida sobre a existência de Deus, o significado da vida, o mistério da morte, o amor, o problema do casal, a exaltação do caráter feminino e sua força. E, sob uma fórmula simbólica, A flauta mágica não estaria ilustrando o conflito entre dois mundos? O masculino e o feminino? Na sua própria origem a ópera de Mozart é uma ópera maçônica. E a maçonaria sempre foi uma sociedade de homens (por questões religiosas, políticas e sociais) que marginaliza a mulher. Bergman, ao contrário, promove e destaca a glorificação da mulher e seu acesso à igualdade com o homem no casamento. Na narrativa, Pamina ascende, ganha o direito de juntar-se a Tamino e ser iniciada no templo, porque foi submetida a provas e por elas passou. 259


Por demais conhecidas são as dificuldades de relação entre a ópera e o cinema. Quase todas as tentativas de adaptação feitas até hoje fracassaram. Porém, A flauta mágica foge inteiramente dessa regra comum (outra exceção a considerar é Don Giovanni, ópera de Mozart filmada em linguagem cinematográfica por Joseph Losey, em 1979), e não pode ser assistida de olhos fechados. Nela, o prazer de ouvir incorpora-se ao prazer de olhar. Bergman não adapta. Ele utiliza o cinema para representar a ópera. E à perfeita fusão desses dois meios de expressão, ele reúne mais dois outros: o teatro (numa encenação paralela) e a televisão (o filme foi originalmente realizado para apresentação no vídeo). Com a soma dessas quatro artes, ele nos transporta para um mundo fantástico, nos fazendo viajar através da irrealidade do tempo e do espaço, das cores e da música. Por outro lado, Bergman nos prova ser o único cineasta da história capaz de encenar um filme-ópera, servindo-se quase que exclusivamente do rosto dos atores-cantores. Começa por captar com harmonia musical a expressão dos espectadores de idades, raças e condições sociais diversas numa sucessão de doses, e prossegue com a câmera imersa nos rostos dos atores-cantores, porque sabe que suas expressões faciais dizem mais do que seus movimentos coreográficos. Com esse peculiar processo artístico, podemos responder à pergunta inicial: de Mozart ou de Bergman? A flauta mágica é de Mozart, mas também é de Bergman, porque para ambos o movimento do espírito está num plano superior, num nível mais alto de perfeição. A FLAUTA MÁGICA (Trollflojten) — 1974 — Produção: Tele-vision TV 2. Roteiro: I. B. da ópera de Mozart, com libreto de Schikaneder. Fotografia: Sven Nykvist. Cenografia: Henny Noremark. Figurino: Karin Erskine. Cor: Donya Feuer. Musica: Eric Ericson. Montagem: Siv Lundgren. Elenco: Josef Kosthinger, Irmã Urrila, Hakan Hagegard, Elizabeth Erikson, Ulrik Cold, Birgit Nordin, Ragmar Ulfung, Erik Saeden, Britt Marie Aruhn, Birgitta Snuding, Kirsten Vaupel, Gosta Pruzelius, Ulf Johanson, Urban Malmberg, Ansgar Krook, Erland Von Heijne, Hans Johansson e Jerker Arvidsson.

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Face a face "Na Suécia, vivemos na ilusão de que temos tudo. Mas, no meio dessa vida plena, temos um grande vazio, a ilusão perdida de Deus, chamem a isso como quiserem, uma necessidade de segurança intelectual que venha compensar todas as insuficiências da segurança material, social. É esse vazio e tudo o que os homens inventam para preenchê-lo que eu descrevo em meus filmes engajados nos problemas contemporâneos e mesmo no único problema fundamental: o de dar um sentido espiritual ou humano a uma civilização de felicidade material. Em todo caso, é meu problema pessoal. Não me peçam para falar de outra coisa, eu não saberia." Essas declarações de Bergman à imprensa, por ocasião do lançamento de A hora do lobo, servem perfeitamente para responder a todas as críticas sobre Face a face, grande parte delas abrindo fogo contra o filme com palavras como "repetição", "saturação" ou "filme sem surpresas". A declaração de Bergman, portanto, serve para responder a perguntas cretinas como estas: "Por que Bergman se repete?"; "Por que ele não se renova?"; "Por que Face a face me deixou estranhamente indiferente?"; "Por que a heroína é uma psiquiatra?"; "Isto é um símbolo?". — Somente a incapacidade de compreender que um "autor" persegue sempre os mesmos temas, e que a cada nova obra ele os aborda de maneira diferente, justifica o ridículo das perguntas e das esnobes rejeições a Face a face. Houve inclusive gente que não gostou do filme alegando que os símbolos são menos carregados, os personagens mais acessíveis e o filme em si menos fora do comum. Pura esnobação. De há muito Bergman superou aquela fase de hermetismo. Ele agora avança na busca da simplificação de seu pensamento, na procura de tornar mais claros os seus propósitos e chegar ao essencial. Talvez por isso, nos forneça pouca coisa além do que já foi dito em suas obras-primas anteriores. Nesse filme limpo e vigoroso, ele volta a discutir as relações entre o amor, vida e morte, típicas de sua temática, jogando paralelamente com outras questões como o homossexualismo, o uso excessivo de drogas como última opção de uma mulher atormentada por traumas de infância, tocada histericamente por lembranças amargas do autoritarismo paternal da educação severa. Pesadelos agitados por figuras fantasmagóricas, como a velha senhora que a 261


protagonista vê sempre à sua volta, sem poder distinguir ou definir. Claro, mais um símbolo de Bergman, entre outros elementos que o diretor normalmente utiliza para fixar o estado mais depressivo da mente e da doença da alma. E no dicionário de Bergman, mente e alma são palavras que têm o mesmo significado. Freqüentemente ele usa a imagem para explorar as expressões conturbadas de seus personagens, o caos de suas mentes, as cicatrizes de suas almas. Isto talvez explique os olhares angustiados que Liv Ullmann lança sobre a platéia em busca de si mesma, à procura de seu verdadeiro rosto, já que na pele da Dr.a Jenny Isaksson, a psiquiatra aparentemente bem-sucedida e feliz, ela se sente como se estivesse debaixo de uma máscara, como no admirável Persona. A Dr.a Isaksson parece forte, sadia, segura. Mas eis que, de repente, ela se quebra, se despedaça: uma terrível crise de depressão e angústia, seguida de uma tentativa de suicídio. A límpida imagem de um ser aparentemente sem problemas (no início do filme, o belo rosto de Liv Ullmann refletido sobre uma superfície de água, seus olhos fixos sobre nós, fragmenta-se em mil pedaços). Então, somos convidados a reconstituir o enigma de uma infância infeliz, de uma vida esmigalhada. Freud, dizem, colocou a psiquiatria no mundo. Bergman, já se sabe, pôs boa parte de Freud na tela. Na fase mais forte da crise existencial de Jenny, um pesadelo nos fornece as chaves para abrir a porta do labirinto, onde se esconde a sua verdadeira personalidade. Esse pesadelo é "como o prolongamento da realidade", escreveu Bergman numa carta explicativa endereçada à sua equipe de filmagem. Jenny realiza um jogo comparativo entre si e os outros seres humanos. Ela vai descobrindo a si mesma através de outras faces. A face de Maria, uma de suas pacientes, que se sente abandonada, sem esperança e sem forças. A face de sua própria filha, de quem ouve: "Você nunca me amou". Exatamente a frase que ela jamais ousou dizer à sua mãe e que fornece a explicação de sua neurose. Dessa mãe morta, Jenny guardou uma imagem opressora: a velha senhora de olhos vazados que aparece diversas vezes em suas alucinações. Imagem nascida do terror infantil, do medo da morte 262 que lhe foi incutido na infância. Sua tentativa de suicídio é um desejo de dormir, de fugir para as trevas, onde ela possa ficar tranqüila, sem nada ver. Mas pode também ser interpretada como uma maneira de dizer aos outros que ela existe e quer ser amada. Verdade fundamental, descoberta através do relacionamento carinhoso de seus velhos avós, prestes a enfrentar o terrível e misterioso momento em que terão de se separar, já que o avô está doente e não tardará a morrer. Esta percepção conduz Jenny à mais profunda e mais bela reflexão: o amor abrange tudo e compensa a morte. Face a face é um catálogo das obsessões bergmanianas. E uma vez mais, uma figura feminina representa a neurose, o mal de viver. Isto porque no mundo de hoje, quando a mulher chega mais perto de sua libertação, também paradoxalmente torna-se cada vez mais vítima de uma sociedade machista que não se habitua a essa idéia. Vítima da violência (o estupro) e do egoísmo dos homens. Homens que em Face a face cercam Jenny mas não a ajudam: um avô doente, um marido ausente, um amante platônico. Em sua construção, o filme é longo, e às vezes parece lento, porque Bergman acumula uma série de doses de Liv Ullmann, um processo eficazmente usado para a interiorização da personagem que a atriz desempenha sem um único pecado. Pregada viva contra as paredes, agitada na tentativa de suicídio e na alucinação, ela grita, sussurra, e dá uma autenticidade fora do comum a este novo painel bergmaniano sobre as dores, o pânico, os pavores e os pesadelos trau-matizantes a que o ser humano está sujeito, enquanto permanecer vivo. FACE A FACE (Ansikte mot ansikté) — 1975 — Produção: I. B. e Lare-Owe Carlberg para Cinematograph AB. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist. Cenografia: Anne TerseliusHagegard, Anna Asp, Maggie Stnndberg. Música: Mozart. Montagem: Siv Lundgren. Elenco: Liv Ullmann, Erland Josephsson, Gunnar Bjornstrand, Aino-Taube Henrikson, Kari Sylwan, Sif RuUd, Sven Lindberg, Tore Segelcke, Ulf Johanson, Helene Friberg, Kristina Adolphson, Gosta Ekman, Kabi Loretei, Birger Malmsten, Goran Stangertz, Marianne Anninoff, Gosta Pruzelius, Re-becca Pawlo e Lena Ohlin.


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O ovo da serpente Certos críticos chegaram a afirmar que Bergman dirigiu um filme que não tinha nada a ver com Bergman. Protestaram, escrevendo que o cineasta sueco abandonara a sua temática do amor, da angústia, da vida e da morte, para realizar um filme de terror, um falso Bergman. E alguns ainda foram mais longe: Bergman, o pai supremo na religião dos cineclubes e cinemas de arte, saiu do templo e se entregou ao grande público. Vejamos como responder a essas "blasfêmias". Em primeiro lugar, olhemos para os protagonistas, Abel (David Carradine) e Manuela (Liv Ullmann), um casal incapaz de se compreender, aprisionados no seu face a face como eles mesmos. A angústia, o medo, a violência os rondam. Ele é judeu, ela é prostituta. E nós sabemos o quanto os judeus serviram de cobaias nas mãos dos nazistas, tanto como as mulheres, desprezadas, humilhadas diante da virilidade e dos valores guerreiros daqueles que queriam se purificar pela diferença racial, religiosa e sexual. Não. Bergman não mudou. Em O ovo da serpente ele se refaz, procura em outro tempo e em outro país os males que afligem os seres humanos e os ameaçam de extinção. O desespero dos dois personagens principais não poderia encontrar melhor contexto do que nesse país às portas da falência, nessa Alemanha prestes a sucumbir diante da catástrofe política e econômica, onde um maço de cigarros custa 13 milhões de marcos. Nas ruas das lágrimas de uma Berlim que abriga os desempregados e os cientistas criminosos, o veneno já está infiltrado no ar que se respira. Abel e Mariana são atingidos pelos acontecimentos, eles se refugiam entre as quatro paredes da ilusão que é o cabaré, ou então eles se perdem numa profusão de labirintos expressionistas, de cores sem saída, de esconderijos ou observatórios secretos cujos meios de utilização são somente conhecidos por um ser maligno. Vergerus (Heinz Bennent), o profeta dos criminosos da nova ordem. Pensa-se efetivamente no Dr. Mabuse, o diabólico personagem dos filmes de Fritz Lang. E será essa figura inquietante que, antes de se suicidar ao modo dos grandes chefes do III.° Reich, irá pronunciar a frase-chave do filme: "É como um ovo de serpente, no qual se vê, através da fina membrana, o réptil já em formação". 265


Compreendemos, então, o sentido simbólico da seqüência de abertura: uma multidão sombria e anônima, embrutecida e resignada, filmada em câmera lenta. Esse estranho cortejo fúnebre nos faz pensar nos escravos de Metrópole, a Babel moderna do filme homônimo de Fritz Lang, onde só uns poucos privilegiados viviam felizes na sua superfície, e que abrigava também outro cineasta louco, o não menos ameaçador Rotwang. Saímos do cinema com uma impressão de morbidez. Em estado de choque. É difícil apagar aquelas névoas de angústia, onde já se desenha a silhueta de um monstro humano com um pequeno bigode quadrado. O filme se passa em 1923, mas Bergman nos adverte sobre os dias de hoje, com as suas inseguranças, doenças e crises. Ele nos chama a atenção para o processo de desumanização pelo qual passamos e que a ciência, a tecnologia e os mecanismos políticos estimulam. Não, O ovo da serpente não é um filme agradável. Ele reflete não um fim próximo, mas o próprio apocalipse, aqui e agora. O OVO DA SERPENTE (Das schiangenei — The serpenls egg) — 1977 — Produção: Dino De Laurentis Corporation (Los Angeles) e Rialto Film (Berlim Ocidental). Produtor executivo: Horst Wendlant. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist. Desenhos de produção: Rolf Zehetbauer. Cenografia: Werner Achmann, Herbert Strabel, Frede Friedrich. Vestuário: Charlotte Fleming, Egon Strasser, Ute Klimpe. Coreografia: Heino Hallbuberg. Montagem: Jutta Hering, Petra Von Oelffen. Música: Rolf Wilhelm. Outros intérpretes não mencionados acima: Gert Proebe, James Whitmore, Glynn Tunnan, Georg Hartman, Edith Heerdegen, Kyra Meadeck, Fritz Strassner, Hans Quest, Wolfgang Weiser, Paula Braend, Walter Schmidinger, Lisi Mangold, Grischa Huber, Paul Burks, Gaby Dohm, Charles Regnier, Heino Hallhuber e Irene Steinbesser.

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Sonata de outono Uma sonata é uma composição musical em três ou quatro movimentos, para dois instrumentos. O primeiro movimento é construído sobre dois temas, o primeiro num tom leve, o segundo num tom mais forte e dominante. O terceiro e o quarto movimentos alternam a tonalidade leve e forte em exercícios circulares. Com relação a Sonata de outono, Bergman disse: "É um filme para duas atrizes, para dois violoncelos talvez, porque o som é forte". Com isso ele deu as coordenadas para uma melhor compreensão de seu filme, onde a música é um objeto filmado, um conteúdo que sustenta a ligação com a história ou situação. Bergman efetua assim a simbiose, e a música torna-se o sujeito narrativo. Quatro personagens entre quatro parades: uma mãe artista, pianista virtuose; uma filha tímida, apagada; outra filha doente mental e paralítica; e um marido da primeira filha, pastor protestante de poucas palavras, cuja única função é observar o drama, voltan-do-se, no início, diretamente para o público como que confidencian-do-lhe o que vai ocorrer. A câmera investiga os rostos em planos de detalhe, particulariza expressões, vai aos poucos num movimento leve colocando em cena os dois instrumentos que vão executar a sonata. Essa evolução progressiva vai também instalando face a face as duas mulheres que vão viver o drama: mãe e filha, Charlotte e Eva; ao mesmo tempo em que Bergman vai se posicionando diante de suas duas atrizes, Ingrid Bergman e Liv Ullmann, procurando os melhores ângulos para com a câmera ler seus rostos. O primeiro choque nasce através de uma divergência de interpretação musical. Eva toca ao piano um prelúdio de Chopin, o tom é tênue, delicado, sem importância, quase imperceptível. Sua mãe, então, executa uma versão totalmente diferente que coloca em questão a oposição de dois temperamentos: Charlotte é forte e dominadora; Eva, submissa e resignada — e naquele momento profundamente humilhada. Eclode, então, durante a noite, o inevitável confronto. A construção da sonata aparece, então, em todo o seu esplendor clássico: as duas mulheres, ponto por ponto opostas — a jovem e a velha, a mística e a materialista, a tímida e a extrovertida, a generosa 268 e a egoísta. Elas são os instrumentos. Tocam ora em solo, ora em duo, contrapondo e unindo sons. A música é apresentada em tom leve, depois em tom forte e dominante, enquanto os movimentos se encaixam crescendo em círculos, até o final. O refrão é figurado pela montagem alternada que faz surgir Helena, a irmã doente, em pequenos intervalos. Victor, o marido-pastor, só aparece na última cena para ler uma carta de reconciliação que a filha envia à mãe e que sugere um final feliz. Mas apenas sugere. SONATA DE OUTONO (Herbstsonate ou Hostsonat) — 1978 — Produção: Persona Film. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist. Cenografia: Anna Asp. Vestuário: Inger Pehrsson. Montagem: Sylvia Ingmarsdotter. Música: Chopin (prelúdio n.° 2), Bach (suíte n.° 4) e Haendel (sonata em F, opus 1). Outros atores não citados na crítica: Lena Nyman, Halvar Bjork, Arne Bang-Hansen, Gunnar Bjornstrand, Erland Josephson, Georg Lokkerberg, Liv Ullmann, Knut Wigert, Evan Von Hanno, Marianne Aminoff e Mimi Pollak.

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Minha ilha de Faro Documentário em 16 milímetros, rodado entre 1976 e 1979, respeitando o ritmo das quatro estações sobre a ilha que ele descobriu em 1961, quando procurava cenários para Através do espelho. Sabemos do amor de Bergman por essa ilha, onde ele passou a morar durante boa parte do ano, lá instalando um pequeno estúdio e escrevendo seus roteiros. Foi lá que ele filmou parte de sua obra, particularmente Persona, em 1965, e Vergonha, em 1968. O filme foi exibido no Brasil durante o "Fórum de Cinema Mundial" realizado no Rio de Janeiro entre 23 de novembro e 6 de dezembro de 1981. Em Paris, foi lançado em 1980 nos circuitos normais de cinema. Vejamos a opinião de dois críticos franceses: "Só conhecíamos Faro através dos filmes de ficção de Bergman e imaginávamos a ilha como a adequação única de um homem e de um lugar, San Simeon e Hearst ou se preferem Xanadu e Kane, sede de todas as obsessões e de todos os fantasmas, espaço mítico marcado pelo silêncio, a ausência de Deus, da mulher, do outro, uma espécie de ilha deserta maltratada permanentemente pelo vento e pela chuva. A surpresa, portanto, é bem grande nesse filme em que descobrimos homens, mulheres, animais, e no qual vemos ao lado dos moradores do lugar, turistas que querem se bronzear e praticar esportes náuticos, e onde verificamos que os seus habitantes têm problemas materiais e não somente angústias metafísicas. Faro Dokument 1979 retoma o propósito do primeiro filme, um curta-metragem, realizado dez anos antes, e do qual vemos pedaços em preto e branco. É um verdadeiro trabalho de documentarista a que se entrega Bergman. E a surpresa também está em ver o mestre se recusar a todos os efeitos de direção e de se contentar em interrogar os habitantes sobre seu modo de vida e suas condições de existência. Surpresa de não ver nenhuma preocupação espiritual, como de ver que Bergman pode filmar sem Sven Nykvist por trás das câ-meras." (Jean Roy, em Cinema 80, n.° 256.) "Em 1969, Bergman havia rodado um primeiro 'documento' sobre Faro, ilha onde ele se instalou em 1966 depois de havê-la descoberto durante os preparativos para filmar Através do espelho e onde ele afirma ter suas raízes. Dez anos mais tarde, ele realizou 271


uma nova reportagem onde inseriu extratos da primeira, entrevistas com escolares hoje adultos: a conclusão desse segundo filme é de que é menos pessimista do que o primeiro, porque os jovens manifestam atualmente menos tendência de deixar a ilha. E daqui a dez anos? Bergman planeja recomeçar a experiência em 1989, 'se ainda estiver vivo', diz ele. Portanto, Faro, a quatro horas de barco de Estocolmo, é um país subdesenvolvido, um país de camponeses e pescadores, sepultado sobre a neve no inverno, invadido-pelos turistas durante a bela estação. O realizador concebeu esse filme no momento em que havia sido brutalmente agredido pelo fisco por atrasos de impostos e tinha recebido um grave choque psicológico. Ele se apega muito vivamente à burocracia, que ele acusa de tolher as liberdades individuais e o espírito empresarial. Ele interroga um vizinho e um amigo, camponeses, empregados, pescadores, segue-os em suas atividades cotidianas, colocando assim em prática aquilo que ele chama 'seu engajamento social'." (Mareei Martin, em La revue du cinema — Image et son — Êcran, n.° 349, abril de 1980.) 272

Da vida das marionetes Quem assistiu Cenas de um casamento deve estar lembrado de dois personagens secundários daquele filme, o casal Peter e Katharina Egerman, que faziam uma visita a Johan e Marianne, e eram apresentados como dois seres infelizes, mergulhados numa profunda crise conjugai. Agora eles ascendem ao primeiro plano, tornam-se protagonistas do grande drama bergmaniano, as marionetes, que o diretor coloca em cena no pequeno teatro da vida e através de fios invisíveis os move, fazendo-as representar suas próprias tragédias. No prólogo filmado em cores, um homem assassina uma prostituta. Aparentemente, um crime cometido por um cliente de passagem. Um crime sexual, com sodomização do cadáver; talvez uma reminiscência de Jack, o estripador. Mas não é nada disso. Aos poucos as coisas começam a fazer sentido. As cores iniciais são substituídas por um sombrio preto e branco, e a partir daí ficamos sabendo que o assassino é Peter Egerman. Começa, então, a descrição do mecanismo inexorável que explicará o gesto louco do protagonista vencido por uma angústia existencial, homicida e suicida. Bergman nos convida a seguir sua pesquisa composta de vários elementos de um processo que enbloba, em doze quadros, fatos e testemunhos. A pesquisa bergmaniana não obedece a nenhuma cronologia ou explicação racional. Ela transgride a continuidade lógica e passa em revista acontecimentos datados em relação ao dia do crime (vinte dias depois da catástrofe, quatorze dias antes, uma semana depois, uma hora antes, informam os intertítulos). Entram em cena outros personagens que dão seu depoimento: o psiquiatra, amigo da família, que coloca a máscara de um homem da ciência para melhor seduzir a mulher do seu cliente; a própria mãe de Peter que descreve o relacionamento possessivo com o filho e a aceitação duvidosa de seu casamento. Mas entre outros personagens secundários, nenhum é mais importante, lúcido ou profundo do que o homossexual Tim, sócio de Katharina numa firma de alta-costura. Movida por cordões sensíveis, essa marionete vê na sócia uma rival que lhe inspira ao mesmo tempo ternura e inveja. Levado por esse duplo sentimento, apresenta Peter à prostituta, numa vingança contra Katharina, e esperançoso 273


de vir a ter um caso com ele. Ê através do depoimento de Tim que compreendemos melhor as causas profundas e complexas do gesto criminoso de Peter, aparentemente um ato gratuito. Não acreditando na objetividade científica com que o psicanalista explica a mente criminosa de Peter, Bergman faz de Tim seu porta-voz. A melhor cena do filme, aliás, é um monólogo de Tim sentado diante de um espelho, mostrando-se pateticamente inconformado com as rugas que começam a surgir em seu rosto. Os rostos, como, sempre, Bergman faz questão de filmá-los bem de perto para expressar as mais íntimas perturbações de seus personagens. Mas há também um sonho filmado, em altíssimo contraste, mostrando o casal flutuando num quarto branco; um belíssimo desfile de modas captado em câmera lepta numa vinheta solta no meio do filme; e numa única vez a câmera abandona os ambientes fechados e vai para um terraço de onde observa do alto a agitação noturna da cidade de Munique. No epílogo, o preto e branco das imagens cede lugar novamente para as cores, e, como se nada tivesse acontecido, Peter deita como uma criança com um urso de brinquedo ao lado. Tudo permanece em aberto... DA VIDA DAS MARIONETES (Aus dem leben des marionetíen) — 1980 — Produção: Persona Films. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist. Música: Rolf Wilhelm. Montagem: Petra V. Oelffen. Elenco: Robert Altzorn, Christine Bucheger, Martin Henrath, Rita Russek, Lola Muethel, Walter Schmidinger, Heinz Bennent, Ruth Olafs, Karl-Heinz Pelser, Gaby Dohn e Tony Berger.

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Fanny e Alexandre Um filme testamento? O próprio Bergman afirma que sim. E pelo que se vê na tela, não há como negar: o teatro da vida chega ao seu final; o derradeiro ato foi representado; a cortina fechou-se e o artista subiu pela última vez ao palco para agradecer a platéia, acenar para o seu público e num passe de mágica incorporar sua própria pessoa à sua arte, num todo harmonioso e indivisível. Mais do que uma obra-prima, Fanny e Alexandre é o ápice do cinema dos anos 80, porque provavelmente não haverá nesta década nenhum outro filme mais belo, mais rico, mais poético, mais emocionante e mais inteligente. Para todos, mas particularmente para os que acompanharam a longa trajetória criadora de Ingmar Bergman, Fanny e Alexandre é um filme especial, pois como declarou o próprio cineasta, representa a soma de sua vida e de sua arte. Atores, personagens, cenários e temas se reencontram nesse filme do adeus. Os mais fiéis companheiros de trabalho estão aí, especialmente o inseparável fotógrafo Sven Nykvist e sua câmera mágica, diante da qual atrizes e atores desempenham impecavelmente seus papéis sob a orientação de um dos raros diretores capazes de usá-los como os instrumentos mais preciosos do cinema. É bem verdade que Bibi Andersson, Gun-nel Lindblom, Ingrid Thulin e Liv Ullmann estão ausentes, mas há Eva Froling no papel de Emilie Ekdahl, a mãe de Fanny e Alexandre, que por seu talento e por sua beleza surge como a soma e a síntese de todas as personagens femininas de Bergman, e também, por extensão, como a representação de todas as suas musas e atrizes. Apresentado como o filme-testamento de Bergman, Fanny e Alexandre fecha assim uma obra excepcional e inigualável onde cada um dos filmes responde provisoriamente as interrogações dos precedentes, e onde cada tema torna-se uma nova progressão de um conjunto particularmente compacto e coerente. Nesse sentido, Bergman não poderia mesmo deixar de marcar sua saída de cena, com uma mestria absoluta na condução da narrativa, na direção dos atores, na densidade dos diálogos, na utilização dos cenários, na harmonia das cores. São três horas de prazer cinematográfico em estado puro. "Não apenas diversão". Depois dessa frase, o plano de abertura, vemos um teatro em miniatura e o descerramento de uma cortina 276 cujo palco enquadra o rosto do menino Alexandre (Bertil Guve), ou o rosto do pequeno Bergman. Plano que situa de improviso o personagem na sua futura vocação artística de diretor de teatro. Mais tarde, a cena da lanterna mágica irá revelar também a sua aptidão para o cinema. Como em O Silêncio onde um menino explora o cenário barroco de um hotel, Alexandre percorre com o olhar as grandes salas da casa da avó onde vai se realizar a festa de Natal da família Ekdahl. Bergman harmoniza a estética do plano aproximado do rosto de Alexandre com a presença impressionante do cenário realçado pelos movimentos de câmera. Um corte súbito e a seqüência seguinte começa com todos os membros da família Ekdahl (configuração da família de Bergman) chegando para a suntuosa ceia de Natal. Os três filhos de Helena Ekdahl (Gunn Walgren), antiga atriz de teatro: Oscar (Allan Edwall), ator e pai de Alexandre e Fanny (Pernilha Allwin); Carl (Borje Anis-tedt), que reconhece o fracasso de sua vida profissional e conjugai; e Gustaf Adolf (Jarl Kulle), comerciante que pensa sobretudo em suas aventuras sexuais. Lá estão também as noras, as crianças, as criadas, e Isaak Jacobi (Erland Josephsson), o agiota judeu e antigo amante de Helena, que desempenhará um papel decisivo na vida de Fanny e Alexandre. Bergman observa todo esse pequeno mundo com um prazer intenso. Ele multiplica as situações cômicas e os pequenos fatos que ficaram gravados na sua memória quando criança. O espectador tem a impressão de que o cineasta ensaia uma comédia e, na verdade, ela começa a se delinear quando as coisas se precipitam numa série de seqüências de antologia. O pai de Alexandre passa mal no teatro e é transportado agonizante pelas ruas cheias de neve de Uppsala. Como em Gritos e Sussurros, nos momentos que precedem a morte de Agnès (Harriet Andersson, aqui magnífica no papel de Justine, a criada que delata Alexandre ao bispo), a câmera enfoca grandes relógios na parede e anuncia de novo a presença da morte. Traumatizado, Alexandre não suporta ver apagar a última chama de vida do pai: fraqueja e agacha-se num canto, enquanto Fanny (configuração de Margareta, a irmã mais nova de Bergman, que o ajudou a construir o seu primeiro teatro de marionetes), forte e firme, aceita


tudo com tranqüilidade. Mais uma vez, e agora no nível tenro da infância, Bergman exalta o caráter feminino 277


e sua força, enquanto o homem se revela mais vulnerável. De Fanny à matriarca Helena, as mulheres no filme são todas colocadas num plano superior, ao passo que os homens, de Alexandre ao velho Isaak Jacobi, demonstram de novo fraqueza e insegurança. Subitamente o filme muda de estilo e de tom. Entra em cena o grande vilão, o bispo Vergerus que se casa com a viúva Emilie e torna-se o padastro de Alexandre e Fanny. As crianças fazem então o seu aprendizado de infelicidade. Bergman acerta suas velhas contas. Com a aparição do bispo Vergerus (Jan Malmsjo), o filme de ternura se transforma em filme de ódio. Como na peça famosa de Molière, o religioso, com sua hipócrita devoção cristã, leva uma família à ruína. Tartufo se faz inquisidor para perseguir duas crianças que ousam desafiar a tirania puritana. Alexandre e Fanny passam pelo inferno da trilogia "Tradição, Família, Propriedade", aprendendo a revolta contra Deus. E mais tarde, o menino, graças ao teatro de marionetes e de seus amigos judeus, toma consciência de que Deus não é mais do que um fantoche a serviço de uma moral contra a natureza. Um Deus que se esconde das pessoas. Nesta seqüência-chave para a compreensão do filme, Alexandre perambula pela casa de Isak Jacobi, uma porta se abre e ele pergunta: "Quem está aí?" — Uma voz responde: "Deus. Meu rosto não pode ser visto por nenhum mortal". A porta se abre e o medo de Alexandre desaparece quando surge Aron (Mats Bergman), o dono do teatro de marionetes que manipula os bonecos e faz com que eles desabem no chão. A procura de Deus, presente em quase todos os filmes de Bergman, chega ao seu final, quando se desfaz a ilusão do espetáculo e surge em cena justamente o ator do espetáculo. Não existe arte sem segredo, criação sem mistério. Deus, o autor do espetáculo, é um feiticeiro. É o palhaço, o mágico, o ator, o ilusionista, o cineasta. Depois da conclusão expressíonista desse cruel episódio, e o retorno à felicidade, Bergman se vê obrigado a fazer o seu pequeno discurso de despedida. Ele convoca o personagem de Gustaf Adolf para essa missão e faz a apologia da felicidade simples. Mas é a avó que terá a última palavra, quando lê um texto de O sonho, de Strindberg, para Alexandre: "Tudo pode acontecer, tudo é possível e provável. O tempo e o espaço não existem. Sobre um ligeiro fundo de realidade, a imaginação tece sua teia e cria novos desenhos... novos destinos". 278 Fanny e Alexandre é a revisão dos velhos temas de Bergman, desde a morte de Deus até a significação da arte, passando pela metáfora do teatro como imitação da vida, ou da vida como encenação teatral; pela oposição rosto-máscara, que consiste em achar a verdade íntima sob a maquilagem do ator; pela troca de identidades; pelas interrogações sem respostas; pelo problema do casal; pelo sentimento de humilhação... Todos os temas, todos os fantasmas, todas as obsessões e vivências do cineasta estão aqui nesse filme admirável e de mil detalhes impossíveis de serem examinados. Como, por exemplo, a estátua de mulher com busto nu que toma forma humana, logo no início, detalhe irracional que anuncia e justifica as próximas aparições do fantasma do pai, criado pela imaginação de Alexandre que assiste, encantado, uma encenação de Hamlet. Desde então, o imaginário e o real se revezam como nos melhores momentos de Morangos silvestres e O sétimo selo. Não se pode também esquecer o sermão sobre a verdade e a mentira que Vergerus tenta impingir a Alexandre e a recusa do menino em acatá-lo. Para Bergman não há verdade sem mentira nem mentira sem verdade, aforismo que precede o confronto entre a arte e a religião; o choque entre o mundo alegre, livre e sensual, representado pela festiva casa da avó, com o triste, mesquinho e intolerante universo ocupado pelo bisco e simbolizado por seu presbité-rio silencioso e frio, sem móveis e com seus familiares e criadas car-rancudas e mórbidas. O tema principal do filme seria, desta forma, esse confronto entre dois mundos distintos: o mundo da arte, com sua beleza e luminosidade, e o mundo da religião, hipócrita, repres-sor e sombrio. As seqüências são separadas por um plano da água de um rio caudaloso que corta a cidade, imagem significativa da passagem do tempo e representativa da presença da vida em contraste com o fogo destruidor que, no final, leva o bispo e seus monstros para o inferno que ele mesmo criou com seus malefícios e imposturas. Mas em Fanny e Alexandre há também enquadramentos de Persona, lembranças de O rosto, alusões a A hora do lobo, referências estéticas a Gritos e sussurros e a A flauta mágica. E igualmente a reposição em cena de alguns personagens-chave de outros filmes: a criada maliciosa de Sorrisos de uma noite de amor, ou a avó do mesmo filme, revivida


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mais jovem pela grande atriz de teatro Gunn Wallgren; o casal de velhos amantes de Uma lição de amor, os atores de província de Noites de circo, o garoto introvertido de O silêncio; o pastor luterano sem fé que escolheu essa vocação para acalmar sua consciência, alter ego do pai de Bergman, presente em quase todos seus filmes; os criados, as domésticas, os membros da família de Morangos silvestres. E ainda os cenários. A casa da avó, o teatro, o presbitério e a extraordinária loja de Isaak facobi constituem o mundo de duas crianças que cresceram em Uppsala, precisamente a cidade natal do cineasta. Autobiográfico na sua essência, Fanny e Alexandre abriga os segredos de um mundo particular, o admirável mundo mágico do menino Ingmar Bergman, oprimido e castigado por um pastor do diabo que o fez ter medo de Deus e o traumatizou com sua moral puritana. Filme-testamento, Fanny e Alexandre expressa também todas as concepções estéticas do artista Ingmar Bergman, exprime todas as suas convicções dramáticas, toda a sua filosofia cinematográfica. FANNY E ALEXANDRE (Fanny Och Alexander) — 1982 — Produção: Katinka Farago e Jorn Donner para a Svenka Filmstitute TV Suécia Canal 1 e Gaumont. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist. Música: Dankel Bell. Montagem: Sylvia Ingemarsson. Cenografia: Anna Asp. Intérpretes não citados na crítica: Anna Bergman (Hanna Schwartz), Christine Schollin (Lydia Ekdhal), Emile Werko (Jenny Ekdahl), Kerstin Tidelius (Henriette Vergerus), Marianne Aminoff (Blenda Vergerus), Marie Granlund (Petra Ekdahl), Mona Malin (Alma Ekdahl), Stina Ekblad (Ismael).

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Depois do ensaio Em 1984, Bergman surpreende o mundo novamente com um novo filme, lançado no Festival de Cannes, e que os críticos consideraram como uma pequena obra-prima, simples, direta e dedicada ao teatro, a sua grande paixão, ao lado do cinema. E para justificar a declaração que havia dado antes, de que Fanny e Alexandre era o seu último filme, Bergman insistiu em dizer que Depois do ensaio não tinha nada de cinema, que era só uma peça de câmera feita para a televisão. Na verdade, Fanny e Alexandre e Depois do ensaio são dois fil-mes-testamento de inspiração e temas opostos, mas perfeitamente com-plementares. No primeiro, a infância, abordada através de uma saga familiar e romanesca. No outro, a velhice, tratada entre quatro paredes, num palco de teatro com personagens limitados. Ambos os filmes são sínteses de uma vida, de uma arte e dos temas de uma obra. Ou seja, a obra de Ingmar Bergman. Henrik Vogler (Erland Josephsson), diretor de teatro envelhecido, encena pela quinta vez O sonho, de Strindberg. No teatro deserto, ao término de um ensaio, ele pensa. Aparece a jovem atriz Anna Egerman (Lena Olin), dizendo ter esquecido uma pulseira. Ela é a filha de uma antiga amante de Vogler, uma atriz falecida há poucos anos. Anna, que nunca sentiu-se amada pela mãe, guarda uma mágoa tenaz que Vogler tenta atenuar. Mas Anna também veio procurar Vogler no palco para contar-lhe que estava grávida, o que a impediria de fazer a peça. Vogler se irrita, mas ela confessa que fizera um aborto para não perder a oportunidade de trabalhar- com ele. O diretor a acusa de irresponsável, e a atriz defende o teatro como a coisa mais importante da vida. Surge Rakel (Ingrid Thulin), uma atriz em processo de envelhecimento, que suplica a Vogler, com insistência impudica, para que ele renove as ligações que os uniram outrora. Anna assiste aquela desagradável discussão e se recorda: ela, criança, junto à mãe, que pode ser Rakel, em forma de fantasma. Em outros tempos, ela havia trabalhado em outra encenação de O sonho, antes de, pateticamente, se deixar autodestruir pelo álcool, a vida desregrada e a solidão. Vogler, o provável pai de Anna, teme que a história se repita e que a jovem atriz possa igualmente cair tão baixo. 282 Depois da saída de cena de Rakel, Anna e Vogler retomam o diálogo, e se instala uma sedução mútua. Todos dois evocam uma história de amor — efêmera, pois destinada ao fracasso, mas provavelmente intensa — na qual eles poderiam viver juntos se cedessem aos seus impulsos. Os dois a "vivem" através da imaginação, passeando sobre o palco. Depois Anna se retira fazendo alusão ao som de um sino ao longe. Só, novamente, Henrik Vogler se inquieta por não poder compreender. Em apenas 72 minutos, Bergman desnuda, disseca seus personagens. Melhor do que ninguém ele conhece os atores. Por ter trabalhado com eles durante quase meio século, tanto no teatro como no cinema, ele conhece essas marionetes de carne e sangue que ele manipula de acordo com sua vontade. Ele conhece a força dos atores mas igualmente sua fragilidade. Alternadamente sensível, tirânico, amigo, exigente, Henrik Vogler é aquele diretor que sabe que é preciso sacrificar tudo para se chegar ao objetivo proposto, ou seja, chegar perto da perfeição. Talvez seja por isso que aquele diretor envelhecido trabalhe pela quinta vez na encenação de O sonho, de Strindberg. Não seria ele o alter ego de Bergman? Há indícios disto. Uma vez mais trata-se de uma experiência pessoal, e o gênio criador de Bergman mistura paixão e razão, psicologia e fantasmas. Partindo de um relato sucinto ele estica a narrativa através das palavras, daqueles diálogos que ferem e revelam os segredos. Assim, ele nos faz mergulhar "literalmente" nas questões fundamentais que opõem o imaginário e a realidade, a verdade e a mentira, o trabalho artístico e a vida. Com uma violência verbal lancinante, Bergman revela o trabalho "esquizofrênico" de todos aqueles que se apaixonam à primeira vista pelo teatro. Todos os filmes de Bergman são repletos de dúvidas, de angústias, mas igualmente de impulsos apaixonados. Ê preciso ferir para melhor amar. É preciso conhecer melhor para compreender. "Eu amo os atores porque eles não têm medo de morrer", diz aquele diretor preocupado com as complexidades da criação e suas relações afetivas com aquela jovem atriz. A genialidade de Bergman em Depois do ensaio consiste em prolongar constantemente o


diálogo pelo olhar. As palavras são ao mesmo tempo sons e gestos. Aquele enorme fluxo de palavras é o 283


espetáculo em si, o filme. Filme de diálogos, Depois do ensaio é também, por outro lado, uma admirável coreografia de rostos. Se as palavras permitem ao cineasta penetrar no fundo das almas e suas labirínticas complexidades, o olhar — no sentido mais físico: aquele que movimenta a câmera sobre a pele dos atores — capta rostos alternadamente como se fossem espelhos impudicos, ou máscaras. A oposição rostomáscara é um tema constante na obra de Bergman (vide notadamente O rosto, Persona e Face a face) e serve entre outras coisas para estabelecer o antagonismo entre a realidade e a aparência, própria da condição humana, mas particularmente evidente no caso de quem é ator. É por isso que Anna procura Vogler. Ela vem através dele procurar as respostas, as certezas mesmo, para as questões angustiantes que ela coloca tanto sobre a personagem que ela deve interpretar em O sonho, de Strindberg, como sobre o papel que ela deve interpretar na vida. Vogler, este é um nome familiar para quem conhece bem os filmes de Bergman. Vogler era o ilusionista interpretado por Max Von Sydow em O rosto, filme que a exemplo de Depois do ensaio era também uma meditação sobre o artista no mundo moderno. E Vogler também era o sobrenome de Elizabeth (Liv Ullmann), a atriz de Persona que, neurótica, se refugia no silêncio e vai se apoderando da personalidade de sua enfermeira. Vogler, este é um nome mágico, o nome do artista que fabrica ilusões, do homem que ilude o público com sua arte. O Vogler de Depois do ensaio é um diretor de teatro, ou seja, é um prestidigitador chamado Ingmar Bergman, o único artista no mundo capaz de transformar a arte dramática em vida real. DEPOIS DO ENSAIO (Efter Repetitionem) — 1984 — Produção Jorn Donner para Personafilm e Gaumont. Roteiro: I. B. Fotografia: Sven Nykvist. Cenografia: Anna Asp. Montagem: Sylvia Ingermarsson. Outros intérpretes não citados na crítica: Nadja Palmstjerna-Weiss (Anna criança), Bertil Guve (Henrik Vogler criança).

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A leitora mais lĂşcida do que o crĂ­tico


Matéria publicada no jornal O Estado de Minas, "Seção de Cinema", em data não apurada, sob o título "Quem é Bergman" e assinada por Carlos Henrique Santiago.

(Bergman é gênio!) Bergman é atualmente um dos mais respeitados diretores do cinema europeu. Competência e arte é o que não falta em seu currículo: Morangos silvestres, Gritos e sussurros, etc. Além disso, suas atividades não se limitam só ao cinema; é escritor, vários livros seus já foram publicados aqui no Brasil, e é principalmente roteirista e diretor de teatro na sua fria Suécia, sendo esta a atividade à qual mais tempo de sua vida dedicou. Toda a sua formação artística vem dos palcos, sendo que o próprio Bergman confessa que só começou a se interessar e a assistir cinema após seu primeiro emprego na emergente e ao mesmo tempo tradicional indústria cinematográfica nórdica, como roteirista da Svensk Filmindustri. Apesar disso — e talvez devido à facilidade de o cinema ser difundido e assimilado por platéias estrangeiras —, foi como diretor de cinema que Bergman atingiu fama internacional. Sua melhor fase dentro do cinema é exatamente quando da sua descoberta pela crítica francesa, a mesma crítica que posteriormente comporia os quadros da Nouvelle Vague (Nova Onda). Bergman antecipou, inclusive, várias das inovações estéticas deste movimento, sendo reconhecido como seu legítimo mestre e influenciador. E é nesta época, os anos 50, que Bergman se encontra definitivamente com o cinema, e passa a'descobrir e se aprofundar cada vez mais 289


no cinematógrafo e sua linguagem (audiovisual). Se estes tinham muito a lhe oferecer, I. B. tinha muito mais para dar em troca; ele explorou como poucos o terreno fértil mas inculto do cinema. Suas lições foram aprendidas com aplicação e por outros mestres desenvolvidas. Mas Bergman não desenvolveu junto, parou aí; ao grande mestre só restou assimilar as suas próprias lições, agora alienadas do seu domínio pelos enfants terribles da Novelle Vague (New Wave). Na verdade seus filmes nunca conseguiram superar suas raízes teatrais. Bergman é intrinsecamente um diretor de teatro, que, nas horas vagas, se traveste de diretor de filmes. I. B. não é um cineasta, é um artista que se utiliza da linguagem cinematográfica. Os cineastas são, acima de tudo, indivíduos que, por uma razão que transcende até mesmo a metafísica bergmaniana, não conseguem distinguir, pois formam um bloco único, sua vida de seus filmes (J. L. Godard). Se falo de Bergman, não é gratuitamente. O seu último filme está em cartaz. Bergman espalha para que todos os mortais ouçam que vai largar o cinema para se dedicar inteiramente ao teatro, que lhe dá mais prazer. 1) Desde 1972 que I. B. não dirige um filme à altura de seus melhores momentos. Tem-se restringido a repetir suas eternas angústias existenciais, prato cheio para os psicanalistófilos mas de uma chatice imensa (recorde Face a face — com exceção apenas do genial A flauta mágica. Da vida das marionetes não foge à regra, mas pelo menos não possui a insossa e histérica Liv Ullmann no elenco. 2) Quanto às últimas declarações de I. B., resta ao cronista (crítico? articulista?) acreditar que suas férias cinematográficas são realmente necessárias e desejar um retorno mais criativo. O ideal seria começar tudo de novo. Aprender novamente a fazer cinema. 290 f Carta publicada pelo jornal O Estado de Minas, na coluna "Seção de Cinema", em resposta ao crítico (?), articulista (?), cronista (?), Carlos Henrique Santiago.

Ao Carlos Henrique Santiago — Seção de Cinema — EM. Prezado Senhor, Ao ler sua recente crítica ao maior cineasta que aborda os problemas e conflitos psíquicos, doume a liberdade de pelo menos tentar fazer alguns comentários acerca do mesmo, já que sou sua fiel admiradora. O nosso prezado cronista radicalmente menosprezou os últimos trabalhos de Bergman, sem procurar analisar a contribuição que sua arte deu ao conhecimento da mente humana. "A vida imita a arte!" Toda manifestação artística colabora para o desenvolvimento do homem e da sociedade, quando expressa os problemas e transformações do mundo, nos planos político, social, cultural, psíquico, e o trabalho de Bergman está inserido neste contexto artístico. O nosso cronista colocou as "incansáveis repetições das angústias existenciais" nos trabalhos de Bergman. Acho que nunca será enfadonho abordar temas que visivelmente atacam as causas das depressões existentes tão brutalmente em nosso século. Angústia existencial, uma das principais responsáveis pelo fracasso de inteligências brilhantes e grandes talentos artísticos. Como pode ser "chatice" falar de sentimentos que impedem o homem de se realizar plenamente como ser social, livre de neuroses profundas? E que impede 291


também nossa sociedade de se unificar e lutar contra os males que a afligem? Não, nunca se cansará de falar, de mostrar de quaisquer formas, mesmo através do mais profundo trabalho artístico, todo o sentimento de angústia que está destruindo o homem do século XX. Numa época em que uma das maiores preocupações do cinema é mostrar sexo e violência, como achar uma "chatice" um cineasta que penetra tão profundamente no que o ser humano tem de mais belo: sua mente? O nosso cronista disse que desde 1972 Bergman não deu nenhuma contribuição artística para o cinema. E Sonata de outono, Face a face, O ovo da serpente, Da vida das marionetes e outros? Acho que, para os amantes da arte, não é preciso dizer nem comentar a grandiosidade destes trabalhos de Bergman, e onde várias reportagens já foram feitas a respeito destes filmes, mostrando toda a sua beleza artística. É importantíssimo termos um mínimo de conhecimento psicanalítico, a fim de entendermos melhor nosso comportamento, o das pessoas que nos rodeiam, dos nossos relacionamentos mais profundos e do meio em que vivemos. Portanto, nunca será enfadonho assimilarmos através da arte todos estes conhecimentos, como Bergman tão claramente nos ensina nos seus filmes. Até para podermos entender a personalidade patológica dos grandes mitos políticos da História, como Hitler, Mussolini, que conseguiram manipular, dominar, iludir uma grande quantidade de massas populares, precisa-se ter um mínimo de conhecimento de psicanálise e/ou psicologia. É muito difícil entendermos os processos sociais e políticos sem o conhecimento da psicanálise, e muito menos a compreensão do mundo em que vivemos. Se Bergman não é cineasta e sim teatrólogo, como se explica a realização de seus grandiosos filmes? Afinal, o que nosso cronista entende por ser cineasta? E se Bergman não é cineasta, como ele mesmo escreveu que Bergman antecipou várias inovações estéticas da Nouvelle Vague? E também que os integrantes deste movimento o reconhecem como seu legítimo mestre e influenciador? Acho que não se pode desprezar o estilo artístico de cada cineasta. Quem está precisando tirar férias é o nosso caro cronista, a fim de estudar um pouquinho de psicanálise e saber da sua importância na compreensão do mundo e aprender com isso a não desvalorizar e 292 conhecer melhor as obras do maior cineasta do comportamento humano. É preciso estudar também acerca da "histeria", pois se o nosso cronista entendesse um pouquinho a respeito disso, ele jamais diria que Liv Ullmann exagera nos seus papéis de crises histéricas. Mas histeria é isso mesmo, é toda manifestação corporal de um conflito psíquico, portanto ela jamais poderia exagerar nos seus papéis de crises histéricas. Ullmann está e sempre esteve soberba e maravilhosa em seus papéis que retratam claramente como é o comportamento de uma pessoa que tem distúrbios mentais. É, pois, um crime criticar o maior conhecedor, em todos os tempos, da mente humana, um homem que faz o que quase nenhum cineasta fez até hoje, mostrar na tela a realidade da angústia do homem do século XX. Alida Pantuzza — BH — 15/7/81 Comentário do autor: Só faltou dizer, Alida, que se recomenda ao nosso caro cronista(?) procurar desvendar se ele é isto ou crítico(?) ou articulista(?), porque afinal é uma "chatice imensa" emitir opinião em jornal, assinar embaixo e não saber nem o que ele próprio é. 293


Mãe - Poder Álida Pantuzza Sobre seis filmes de Bergman: Sonata de outono — Morangos silvestres — Sorrisos de uma noite de amor — Da vida das marionetes — Gritos e sussurros — Face a face.


Ingmar Bergman aborda com muita sutileza e destaque o poder da mãe dominadora e castradora, em grande parte de seus filmes. Como conhecedor profundo da alma feminina e da mente humana, ele nos mostra o quão frágil, insignificante, infeliz, um filho se torna diante deste tipo de mãe, levando-o a uma angústia tão profunda e muitas vezes até ao suicídio. Bergman nos mostra dois tipos de mulheres: a poderosa, dominadora, egoísta, forte e neurótica; e a mulher frágil, sensível, insegura, melancólica, com sentimentos de inferioridade diante de si mesma e dos outros. O filme que mais destaca estes dois tipos de mulheres é Sonata de outono, onde a insignificância de Eva diante de si mesma é tão forte que, por mais que o marido lhe diga ou lhe mostre que é amada, ela nunca se sentirá amada por ele e por ninguém. O neurótico nunca se sente amado, por isso sua sede de amor é insaciável, principalmente diante do fato de Eva sentir que não conseguiu conquistar o ser que sempre lhe foi mais importante, sua mãe. Ela sempre se sentirá incapaz de conquistar alguém. Ela se tornou impotente diante da vida e do amor. Incondicionalmente o poder sempre vence. No filme há o confronto mãe-filha, e neste confronto Eva se torna forte, poderosa, consegue dominar a situação e tornar sua mãe um ser frágil. É o momento da cobrança, da liberação de sentimentos reprimidos durante toda uma vida. A cobrança de uma mãe que nunca foi mãe, a ausência da figura mais importante na vida de uma criança, a falta de amor, de incentivos, de elogios, de brincadeiras, de contato, de companhia constante, a falta dos sentimentos mais fortes para com uma criança, e tudo isso em prol da arte. Que artista é este, que sensibilidade é esta, incapaz de mostrar amor a um filho? A arte é mais importante do que o ser humano? Que a felicidade de uma criança? O artista só tem sensibilidade diante 297


da arte? O ser humano inexiste para ele? Mas é para o ser humano, para o mundo, que o artista mostra sua arte. Sem o público sua arte jamais persistiria, e que contradição não conseguir mostrar sensibilidade e amor para com a pessoa mais importante, seu filho! E o seu público seria seu filho, se ele não passasse a competir com a arte da mãe, vendo nela uma rival que o afasta dele, e o ódio da mãe passa a sua arte. E Eva consegue, por um instante apenas, mostrar sua força, e a fragilidade de Charlotte é notada fortemente, sobretudo quando ela se deita no chão, diante dos pés de Eva, alegando dores na coluna. Mas como sempre a força se impõe ao mais fraco. Eva, depois de todo esse confronto, volta a ter seus sentimentos de culpa por ter magoado a mãe, e este sentimento ela sempre o carregou desde a infância, por achar, em seu mundo de fantasias, que a mãe se tornava ausente por sua culpa, por não conseguir conquistá-la e tê-la ao seu lado. Eva volta a ser a Eva de sempre, e talvez mais angustiada ainda. Porque ela disse tudo aquilo, se a mãe partiu do mesmo jeito e profundamente magoada? Sendo que o seu maior desejo e o de Lena era tê-la para sempre junto delas. E quando Eva sente que foi tudo em vão, escreve uma carta à mãe pedindo-lhe perdão, talvez a última chance de tê-la ao lado. E a morte rodeia Eva, seu sentimento suicida é tão grande que ela se apega à necessidade de Lena e Victor de tê-la junto a eles, e não o comete. A própria fotografia neste momento é triste, melancólica, fúnebre. E tudo volta a ser como antes, a expressão infantil e insegura de Eva ao ler a carta à mãe, pedindo-lhe que volte, se contrapõe com a expressão carregada e sombria de Charlotte ao lê-la, deixando ao público uma grande interrogação: será que Charlotte voltará um dia? O poder da mãe e da mulher sobre os homens de uma forma geral também é mostrado com muita sutileza em vários de seus filmes. Em Morangos silvestres, por exemplo, o velho Dr. Isaak Borg é o personagem masculino mais forte de todos os seus filmes, exceto diante da mãe, quando se torna inseguro e fraco, e esta cena nos é mostrada apenas uma vez. Diante de sua mãe, sua prepotência, arrogância e egoísmo desaparecem completamente. Na maioria de seus filmes, exceto em Sonata de outono, Bergman focaliza o poder da mãe em cenas curtas e pequenas, mas são elas as protagonistas de 298 seus filmes. São elas que determinam todo o desenrolar da história, e da personalidade, sentimentos e conflitos de seus personagens. Sorrisos de uma noite de amor é o único filme em que Bergman consegue mostrar com leveza e senso de humor os conflitos dos relacionamentos humanos, que são vividos de uma forma falsa, hipócrita, sarcástica, cheia de ódio, amor e disputa, sendo o amor totalmente escondido através de máscaras que cada um assume. E a história assim se desenrola, até que, durante o jantar, a velha mãe de Desirée, cuja postura na mesa é a de uma velha matrona, não sendo ladeada por ninguém e tendo todos à sua frente, desmascara todos os personagens ali sentados apenas com algumas palavras, que representam uma metáfora. E a velha sai de cena, carregada, inválida, seu corpo morre, mas sua força e sabedoria persistem de tal forma que todos os outros se sentem frágeis diante desta força. E a velha só disse uma dúzia de palavras, e só entra em cena por duas vezes. A conseqüência de sua força, lucidez e sabedoria é tão grande que, de repente, cada um se confronta consigo mesmo e com o outro. E aí os sentimentos e emoções são libertados, vividos e demonstrados sem medo e com autenticidade. Cada um consegue se expressar e conquistar o amor de quem lhe é importante. Mas esta história de fundo trágico nos é mostrada com tal sarcasmo e senso de humor, que chegamos a dar boas gargalhadas. Em Da vida das marionetes, podemos fazer uma analogia semelhante à de Sonata de outono. Peter, dominado e castrado durante toda a vida pela mãe, inconscientemente procura na esposa uma substituta para a mãe. Isto geralmente é o que ocorre com quase todos os homens, segundo a teoria psicanalítica. Porém, a procura inconsciente de Peter é mais forte por ser sua mãe dominadora, e aí a situação se torna mais dolorosa, porque ele quer se libertar do domínio da mãe, mas sua fragilidade o impede, e, para se punir de sua impotência, perpetua a relação sadomasoquista casando-se com uma mulher tão poderosa quanto sua mãe. A angústia e a revolta de Peter diante de sua fragilidade, e o seu ódio inconsciente pela mãe e pela esposa, vão se tornando cada vez mais fortes e insuportáveis, até que sua agressividade reprimida se volta contra uma prostituta — talvez a única a tratá-lo como homem e não 299


como criança indefesa como sempre fora tratado — e é manifestada da pior forma possível, através do assassinato. Como ele nunca poderia ter consciência e tampouco admitir o ódio homicida que sentia pela mãe e por Katharina, ele o transfere totalmente para a prostituta. E isto é conseqüência de ter sido dominado e subjugado, durante toda a sua vida, por sua mãe, repetindo e transferindo para Katharina, sua esposa, tal ligação. Sendo incapaz de resolvê-la, comete o crime, numa tentativa desesperada de solucionar seu conflito imaginário. Na verdade, não é a prostituta que ele mata, mas sim sua mãe e Katharina. Há uma cena em que ele fica no terraço de seu apartamento durante longo tempo, sem-que ninguém consiga arrancá-lo de lá. É o momento de maior conflito, voltar a agressividade contra si mesmo, suicidando-se, punindo-se por se considerar tão desprezível como homem, ou voltando sua agressividade contra as causadoras de sua infelicidade. Ele, então, mata as culpadas de seu fracasso, através da prostituta, punindo-se ao mesmo tempo, não fugindo do local do crime. A cena do crime é a única mostrada em cores, destacando o vermelho como em todos os filmes coloridos de Bergman, por ser para ele o símbolo da alma humana e de suas emoções mais fortes... É nesta cena que Peter vive o momento e a emoção mais forte de sua vida, a libertação de toda a sua agressividade e, conseqüentemente, a sua própria destruição. E também neste filme a figura materna entra em cena rapidamente, por duas ou três vezes, sendo ela a figura central da história, dando continuidade interpretativa através de Katharina. Na cena final, já numa clínica, com o ursinho entre os braços, ele nos mostra que as duas mulheres venceram. Ele regride e será sempre uma criança. Esta cena nos lembra levemente a cena final de Psicose, de Alfred Hitchcock, representada magnificamente por Anthony Perkins, quando a personalidade dominadora da mãe acaba por vencer a sua, tão frágil e impotente. Geralmente este tipo neurótico de mulher também não tem consciência de sua personalidade possessiva e destruidora. Deve ser bom e confortante sabermo-nos donos da vida de um ser humano, e fazermos dela o que quisermos, por termos a certeza de que 300 nunca haverá uma contra-reação, pelo menos imagina-se assim. Este sentimento de poder e destruição pode ter uma forma consciente, como aconteceu com Adolf Hitler, apesar de toda a patologia de sua personalidade. Mas ela pode se dar de forma inconsciente para uma mãe, pois, por pior que seja o seu quadro neurótico, no fundo ela não poderia odiar o próprio filho de uma forma tão cruel. No caso de Peter, ele nunca poderia se divorciar de sua mulher, pois seria a mesma coisa que se separar de sua mãe. E ele jamais conseguiria viver sem as duas. Em Gritos e sussurros não há a presença física do poder ma-ternal, mas ele está presente em todas as cenas do filme. A começar pela doença de Agnès, basicamente psicossomática, conseqüência da falta de carinho, diante da morte prematura da mãe, quando criança. O "tocar" é um dos temas mais profundamente abordados. As duas únicas vezes em que Agnès se sente realmente feliz e realizada como mulher é quando sua criada a toma no colo, representando sua mãe, e ela regride a um estado bastante profundo e marcante de sua infância. E quando se une com suas duas irmãs em um estado de total paz, tranqüilidade e amor, num jardim harmonioso, tocado por um sol primaveril, todas vestidas de branco, simbolizando a própria paz espiritual. A doença e a morte de Agnès desencadeiam uma aproximação afetiva entre as duas outras irmãs. Duas pessoas totalmente reprimidas, sexual e afetivamente. Karin só tem do marido o sexo. Um homem frio e calculista que usava a mulher apenas como objeto de seu prazer. Por isso ela mutila seus órgãos genitais e se lambuza com o próprio sangue diante do marido, para mostrar que o venceu, que pelo menos em alguma coisa ela conseguiu ser superior a ele, mas o homem não se altera, como nenhum ser frio se altera diante de mutilações e destruições. Mas isto não importa, pelo menos ela lhe tirou o prazer de possuí-la como dono. Já Maria é totalmente indefinida e frustrada sexualmente, principalmente por ter um marido fraco, que aparentemente não a satisfaz. E este, tomando consciência de sua impotência, prefere o suicídio a aceitar seu fracasso como marido. Mas não é bem sucedido na sua tentativa. Talvez não desejasse realmente morrer, mas sim levar a esposa a um sentimento de culpa por suas infide-lidades amorosas.


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Julgo ser a cena mais bela do filme, e o próprio título já a define, o momento do encontro afetivo entre as duas irmãs. Ê quando elas conseguem se tocar, se sentir, se libertar de seus conflitos, medos e frustrações, e se permitem amar, tocar e ser tocada. O amor, o toque, o carinho, o afeto, a ternura, tudo explode em um universo de prazer, alegria, felicidade e beleza. E toda essa beleza vence os sintomas neuróticos. Ali, naquele momento, elas se realizam, se completam, são pessoas normais, que amam, choram, gritam de dor, sofrimento e prazer. São seres que se permitem sentir tudo e demonstram tudo. Há os gritos e os sussurros do prazer. Mas são passageiros, toda beleza é passageira, seus comportamentos doentios voltam a se fazer presentes, porque não foram tratados, e aí cessam-se os gritos e os sussurros para sempre, e nada realmente aconteceu. Geralmente os homens bergmanianos são fracos, indecisos, inseguros, impotentes, submissos, covardes. Eles aparecem apenas para contracenar com a força e o poder das mulheres bergmanianas. São apenas o fundo do cenário. Em Face a face, a temática da força e do poder da mulher se repete na personagem de uma psiquiatra. O contato dessa psiquiatra com o lugar de sua infância desencadeia nela uma desestru-turação tão grande, que o vazio existencial se torna presente de uma maneira brutal, levando-a a uma tentativa de suicídio. São cenas curtas e marcantes, tendo como enfoque a regressão da psiquiatra à sua infância, em fatos, recordações e sentimentos até então inconscientes, mas que marcaram profundamente sua vida afetiva. São lembranças tristes, de abandono, desamparo, solidão, a ausência permanente dos pais. Bergman é tão sutil, que todas as cenas de seus filmes, que envolvam recordações e fatos de uma infância já passada, são cenas tão sofridas, tão carregadas de solidão e abandono, que nunca há a presença da palavra, apenas das cenas e da fotografia carregadas de sentimentos, porque diante da solidão não existem palavras. Voltando à psiquiatra, apesar de seu pseudo-equilíbrio, ela se realiza apenas como profissional, porque todos os seus relacionamentos afetivos com o sexo oposto são fracassados. Nota-se claramente na cena em que uma de suas pacientes toca em seu rosto 302 delicadamente, e diz ter pena dela, porque ela não conseguia tocar o outro como ser humano, sabia apenas tratá-lo como médica, ao passo que a principal atitude do psiquiatra para a recuperação de seu paciente seria o seu carinho, o seu toque de amor, já que ele precisa se sentir amado para dar um valor existencial à vida. A paciente mostra à Dr.* Jenny Isaksson como é fácil "tocar", tão simples, e é tida como doente. Em um dos sonhos da Dr.* Isaksson, vários doentes a rodeiam, amontoando-se, querendo tocá-la e serem tocados por ela. Jenny se apavora, porque realmente ela não sabia tocar, e eles como pacientes dela cobravam-lhe este tipo de comportanto que, apesar de todo o seu quadro doentio, consideravam normal em um psiquiatra e em um ser humano. Talvez os toques afetivos em sua infância tivessem sido momentos raros. E é na sua tentativa de suicídio que ela se sente como na infância, só, abandonada, sem afeto, vazia, e a vida perde todo o sentido para ela. A ausência de afeto levou-a a uma frigidez afetiva tão grande que, quando ela é violentada, se levanta, arruma a saia, liga para o hospital para socorrer sua paciente que também tinha sido violentada. A Dr." Isaksson age como se nada tivesse acontecido. Mais uma vez ela não se permitiu sentir dor e ódio. Uma psiquiatra equilibrada não se abalaria com um "simples" estupro. Neste filme, o homem aparece apenas como fundo de palco, como o salvador da suicida. Mas é neste momento, quando ela volta a si no hospital e vê que sua tentativa foi um fracasso, que Jenny se enfrenta, ela se encontra consigo mesma, em total estado de angústia, de descobertas. É o momento do confronto, de se assumir como mulher frágil, insegura, carente, abandonada na infância, e não apenas como uma psiquiatra forte, poderosa, equilibrada. Neste filme, o poder, a força e domínio da mulher é diante dela mesma, confrontando-se com seu lado frágil e carente. E depois de todo o seu doloroso processo de regressão, Jenny consegue manter o equilíbrio sobre si mesma, ou seja, consegue assumir que ela é uma mulher que tem um lado forte e outro fraco. Aí ela percebe que perdera sua filha, claro, sempre educou-a dentro dos padrões de normalidade psiquiátrica, com muito equilíbrio, mas com total falta de demonstrações afetivas. Ela diz que a ama, talvez sempre tenha dito, mas são apenas palavras, nunca expressou-as com gestos. E


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quando Jenny toma consciência de toda sua transformação, sente uma necessidade enorme de tocar sua filha com as mãos e participar de seu mundo, mas esta se esquiva mostrando-lhe que é tarde, que tem 14 anos, não precisa mais dela, já tem sua própria vida, acostumou-se com a ausência da mãe. E o público mais uma vez se perguntará se algum dia as duas se encontrarão como mãe e filha. Bergman é a própria interrogação. Diante de nossos conflitos jamais teremos uma resposta para os relacionamentos do futuro. As mãos em Bergman são os símbolos de tudo, de toda a demonstração afetiva. Nota-se com freqüência como a câmera sempre focaliza apenas as mãos nos momentos mais importantes. E então tudo se repete, geração após geração. Se não são tratados e trabalhados, todos os comportamentos neuróticos se repetirão através dos tempos. E os conflitos sociais-políticospsicológicos entre os seres humanos jamais se extinguirão. São estes conflitos psicológicos, personalidades patológicas, que levam pessoas a formar regimes políticos altamente fascistas, totalitários, doentios. A luta desesperada pelo poder, ter o poder nas mãos e ser dono da vida de milhares de pessoas, de uma nação, ou quem sabe do mundo, e não ser dono do mais importante, de si mesmo, por não se conhecer. São estes conflitos que levam à destruição as relações sociais, humanas, afetivas, sexuais. Em quaisquer grupos sociais em que se conviva, nota-se claramente a desestruturação total dos relacionamentos, os medos, as frustrações, as angústias, o egoísmo, a frieza, o ódio, o amor louco e neurótico, as insatisfações, a falta de comunicação, de diálogo, palavras, gestos, o próprio apocalipse. 304

O que Bergman disse


O artigo abaixo foi escrito por Bergman sob a forma de um diálogo entre ele próprio e um roteirista imaginário. A revista alemã Film-Revue publicou-o em 1958, sob o título "O filme como arte" e Jacques Siclier o republicou no seu livro Ingmar Bergman, editado pela Êditions Universitaires, em 1961.

Roteirista — "Bom dia!" Bergman — "Parece que você está aborrecido!" R — "Você leu o meu roteiro?" B — "Li, obrigado, recebi-o ontem. Ê um belo trabalho, verdadeiro e impecável sob o ponto de vista artístico." R — "Mas foi recusado!" B — "Lamento muito." R — "Estou furioso. Sobretudo quando penso nas porcarias que se fazem por aí." B — "Compreendo a sua irritação, embora não partilhe dela." R — "Claro, você se sente integrado." B — "De maneira alguma. Mas sei quais são as contingências do nosso trabalho. Não fecho os olhos e não procedo como se me esquecesse das regras." R — "Regras! As que lhes impõem os bancos, as produtoras e todos aqueles que, de uma maneira geral, desprezam a arte e os artistas. E você aceita tudo?" B — "De má vontade. Principalmente quando, no início, tínhamos decidido oferecer obrasprimas para a posteridade. Ora, a 307


verdade é que não existe nada mais estranho à nossa profissão do que a posteridade." R — "Essa é uma posição errada. Apesar de tudo somos artistas!" B — "Você acredita mesmo que isso seja verdade? Não teremos nós renunciado voluntariamente ao que existe de nobre nessa denominação? Quando nos alistamos na legião estrangeira do cinema, não fomos nós mesmos que nos obrigamos a seguir as regras do jogo?" R — "Mas não é a nós, os que queremos fazer cinema, que cabe defender o ideal que escolhemos?" B — "Não se consegue nada recusando tudo o que não nos convém. Com essa atitude, conseguiremos apenas que os produtores nos voltem as costas e o público provavelmente também. E o que nós vamos fazer, protestando, longe dos estúdios, quando nos fecham as portas?" R — "Podemos despertar consciências!" B — "Você acha que é capaz de despertar as consciências dos produtores? Não se esqueça de que a consciência de um produtor de cinema é flexível como um ramo de acácia. Não a obrigue a endurecer, senão pode ser terrível." R — "Onde você quer chegar? As suas bobagens me irritam." B — "Sabe pelo menos o que eles nos pedem antes de tudo?" R — "Sei sim, mentiras." B — "Você pode chamar isso de mentiras, se quiser. Eu chamo de distração." R — "Distração?" B — "Você está surpreso, mas pense um pouco. Para quem nós trabalhamos? Para o público, evidentemente. E quais as aspirações que devemos satisfazer? As do público. O nosso caso é o mesmo do artista que, por livre vontade, executa o salto mortal do ponto mais alto do circo para a satisfação dos espectadores. Nós também temos de arriscar a nossa reputação e a nossa vida para atender às necessidades do cinema. Devemos executar um número perfeito. Tão cuidadosamente controlado que os espectadores se 308 esqueçam de si próprios, esquecendo-se da vida, dos aborrecimentos, das contas a pagar. E é só quando conseguimos isto que podemos nos considerar totalmente justificados." R — "E o meu roteiro?" B — "Ele não consegue distrair, é tudo." R — "Por ser demasiado verdadeiro." B — "Ê possível. Você pode ser tão verdadeiro ou tão falso quanto quiser, desde que o seu salto mortal seja perfeito." R — "Não entendo." B — "Mas é fácil. A minha moral é simples." R — "Então, explique." B — "Ê como se cada um de meus filmes fosse o último." R — "Você engana a si próprio." B — "É possível que sim. Mas não tanto como você pensa. Partir da idéia de que cada filme que começo é o último filme que faço, me dá uma imensa calma, uma certa confiança. Não me sinto menos honrado, e a minha atitude de indiferença parece natural." R — "E assim você faz concessões." B — "Eu odeio o público, tenho receio dele e amo-o. Sinto uma necessidade irreprimível de o inquietar, de lhe dar prazer, de o apavorar, de o amesquinhar, de o insultar. Eu dependo do público, e é isso que é trágico. Mas essa dependência me estimula, me enjoa e me diverte. Milhares de olhos, de ouvidos, de cérebros, de corações e de corpos participam de tudo aquilo que eu faço. Com uma sensibilidade extrema, dou tudo aquilo que tenho, que descubro ou revelo ou ainda aquilo que creio inventar. E não posso fazê-lo sem a convicção de que cada um dos meus filmes é meu último filme." R — "Estranha moralidade!" B — "Sim, estranha moralidade numa profissão onde a moralidade é tão difícil de definir, que a maior parte daqueles que o tentaram não a conseguiram descobrir." R — "A inconstância dos pervertidos e a honestidade das prostitutas. Tudo o que há de mais edificante. Então, o artista não passa de um acrobata..."


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B — "Se continua a empregar os termos arte e artista a torto e a direito, o seu lugar não é aqui. Ê melhor você se tornar crítico. É assim que fazem todos aqueles que querem conservar as ilusões da adolescência." R — "Contudo um filme pode ser uma obra-de-arte?" B — "Com certeza! Em qualquer lugar, num breve momento, um filme torna-se uma obra-de-arte — como as boas noites que desabrocham de uma maneira impulsiva, depois de longos anos de espera e de nostalgia." R — "Será realmente assim?" B — "Não tenho certeza, mas acho que é assim." R — "Sendo assim, vou aproveitar para um livro o meu roteiro recusado e vou te deixar entregue a essa profissão sem futuro. Até breve." B — "Adeus." 310 As declarações abaixo foram extraídas do livro O cinema segundo Bergman, tuna coletânea de entrevistas dos críticos suecos Stig Bjorkman, Torsten Manns e Jonas Sima com o cineasta.

Arte "A minha atitude em relação à minha prática da arte é que eu fabrico objetos mais belos que a média. Faço artigos de consumo. Se, em seguida, um deles adquire uma dimensão suplementar, isso dá sempre muito prazer. Mas não trabalho para obter a imortalidade." Artista "Enquanto a sociedade demonstrar ter necessidade do artista, ele deverá se fazer presente, independente do serviço que presta ou do serviço que não presta mais. E creio que ele deve refletir sobre o seu papel, perguntar-se como pode prestar algum serviço, e talvez assim possa ser útil, afirmando-se a si mesmo como um artista e se contentando com o fato de ser um artista." Função "O sonho, a visão, a representação, a imagem, a intuição são os elementos que intervém primeiramente no processo de criação artística. Sempre. Em seguida, eu, o artista, sinto o desejo de dar uma forma àquilo que nasceu intuitivamente, e devo fazê-lo tão 311


conscientemente quanto o mais eficazmente possível. É uma função, é um impulso que existe em mim..." Método "Tenho freqüentemente dois projetos em curso. Reúno os documentos necessários, tomo notas, etc. Visto que faço muitas coisas diferentes ao mesmo tempo, sou obrigado a planificar metodica-mente o meu trabalho. Costumo sempre dizer: preciso de seis ou oito semanas para conduzir bem essa tarefa e reparto meu trabalho à medida que avanço. Em seguida vou para o meu escritório e trabalho. A elaboração do roteiro se faz muito metodicamente, de uma maneira muito disciplinada... Eu trabalho de 9 horas da manhã às 3 horas da tarde, período no qual não faço outra coisa, me consagro unicamente a essa tarefa. Esse horário me convém bem, é um ritmo de trabalho que me agrada. Para improvisar, é preciso estar bem preparado." Câmera Pergunta: "Você conhece sem dúvida o famoso aforismo de Godard, segundo o qual cada movimento de câmera deve ser uma tomada de posição moral, tanto que a forma e o conteúdo devem corresponder-se. Que pensa de semelhante axioma?" Resposta: "Poderia dizer a mesma coisa. Acho que cada posição da câmera deve ser o resultado de um profundo conhecimento do cinema. Sabe-se o que se pretende obter e deve igualmente saber-se onde colocar a câmera. Trata-se de uma moral profissional, de uma ética." Montagem "Freqüentemente me ponho a imaginar a montagem sendo feita ao mesmo tempo em que a câmera filma. Escrevo sempre a decou-page, enquanto trabalho, conversando com os atores. Estabelecido o corte, eu não o vejo praticamente mais, até a véspera da filmagem da cena. Aí, então, releio o texto, mudo ou suprimo as repetições. No dia seguinte pela manhã vamos todos para o estúdio, e, às vezes, modifico de novo o diálogo preparado para os atores." 312 Segue-se uma entrevista com os mesmos críticos, da revista sueca Chaplin, onde Bergman fala de outras coisas, a propósito de A hora do lobo.

Pergunta: "O protagonista de A hora do lobo, o pintor Johann Borg, é atormentado por demônios a quem chama de canibais em duas ocasiões. Antes da filmagem de Persona, você falou de um projeto que se chamava Manniskoaterna {Os canibais). O roteiro desse filme planejado serviu de base para A hora do lobo?" B: "Ê comum a gente trabalhar em vários temas simultaneamente. O tema do canibalismo é bastante antigo. O mesmo diz respeito aos temas de Persona: a redistribuição do poder, o problema da identificação, o papel mudo versus o papel falado. Tenho pensado em todas essas idéias durante um largo período de tempo, e elas me têm ocupado em diferentes estágios. Ê assim que a gente fica a brincar com diversos temas, antes de finalmente pegar um e fazer dele um filme. Mas pode-se dizer que o roteiro de Os canibais, jamais filmado, serviu de base para A hora do lobo. E eu escrevi Os canibais um ano antes de filmar Persona. Houve longos períodos em minha vida em que verdadeiramente fui atormentado por demônios e tive horas do lobo. O tema existe para mim há muito tempo. Só que, até aqui, eu não fora capaz de encontrar para ele uma forma apropriada. A hora do lobo é terrivelmente pessoal. Ê pessoal em tão alto grau que fiz um prólogo e um epílogo com o intuito de dar ao conjunto um tom de encenação. Um prólogo e um 313


epílogo no estúdio cinematográfico. Agora, só o que resta disso é a fala por trás dos letreiros de apresentação." P: "Durante a festa na mansão, Johann Borg diz, numa espécie de purgatório pessoal, que o artista é eleito, não por culpa sua. Diz ele: 'Nada há de revelação pessoal em minhas criações — a não ser a compulsão'. Não será isso uma visão romântica do artista? Diversos de seus filmes anteriores têm exibido a mesma atitude." B: "Como, romântica?" P: "No sentido de que o artista é um enviado de Deus. É guiado pela crença platônica na inspiração." B: "Não foi isso o que pretendi dizer, ainda que assim possa ter parecido neste caso." P: "Você estaria assim em oposição à atitude estética de muitos artistas de hoje. Os jovens escritores, inclusive os suecos, que falam de escrever como ofício, como tarefa." B: "Como artesão, como criador e diretor de filmes, adoto essa concepção num alto grau. O que Johann Borg quer dizer é que ele se defronta com uma necessidade, um tormento contínuo, uma dor de dente. Não consegue livrar-se dela. Portanto, não se trata de um dom ou de algo imposto. Não há conexão sobrenatural. Há apenas uma doença, uma perversão, um carneiro de cinco patas. Ele analisa a situação muito brutalmente. Não me lembro exatamente o que Johann Borg diz nessa cena." P: "Fala do artista como sendo eleito." B: "Acho que ele usa essa expressão entre aspas. Seja como for, sei que, quando a escrevi, eu quis me referir a algo doloroso. Algo que nos deixa importantes. Então, procuramos transpô-lo para as formas profissionais. A atividade artística é também um meio de vida, naturalmente. Minha atitude para com minha produção artística é a de que eu faço objetos mais bonitos do diaa-dia. Faço artigos úteis." P: "E sua visão do arquétipo paternal autoritário? Um ajuste de contas com a figura do pai tem sido uma constante desde seus primeiros filmes. Também há aquele velhinho do armário, de quem Johann Borg fala em A hora do lobo. E o menino que Borg mata 314 na praia: será que ele mata o pai, o arquétipo do pai, o velhinho do armário que tenta mordê-lo no pé?" B: "Não posso responder. O significado dessa cena mudou para mim muitas vezes. Já se passaram quase dois anos desde que escrevi A hora do lobo, e ano e meio desde que o filmei. Quando fiz a cena, era em realidade parte da expressão do medo-pânico que Johann Borg tinha de ser mordido. O menino era um dos demônios. Tudo era muito real para mim. Johann Borg não conseguia decidir se o que acontecia era sonho ou realidade, se espancara um menino vivo até a morte ou se tudo apenas existia em sua imaginação." P: "A história da punição em A hora do lobo, o velho no armário, foi uma experiência pessoal?" B: "Foi uma experiência pessoal. Aconteceu há quarenta anos, e aconteceu mais de uma vez. Era um ritual. £ incompreensível que eu tivesse saído daquilo com vida." P: "Em grande parte, A hora do lobo é construído de tal maneira que, ou você conta a história em imagem, sem comentário verbal, ou então a conta verbalmente, enquanto a câmera descansa sobre um rosto. Assim você obtém um grau muito maior de coesão e sugestão do que se a imagem e o texto corressem de forma paralela. Passando da pura experiência pictórica à pura experiência verbal, você também cria suspense. Afinal de contas, a narrativa erótica de Bibi Andersson em Persona é incomparavelmente mais excitante do que a maioria dos filmes pornográficos." B: "Bibi torna a cena assim tão notável porque conta a história com uma espécie de luxúria envergonhada naquele tom de voz que ela vai buscar não sei onde. Isso serve para provar que no cinema a gente pode fazer o que bem entender! E é isso o que torna o cinema tão divertido, não é mesmo? Eu estava extremamente consciente dos riscos envolvidos na feitura de A hora do lobo. Mas, ao mesmo tempo, eu me sentia impelido a fazê-lo, formal, praticamente e de um ponto de vista dramático. Senti-me tremendamente estimulado durante todo o período de trabalho." P: "O que significa a política para você, como artista e como cidadão da sociedade sueca? Qual a sua posição atual em relação


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à complexa criação cinematográfica-sociedade-engajamento? Você a evita?" B: "Só insisto em meu direito de ser quem sou, precisamente como sou, meu direito de engajarme naquilo em que quero estar engajado, e produzir a obra que desejo criar." P: "E isso é possível hoje em dia?" B: "Não sei. Mas exijo que me permitam fazê-lo. No dia em ,que as pessoas não mais quiserem ver meus filmes e eu não mais tiver com quem conversar através do que faço, nesse dia, acho que terei de parar. Mas, até segunda ordem, continuarei." P: "Um tema que tem recebido consideravelmente mais espaço em seus últimos filmes é o vampirismo..." B: ".. .essa coisa de pessoas que se devoram umas às outras?" P: "Mesmo em sentido figurado. Em A hora do lobo o tema tem um lugar destacado. Mas há fortes correntes de vampirismo, nas relações entre pessoas, em seus filmes anteriores. Você sente isso como uma questão central, pessoal?" B: "Refere-se ao fato de o artista viver à custa de seus semelhantes? Foi uma questão ética durante muitos anos. Mas não é mais. Eu pressenti o que era moralmente duvidoso em nossa atitude. Mas não é algo que nos lance na 'fossa'. É uma condição de vida, naturalmente. Ê como reprovar uma onça por devorar o gado — sem levar a comparação a extremos." P: "Não existem qualidades redentoras, humanas, na sociedade da mansão de A hora do lobo. Todos parecem ter saído de um filme de horror." B: "Isso é intencional. Sua única característica redentora está em que eles também sofrem. Atormentam-se entre si. Eles dizem: 'Cá ficamos a nos mastigarmos uns aos outros*. Não há dúvida de que os demônios sofrem: de ciúmes, por exemplo. Mas estes demônios não são, em verdade, da mesma espécie de antes. Os demônios de A hora do lobo nascem e pulam do armário. São os demônios próprios do artista, que o afastam da possibilidade da vida. Nascem nas experiências da infância e jazem sob a superfície da consciência. Sua tarefa é separar o artista da possibilidade da vida, e, passo a passo, destruir a ele e a si próprios." 316 P: "Não acha que vampirismo é uma expressão universalmente aplicável ao tipo de sociedade em que vivemos?" B: "Não sou um retratista da sociedade. Mas é óbvio que, indiretamente, descrevo a sociedade onde vivo. Sou apenas um reflexo das deflexões, dos fenômenos, das tensões que existem na sociedade, na educação, no mundo que é meu. Certas coisas produzem reações em mim, na membrana, no radar que possuo. Para que consiga ir vivendo, tenho uma espécie de radar — todos temos, naturalmente. Certas coisas produzem reações através desse radar, portanto, e começam a funcionar juntamente com experiências anteriores. Ê isso, então, que vai encontrar expressão nas produções artísticas, uma espécie de correspondência, uma necessidade de contato, um apelo ao mundo exterior." 317


w Seguem-se depoimentos retirados do livro O cinema segundo Bergman (Editora Paz e Terra).

Radar "Não, nunca o cinema identifica-se ideologicamente. Para mim é impossível, isso não existe. Minha concepção fundamental é justamente a de não ter concepção fundamental. Minhas idéias sobre a vida, apesar de extremamente dogmáticas, tornam-se flexíveis pouco a pouco. Hoje, elas não são mais as mesmas. Sou um radar que detecto objetos e fenômenos e os devolvo, sob uma forma refletida, misturada de lembranças, sonhos e idéias. Uma espécie de nostalgia c uma vontade de lhe dar forma." Política "Nós sabemos que antes a arte podia ser uma incitação política, a sugestão de uma ação política. E hoje a arte acabou de interpretar esse papel, ainda que tão inflamante que possa ser um filme como La hora de los hornos (fita argentina de Fernando Solanas que apresenta com uma polêmica e uma didática espantosa, em várias seqüências, os crimes do neocolonialismo na América Latina). Hoje, é o noticiário pela televisão sobre òs acontecimentos mundiais que provocam a atiivdade política. Sobre esse ponto a arte está desesperada-mente ultrapassada. Os artistas não são praticamente mais os visionários sociais. E eles não devem imaginar que ainda são. A realidade anda sempre mais depressa que o artista e suas visões políticas." 319


Engajamento "Dizem hoje que toda arte é ação política, mas eu diria também que toda arte tem afinidade com a ética. Na realidade, é a mesma coisa... Ê o que Eugene 0'Neill queria exprimir, dizendo: 'Toda obra dramática que não trata de relações humanas com Deus é sem valor'. Fico sempre surpreendido quando dizem que sou arredio a tudo, que me sinto à margem da sociedade, que isolo... Declarei muito claramente que não sou um artista engajado politicamente, mas, naturalmente, sou a expressão da sociedade na qual vivo. Pretender o contrário seria grotesco. Mas não faço propaganda por uma tendência ou por outra." Revolução "Já tomei consciência do fato de que nosso mundo está em vias de soçobrar. Nossos sistemas políticos são caducos, compromissados e inúteis. O esquema de nossas atitudes e de nosso comportamento interior ao olhar do próximo é falso. O trágico nessa história é que nós não podemos, ou não queremos, ou não temos a coragem de mudar. É muito tarde para a revolução, e no fundo de nós mesmos duvidamos de seus efeitos benéficos. Um mundo de insetos nos espera, e um dia ele surgirá e virá se propagar sobre nossa existência tão individualista. Observem que, apesar de tudo, eu sou um honesto social-democrata." Moral "Depois da estréia de Personà, algumas jovens mulheres da esquerda dinâmica me declararam guerra e queriam a todo preço demonstrar que as personagens femininas do filme eram a imagem de uma concepção reacionária da mulher... Mas a moral puritana que me persegue como um cão — eu convivi com ela durante toda minha infância — me ensinou que para ser bem educado, eu não devia falar nunca de duas coisas: do sexo e do dinheiro. Meus filmes, entretanto, são de preferência físicos, e eles vão além não somente da sexualidade mas de todo o problema moral. Minha fascinação permanente pela raça feminina é uma das minhas principais forças motrizes. É evidente também que um tal vínculo implica uma ambivalência, 320 encerra uma contradição. Mas tenho para o bem do mal que aceitar a etiqueta anti-sexual. Tenho muito medo dos moralistas porque eu mesmo o sou. É verdadeiramente difícil descobrir um moralista mais moralista do que eu." Humilhação "Ê um dos sentimentos que marcaram a minha infância: a humilhação. Ser humilhado fisicamente, em palavras ou em uma situação. Eu me pergunto se as crianças não experimentam a todo instante e de forma intensa este sentimento de humilhação nos contatos com os adultos e com as outras crianças. Todo o nosso sistema de educação é em realidade uma humilhação, e, quando eu era criança, isto era ainda mais evidente que hoje. O pranto da humilhação e o sentimento de ser humilhado causaram muitos problemas em minha vida de adulto. Esta forma de angústia volta a me assaltar, por exemplo, quando leio uma crítica, seja ela boa ou má. Uma crítica pode ser extremamente dura, sem com isso ser humilhante. Mas alguns elogios podem, tanto quanto críticas negativas, me parecer humilhantes. Humilhar e ser humilhado são, para mim, os dois sentimentos que constituem uma componente ativa de todo o nosso sistema social, e aqui já não falo exclusivamente com relação aos artistas. O que eu sei melhor é onde e como os artistas sofrem humilhações. Penso, por exemplo, que a burocracia que nos cerca é fundada em grande parte sobre um sistema de humilhação, o que cria um dos mais terríveis e perigosos venenos. A pessoa humilhada se pergunta constantemente como ela poderá humilhar uma outra pessoa, como ela poderá devolver a bala, esmagar o adversário, paralisá-lo até eliminar dele a idéia de uma reação." 321


w Uma entrevista concedida ao critico sueco Lars-Olof Lothwall, republicada pela revista inglesa Films and filming, por ocasião do lançamento de Vergonha:

P: "Você fala com freqüência no momento de dor que é a semente da inspiração de uni filme. Você pode traçar o caminho de Vergonha até o reencontro de tal momento?" B: "Não. É um caminho longo e entrecruzado. É uma experiência de humilhação. Uma longa, dolorosa experiência de humilhação do homem. Tenho pensado em como eu teria suportado a experiência de um campo de concentração, de ser forçado a uma situação tão abjeta. Quão nobre eu teria sido? No fundo de todas as coisas há esta abominação à qual o homem está exposto. Quanto mais eu vivo, mais horrível isto me parece. E fica mais penoso viver com isto na consciência. É o que procurei, modestamente, em Vergonha: mostrar como a humilhação, o estupro da dignidade humana, pode levar à perda de humanidade pelos que estão sujeitos a isso." P: "Então Vergonha não nasceu de A hora do lobo?" B: "Não, de modo algum. Deste filme eu parti para outra história. Tinha três personagens capitais, mas não se fazia claro para mim. Subitamente, enquanto eu ensaiava Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello, em Oslo, comecei Vergonha. Lembro-me de que o escrevi com um impulso incomum. Foi a idéia desta pequena guerra, desta guerra sórdida, a guerra na periferia, que o firmou para mim."

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P: "Você despreza os filmes que glorificam a guerra, que interpretam a guerra como uma aventura viril?" B: "Acho que são porcos." P: "O rumor, segundo o qual você atirou uma cadeira pela janela, entre outras coisas do gênero, nunca foi confirmado a rigor..." B: "Eu atirei. Acontece quando alguém está com medo. Quanto mais inseguros, mais irados ficamos. Ou mais medrosos. E o medo se transforma em raiva. Mas isso desaparece com os anos. Desde então, s<5 tenho estado intensamente irado quando alguém se atrasa ou se mostra preguiçoso. Eu costumava ser muito dependente da opinião dos outros sobre mim: era tipicamente vulnerável a críticas e ficava infeliz durante dias se alguém dissesse algo hostil a mim ou sobre mim. Hoje só me interesso pela vida que levo com os amigos e pelo trabalho que faço. Só isso é importante para mim. Não tenho necessidade de participar da vida cultural sueca. Não tenho nenhum desejo de justificar-me ante críticas. Não tenho necessidade de atacar ou de ser agressivo. Detesto isso. Quero olhar para o mundo, sobretudo ler livros e preencher as lacunas de minha formação que resultaram do trabalho ininterrupto que tenho feito desde meus dias de estudante." P: "Você acredita qüe uma pessoa possa mudar?" B: "Não. Creio que pode ocorrer uma mudança na matéria estrutural de sua personalidade, de seu caráter. Tanto que somos levados a acreditar que um indivíduo mudou com o tempo, mas no fundo ele continua o mesmo: é o mesmo diabo de antes." P: "Esta é uma atitude pessimista?" B: "Não sou otimista nem pessimista. Eu sou apenas eu. Sou totalmente não-dogmático e sem etiqueta. Sou ligado apenas a uma moralidade de trabalho. Citarei Schiller para você: 'A única coisa pela qual um artista tem o direito de congratular-se é pela sua atividade'." P: "Você já disse que é mais importante o público sentir do que compreender." B: "Sentir é primordial, compreender é secundário. Primeiro sinta, experimente, depois compreenda." 324 P: "E quando a platéia interpreta mal um filme... O silêncio, por exemplo?" B: "Não me perturbam as pessoas que se mostram indignadas ou confusas ou sexualmente excitadas ou furiosas. Mas sofro quando sua reação atinge minha vida particular, quando perseguem minha mulher e ameaçam meu filho. Hoje, O silêncio é inocente como uma criança do jardim de infância em comparação com os filmes feitos depois." P: "Como você encara seu futuro como cineasta?" B: "Sei que ficarei; se fizer meus filmes bastante baratos posso ficar enquanto tiver razões para fazer filmes. Eu estaria virtualmente liquidado se Sorrisos de uma noite de amor não tivesse sido um sucesso internacional. Pouco antes, meu roteiro de O sétimo selo havia sido recusado. Dinheiro é uma coisa secundária para mim pessoalmente. Muitas pessoas dependem de mim para o sustento, mas se acontecesse o pior do pior, eles poderiam se manter." 325


w Trechos selecionados do livro O cinema segundo Bergman.

Sucesso "As pessoas me enviam cartas, as leio, mas não folheio jornais à procura de artigos que falam de mim. Quando se obtém como eu o sucesso, o dinheiro, e tudo o que desejávamos, então descobrimos a futilidade disso tudo. A única coisa que conta são os limites humanos, que é necessário tentar ultrapassar, e as relações humanas que nós estabelecemos; e, em segundo lugar, a atitude que tomamos face àquilo que criamos e àquilo que deixamos de criar, da criação e da não-criação, àquilo que nós dissemos sim, e àquilo que nós respondemos não, as diversas criações exteriores da criação. E isso que importa. Todo o resto é totalmente desprovido de interesse. Eu participei, por exemplo, algumas vezes de festivais de cinema, que sempre foram uma catástrofe para mim, e cada vez que estas manifestações terminavam, eu tinha vontade de abandonar o cinema. Era preciso meses para que eu pudesse recuperar minha saúde. Mas nesses festivais, havia também o espetáculo propriamente dito, era agradável ouvir as platéias e as apresentações oficiais. As pessoas ficavam à espera de que eu representasse o meu papel, e não havia outra saída, representávamos." Influências "Aprendi vendo filmes. Minha única experiência prática foi servir de roteirista a Alf Sjoberg em A tortura de um desejo. Depois 327


foi Victor Sjostrom, que simplesmente conversou comigo durante aquela primeira impossível missão, meu primeiro filme. Não fui influenciado pelos estilos artísticos de outros diretores. Mas as influências não são especificamente as que nascem do envolvimento ocupacional de cada um. Podemos ser influenciados por qualquer coisa ao nosso redor: a moderna fotografia, a reportagem de TV, a música pop. Naturalmente sou influenciado pela nova tendência da realização cinematográfica, a sensibilidade pelo filme como filme. Segundo esta tendência, não precisamos de efeitos de iluminação, por exemplo, e podemos alcançar resultados positivos sem equipamento complexo. Com esses recursos podemos voltar, em certo sentido, às origens do cinema, quando era simples: você armava a câmara em um arbusto." Gordos "Penso que somos a soma do que lemos, do que vemos, do que assimilamos. Não creio que os artistas nascem do vazio. Sou uma pequena pedra de um grande edifício, dependo de cada um dos elementos desse edifício... Se, pouco a pouco, percebemos que temos certas disposições artísticas, mas que elas estão embaralhadas e desordenadas, tentamos progressivamente colocálas em ordem. É um pouco como o homem gordo e que metodicamente tenta emagrecer. Na minha profissão, se não nos sentimos dentro da pele, se o corpo não é ágil, temos a impressão de que estamos sendo esticados de todos os lados. É terrivelmente desagradável arrastar um corpo pesado..." P: "E Orson Welles?" B: "Penso nos sofrimentos que deve tolerar Hitchcock, e creio que seu limite está justamente no fato de ser gordo. Por exemplo, ele trabalha sempre em estúdios, a câmera é estática, ele tem dificuldades para se deslocar, dá instruções de maneira que as tomadas não determinem deslocamentos de câmara." P: "Mas e a grua, ela não foi inventada para isso?" B: "Mas é uma teoria fantástica essa! Podemos aplicá-la também a Orson Welles, que trabalha de preferência em estúdios." 328 P: "Não se pode dizer que os filmes de Orson Welles sejam estáticos. Sua câmera atravessa continuamente o cenário." B: "Sim, mas é explicável: esse homem gordo dispõe subitamente de um instrumento que o leva a passeio... Ele mesmo não pode passear, mas utiliza um instrumento e torna-se capaz. Em todo caso, eu desejo não somente me sentir leve, mas também poder ter uma certa ordem para poder utilizar minha capacidade melhor. Trata-se de lutar contra o caos. Se estamos embaralhados, artisticamente, estamos limitados. Perdemos o poder de supervicionar as coisas, ficamos à mercê de todas espécies de influências e de problemas complicados que se espalham em todos os sentidos." * Nota: Opinião de Orson Welles sobre Bergman: "Não compartilho nem de seus interesses nem de suas obsessões. Ele me é muito mais estranho do que os japoneses". Crítica "Não censuro certos críticos pelo fato de fazerem filmes nem certos cineastas por se dedicarem à crítica. Simplesmente, alguém que, como eu, está há quase trinta anos em contato com o teatro e com o cinema, conduz-se automaticamente, como uma velha raposa muitas vezes mordida no rabo, nas patas ou no focinho. É um reflexo bastante natural. Quando encontro um crítico, mostro-me muito cortês, mas algo em mim fica alerta. Nada posso contra isso. No entanto, no momento em que a crítica renunciar à sua função de crítica e em que eu próprio deixa de fazer cinema, então poderemos verdadeiramente nos encontrar." Violência "Vi há dias, durante uma reportagem pela televisão, uma multidão de negros sentados no chão. Surgia então um sujeito que passava e os agredia na cabeça, e os negros nem sequer tentavam evitar os golpes. Fiquei de tal modo perturbado que não sabia onde me meter." Mal "O inferno, para mim, sempre teve uma propriedade de sugestão, mas nunca o concebi de outro modo a não ser sobre a terra. O 329


inferno foi criado pelos homens e ele existe sobre a terra. Cheguei a acreditar por muito tempo que havia um mal virulento que dependia absolutamente do meio no qual vivemos ou de fatores hereditários. Chamava-o pecado ou não importa o quê, é um mal ativo próprio ao homem, que não existe entre os animais. O ser humano é feito de tal maneira que carrega em si e consigo, sempre, tendências à auto-destruição e à destruição do seu meio, consciente ou inconscientemente, Para materializar esse mal virulento, sempre existente, imperceptível, inconcebível, inexplicável, criei um personagem que tinha os traços diabólicos dessas moralidades medievais." Instinto "Os personagens de meus filmes são exatamente como eu, são animais conduzidos pelos instintos e que, no melhor dos casos, refletem quando eles falam. A capacidade intelectual dos meus personagens é relativamente reduzida. Os corpos constituem a parte principal com um pequeno buraco para a alma. A matéria de meus filmes são experiências da vida, cujo suporte intelectual e lógico é freqüentemente desagradável." Religião "De uma maneira geral, em matéria de religião, nunca fui dogmático. Figurei por muito tempo na lista negra dos católicos. Mas penso que o catolicismo tem um certo charme, e que o protestantismo é uma lamentável impostura." Deus "A problemática da salvação não é nunca colocada por mim em termos políticos, mas unicamente em termos religiosos. Deus existe ou Deus não existe? É possível, pela fé, atingir a comunidade dos homens, um mundo melhor, e se Deus não existe, o que fazer? Por que existe o mundo? Minha revolta contra a sociedade burguesa é a rebelião contra o pai, se lhe interessa saber." Mulher "Strindberg tinha uma concepção ambivalente da mulher. Ele adorava as mulheres, mas era também seu perseguidor. Quanto à 330 minha concepção pessoal da mulher, ela não é assim tão conclusiva. E se tenho muito prazer em trabalhar com as mulheres, é unicamente pelo fato de eu ser homem... Não tenho nada contra a mulher moderna, consciente dos problemas sociais, pelo contrário. No meu trabalho, encontro cada dia mulheres que exercem uma profissão e não as acho nem neuróticas, nem perturbadas psiquicamente. Essa liberação lenta e complicada à qual assistimos hoje em dia é uma coisa magnífica." Infância "Sou muito atraído por minha infância... São imagens, impressões claras e sensíveis. Às vezes, posso percorrer a paisagem de minha infância, os quartos, os móveis, os quadros na parede, a luz. É como um filme, pedaços de filmes. Posso reconstruir até mesmo o odor. Muitos artistas assemelham-se a meninos grandes. Tomemos Picasso, por exemplo, há um rosto de criança. Churchill é a mesma coisa. Stravinski, Orson Welles, Hindemith. Poderíamos também citar Mozart: certo, não conhecemos exatamente seu rosto, mas pelos quadros, podemos dizer que é um menino grande; e o rosto de Beethoven é o de uma criança zangada. Tomo consciência disso, quando entro no local de filmagens, ou quando estou com uma câmera entre as mãos e os técnicos em torno de mim. Então, digo para mim mesmo: 'Venham, nós vamos começar uma brincadeira'. Me lembro exatamente quando eu era pequeno, tirava, um por um, meus brinquedos do armário antes de brincar. Tenho a mesma impressão num local de filmagens. Há uma certa analogia. Só que, por uma razão inexplicável, hoje, me pagam para organizar a brincadeira, certas pessoas me respeitam, elas seguem minhas instruções, o que não deixa de me emocionar de tempos em tempos. Fazer filmes é também mergulhar até as mais profundas raízes, até o mundo da infância." 331


I

Uma entrevista de Bergman extraída da revista francesa Positif (n.° 177, janeiro de 1976) sobre A flauta mágica e alguns outros assuntos. Bergman declarou ao crítico Jan Aghed o seguinte:

"Toda a minha vida amei A flauta mágica e este sentimento tornou-se mais profundo com o passar dos anos. Meu primeiro teatro foi um conjunto de marionetes. Era jovem e quis representá-la ali, mas não tinha dinheiro para comprar o disco. Isso me obrigou a abandonar o projeto. Também quis encená-la vinte anos atrás, quando era conselheiro artístico do grande Teatro Municipal de Malmõe. Faltou coragem. Não tínhamos os artistas necessários e eu não me julgava o bastante amadurecido. Em 1941, quando trabalhava como assistente de produtor na época Real de Estocolmo, fiquei espantado com uma frase do diretor musical e encenador Issay Dobrowan, que não entendi no momento: 'Daqui a quinze anos, espero ser capaz de montar As bodas de fígaro'. Isso ocorreu enquanto ele produzia Kovantchina, de Mussorgski, uma das experiências fundamentais da minha existência. Compreendo hoje o que ele queria dizer. E não lamento ter levado vinte anos para montar A flauta mágica. Minha intenção, ao fazer A flauta mágica para a televisão, era criar uma versão para o público de todas as categorias e todas as idades. Ê exatamente neste espírito que a ópera foi encenada, num teatrinho nos subúrbios de Viena, poucos meses antes de Mozart morrer em 1791. A flauta mágica se destinava originalmente a um público impaciente, curioso, difícil e que gostava de rir. Foi para ele 333


que o empresário teatral Emanuel Schikaneder escreveu o libreto e Mozart sua música. No fundo, a peça é um conto de fadas e um teatro filosófico, narrado para uma criança de 10 anos. A flauta mágica tem uma moral que me agrada: 'o amor é a coisa mais importante entre os seres humanos e a mais significativa do mundo*. Uma de minhas preocupações cruciais foi encontrar cantores que tivessem vozes naturais, se assim se pode dizer, não vozes artificiais, mas vozes que davam a impressão de saírem diretamente do coração. Durante as filmagens, eu dizia para os atores-cantores: Quanto mais à vontade estiverem, melhores vocês serão. A expressão dos rostos importa mais do que os movimentos. Não esqueçam que A flauta mágica é um hino à música e ao amor. Mas sem sombra de sentimentalismo, sem esteticismo. A perfeição formal tem poucas importância. Como diretor de cinema nós nos encontramos diante de uma escolha de uma mesma ordem: se consigo uma tomada imperfeita do ponto de vista técnico, mas muito viva na sua interpretação, e uma outra que é perfeita mas interpretada de maneira muito menos viva, escolho invariavelmente a primeira. O aborrecimento é que nós estamos totalmente pervertidos pela perfeição das gravações de discos. Chega ao ponto de ficarmos contentes quando ouvimos uma nota errada. Estou cansado dessa sagrada perfeição. A beleza é o que atinge não à perfeição, mas à vida." 334 Mais alguns pensamentos de Bergman colhidos no livro de Bjorkman, Manns & Sima:

Viver "No princípio, foi por razões românticas que eu me instalei em Faro: a ilha, o mar, o velho homem e o mar. É uma dessas idéias completamente idiotas das pessoas que nunca viveram à beira-mar. Mas Faro se tornou indispensável, ao passo e à medida que os anos passavam. Eu queria viver em contato permanente e espontâneo com um elemento natural: o mar. Os habitantes da ilha vivem assim, e eu também. Isso me permitiu um melhor conhecimento de mim mesmo, saber exatamente o que eu sou, avaliar minha própria significação. É um alívio descobrir sua própria significação ou a sua falta de significação. Aqui, em Estocolmo, vocês compreendem, se solto um grito, se estou de mau humor ao chegar do teatro, quinze minutos depois, todo mundo sabe nessa devassável casa. O fato de estar de mau humor torna-se subitamente notável. Tenho a impressão de ter me tornado alguém muito importante, famoso. Mas se solto um grito em Faro, o máximo que pode acontecer é um corvo levantar vôo. Tudo é reproduzido em proporções exatas. E isso me dá uma impressão de segurança." Atores

"Pouco a pouco, consegui estabelecer uma técnica pessoal de trabalho com os atores. Preparo a filmagem nos mínimos detalhes 335


em casa. É lá que concebo as cenas, os cenários, a interpretação em geral. Quando chego ao local de filmagem com os atores, pode acontecer que, apesar de tudo preparado, o tom, uma nova inflexão de frase, um gesto, uma expressão, a reflexão de um ator me incitem a mudar totalmente a cena. Eu sinto interiormente que o resultado será melhor, mas isso nunca tem a necessidade de ser dito entre nós. Acontece um montão de coisas entre mim e os atores, e sobre um plano que é impossível de analisar. Ingrid Thulin me disse uma coisa interessante a esse respeito: 'Quando você me fala, eu não compreendo nada do que você quer dizer, mas quando você não me fala nada, compreendo tudo perfeitamente'." Intuição "Em princípio, no que concerne à escolha e à instrução dos atores em geral, me comporto muito intuitivamente... Seria ridículo discutir com um ator sobre sentimentos e emoções. Ele imediatamente me cuspiria no rosto. Minha função é dar instruções técnicas completas e perfeitamente claras. Para mim, a descrição da cena e da interpretação, e sua realização prática, são indicações técnicas que indiretamente se endereçam ao ator, lhes fala." Cor "... penso começar a trabalhar em cores. Torna-se impossível continuar a filmar em preto e branco. Infelizmente. Mas acho que podemos nos divertir com a cor. Há com efeito na cor um encanto sensual, erótico, quando ela é bem utilizada. Quando, porém, diante dos nossos olhos apenas temos cores, pura e simplesmente, nada temos de divertido. Acho, por exemplo, que a cor estraga um filme como Bonnie e Clyde. Esse filme, mais do que qualquer outro, deveria ter sido feito em preto e branco, numa mistura de negros pesados e brancos suntuosos. Arthur Penn é, apesar de tudo, um dos melhores realizadores do mundo." Música "Sou um apaixonado leitor de jornais e um assíduo telespectador; além disso, como sofro regularmente de insônias, todas as noites 336 ouço pelo rádio o programa número 3. A minha forma de dormir é ouvindo música suave. A música suave deve, de algum modo, agir como espécie de barreira, repelindo outros sons mais intensos. Só não é assim em Faro, onde existe o murmúrio do mar e eu troco de boa vontade esse som pelo programa número 3. Os Beatles e a música pop, em minha opinião, são fenômenos fantásticos." Televisão "Às vezes, quando sinto uma sensação cinematográfica muito intensa, digo para mim mesmo: o que você faz não tem nenhum sentido! Ê o que penso freqüentemente quando vejo televisão. Subitamente, me deparo com o cinema ultrapassado, envelhecido, uma arte sem a qual poderíamos passar. Nesse caso, é antes de tudo um dilema moral, uma constatação de impotência, os filmes e os dramas que nós realizamos não podem nunca atingir o nível dramático da televisão, seu poder de sugestão." Teatro "Ainda sou capaz de fazer cinema durante alguns anos, até quando minha energia física começar a declinar. Mas continuarei a trabalhar no teatro até quando agüentar manter-me de pé, porque trata-se de escutar e de partilhar experiências com os outros, de fazer sugestões e de abrir horizontes." Cinema "Olho para mim mesmo como uma espécie de feiticeiro, uma vez que o cinema é baseado numa ilusão do olho humano. Cheguei à conclusão de que, se vejo um filme com a duração de 1 hora, fico sentado diante de 27 minutos de completa escuridão — os pedacinhos pretos que separam os fotogramas do filme. Quando exibo um filme, sou culpado de fraude. Uso um aparelho construído para se aproveitar de uma certa fraqueza humana, um aparelho com o qual eu posso sacudir a platéia de uma maneira altamente emocional — fazê-la rir, gritar de medo, sorrir, 337


acreditar em histórias de fadas, tornar-se indignada, sentir-se chocada, encantada, profundamente tocada ou, talvez, bocejar de tédio. Em qualquer dós casos eu sou um impostor ou, se a platéia está desejosa de ser guiada, um feiticeiro. Apresento truques de fei-tiçarias com aparelhos tão caros e maravilhosos que qualquer artista do passado daria tudo no mundo para possuí-los." 338 ÍNDICE DE ATORES Ake Friddel .................................... 160 Ake Gromberg ...... ........................... 160 Alf Kjellin ............•......................... 151 Anders Ekk..................................... 154 Anita Bjork..................................... 153 Barbro Hiort Af Ornas ........................... 161 Bengt Eklund ................................... 160 Bibi Andersson .................................. 142 Birger Malmsten ................................. 148 Birgitta Pettersson ............................... 161 David Carradine ................................. 159 Elliott Gould ................................... 158 Erland Josephsson ............................... 143 Eva Dahlbeck .............,..................... 147 Eva Henning.................................... 150 Gudrum Brost................................... 161 Gunnar Bjornstrand .............................. 144 Gunnel Lindblon ................................ 149 Harriet Andersson ............................... 145 Hasse Ekman ................................... 149 Inga Landgré ................................... 160 Ingrid Bergman................................. 157 Ingrid Thulin ................................... 143 Jarl Kulle....................................... 146. 339


Jorgen Lindstron ................................ 161 Kary Sylwan .................................... 161 Liv Ullmann .................................... 139 Maj-Britt Nilsson................................. 152 Max von Sydow ................................ 140 May Zetterling .................................. 156 Naima Wifstrand ................................ 160 Nils Poppe ..................................... 152 Sif Ruud ....................................... 159 Sigge Furst ..................................... 161 Signe Hasso .................................... 155 Stig Jarrel ...................................... 155 Stig Olin ....................................... 159 Ulf Palme...................................... 153 Ulla Jacobsson .................................. 154 Victor Sjostrom................................. 156 340 ÍNDICE DE FILMES A flauta mágica ......,.......................... 259 A fonte da donzela .............................. 218 A hora do amor................................. 249 A hora do lobo ................................. 240 A paixão de Ana................................ 247 Através do espelho .............................. 222 Barco para as índias ..........................,. 169 Cenas de um casamento .......................... 256 Chove sobre o nosso amor ........................ 167 Crise .......................................... 165 Da vida das marionetes........................... 273 Depois do ensaio ................................ 282 Face a face ..................................... 261 Fanny e Alexandre .............................. 276 Gritos e sussurros ............................... 252 Isto aconteceu aqui .............................. 181 Juventude ...................................... 182 Minha ilha de Faro .............................. 271 Monika e o desejo .......................... 187 Morangos silvestres .............................. 208 Música na obscuridade ........................... 171 Noites de circo ................................. 190 No limiar da vida .............................. 212 O olho do diabo ................................ 220 341


O ovo da serpente .............................. 265 O rito ......................................... 245 O rosto ........................................ 215 O sétimo selo .................................. 203 O silêncio ...................................... 230 Os comungantes ................................. 227 Para não falar de todas essas mulheres___........... 235 Persona ........................................ 237 Porto.......................................... 173 Prisão.............. ........................... 175 Quando as mulheres esperam ................... 184 Rumo à felicidade ............................... 179 Sede de paixões ................................. 177 Sonata de outono............................... 268 Sonhos de mulheres ............... .....,....... 197 Sorrisos de uma noite de amor..................... 199 Uma lição de amor ......... .......^............ 193 Vergonha....................................... 243 Impresso na Gráfica A Tribuna de Santos Ltda. Rua João Pessoa, 349 Telefones 32.8692 - 3S.3627 CEP 11.013-Santos

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