Cisma
revista de crítica literária e tradução ano iv – número vi – 2015
é fácil ser fossa É o tchan! Rubem Fonseca Lupicínio Rodrigues Sophia de Mello Breyner Andresen textos traduzidos de Langston Hughes, Mario Benedetti, Anne Carson, Yvoty Potyjera, Margot Glantz Poesia Flarf e entrevista com Basquiat
issn 2238-7013
Cisma
revista de crítica literária e tradução ano iv – número vi – 2015
é fácil ser fossa É o tchan! Rubem Fonseca Lupicínio Rodrigues Sophia de Mello Breyner Andresen textos traduzidos de Langston Hughes, Mario Benedetti, Anne Carson, Yvoty Potyjera, Margot Glantz Poesia Flarf e entrevista com Basquiat
Cisma Idealizadores Sofia Nestrovski Tiago Bentivoglio 2015 Ano IV – Número VI Editores Ana Luísa Rodrigues Caroline Micaelia Clarissa Pereira Danilo Hora Fernanda Morse Guilherme Zani Henrique Amaral Isabel Ferreira Isabela Benassi Lucas Alves Ferreira Milena Varallo Paulo Martins Filho Pedro Körbele Revisores Ana Luísa Rodrigues Caroline Micaelia Clarissa Pereira Danilo Hora Felipe Benjamin Fernanda Morse Guilherme Zani Henrique Amaral Isabel Ferreira Isabela Benassi Lucas Alves Ferreira Milena Varallo Paulo Martins Filho Pedro Körbele Sofia Nestrovski Colaboradores Antonio Castro Bernardo Ceccantini Mariana Holms Sofia Nestrovski
Projeto gráfico Bruno Tenan Diagramação Priscila Tioma Capa Malu Risi Ilustrações Deborah Salles Gabriel Marcondes Lívia Serri Francoio Marcelo Martins Ferreira
Governo do Estado de São Paulo e Secretaria da Cultura apresentam a Revista Cisma n.6, feita na Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (Diretor Sérgio Adorno, Vice-diretor João Roberto Gomes de Faria).
CONTATO para submissões: textos@revistacisma.com revistacisma@gmail.com www.facebook.com/revistacisma www.revistacisma.com www.revistas.fflch.usp.br/cisma
Editorial
É fácil ser fossa. A afirmação é intencionalmente ambígua, decididamente inexata. Depois de feitas as indagações e permitidas as mais diversas interpretações, resta apenas a noção de que aqui se exige uma postura – do crítico, do tradutor, do leitor. É uma fossa a sistemática manutenção de um cânone consolidado, outra é a dissensão em nome da dissensão. Ou seja, afirmar a inércia na mais fossa das afirmações: “time que tá ganhando não se mexe”, ou desistir por inteiro do time, recomeçar do zero sem que existam jogadores que possamos contratar. Gostaríamos de propor, na presente edição, a criação de um espaço onde nem mesmo nós, editores, possamos nos sentir à vontade. Neste espaço, deixaríamos entrar as incertezas, sem que se esquecesse a postura que adotamos diante da dúvida. Tudo o que foi dito vale também para nós da equipe editorial; estamos numa etapa do desenvolvimento da Cisma em que a vemos ora como uma revista consolidada, pronta para a expansão, ora como algo ainda muito incipiente, que hesita diante do crescimento. Depois de recebermos os textos, o nosso papel consiste em eleger os que mais poderiam construir o tema e colocá-los lado a lado para que possamos verificar se essa construção funciona. Ou ainda melhor, para o nosso espanto e sempre renovado prazer: perceber que, uma vez escolhidos os textos, o tema toma proporções que muitas vezes escapam do próprio projeto que poderíamos ter idealizado. Surgem relações inteiramente orgânicas (Basquiat, Langston Hughes), outras mais oblíquas (poesia Flarf e É o Tchan!), além de textos que parecem sustentar-se sozinhos, mas que não podem deixar de receber algo da carga de leitura dos outros. O nosso trabalho editorial é o de aparar as relações intertextuais, para que elas possam crescer umas nas outras. Se podemos afirmar que existe um todo nas edições da Cisma, ele se forma assim. O atual tema é uma extensão lógica de alguns dos temas anteriores:
“tudo já foi dito”, “enquanto tudo acontece”, “o avesso do hábito”, e com ele, podemos explorar ainda mais os aspectos da literatura e da crítica enquanto comportamento. Ao longo da revista, temos uma sucessão de fossas: a feiúra dos protagonistas de Mario Benedetti, a mercantilização homogeneizadora vista através do fenômeno É o Tchan!, o desafio enfrentado pela poesia Flarf. Mas a todas essas fossas é dada uma saída, e munidos dessa noção, rompemos com a prostração e tomamos uma postura: debater não só a literatura enquanto objeto de estudo, mas entender como nos voltamos a ela, de quais ferramentas precisamos nos munir, e em qual horizonte mirar.
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Sobre a luz que emerge do caos: o projeto poético de Sophia de Mello Breyner Andresen Matheus Cosmo
De todos os cantos do mundo Amo com um amor mais forte e mais profundo Aquela praia extasiada e nua, Onde me uni ao mar, ao vento e à lua. Sophia de Mello Breyner Andresen
nascida em 06 de novembro de 1919, na cidade de Porto, Sophia frequentou, entre 1940 e 1942, o curso de Filologia Clássica da Universidade de Lisboa. A sua primeira publicação ocorreu entre esses mesmos anos de 1940 e 1942, numa revista de publicação esporádica chamada Cadernos de Poesia, cuja organização envolvia Tomás Kim, José Blanc de Portugal e Ruy Cinatti. Seu primeiro livro, intitulado Poesia, foi publicado aos seus 25 anos de idade, no ano de 1944, seguido por Dia do mar, publicado em 1947, aos seus 28 anos de idade. Estando a poesia portuguesa influenciada pelos presencistas, cuja ênfase encontrava-se numa dimensão psicológica e subjetiva da literatura, e pela própria oposição a esse discurso, com os chamados neo-realistas, cujo trabalho apostava numa transformação social por meio da objetividade da linguagem, a publicação dos Cadernos de Poesia surge com um lema significativo: “a Poesia é uma só”. Esta consideração é
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importante até pelo nome que o primeiro livro de Sophia viria a carregar consigo: Poesia. Sobre isso, escreve Gastão Cruz: A obra de Sophia de Mello Breyner Andresen apresentava-se, pois, como poesia – e isso bastava. Não era um título ilustrativo, nem referencial, nem ‘poético’. Chamando a poesia pelo seu nome, Sophia situava-se imediatamente na posição que sempre seria sua: a absoluta confiança no poder dos nomes e na força de nomear. Claramente viria a explicitá-lo, mais tarde, nas suas diversas Artes Poéticas: “Se um poeta diz ‘obscuro’, ‘amplo’, ‘branco’, ‘pedra’, é porque estas palavras nomeiam a sua visão de mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder de estabelecer uma aliança [Arte Poética II]. (2001, p. 49)
As palavras de Gastão Cruz são importantes na medida em que revelam uma das grandes características da poesia de Andresen. De fato, para a poeta em questão, as palavras não ilustram nem referenciam: elas são, acima de tudo, uma garantia de existência. Dizer é fazer a coisa dita aparecer. Dizer “Poesia” é fazer com que esta emerja e nasça aos olhos de todos. Digo “todos”, pois este é o grande desejo de Sophia. Num poema como “Musa”, ela dirá, logo na primeira estrofe: “Musa ensina-me o canto/ Venerável e antigo/ O canto para todos/ Por todos entendido” (Andresen, 2010, p. 390). Este é, portanto, o grande centro de seu projeto poético: buscar a unificação de um mundo que se encontra cindido: a poesia de Sophia persegue um ideal de totalidade. A totalidade a que aqui me refiro diz respeito a uma unidade entre os homens, os deuses e a natureza. Esta unidade, por sua vez, pode e deve ser estabelecida no espaço do próprio poema. Em um de seus belíssimos textos, chamado “Poesia e realidade”, Sophia distingue o que ela mesma chama de “Poesia”, “poesia” e “poema”. Para ela, a Poesia se encontra na própria existência das coisas. Uma vez comprovada a existência das segundas, a primeira também existirá, inerente a elas, mesmo que o homem não seja capaz de enxergá-la ou de percebê-la. Uma
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está concomitantemente ligada à outra. Por sua vez, a poesia seria a relação que os homens estabelecem com a Poesia, primeira e original. Dessa relação, nasceria o poema. Nas palavras da própria autora: “O poeta vê a Poesia, vive a poesia e faz o poema” (Andresen, 1960, p. 54). O poema é aqui abordado como o lugar onde seria possível restabelecer uma aliança com as coisas primeiras. Ele seria o espaço onde se poderia alcançar uma união direta com as próprias coisas, com a própria Poesia, uma vez que uma é parte constitutiva da outra. Todavia, o poema é sempre fruto de uma criação. Logo, enquanto a Poesia implica existência e a poesia implica vivência, o poema nasce de uma elaboração. Uma vez elaborado, ele não é mais um pedaço do mundo propriamente dito, transportado e colado na página em branco, mas uma construção, uma recriação onde, por meio das palavras do poeta, se faz nascer um novo espaço: um ambiente que é primordialmente fruto da linguagem. E, se dizer é fazer aparecer, na poética andreseana, é por meio do poema que um outro mundo possível pode ser capaz de emergir: um mundo não-cindido e reunificado. De acordo com as palavras da própria autora, colocadas nos versos finais de A forma justa: “Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco/ E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo” (Andresen, 2010, p. 660). Todas essas questões ficam ainda mais claras no poema que se encontra logo abaixo: NO POEMA Transferir o quadro o muro a brisa A flor o copo o brilho da madeira E a fria e virgem liquidez da água Para o mundo do poema limpo e rigoroso Preservar de decadência morte e ruína O instante real de aparição e de surpresa Guardar num mundo claro O gesto claro da mão tocando a mesa (2010, p. 405)
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É interessante pensar o poema como um espaço de transferência, aludindo ao primeiro verbo que aparece logo no início da primeira estrofe. Ocorre um deslocamento do próprio movimento real das coisas para o espaço da página em branco onde o poema é escrito. A própria Sophia dirá na sua Arte Poética III que: Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta.1
Todavia, ao ser transportado para o espaço do poema, o real constrói uma nova realidade que é, essencialmente, fruto da linguagem. Dessa maneira, transferir o quadro, o muro e a brisa para o espaço do poema é, simultaneamente, criar um novo quadro, um novo muro e uma nova brisa, que emergem aos olhos do leitor assim que este lê e pronuncia: quadro, muro e brisa. Por sua vez, o espaço do poema é aqui apresentado como limpo e rigoroso. A partir disso, dois aspectos podem ser levados em consideração. A busca pela rigidez do poema remete-nos a uma preocupação estética que é própria do trabalho do poeta, uma vez que o seu trabalho de composição é altamente minucioso no que diz respeito à forma e à própria escolha das palavras empregadas. Agora, a limpeza passa necessariamente por um direcionamento do olhar do autor. Este caminho, por sua vez, é reconhecido pela própria poeta, ainda na sua Arte Poética III, quando ressalta a objetividade do seu próprio olhar e afirma ter reconhecido essa mesma característica em Homero e na pintura de Amadeo de Souza-Cardoso.2 Dessa maneira, a aposta andreseana em relação à poesia parece apontar para um caminho de dessubjetivação do próprio olhar para que, objetivamente, a construção de um novo mundo torne-se possível – mundo esse onde é possível reter a decadência, o caos e a obscuridade, e preservar o instante real de aparição das coisas; onde se consegue recuperar o momento real em que as coisas emergem e sabe-se olhar para elas como na primeira
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vez; onde se configura a possibilidade de retorno àquela atitude de nomeação de cada um dos elementos do mundo e, ao nomeá-los, fazê-los existir concretamente. O grande processo real de aprendizagem seria, portanto, uma verdadeira atitude de desaprender, conforme já afirmava Alberto Caeiro. E, partindo dessa dinâmica, o poeta é enfim capaz de reconstruir o mundo. É importante ressaltar, também, que o espaço do poema é, por excelência, o espaço em que se é possível reter a morte, ruína do ser. Isso fica claro num poema como Eurydice, que se encontra transcrito logo abaixo: EURYDICE Este é o traço que traço em redor do teu corpo amado [e perdido Para que cercada sejas minha Este é o canto do amor em que te falo Para que escutando sejas minha Este é o poema – engano do teu rosto No qual eu busco a abolição da morte (2010, p. 264)
A imagem do traço, usada pela poeta neste poema, remete-nos à Arte Poética III, cujo trecho já foi mencionado anteriormente. A referência a um “traço que é traçado” é, por excelência, uma imagem que nos encaminha ao próprio processo da escrita do poema, a qual, logo em seguida, se junta o canto, terminando por introduzir a autêntica imagem do primeiro. Aqui, a obra e seu processo de composição caminham numa progressão essencial onde denotam seus elementos constitutivos: passa-se da escrita ao canto e, por fim, nasce o poema, nessa indissociabilidade entre som e sentido. Junto a essa imagem, no penúltimo verso aparece um complemen-
Gabriel Marcondes
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to essencial: “engano do teu rosto”. Digo essencial pois fortalece uma das questões aqui levantadas. Por mais que a escrita seja capaz de cercar o seu objeto, ou, parafraseando as palavras da própria poeta, de traçar um círculo onde o pássaro do real fique preso, o poema será sempre fruto de uma construção. Uma elaboração que advém da realidade, mas que não é a realidade. Ao contrário dessa, o espaço do poema é limpo e rigoroso. Busca-se a abolição da morte neste lugar porque, de fato, o seu mundo é protegido: nele, as coisas são eternizadas. Dizer “Eurydice” é presentificá-la. Ao dizer “Eurydice”, ela (a própria Eurydice) se transporta do espaço do poema e estabelece uma realidade concreta e material. Realidade essa que é essencialmente fruto de uma elaboração. Entretanto, essa atitude não deve ser vista com maus olhos. É a partir dessa construção que o poeta pode insistir e acreditar no seu ofício para a reconstrução do mundo. Dito isso, é interessante pensar que, em tempos de completa negatividade, traço que é próprio da poesia pessoana, um dos grandes poetas portugueses, a poesia de Sophia faz emergir uma luz que é uma fonte de positividade. Vale ressaltar, inclusive, todos os lexemas que constroem uma isotopia de luz, positiva, no poema acima transcrito, tais como ‘brilho’, ‘limpo’, ‘aparição’, ‘surpresa’ e ‘claro’. Alguém poderá argumentar que essa atitude também é típica de um refúgio e que, portanto, o projeto poético andreseano é também uma atitude escapista. Contudo, cabe acentuar que, para chegar à positividade, Sophia precisou atravessar por completo o terreno da negatividade, como veremos adiante. São significativas as palavras de Eduardo Lourenço ao dizer que: Há poucos itinerários poéticos em língua portuguesa tão impregnados de positividade original, tão de raiz canto ao rés de uma realidade aceite como esplendor efémero e eterno e por isso tão isentos de polemismo e intrínseca negatividade, como o de Sophia Mello Breyner. (1975, p. II).
A poesia de Sophia entende a realidade tal como ela é. Ela tem consciência do seu tempo. Esta é, inclusive, uma etapa fundamental
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(quiçá, a primeira de todas) para que uma transformação possa ocorrer. E é justamente por perceber concretamente a sua realidade que Andresen é capaz de concluir que ela não constitui o seu ideal poético e o seu ideal de mundo – ao contrário: o seu ideal de mundo pretende a unificação entre homens, deuses e natureza. Esta reunificação aparece na sua Arte Poética I por meio da imagem da ânfora. Objeto que remonta os gregos, a ânfora seria a responsável pela execução da ideia de totalidade a que Sophia aspira. A poeta chega até a afirmar que a loja em que se encontra é como uma loja de Creta. Interessante é perceber que a autora reconhece que a loja é como uma loja de Creta. Ela sabe que não está em Creta e mais importante: reconhece que o seu tempo é de completo horror, uma vez que vive em plena ditadura salazarista. A construção de uma outra possibilidade de existência, no percurso poético andreseano, passa necessariamente pelas águas do mar. Desde pequena, Sophia teve o mar saindo da casa vermelha de sua avó. Sua ligação com o mar é tão forte a ponto de afirmar, no seu poema Atlântico, que “Metade da minha alma é feita de maresia” (Andresen, 2004). Há em seu livro A Menina do Mar, recentemente publicado no Brasil pela Editora Cosac Naify, um diálogo revelador. Em resumo, um menino conhece uma menina pequenina, a Menina do Mar, que, junto com seus amigos polvo, caranguejo e peixe, brincava perto das rochas. Ele explicou-lhe as coisas da Terra e ela, de tão encantada que ficou, disse-lhe que iria com ele conhecer o restante das coisas. Ele planejou uma fuga, mas ambos foram impedidos por polvos, que obedeciam a uma ordem da Grande Raia, uma vez que essa havia proibido a saída da Menina do Mar e havia decretado, como castigo, que essa fosse mandada para bem longe. Triste, o menino voltou à praia com a esperança de reencontrar aquela que era a sua mais nova amiga, mas seus esforços eram em vão. Até que, um dia, olhou para o alto e viu uma gaivota. Esta lhe deu um frasco: – Bom dia, bom dia – disse a gaivota. – Bom dia, bom dia – respondeu o rapaz. – Donde é que vens e porque é que me dás este frasco? – Venho da parte da Menina do Mar – disse a gaivota. – Ela manda-te dizer que já sabe o que é a saudade. E pediu-me para te perguntar se queres ir ter com ela ao fundo do mar.
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– Quero, quero – disse o rapaz. – Mas como é que hei de ir ao fundo do mar sem me afogar? – O frasco que te dei tem dentro suco de anémonas e suco de plantas mágicas. Se beberes agora este filtro passarás a ser como a Menina do Mar. Poderás viver dentro da água como os peixes e fora da água como os homens. – Vou beber já – disse o rapaz. E bebeu o filtro. (2014, p. 32)
De alguma maneira, este suco de anémonas e de plantas mágicas traduz um dos grandes desejos de Sophia: a possibilidade de unir Homem e Natureza; de habitar Terra e Mar. Os escritos da autora ocupam, por excelência, este espaço que existe entre um e outro. O projeto poético andreseano é essencialmente um percurso. Sua grande questão não se encontra, portanto, no ponto de partida ou de chegada, mas no meio do caminho, no ponto onde ambos os extremos se interseccionam. Dada a instabilidade própria da água, uma vez que essa se encontra sempre em movimento, o mar é apresentado na obra de Sophia como uma nova possibilidade de existência e de atribuir sentido às coisas. – Agora nunca mais nos separamos – disse o rapaz. – Agora vais ser forte como um polvo – disse o polvo. – Agora vais ser sábio como um caranguejo – disse o caranguejo. – Agora vai ser feliz como um peixe – disse o peixe. – Agora a tua terra é o mar. – disse a Menina do Mar. (2014, p. 39)
Da mesma maneira que a Terra só pode existir por oposição ao Mar, construindo uma dicotomia que é própria da nossa maneira de organização dos pensamentos, uma vez que esses são organizados em pares, a partir de opostos, o Mar também só existe em oposição à Ter-
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ra. Este raciocínio envolve a nossa maneira de pensar os quatro elementos fundamentais da Natureza: terra, ar, água e fogo. Um só existe por oposição ao outro. Todavia, o que Andresen parece valorizar é o espaço que existe entre cada um dos elementos, de maneira que um pouco de cada coisa fica registrado ao final do percurso executado, como uma marca que não pode ser apagada. Dessa maneira, torna-se possível inter-relacionar até mesmo dois elementos que, a princípio, estavam dados como contrários: “Agora a tua terra é o mar”. Mais uma vez, estamos diante de um mundo reconstruído a partir do próprio processo de escrita. No seu poema Inscrição, Sophia diz: “Quando eu morrer voltarei para buscar/ Os instantes que não vivi junto do mar” (Andresen, 2004). Em alguma instância, aqui se opera uma lógica de cisão, se tais versos forem examinados minuciosamente. O retorno de alguém que morreu, envolve, no mínimo, uma divisão em dois planos: em um plano, há uma matéria que já se encontra morta, dada a nossa dimensão humana que é, acima de tudo, finita (e, por isso, trágica), e, em outro plano, há uma outra parte que ainda é capaz de se lançar num processo de busca. Quando dizia que Sophia havia passado pela negatividade para encontrar a positividade, referia-me a este fato: o seu projeto poético busca a totalidade e a reunificação do mundo; contudo, ela própria é uma pessoa cindida – assim como todos os homens que vivem esses tempos de negação, solidão e ameaça, parafraseando um poema da própria poeta. Para exemplificar o que aqui foi exposto, retorno a um poema onde Sophia retoma a figura da Eurydice, já utilizada num outro poema aqui transcrito, para escrever:
SONETO DE EURYDICE Eurydice perdida que no cheiro E nas vozes do mar procura Orpheu: Ausência que povoa terra e céu E cobre de silêncio o mundo inteiro.
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Assim bebi manhãs de nevoeiro E deixei de estar viva e de ser eu Em procura de um rosto que era o meu O meu rosto secreto e verdadeiro. Porém nem nas marés nem na miragem Eu te encontrei. Erguia-se somente O rosto liso e puro da paisagem. E devagar tornei-me transparente Como morta nascida à tua imagem E no mundo perdida esterilmente. (2010, p. 290)
O primeiro fato digno de nota diz respeito à escolha estética feita pela própria poeta. Aqui, Andresen opta por uma forma engessada, uma vez que é fixa (dois quartetos e dois tercetos), e produzida há muitos anos: o soneto. Ela inicia com uma primeira estrofe na terceira pessoa para, logo em seguida, já na segunda estrofe, introduzir o uso da primeira pessoa, aproximando a voz lírica do poema à figura da Eurydice. A cisão de que falava anteriormente encontra-se explicitada nos sexto e sétimo versos, onde se diz: “E deixei de estar viva e de ser eu/ Em procura de um rosto que era o meu”. O leitor é colocado diante de um quadro onde o próprio sujeito é despersonalizado. Cria-se uma imagem de eu e de um não-eu, uma vez que o sujeito busca o seu próprio rosto. No entanto, no seu processo de busca, tudo o que ele é capaz de ver é o próprio mar, “o rosto liso e puro da paisagem”. É interessante perceber como as próprias imagens que Sophia usa ao longo de suas obras vão ganhando novas significações a partir do contexto em que estão inseridas. A cisão que aqui se efetiva coloca o leitor diante de um quadro de uma total ausência de identidade, onde não há a menor possibilidade de encontro, uma vez que o poema começa e termina, se olharmos o seu primeiro e último versos, com a repetição da palavra perdida. Não se encontra aquilo que se procura. Sem Orpheu, o grande tocador de lira, o mundo encontra-se coberto de silêncio. E é em meio a esse silêncio que Sophia se dispõe a ser a voz
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universal, uma vez que pede à sua Musa o canto para todos e por todos entendido, conforme já mencionado aqui. Para concluir o raciocínio que aqui foi exposto, menciono o último poema que aqui será analisado: “Maria Helena Vieira da Silva”3 ou “O itinerário inelutável”. Minúcia é o labirinto: muro por muro Pedra contra pedra livro sobre livro Rua após rua escada após escada Se faz e se desfaz o labirinto Palácio é o labirinto e nele Se multiplicam as salas e cintilam Os quartos de Babel roucos e vermelhos Passado é o labirinto: seus jardins afloram E no fundo da memória sobem as escadas Encruzilhada é o labirinto e antro e gruta Biblioteca rede inventário colmeia – Itinerário é o labirinto Como o subir dum astro inelutável – Mas aquele que o percorre não encontra Toiro nenhum solar nem sol nem lua Mas só o vidro sucessivo do vazio E um brilho de azulejos íman frio Onde os espelhos devoram as imagens Exauridos pelo labirinto caminhamos Na minúcia da busca na atenção da busca Na luz mutável: de quadrado em quadrado Encontramos desvios redes e castelos Torres de vidro corredores de espanto Mas um dia emergiremos e as cidades Da equidade mostrarão seu branco Sua cal sua aurora seu prodígio (2010, p. 561)
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Num minucioso labirinto, a busca também se faz minuciosa. A luz, apesar de mutável, faz com que seja possível enxergar algo que até então não era visto. Mesmo exaurida pelo labirinto, Sophia consegue enxergar a luz. Mais do que isso, diante de um labirinto que se mostra quase sem saída, em comparação ao seu próprio momento histórico, na difícil ditadura salazarista, a poeta acredita na possibilidade de emersão. Assim como no princípio do mundo, é do caos que nasce o ser: esse emerge a partir do não-ser. Seguindo essa mesma lógica, Andresen acredita que dessa coisa obscura, que é o labirinto, algo ainda pode ser revelado e mostrado. O mundo pode emergir de uma nova maneira, a partir da luz que, na última estrofe, parece tomar conta de toda a imagem poética e alterar, por completo, toda a configuração da realidade. Como já foi dito, Sophia não nega a realidade, mas absorve-a como a sua grande matéria-prima. Uma vez sendo o ofício do poeta o de reconstruir o mundo, ela tem para si a sua parte na construção dessa nova realidade. Uma realidade que nasce, acima de tudo, a partir do próprio ato de nomear as coisas. “A palavra é a casa do ser”, diria Heidegger – e, no projeto poético andreseano, isso se confirma com maestria. Andresen não escapa do mundo nem se prende a uma subjetividade, mas busca uma objetividade que ela diz ter encontrado em um pintor e no grande modelo da literatura: Homero. É utilizando o imaginário grego, com todas as suas imagens e mitos, que a autora concretiza o seu projeto de reunificação do mundo, algo muito valorizado por vários poetas e críticos que assumem enxergar, na obra da escritora, um pouco de luz frente a um século de completo horror e escuridão, tal como foi o século XX, que ainda deixa rastros significativos no século XXI. A poesia de Sophia nos dá esperança para a construção de algo que ainda se encontra num devir, mas que já pulsa e já encontra seus registros em páginas tão concretas e essenciais como as suas. Ora, se a Poesia é inerente às coisas e se encontra mergulhada no mundo, cabe a nós uma operação de resgate e descoberta. O mundo encontra-se adormecido e parece nos perguntar, a todo instante: “Trouxeste a chave?”, expressão usada tão magistralmente por Carlos Drummond de Andrade, em seu poema “Procura da poesia”. Todavia, parece que a resposta dada a essa pergunta é, na maioria dos casos, um
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grande lamento, por razões variadas: ora a chave se perdeu no meio do caminho, pois no meio do caminho havia uma pedra, ora ela sequer foi encontrada devido à greve dos chaveiros, parafraseando outra poeta portuguesa, Adília Lopes,4 que diz que as cartas de Mariana Alcoforado nunca chegaram às mãos de seu amado por conta da greve dos metroviários. Por fim, à margem daquilo que aqui me cabe concluir, posso afirmar que a poesia de Sophia é um grande convite a um percurso que beira e almeja uma nova possibilidade de existência. Seu projeto poético é, acima de tudo, um grande mergulho em águas mais límpidas e profundas. Aceitemos seu convite: naveguemos, pois. Façamos da nossa Terra o nosso Mar.
notas 1. Andresen, Sophia de Mello Breyner. Arte Poética III. Disponível em: <http://purl.pt/19841/1/ galeria/artespoeticas/arte-poetica-iii.html>. Acesso em 21 de dezembro de 2014. 2. Pintor português nascido em 14 de novembro de 1887, em Amarante, Portugal, e falecido em 25 de outubro de 1918, em Espinho, também em Portugal. 3. Pintora portuguesa nascida em 13 de junho de 1908, em Lisboa (Portugal), e falecida em 06 de março de 1992, em Paris, na França. Casou-se com o pintor Arpad Szenes (1897 – 1985) em 1930. 4. Nascida em 1960, Adília Lopes é o “nome de Crisma” de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. Segundo a última, Adília começou a aparecer aos seus 23 anos de idade e, aparentemente, continua reaparecendo até os dias atuais.
referências bibliográficas andresen, Sophia de Mello Breyner. Obra Poética. Edição de Carlos Mendes de Sousa. Lisboa: Caminho, 2010.
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__________________________________. Poemas escolhidos. Seleção e prefácio de Vilma Arêas. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ___________________________________. “Poesia e Realidade”. Colóquio publicado na Revista de Artes e Letras, n. 8, abril de 1960. ___________________________________. A Menina do Mar. Ilustrações de Veridiana Scarpelli. São Paulo: Cosac Naify, 2014. coelho, Eduardo Prado. “Sophia, a lírica e a lógica”. In: A mecânica dos fluidos: literatura, cinema, teoria. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984. cruz, Gastão. “A poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen ou o nome do mundo”. In: Relâmpago, Revista de Poesia, n. 9/10, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava e Relógio d’Água Editores, 2001. heidegger, Martin. “A sentença de Anaximandro”. Tradução de Ernildo Stein. In: SOUZA, José Cavalcante de Souza (org.). Os pré-socráticos: vida e obra. São Paulo: Nova Cultural, 1999. lourenço, Eduardo. “Para um retrato de Sophia”. In: Andresen, Sophia de Mello Breyner. Antologia. Lisboa: Moraes, 1975, 4ª edição. steinberg, Vivian. “No Poema”: um paradigma da tessitura poética de Sophia de Mello Breyner Andresen. Dissertação de Mestrado: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2006. escritos de Sophia de Mello Breyner Andresen, selecionados e organizados por Maria Andresen Sousa Tavares, sob iniciativa da Biblioteca Nacional de Portugal, disponíveis em: <http://purl.pt/19841/1/index.html>.
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Tensividade sadomasoquista e complexo de cornitude nas canções de Dor de Cotovelo (1973), de Lupicínio Rodrigues Cardênio de Cornália
O mundo, este grande espelho Que me fez pensar assim Lupicínio Rodrigues, “Quem há de dizer” A alma é divina e a obra é imperfeita Fernando Pessoa, “Padrão”
dez da manhã, Lupicínio Rodrigues desperta vagarosamente, munido de sua diária ressaca, resultada de uma molícia contínua, causa do uso prolongado de conhaque, consequência de suas dores de cotovelo acumuladas. Aliás, vocábulo de origem incerta, “dor de cotovelo”, ou “dor de corno”, provavelmente associado ao incômodo que se dá quando, horas depois de algumas doses, percebe-se o dito cotovelo apoiado à mesa do preleto bar, o copo já vazio, cabeça abaixada, dor, vontade de pôr pra fora, vomitar o sofrimento, como se depois de morrermos ainda estivéssemos vivos. Quem já foi traído sabe como é. Ainda de madrugada, Lupicínio flagrara sua amante nos braços de outro qualquer, entretanto, não sabendo se sentia ciúme, despeito, amizade ou horror, ou talvez até os quatro ao mesmo tempo, deitou-se tentando dormir, tendo fracassado se levantou, pôs-se de pé, abriu a janela, olhou para a
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rua, acendeu um cigarro, soprou ao longe a fumaça que foi parar por entre as pernas de uma mulher cheia de brilhos voltando do porto de Ilhota, Rio Grande do Sul, jogando-se à cama de novo, estendeu um braço que tombou para fora do lençol e, neste exato momento, disse: – Volta… Nesta famosa canção, “Volta” (1957), em que, segundo Luiz Tatit em O Cancionista, “a necessidade afetiva excede a própria consciência exacerbando o desejo e desconsiderando a impossibilidade de conjunção”, o eu lírico, em tom de apelo, direciona-se diretamente para a mulher desejada, porém encontrando apenas sua ausência, iludindo a si mesmo (a voz de Gal, ao interpretá-la, incorpora-se no âmago do ouvinte). Já em outra famosa canção, “Nervos de Aço” (1947), que a interpretação de Paulinho da Viola faz doer, as modalidades do /querer/, desejo de conjunção (com a pessoa amada), e do /saber/, consciência de disjunção (pela ausência dela), delimitadas por uma análise semiótica das paixões, estão em equilíbrio, embora conturbadas, pois ninguém quer aceitar a solidez de um par de chifres... Assim sendo, em “Nervos de Aço”, “o plano figurativo de abertura vai ganhando tensão passional até atingir o clímax no início da segunda parte”. Ao contrário, “em Volta, já se parte do máximo grau de tensão e, paulatinamente, a melodia vai se distendendo e tendendo à figurativização”. É por um processo parecido que se insere a canção “Se é verdade”, composição de 1954, primeira faixa do disco Dor de cotovelo, segundo LP gravado pelo próprio Lupicínio entoando suas composições um ano antes de sua morte (1974) e que será o cerne dessa análise. A primeira estrofe começa introduzida pela conjunção “se”, responsável pelo sentido condicional delimitado pelos dois primeiros versos a fim de expressar uma hipótese, suposição: “Se é verdade o que você vem me dizer / Se é mesmo certo que ela vai me procurar”. Neste caso, a condição da afirmação do interlocutor implícito, colocada como verdadeira, não deixa de /ser/, ou pelo menos /parecer-ser/ falsa, para o enunciador, como se duvidasse da dádiva de tê-la de volta ou acreditasse que a notícia fosse demasiadamente boa para corresponder à realidade, fato que comprova a descrença de que a separação fosse reversível, o que também já introduz a noção de arrependimento que se arrefece na segunda parte da canção, explicitada pela metonímia de ter oferecido para outra um coração (que não é dele) sem a suposta
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“autorização” da “dona” do seu ser e alma, e finalmente torna em expectativa real e presente do perdão, o que faz com que as dúvidas colocadas nos primeiros versos se resolvam em claras afirmações de alívio: “(...) este bom Deus por certo vai me compreender, / E com certeza vai me perdoar” (grifos meus). Assim, na cadência das duas análises feitas por Tatit, no caso de “Se é verdade”, a figurativização vai se distendendo a partir da primeira estrofe, em que desaba quase por completo. Desse modo, enquanto as primeiras estrofes são sibiladas junto a uma harmonia mais lenta, na terceira e na última a subjetividade expressada pela tensão passional toma conta de vez da canção, ganhando uma entonação na voz de Lupicínio notavelmente mais marcada até culminar numa explosão no quarto verso da terceira estrofe, “Ofereci até um coração que não é meu”, que se estende, pois, à tensão máxima corroborada pelo violão de 7 cordas durante os três versos seguintes da última estrofe, exceto pelo último verso, que suspende o ritmo oito vezes marcado por brevíssimos intervalos entre as sílabas: “Ecom/certe/za/vai/me/per/do/ar”, retornando, por uma quebra inesperada, ao projeto figurativo, em que a melodia arrima-se pela flauta posta em cada pausa, como se, à maneira de um cavalo em disparada, precisasse ser puxada de volta pelas rédeas, e pelo bandolim, cada vez mais baixo, até que cessa completamente para voltar apenas na segunda parte da canção, que é a repetição dos dois primeiros versos, em que o ritmo do samba-canção impera novamente, fazendo-a mais comedida. Esta composição é peça chave para adentrarmos o universo de Lupicínio Rodrigues, tanto do ponto de vista vital quanto musical, temático e textual. O ritmo, embora mantenha seu embasamento na batida desacelerada do samba-canção, notada evidentemente quando percebemos a lentidão não usual do pandeiro, também se concentra pelos instrumentos de sopro e cordas típicos do choro. Ademais, o jeito com que ele canta, muito próximo da fala, distribuindo cada sílaba por cada nota, baixinho, o que estrutura um cantar etílico demais para a agudez de um tango ou a agilidade de um bolero, por mais que sua entoação e personalização respectivamente conserve muitos trejeitos melódicos e metódicos dos cantores destes gêneros, é assaz intrigante se levarmos em conta outro cantor e compositor, posterior, mas mundialmente muito mais famoso do que Lupicínio: João Gilberto. O próprio Lupe chegou a insinuar publicamente diversas vezes que João
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o teria imitado; em entrevista ao O Pasquim datada de 1973 afirma: Os melhores ritmistas que teve aqui no Rio de Janeiro, anos atrás, eram gaúchos. Por exemplo, o violinista que ensinou os cariocas a fazer esse samba que hoje dizem que é bossa-nova, era gaúcho. Chamava-se Neorestes. O pandeirista que ensinou os cariocas a bater pandeiro era gaúcho (pp. 65-76).
Na verdade, tanto Lupe (e ele o admite em crônica) como João foram influenciados por Mário Reis, que já nos anos 20 cantava dessa maneira. Nascido no Rio Grande do Sul, negro, Lupicínio sempre apresentou vocação musical (mesmo não sabendo tocar instrumento algum além de bater caixa de fósforos), embora as oportunidades já naquela época, ainda mais em termos de música e, principalmente, samba, concentrassem-se no Rio e em São Paulo. Segundo ele mesmo, também nessa entrevista, seu talento foi difundido graças aos marinheiros que cantarolavam suas músicas por onde passassem. Por mais que haja divergências dessa mítica versão, pois sua carreira também foi fruto do impulso de muitos intérpretes famosos que o conheceram, de Ciro Monteiro a Caetano Veloso, a figura de Lupe e sua persona não deixam de ser extremamente curiosos, sendo que sua vida está completamente imiscuída em suas canções, pois todas elas são declaradamente resultadas de sua vivência pessoal. Neste sentido, há um patetismo instaurado em toda a poética de Lupicínio, que ora tende ao sublime, ora ao grotesco, considerando uma ridicularidade refinada, que talvez seja a essência de toda dor de cotovelo ao ser experimentada. E “patético” assume aqui seu sentido etimológico (profundo): a passividade do ser tomado pela ação de uma paixão que, por sua vez, o levaria a agir não de maneira autônoma, porém sob o efeito de algo mais forte do que ele: o sofrimento, entendido por um processo em que dor e prazer estão relacionados de tal modo ser impossível um não ser causa e consequência do outro. Pela janela do youtube.com, observo Lupe transmitido por um programa de auditório. Com uma timidez dissimulada notadamente pelo álcool,
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ele é anunciado pela apresentadora e agarra o microfone com as duas mãos segurando-o rente ao pescoço que entorna sua cabeça quase forçosamente para encarar o público. Soltando uma risadinha complacente que não abandonará seu bigode malandro durante quase toda a apresentação (a não ser quando num sopro inesperado de coragem franze o cenho e se expressa como um macho machucado pela ingratidão feminina) anuncia um pot-pourri e entoa: “Ela disse-me assim...” Entre a vergonha de expor a sua dor e a audácia de cantá-la (basta atentarmos como é sacrificante para ele entoar o primeiro verso de “Pra São João decidir”, que quase não sai), Lupe é na verdade um dengoso. Ora, as duas primeiras estrofes de “Se é verdade” explicitam este grau de reserva oriunda dos comedidos, embaraçados, porém, por trás de todas as suposições e incertezas acerca da reconciliação revela-se um sujeito completamente carente que, caso tenha sido traído, aceitaria a “filha pródiga” de volta e até a perdoaria, porque não aguenta ficar sem ela. Neste sentido, o eu lírico expõe-se à humilhação de perguntar a quem deve agradecer o retorno da amada, além de confidenciar ter se ajoelhado e feito promessas para os santos, ao modo de penitência infantil: “Então me diga a quem devo agradecer/ Depois que fiz tantas promessas/ Pra meu bem não me deixar”. Entretanto, esse processo é mais complexo do que parece. Ora, Lupicínio confessa em crônica referente a essa música que se arrependeu novamente, dessa vez, por incrível que pareça, de, justamente, ter feito as pazes com o desafeto...! Segundo Platão, Sócrates faz um discurso no Banquete em que defende a ideia de que o desejo seria medido diretamente pela falta. Ou seja, desejamos apenas aquilo que não temos, porque, uma vez que conquistamos a causa de nossa inquietude e ganhamos, pois, o objeto desejado, gerando, por sua vez, uma solução para aquela angústia, nossa vontade cessa, posto que o que antes nos atraía tornou-se tedioso. Esse impasse, que é a inerência da insatisfação humana, no caso de Lupicínio também é a condição para compor suas canções e, consequentemente, para continuar vivendo. Isso pode explicar o oximoro (masoquista) da faixa número 2 do lado A gravada em “Dor de Cotovelo” – Pra São João decidir (1952): “Rosinha disse que ia por num papelzinho/ O meu nome e o do vizinho/ Pra São João decidir”. Aqui a passionalização embala-se em uma entonação frenética (vide a interpretação de Arrigo Barnabé) em
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contraposição à melancolia do enunciador, quando, na última estrofe, volta totalmente disforizado, observando “a lenha se queimar”, metáfora sarcástica do seu sofrimento ao mesmo tempo em que referência implícita ao ato sexual, corroborado pelos eufemismos do fogo – combustão e tesão simultaneamente. Essa choça auto-impingida pelo próprio corno conflui o trágico e o cômico (e caso fosse uma marchinha, seria puramente cômica), restando a certeza de que, diante da traição até mesmo do santo de devoção: “E eu tinha tanta confiança neste santo/ Que apostei um conto e tanto/ Que era eu que ia ganhar”, não podemos (ou aí é que devemos?) levar a vida tão a sério, pelo menos a ponto de julgarmos ser a união entre dois entes que se amam um estado de paz, tranquilidade, realização ou solução para os problemas, idealizada pela insana mente humana, além de insinuar um masoquismo velado, pois, quanto à ambição do orgulho ferido, é redentor que se admita a si o fracasso e assistir a lenha se queimar, assim como admirar, raivosamente, o sucesso do estandarte vizinho, “Sabem o que foi que eu vi quando rompeu o dia?/ Vi foguete que explodia/ Buscapé, lança rojão/ Era o vizinho que já tinha triunfado”, faz parte do processo de superação do trauma, em que, finalmente, o ego considere ser o desfrute alheio não o descarte próprio porém apenas o direito de se gozar de algo que seria comprovadamente bom caso tivesse sido ele o escolhido a gozá-lo, embora chegar a essa conclusão seja dificílimo posto que, assim como não há lógica que possa explicar uma sensação, física mesmo, provocada por essa dor emocional, não conseguiríamos viver em sociedade caso não nos preocupássemos com o julgamento dos outros em relação aos nossos fracassos: “Acendeu-se uma fogueira/ Todo mundo foi pular”. Neste sentido, a impossibilidade de experienciar um papel possível é o motivo gerador da perversidade ciumenta. Exemplifica Vinicius de Moraes: “o tempo de amor é tempo de dor”. Desse modo, como bem afirmam Maria Izilda de Matos e Fernando Faria em Melodia e Sintonia em Lupicínio Rodrigues, nas canções de Lupicínio os homens são, para as mulheres, vistos como objetos de seus caprichos, retratando, assim, uma essência feminina marcada pela infidelidade, briguenta, fingida, não confiável. Em outra crônica, Lupe afirma seguramente serem as mulheres a causa de nossas mazelas, pois, tirada da costela de Adão, foi Eva quem nos corrompeu ao ter lhe oferecido a “maçã”. Portanto, o moralismo
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de Lupicínio é incontestadamente resultado de sua formação religiosa dentro de uma sociedade cujo modelo dos relacionamentos guia-se pelo maniqueísmo judaico-cristão, assegurado um radicalismo religioso, em que a mulher é vista como a causa do mal. Ironicamente contraditória, essa concepção claramente machista desfaz-se quando levamos em conta a biografia do próprio Lupicínio Rodrigues e analisamos o comportamento dos homens criados nesta sociedade, notadamente mais infiéis do que as mulheres. Entretanto, diante do pecado original, é como se eles estivessem isentos de culpa, uma vez que, por sua vez, pecariam como um “troco” à sedução irresponsável exercida por elas. Ainda segundo Izilda e Faria, assim como amamos, também tendemos a odiar nos outros aquilo que odiamos em nós mesmos. No fundo, Lupicínio, como demonstram suas canções, sentia bastante remorso pela sua infidelidade, muitas vezes causa das próprias traições que também sofria. Então, pode-se deduzir, como em um ciclo vicioso, a serpente mordendo a própria cauda, que redenção, em muitas medidas, depende, ou está, mesmo que indiretamente, ligada a traição, assim como só se pode perdoar aos pecadores, ou Cristo não teria sido pregado por causa de nós. Ademais, a mulher, quando considerada positivamente, é vista na obra de Lupicínio como um /deverser/, não como um /ser/: Adjetiva as mulheres como meigas e mimosas, belas e encantadoras, principalmente quando jovens, e deixa claro o que espera delas: honestidade, fidelidade, castidade e sinceridade (...) (matos e faria, 1996, p. 116)
Entretanto, em contraposição a esse papel, que só encontra em Lupicínio possibilidade dentro do lar, notadamente disforizado, a mulher da noite, por mais que traiçoeira e falsa (e talvez por isso mesmo atraente), ganha em vitalidade e ação para que provoque no eu lírico justamente um /fazer/: compor. O próprio Lupe comprova isso: “tive muitas namoradas na minha vida. Umas me fizeram bem, outras me fizeram mal. As que me fizeram mal foram as que mais dinheiro me deram, porque as que me fizeram bem eu esqueci”. Em Homenagem
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(1972), segunda faixa do lado B, o enunciador declara: Eu agradeço estas homenagens que vocês me fazem Pelas bobagens e coisas bonitas que dizem que eu fiz (...) Levem estas flores pra’quela que agora deve estar chorando Por não poder estar neste momento aqui junto de mim Pra receber estas honras que a outra está desfrutando O nosso amor clandestino é que obriga a vivermos assim
Assim, em um recurso metalinguístico, o eu lírico faz referência tanto ao papel de artista como de marido e também de amante. Neste sentido, o público, ou seja, a sociedade não o reverencia apenas “pelas bobagens e coisas bonitas” que ele faz, mas também por estar acompanhado de uma dama (no caso da canção, a esposa), que desfruta igualmente das honras colhidas por ele. No entanto, numa inesperada quebra do sentido usual estabelecido pelo /deve-ser/ lupiciniano, quem deve receber o mérito do /fazer/ é a amante (“Vão entregá-los a quem de direito deve ser feliz”), que deve estar chorando. Então, concluí-se que a mulher mantida fora de casa também precisa assumir um /dever-ser/. Note-se, pois, que, contraditoriamente, a adúltera, comumente condenada por ele, aqui, por manter com o mesmo uma relação afetiva, é digna de louvor. Já “Loucura”, de 1973, configura-se como o estigma da poética do autor, pois, além de ter sido gravada, pela primeira vez, unicamente por ele para o LP, segundo dos dois únicos gravados até então pelo próprio Lupicínio (o primeiro foi Roteiro de um Boêmio, 1956), sendo que morreu em 74, explora toda sua dicção, numa pluralidade de sentidos intertextuais, metalinguísticos e sofisticados. A locução conjuntiva conclusiva “e aí” não por acaso é o primeiro verso da canção. Tentando se explicar, Lupicínio só pode se estabelecer como voz dependente de seu sofrimento na medida em que equipara o estado patético por excelência, ou seja, a afetação da alma pelas paixões, tanto sentidas quanto refletidas, ao inferno (lugar de onde nunca se pode sair para sempre ficar). Por isso, enquanto a nostalgia da eternidade se nos
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condiciona a uma promessa da volta ao paraíso perdido, a vida terrena se configura como a verdadeira condenação diante da constatação de que ela é imperfeita em si mesma. Isso equivale a dizer que erramos porque não conseguimos seguir aquela moral estabelecida a priori de nossos atos, prova de que aquilo que idealizamos não condiz com a realidade enquanto ordem da imprevisibilidade, da qual não podemos dar conta. Na verdade, a chave da cornitude lupiciniana (termo emprestado de Augusto de Campos) reside mesmo aí (como exemplifica mais uma vez Tatit sobre o raciocínio de Greimas acerca do ciúme): Como em última instância tudo é imaginário, há uma expectativa fiduciária fundada unicamente na crença do sujeito passional. A quebra do contrato imaginário significa, portanto, o desmoronamento da crença não apenas no outro mas também em si próprio, como um ser merecedor da distinção e da consideração dos outros e particularmente da pessoa amada (2002, p. 139).
Assim sendo, a única conclusão plausível é que a loucura é a própria condição humana, que à medida que nega a natureza não consegue afirmar a cultura e a civilização proporcionalmente, algo que Erasmo de Rotterdam já havia dito em seu “herético” Elogio da loucura. Porque assim como a imagem clichê dos diabinhos martelando um coração agonizando pela dor é capaz de se reatualizar em uma metáfora poderosa do sentimento a voz da letra concluí que, como a vida é guiada pela loucura, o poeta só pode se expressar através da tristeza, pois é o mesmo sofredor que seu ouvinte, pessoa humana que se reconhece nessa consciência lírica quando se comove com a canção: “Eu comecei a cantar verso triste/ O mesmo verso que até hoje existe/ Na boca triste de algum sofredor”. Por isso, a indignação da terceira estrofe mostra que Lupicínio era um artista plenamente consciente de seu valor e lugar como cancionista; resposta indireta a um preconceito vigente principalmente durante os anos 60, fomentado pela Bossa Nova e pela Jovem Guarda, de que as canções dos compositores mais antigos eram um rebuscamento a
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ser superado em prol de uma suposta sofisticação estética, ora de uma modernidade impositiva, ora de uma originalidade de vanguarda. Estes quatro versos evidenciam a preocupação de Lupe com a ignorância musical desses movimentos neste âmbito: “Como é que existe alguém/ Que ainda tem coragem de dizer/ Que os meus versos não contêm mensagem/ São palavras frias, sem nenhum valor?”, uma vez que sua mensagem é a própria prova do sofrimento necessário de ser vivido para que a canção, enfim, a arte, possa fazer-se e a criação consiga dar-se infinitamente enquanto for possível sentir essa condenação eterna que, caracterizando-se por sua condição efêmera – o castigo fecundado pelo amor, transmitido pelo conhecimento e sustentado pelo trabalho – não cessaria nem após a morte, lugar misterioso pelo qual teríamos ainda de passar, para sermos devidamente julgados e quiçá absolvidos. Então, o apelo dirigido diretamente a Deus encadeado pela quarta estrofe é uma blasfêmia: “Oh! Deus, será que o senhor não está vendo isto?”. E a pergunta feita pelo eu: “Então, por que é que o senhor mandou Cristo/ Aqui na terra para semear amor?” se legitima como a indagação central que se pode fazer ao cristianismo e, consequentemente, ao catolicismo: se houve a condenação e consequente expulsão do paraíso, compensando-se a dor do trabalho pelo prazer sexual para a manutenção de nossa imperfeição, por que Terias nos mandado Seu filho falando de amor, que por sinal matamos, aparentemente relegando uma segunda chance? Assim, se o amor não pode ser válido como transcendência espiritual diante do universo físico, condicionado no caso humano pelo desejo da carne e pela reflexão mesma sobre este fato para que ele próprio se mantenha, de que vale a pena amar, ser bom, fiel, leal, misericordioso? Ou seja, apoiados em quais embasamentos éticos um contrato fiduciário pode, deve e consegue ser mantido? Será que a própria Ética é capaz de fazer respeitar a fidelidade e suspender a desconfiança? Enfim, caso não exista verdade, como saber se amamos alguém de verdade? Esta é a pergunta que não quer calar ao apaixonado. Lupicínio confirma o exposto através da retórica empregada pela conjunção subordinativa causal “se” introduzida pela quinta estrofe, explicando a causa da pergunta do verso anterior. Pilatos emudeceu Cristo ao indagá-lo sobre a verdade. Resta saber se a fé o salvou do silêncio, pois, por que O abandonaste e também a nós?
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Portanto, a covardia de que fala o eu lírico deve ser entendida como a suspensão ou pelo menos como a intenção de suspender o desejo alheio, sentido por outrem que não a pessoa amada, àquela a qual segundo a virtude matrimonial não pode e não deve ser traída nem em pensamento; assim, a fraqueza, por uma delimitação machista, que só assume sua validade dentro do sentido usual de “ser fraco por mulheres”, ou “a carne é fraca”, por exemplo, é personificada na letra negativamente, pois a resistência a um impulso hormonal é vista, geralmente, como desnecessária, burrice, desimportante, fora de moda, irresistível, antinatural. Assim sendo, um sonhador é, finalmente, uma síntese dessas contradições, e aqui assume um sentido deveras onírico, não clichê, que se configura enquanto imaginação vivenciada na própria circunstância inconsciente de que é feita sua substância subsistindo como impossibilidade possível. Já a última estrofe é um sintetismo do patetismo estabelecido pelo jogo dialético entre o ridículo e o sublime, condensado pelo tragicômico: novamente a conjunção “se” insere um ar de dúvida na questão, porque aqui, após todo esse questionamento, a voz poética só pode totalmente descrer de que as coisas eram ou possam se tornar melhores… “Se é que hoje tudo está tão diferente/ Por que não deixa eu mostrar a essa gente/ Que ainda existe o verdadeiro amor?”. No entanto, surpreendentemente, não é isso o que acontece, pois, pelo pedido que, na verdade, é antes ordem que prece (– Faça, – Salve): “Faça ela voltar de novo pro meu lado/ Eu me sujeito a ser sacrificado/ Salve seu mundo com minha dor”, enuncia-se a fé (talvez do próprio Lupicínio) de ainda ser possível amar e ser amado, através do perdão à traidora e da redenção ao traidor, ofertados como o sacrifício de fazer da dor em aceitar a condição de traidor e traído um prazer não apenas por tê-la novamente ao lado, mas, principalmente, porque essa “alegria” os salvaria da condenação real ao Inferno e, consequentemente, da dor interminável; entretanto, Lupicínio ordena que Deus salve o próprio mundo, ou seja, a própria Criação, feita por Ele, com a sua dor, pois antes de esta ser conseqüência da irresponsabilidade humana o é de uma imprecisão divina que, embora não tenha inventado o mau, ofereceu possibilidades ao ato pecaminoso. Então, quando o enunciador consegue perdoar prova a própria natureza moral do perdão, segundo acepção do dicionário Houaiss, “ato
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pelo qual uma pessoa é desobrigada de cumprir o que era seu dever ou obrigação por quem competia exigi-lo”; já a superação do ciúme, estado emocional complexo e humano que, ainda segundo o mesmo dicionário, “envolve um sentimento penoso provocado em relação a uma pessoa de que se pretende o amor exclusivo; zelo”, é, pois, um exercício para aprendermos a encarar a falsa impressão (uma vez terminada no âmbito da imaginação) de exclusividade sustentada por nossa subjetividade. Outra definição básica para o ciúme é “medo de perder algo”. Assim sendo, será o ciúme compaixão ou egoísmo? Compaixão na medida em que o desprezo do objeto amado ao sentimento edificado em razão dele nos causa penúria; egoísmo no ponto em que tal sentimento serve antes ao narcisismo que à solidariedade. Daí que, se realmente considerarmos o adultério como um problema ético por si mesmo, não há nada que possa justificá-lo além dele mesmo, e tudo o que se imprimirá desta constatação recai no seguinte paradoxo: o outro, ou seja, a pessoa amada, deve ou não ser punido? Na verdade, esta pergunta precisa considerar a proporção entre uma expectativa abstrata (formulada na mente traída) que, aliás, poderia ser facilmente refutada pela atração que o traído eventualmente já houver sentido por um terceiro também, só que apenas em nível imaginativo, um ato real (a prática concreta da traição) e um fato irrevogável e formulado: “fui traído, e agora?” – a passagem de cada um destes componentes para o outro nesta ordem geralmente acarreta um período de raiva-ciúme-depressão (fossa), que eventualmente pode ou não culminar em bebedeira, suicídio, cena de sangue num bar da avenida São João. Enfim, talvez Lupicínio não fosse tão machista quanto parece. Na realidade, os conceitos presentes em seu cancioneiro, como a infidelidade, o ciúme, o desprezo, o amor, a paixão, a sedução, o machismo, etc, devem ser entendidos mais como representações do que como “essências”, posto serem produtos historicizados e não perenes, o que bem lembram Izilda e Faria a respeito da poética lupiciniana. Neste sentido, como corrobora nosso mitológico produtor musical, João Carlos Botezelli – o Pelão – em entrevista concedida a mim, a ousadia musical de Lupicínio não tem antecedentes, uma vez que popularizou o tema do adultério, extremamente velado até então, principalmente pelas classes mais abastadas. “Caixa de Ódio” (1973) é exemplar para ilustrar a discussão acerca
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do ciúme formulada acima. Funcionalmente referencial, poderíamos encaixá-la no gênero sermão, a julgar pelas denotações exemplificativas da primeira parte da canção: “Têm coisas que às vezes tão fácil julgamos/ Que até nos achamos capaz de fazer”, explicitando, depois, um /fazer/ ironicamente condenável, metáfora da irresponsabilidade adulterina: “um arranhãozinho”, “uma simples batida”, e um /dever/ ironicamente moralizante: “a gente na vida deve se cuidar”, corroborados pelo eufemismo do coqueiro, “Até num coqueiro às vezes trepamos depois não achamos por onde descer”, até que finalmente troca-se a função discursiva, agora apelativa: “Você por exemplo jamais pensaria”, seguida de metáforas evidentes: “fantasia em um carnaval”; “simples prazer de uma noite de orgia”; “inferno dentro do lar”. Na verdade, tanto o emissor quanto os destinatários (implícitos ou explícitos) das músicas de Lupicínio, assim como sua própria pessoa, incorporam as personagens do triângulo amoroso mais famoso da mitologia carnavalesca: a raiva do Pierrô pelo Arlequim devido ao duelo perdido pelo coração da Colombina. Lupe chega mesmo a personificar este embate quando confessa a experiência que inspirou essa letra em uma crônica: Lembro-me de um carnaval em que eu e mais uns amigos resolvemos formar com nossos amores um grupo para brincar: passamos dias imaginando coisas, escolhendo fantasias, sonhando com a grande festa e, quando terminou o folguedo, estávamos todos de mal, e até hoje choramos esta separação. Meus amigos choram com lágrimas e eu choro com este samba. (rodrigues, 1983, pp. 33-34).
Assim sendo, enquanto o coração, usualmente difundido como o abrigo do amor, quando afetado passionalmente, pode transformar-se em “uma caixa de ódio”, tão dual é a paixão, talvez inclusive mistura desses dois sentimentos aparentemente antagônicos. Pois, levando ainda em conta “Loucura”, poder-se-ia indagar: qual foi, afinal, a verdadeira motivação de todas essas canções? O que houvera antes do “e aí”? Para o Sócrates platônico a condição humana estaria permeada por uma caverna onde, nós, prisioneiros do mundo
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material, estaríamos relegados à imperfeição e à ignorância. Entretanto, através da Filosofia, seria possível encontrar um elo de transcendência pela redenção da sabedoria. No entanto, para conquistá-las seria necessário, basicamente, identificar dois eixos fundamentais: o sensível, horizontal, ligado aos prazeres terrenos, às sensações, aos sentidos, às paixões, e o inteligível, vertical, possibilidade reflexiva, capacidade intelectual, devir para elevação. Dessa forma, embora sejamos apenas uma representação de uma perfeição ideal, oriunda do Mundo das Ideias, cada vez que não nos deixarmos enganar por falácias acerca da real natureza da beleza e da bondade, “embasadas por uma hierarquia em que o Inteligível é superior ao Sensível, estaremos mais próximos da Verdade, que se confirmaria apenas após a morte, quando finalmente as coisas não seriam mais simulacros, porém perfeições” Para a dicção de Lupicínio a verdade se apresenta, geralmente, como a realidade da metade do século XX em uma ilhazinha gaúcha chamada Ilhota, portanto, não considerar seu significado histórico seria um contra-senso; assim, consequência de uma sociedade católica, conservadora, repressora, provinciana e machista, embora também parte de inúmeras transformações culturais pelo choque abrupto entre ideologias durante este século, Lupicínio, como já foi dito, enxergava a mulher como a causa da corrupção de uma suposta pureza, pautando-a ora por um /ser/, negativo, porém real, ora por um /dever-ser/, positivo, mas imaginário (isto se demonstra claramente pela crônica “Boêmio deve casar?”, reveladora de um alucinante complexo de Édipo. Essas duas concepções distintas contradizem-se mutuamente pelo velho paradoxo razão vs. emoção. Pois isso, de certo modo, poderia nos ajudar a entender o processo de criação do autor: primeiramente se apaixonava por uma mulher, objeto de seu desejo, euforia tanto sexual como amorosa, porém, depois de consolidar sua intenção, possuí -la e, eventualmente, casar-se com ela, advinha um longo período de disforia, tédio onipresente em qualquer casamento, desgaste oriundo de toda convivência. Essa melancolia era constantemente marcada por brigas, pois, uma vez que a comunhão não bastasse, Lupe ia para o bar, onde entrava em contato com outros objetos desejantes, como a bebida, os amigos e, eventualmente, “rabos de saia”. Ali ficaria horas bebendo, conversando, apaixonando-se, porque a repulsa ao atual estado do compromisso conjugal o faria buscar amar alguém que pudes-
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se lhe oferecer uma união diferente, mais interessante, da desgastada. Entretanto, ele se frustraria novamente: ou porque sentiria remorso pela traição, ou porque, uma vez que suas mulheres também tinham duas pernas que as faziam vivas, igualmente descobria ter sido traído, ou ainda porque a nova enamorada, uma vez compromissada, se mostrasse tal a antiga depois de passado o tempo (“Quem aparece no meu caminho/ Tem os defeitos iguais”), o que o levaria, finalmente, a desprezar os impulsos carnais para dedicar-se a uma espécie de reflexão originária da composição de uma nova canção, envolvida diretamente com a razão, a fim de, mais tarde, iniciar o mesmo ato contínuo novamente. Morrer, então, é exatamente perder o amor, enquanto que viver só faz sentido caso a perda seja ressarcida de alguma maneira. Este ciclo vicioso, do qual a própria vítima sabe as causas e consequências, embora continue se aventurando intensivamente, não deixa de ser uma tentativa de equilíbrio das esferas platônicas, na evidência de que a criação poética serve ao espírito como o sexo ao corpo: um consolo, um alívio, um respiro de prazer diante do sofrimento advindo do pecado e da dor mortais, processo em que razão e emoção trocam e destrocam de lugar, ora para que a experiência da perda seja superada, ora para que a recriação dessa experiência comova, podendo ser compartilhada com o público por uma condição humanizante (“O mesmo verso que até hoje existe/ Na boca triste de algum sofredor”), a fim de que a dor sentida seja transferida para o pensamento, reflexão, e dali novamente para os sentidos, para que ela possa doer menos e, eventualmente, também fazer chorar, não apenas como emoção, mas também, e principalmente, como beleza. Finalmente, por meio dessa interação cognitiva particularizada, o cancionista passa a se reconhecer em uma dicção própria, por ora única salvação possível. Neste sentido, embora Lupicínio definisse-se como “poeta filosófico”, seu lirismo é a antítese do papel ocupado pelo Sócrates de Platão: enquanto o atributo do artista é recriar sua vivência por meio da Imagem, o filósofo investiga as experiências humanas para chegar a Verdade. Por isso a Arte na República deve ser considerada inferior a Filosofia, já que, estritamente imagético, o caráter artístico não permite o alcance da Ideia. Porém, por mais que o filósofo abjure o artista, a síntese lupiciniana concorda moral e religiosamente com a platônica: devido ao sexo (desejo e
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falta), fossa, dor de cotovelo, o Amor, pelo menos por seu lado divinatório, não pode mesmo ser desse mundo. Acontece que, se a verdade depende mais de construção histórica que de condição ideal, o amor, por mais que idealizado (e talvez por isso mesmo), não pode ser uma ideia, posto que termina, em toda a sua realidade, na imaginação, fato logo atestado justamente por seu próprio rompimento diante da desconfiança, adultério, ciúme, separação, ou até, como defende Barthes (1977), pela natural “continuação” do que o originou – a convivência concreta com o outro “real”, sempre diferente daquilo construído pelo sentimento. A conclusão dessa dialética pressupõe a seguinte questão: será o objetivo de um relacionamento a felicidade? Ora, se levarmos em conta a dor de cotovelo, “ser feliz”, antes de promessa, é um estado que passa facilmente a outro: a tristeza. Daí que os sentimentos não podem ser essências, definindo-se pela transitoriedade química de uma persistência efêmera. Por isso, o eu lírico associa a ausência de felicidade à falsidade (Felicidade, 1947). Portanto, será que a explicação poética que estrutura esta canção é um balanço autobiográfico de Lupicínio? Na já citada entrevista a “O Pasquim” Lupi nos explica: “eu não sou músico, não sou compositor, não sou nada. Eu sou é boêmio.”. Assim sendo, sua criação, justamente quando encarada como profecia já atuante, seria diretamente movida pelos vícios inerentes tanto ao homem quanto ao compositor, que acabariam fundindo-se em um único movimento em que arte e vida confundem-se. No entanto, não sei até que ponto tenho condição de afirmar isso exatamente, posto que, caso Lupicínio não seja um verdadeiro romântico, no sentido de confundir realmente seu eu lírico com sua pessoa (e neste caso talvez a persona criada nas crônicas e em entrevistas tenha muito de blefe, para que a obra seja intencionalmente associada ao autor, mitificando-o), tal tese sobre a criação lupiciniana não poderia sustentar-se inteiramente. Quando Caetano Veloso conta seu encontro com Lupi diz que enquanto este cantava, sua esposa lhe dizia: “é tudo mentira, é tudo mentira!”. Também por esse elo, “Judiaría” (1973) é uma torre que desmorona da primeira à última estrofe à medida que faz, anteticamente, o percurso contrário quanto à entoação e entonação de Lupicínio, no já referido álbum de 73, cada vez mais acentuadas, melodramáticas, passionais. O primeiro verso instaura o momento enuncivo anuncian-
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do-o: “Agora você vai ouvir aquilo que merece”, já demarcando uma enunciação conativa, e continua: “As coisas ficam muito boas quando a gente esquece/ Mas acontece que eu não esqueci a sua covardia, a sua ingratidão/ A judiaría que você um dia fez pro coitadinho do meu coração”. Repare que o segundo verso vincula o fato das coisas tornaremse boas apenas pela ação de esquecer o que as fazia ruins, entretanto ele julga ter esquecido apenas aquilo que parecia afetar diretamente seu pathos, pois afirma lembrar-se muito bem o que lhe causara a perturbação dita já esquecida, ou seja, os defeitos da amada: “a sua covardia, a sua ingratidão”, introduzindo o terceiro verso por um neologismo; “judiaría”, com acento agudo no segundo i, substantivo criado não para referir-se a uma ação, como em “judiação” ou “judiaria”, porém a um estado, que o leva a transferi-lo logo em seguida para o coitadinho do coração, despersonalizando-se novamente por metonímia. Já a segunda estrofe chega a ser um escárnio de si mesmo, porque as palavras faladas anteriormente só podem mesmo ser um jargão: “verdade pura, nua e crua”, posto que se referem a signos personificados porém completamente abstratos: “covardia”, “ingratidão”, “coração coitadinho” e ao próprio ato de esquecer-se: como podemos considerar irreal, ou seja, como se não tivesse acontecido, aquilo que ocorreu de fato, atestado pela experiência? Aliás, o significado da palavra “falência” vem daí: “fato de não estar presente, de não ocorrer, ausência, falta”, assim como também “insucesso, fracasso, malogro” (houaiss, 2015). Falhamos porque somos carentes. Por isso, não sei se posso levar a sério a ameaça terminada no último verso desta estrofe, “Pra que você saia sem eu lhe bater”, salvo se Lupicínio já bateu mesmo em alguma mulher, pois a verbalização do ato o reduz a uma informação abstrata, ainda mais untada a outro lugar-comum, estando em uma canção que, justamente, pelo forte teor patético, explora o ridículo lupiciniano, tornando a ento(n)ação extremamente cômica, transformando o cantor no próprio Pierrô, “Já chega um tempo que eu fiquei sozinha”, que encontra sua semelhança mais próxima talvez em Adoniran Barbosa. Ora, a expressão “já chega” é sabida por traduzir exatamente a impressão contrária de seu significado. Quando a verbalizamos sabemos que nossa suplica será vã no imperativo, e o que nos incomoda continua incessante, fato corroborado pelo polissíndeto “que eu fiquei sozinho, que eu fiquei sofrendo, que eu fiquei chorando”. “Agora quando eu
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estou melhorando” apresenta outro sentido para o advérbio “agora” que indica o contrário do expressado pelo do primeiro verso, marcador da enunciação, pois não significa “neste momento” e sim, porque forma locução com “quando” e declina com gerúndio, demarca a continuidade de uma situação passada que ainda abrange o enunciador no presente; já a aliteração/ assonância no último verso, “Você me aparece pra me aborrecer”, contrapõe o verbo aborrecer com o “bater” do último verso da estrofe anterior, prova que o projeto da sova, determinado pelo verbo de ação, foi felizmente abandonado pelo estado do eu, disforizado, aborrecido, quase a aceitando de volta. Tudo isso marcado pelas sutis violas paraguaias, leves, alguém diria é “música de circo”, “para crianças”, embora no percalço da letra possam tornar-se angustiantes enquanto repetição monocórdia de uma única cadência rítmica, uma vez que a música é uma guarânia, gênero folclórico do Paraguai. Já “Rosário da Esperança” (1973) configura-se por uma anti-poética, uma vez que sua letra nega completamente o processo usual vivenciado que Lupicínio recriava por sua arte, o que se evidencia na última estrofe: Mas vi, com surpresa na primeira mesa Sentada com outro a mulher que eu amei Voltei desolado, tristonho, magoado, Viola do lado Não bebi, nem cantei
Assim, o projeto da canção mostra, à maneira de “Judiaría”, que a dor de cotovelo ainda não foi superada e uma vez reiterada pode originar nova fossa. Neste sentido, a tensão exercida pela composição funciona em um período anterior ao rancor, como preparação à dor, não como resultado desta, tanto que a confiança demonstrada na terceira estrofe por superstições corporificadas: “pegar a viola”, “afinar a garganta”, “sorriso na boca”, que chega a alegorizar sentimentos, torna-se ridícula quando transformada em ingenuidade diante da surpresa sentada na primeira mesa, prenunciada por Dona Tristeza, que, embora motivo
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da canção, também é capaz de cessá-la: “viola do lado”; “nem cantei”. “Carlucia” (1973) é um choro em ritmo de valsa do qual me arrisco a dizer ser a natureza a principal personagem da canção. Já a primeira estrofe atribui a Carlucia o caráter de estrangeira: “De longe vieram os teus pais / Pra na nossa terra semear amor (...)”, condição que empresta a ela um componente a mais para a sedução, invocando-a, dessa maneira, ao longo do texto, como uma musa. Entretanto, assim como, geralmente, o instinto é avesso à sacralização, muitas vezes quem semeia amor colhe dor. Destarte, a beleza citada na terceira estrofe, “Tua beleza foi a culpada da nossa vida terminar assim”, colocada como a culpada da separação, conota um paradigma interessante: como pode algo que nos causa tamanha abstração na “alma” possuir uma perversidade tão ingrata aos nossos olhos, a ponto de descobrirmos ser a beleza do ser amado não algo propriamente “em si”, que corresponde plenamente à individualidade da pessoa, porém mais um artifício da Natureza que, ao nos fazer preservar a espécie por meio deste atrativo irresistível, talvez advindo de puro acaso químico-genético, fortalecendo a crença em nossa subjetividade (também confundida com uma estrutura mental irregular), nos come pela paixão e nos imobiliza pela dor, pela morte? Como não encontrei nenhuma nota biográfica sobre essa composição, ficaremos sem saber o que exatamente teria se passado para culminar na separação. Será que a ela foi concretizada através da mudança de Carlucia para outro lugar, distante do amado, porque seus pais tinham preconceito ao fato de Lupicínio ser negro? Caso isto se sustente, essa letra, embora não seja propriamente de dor de cotovelo, coloca-se no topos da solidão do pretendente diante da ausência, talvez definitiva, da amada. De todo modo ele pede para não ser visto com maldade, posto que, se nesta vida (terrena) não puderem mais encontrar-se, finalmente, no céu, Paraíso, Mundo das Ideias, poderão viver sob outra condição, etérea, pura, onde o amor encontrará sua verdadeira possibilidade transcendental: “Carlucia, lá no céu te esperarei”. Relevante ainda atentar para o gênero textual da canção, que se configura como uma anti-serenata na medida em que a cortejada não /pode/ estar mais presente nem /deve/ estar disponível para ouvir a homenagem/ lamento, embora eles se façam. Outra canção em que a Natureza exerce um papel fundamental é a estigmatizada “Castigo”, de 1953, parceria com Alcides Gonçalves, e igualmente presente no LP de 73.
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Entretanto, aqui, à maneira do “nome mais orvalhado pela manhã”, ela se confunde e se contradiz com outra natureza, humana, uma vez que, para o enunciador parece haver uma incoerência entre uma espécie de humanismo capaz de perdoar, por exemplo, mais próximo da razão, e o instinto sexual, muitas vezes estimulado sensualmente pela vaidade refletida pelos espelhos. A juventude adquire, aqui, uma falsa essência, responsável por um estímulo enganoso, porém que exerce forte sedução em relação à mulher quando jovem, uma vez associada evidentemente à beleza, que faz tudo parecer “diferente do que é”; portanto, as moças, ao acreditarem em um reflexo, “Quando os espelhos lhe dão conselhos”, imagem simulada pelo luz no espelho, crêem não haver tropeço, ou seja, uma condenação moral pela qual serão responsabilizadas e, eventualmente, punidas, pelo contrário, esse simulacro é o próprio motor que serve para procurar “em quem se agarrar”. Mas, afinal, o que é que a traz de volta para o amante outrora desprezado? O envelhecimento. Ora, segundo Platão a imagem é inferior à realidade, que é inferior às Ideias (A República, p. 260-3). Nesse samba-canção isso se evidencia na terceira estrofe, quando o enunciador vai rompendo com a interlocução construída desde os primeiros versos ao introduzir máximas de forte apelo fabular como: “Agora que não mais encanta, procura imitar a planta/ As plantas que morrem de pé”. Ademais, é interessante notar como essa quebra de gênero textual também se reflete melodicamente, o que Tatit denomina “desengate harmônico”: “(...) é quando a melodia é arremessada para outros recantos do espaço harmônico utilizando um acorde dominante como dispositivo detonador. Este acorde desengata a linha melódica prevista e engata uma nova possibilidade que, daí em diante, encadeia-se com outros contornos compatíveis” (p. 135), fato demonstrado pela longa distensão das frases, quebrando a sintonia esperada e deixando o cantor sem fôlego, até recuperar o encaminhamento original – que se dá pela repetição das primeiras duas estrofes. Intrigante ainda é descobrir que o homem abandonado, por ser “homem”, ou seja, pela obrigação imposta socialmente de não recusar o oferecimento feminino devido ao risco preconceituoso de passar por frouxo, acolhe-a novamente, “qual o cedro que perfuma o machado que o derrubou”; assim também o gozo de possuí-la após a desilusão resultada do envolvimento com “desgraçados”, é ainda maior, pois, além de
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corroborar a validade dos conselhos ofertados antes, coloca o redentor mais próximo de uma condição se não divinizada ao menos totalizadora, como um “profeta do amor e da dor”. Em “Fuga” (1959), como na canção anterior, o drama lírico concentra-se no /saber/. Mas, ao contrário da já citada “Volta”, em que a carência está cega à realidade solitária, o eu de “Fuga” tem consciência não apenas da condição desarmônica da solidão, porém também da sua reversão, caso perdoe a amada e a aceite de volta, fato que não pode ocorrer em “Volta”, em que o apelo parece ser vão. Neste sentido, embora o enunciador saiba, por meio de um /dever-fazer/ (fugir dela), que a adúltera não é digna de perdão: ”Só existe um caminho a seguir/ É fugir de ti, sim, é fugir”, seu /querer/ é explicitamente outro, confessado justamente àquela que não tem a mínima competência para absolvê-lo, pois causa do seu próprio sofrimento, embora possa fazer isso, por meio da isenção da culpa relativizada pela própria vítima: “Apesar de ser minha vontade te seguir”. Mas são dez horas da manhã, Lupicínio acorda, senta-se na cama, esfrega bem os olhos, põe-se de pé, espreguiça bocejando álcool, embora se sinta disposto. Então vai até o quintal alimentar suas galinhas, depois ao fogão preparar o almoço da família. De barriga cheia, faz a sesta até as três da tarde, despertando novamente, barbeia-se, toma um banho e sai para trabalhar em direção à SBCEM (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música). Já às sete da noite se dirige à rua e começa a habitual escala pelos bares de Porto Alegre, onde curte mais uma noitada até as quatro da madrugada, hora em que, religiosamente, voltava pra casa (para não haver “sururu”), para despertar às dez novamente. Por incrível que possa parecer esta foi a rotina de Lupicínio Rodrigues durante vinte e cinco anos, de 1949 a 74 (ano de sua morte), tempo em que esteve casado com sua segunda esposa oficial, Cerenita Quevedo. Nesse sentido, embora Lupe gostasse de farrear, paradoxalmente era inegável sua vontade em construir um lar e constituir família, como bem demonstra em crônicas como “Um boêmio deve casar?” Assim sendo, como já foi dito, o ambiente doméstico era idealizado enquanto um /dever-ser/, fruto de machismo. A experiência do matrimônio, pois, também serviu de inspiração para algumas canções, como “Meu barraco”, de 1973, composta com Leduvi de Pina, que termina o lado A, que aborda também o tema das lições da maturidade e do envelhecimento já analisadas, embora
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de outra maneira, por uma alegoria poderosa do envelhecimento. O ranchinho, acompanhado da viola sertaneja, mostra um eu em disjunção com os valores da juventude: “As minhas pernas já não podem mais subir/ Alto do morro era bom na mocidade”, tempo em que podia competir com outros homens e colher a glória da virilidade: “(...) Até carreira eu apostava e não perdia/ Quando eu subia todo mundo me aclamava/ E reclamava toda vez que eu descia”, e em conjunção forçada com a velhice, nova causa de seu sofrimento, pois paralisa o desejo e suspende qualquer possibilidade de ação: “(...) Chegar cansado de pisar estes barrancos/ Juntar os cabelos brancos/ Na mesma cama e dormir”, concluindo que ser jovem é definitivamente mais vantajoso: “(...) Mocidade não espera/ Quanto mais cedo melhor”. Como a última canção a ser analisada é também a última do disco, viro-o para o lado B e, com precisão, encosto a agulha na faixa que começa a rodar tendendo cada vez mais ao centro de sua circunferência. “Dona do Bar” (1973) é uma síntese das demais canções, pois explora, por um masoquismo ridicularizado, as temáticas e recursos particularizados pela poética lupiciniana. Essa composição é novamente introduzida pela conjunção condicional “se”: “Se for para chorar/ Se for para sofrer”; entretanto, se em “Se é verdade” ela expressa dúvida, aqui ela condiciona uma certeza: o enunciador sabe que caso volte ao bar, espaço da sedução, verá seu sonho morrer ao avistar sua amada ser beijada pelos outros fregueses que entram e saem: “Assistir aos fregueses / Ao entrar e sair lhe beijar”; entretanto, por incrível que pareça, em semelhança ao mito das ninfas e sereias que hipnotizam os navegantes, “os olhos da dona de poucos” e “seus cabelos compridos” prendem o eu ao copo em que bebe sua ilusão, pois ele prefere sentir a dor ciumenta justamente para tentar evitar a fossa (insônia, lágrima, “rolar na cama”), que é, paradoxalmente, a conseqüência mesma daquela, em troca da sedução provocada pela própria euforia desejante, embora transformada em raiva ao presenciar o desfrute alheio. A dona do bar ainda pode se configurar como uma alegoria da cobiça, sentimento baseado na competição passional, pois pressupõe o desejo daquilo que é vantajoso e valoroso justamente por já ter sido desejado por outrem; da noite: mulher efêmera e fatal, disponível apenas como marginalidade, proibição; do vício: sabemos que nos faz mal, entretanto insistimos nele; da natureza: onde, segundo Caetano, não há pecado nem perdão; e, finalmente, do próprio processo criativo lupiciniano.
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Enfim, aceitar uma traição é tão difícil quanto aceitar a morte: isso nos diz a dor de cotovelo. Porém, assim como somos capazes de encontrar no prazer a dor, um ser humano (tão diminuto) estendido diante do Universo (imenso, quiçá infinito) pode parecer cômico (ou trágico?): isto nos ensina Lupicínio – morrer de amor é admitir ser escravo da falta, ou seja, livre para desejar, o que, por outro lado, pode nos fazer viver de ódio. Neste âmbito, a mulher, enigma, é o principal símbolo da poética lupiciniana, porque, ao mesmo tempo em que causa desgraça (pelo apetite sexual), promove salvação (como figuração abstrata), o que situa o eu lírico entre amor e paixão, perdão e pecado, mau e bem, céu e inferno, inteligível e sensível, natureza e cultura, eu e outro, sublime e grotesco, tragédia e comédia – paradoxos de uma sociedade maniqueísta que se apropriou da moral platônica, gerando nos sujeitos desejantes uma tensividade sadomasoquista que, caso resulte em traição, origina um complexo baseado na condenação de uma realidade que só faz atestar o fracasso da idealização amorosa diante do vício fatídico, embora seja ela onipresente na imaginação de qualquer pessoa, tanto pela redenção do sacrifício como pela penitência do prazer, transformando-nos, por sua vez, em santos e pecadores. Como vocês devem ter percebido “ser fossa” não é tão fácil assim, muito menos simples (basta entender a versão sanfonada de “Jardim da Saudade” em 52 por Luiz Gonzaga ou por que João empunha “Quem há de dizer” (1948) na batida da bossa nova, em 71, ao voltar ao Brasil após ter morado anos nos Estados Unidos), uma vez que seu sentido real foi esvaziado, assim como o do boêmio, usualmente visto como vagabundo, pessoa sem caráter. Diante de uma época condicionada por uma ideia inventiva de superação moderna dos velhos paradigmas, tão preocupada em tipificar os relacionamentos passionais, classificados como “abertos”, “livres”, “fechados”, “poliamor”, “swing” etc, a obra de Lupicínio Rodrigues, faz-se, mais do que urgente, imprescindível, para nos convencermos ser o ser humano do século XXI não tão distante do arcaico quanto parece. Nesta noite, julguei ter encontrado Lupe. Sentei-me com ele e, juntos, tomamos diversas doses de Dreher. Quando me deparei com a cadeira vazia ao lado, percebi haver sonhado, lembrando-me de que, por mais ou menos que odiemos ou amemos, estamos sozinhos em nós mesmos.1
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notas 1. Não posso deixar de agradecer ao amigo Vado e ao Pelão, dos quais recebi a inspiração para esta pesquisa, e também ao meu pai, pois guardou o disco para que eu escutasse.
referências bibliográficas barthes, Roland. “Encontro”. In. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortênsia dos Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. campos, Augusto de. “Lupicínio esquecido?” In: Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1974. Entrevista com João Carlos Botezelli, gravada em 15/1/2015, In: Arquivo Pessoal. filho, Lupicínio Rodrigues (org.). “O que é um boêmio”; “Boêmio deve casar?”; “Fim de carnaval”; “História de um amor” In: Foi assim. Porto Alegre: L&PM, 1995. matos, Maria Izilda S. de e faria, Fernando A. Melodia e Sintonia em Lupicínio Rodrigues: o masculino, o feminino e suas relações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1996. O Som do Pasquim: Grandes entrevistas com os Astros da Música popular Brasileira, 2ª ed., Rio de Janeiro: CODECRI, 1976. platão. “Discurso de Sócrates” In: O Banquete, tradução de Albertino Pinheiro. São Paulo: Atena, 1956. _________ “Livro VI”. In: A República. Tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006. rodrigues, Lupicínio. Dor de Cotovelo. São Paulo: Phonodisc, 1983. tatit, Luiz. “Dicção de Lupicínio Rodrigues” In: O Cancionista – composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002.
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Guarani ha’e, de Yvoty Potyjera Maria Beatriz Neves e Marco Antonio Calil
guarani ha’e Guarani ha’e Ayvu Guarani ha’e Tekoha1 Guarani ha’e Ñe’ẽporã Tenonde2 Guarani ha’e Nde ha Che Ñande3 ha’e guarani
Guarani é Guarani é Palavra Guarani é Onde-somos-o-que-somos4 Guarani é Primeiras Falas-Bonitas Guarani é Você e Eu Nós-todos somos guarani
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sobre a autora Yvoty Potyjera, que do guarani se traduz Flor(es) Que Floresce(m), é o pseudônimo pelo qual Hermenegilda Guzmán Fernández difunde a língua e cultura guarani. Podemos encontrar seus poemas em sua conta de Facebook, (de onde tiramos este), ou em seu blog, que recebe como nome o referido pseudônimo. Nascida na cidade de Asunción em 1982, Yvoty é docente em educação bilíngue guarani-espanhol, exercendo a docência como catedrática de Língua e Cultura Guarani em diversas instituições educativas do Paraguai. Agradecemos à Yvoty pela atenção e pelo carinho de nos receber, ainda que pela internet, de conversar conosco e de gentilmente revisar a tradução. Agradecemos infinitamente a Almir Silveira , nosso querido professor do curso de Língua Guarani pelo Centro Ángel Rama da FFLCH-USP, sem o qual não teríamos conhecido Yvoty.
notas 1. “Tekoha: faz referência à ‘terra onde vivemos e se desenvolve nossa cultura’, segundo Rámon Fogel” (nota da autora, em conversa com os tradutores). 2. Ne’ẽporã Tenonde: faz referência às Primeiras Palavras Bonitas. Consultar o livro Ayvu Rapyta do autor León Cadogan, que pode ilustrar melhor o valor da Palavra para a espiritualidade Mbya Guarani (nota da autora, em conversa com os tradutores). 3. Existe, em guarani, uma diferença entre “ñande” e “ore”, que se traduzem por “nós”, mas enquanto “ore” é o nós-aqueles-que-falamos, “ñande” é o nós-aqueles-que-falamos -e-vocês-aqueles-que-ouvem; ou seja, nós exclusivo versus nós inclusivo, na terminologia linguística. 4. “A palavra Tekoha foi descrita como “o lugar onde somos e o que somos” pelo padre jesuíta Bartolomeu Meliá” (nota da autora, em conversa com os trautores). Esse “conceito” de difícil tradução foi também muitas vezes interpretado como “modo de vida guarani” por padres da Companhia de Jesus durante o período colonial. Optamos aqui pela solução de Bartolomeu Meliá, pois acreditamos que ela traduz melhor a filosofia guarani para o português do Brasil atual.
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Poesia Flarf traduzida a partir de resultados do google tradutor Danilo Augusto
O poeta Gary Sullivan ligou para saber da saúde do seu avô, dias antes de sua morte, e recebeu a notícia orgulhosa que ele, o avô, havia ganhado um concurso de poesia promovido pelo poetry.com. Este site lembra o nosso recantodasletras.com.br, onde uma base gigantesca de escritores tem seu perfil pessoal e onde trocam mútuos elogios; com este diferencial de fazer concursos por encomenda onde os “ganhadores” devem pagar por seu prêmio. Consternado, Gary resolveu fazer sua inscrição no site e enviarlhes “o poema mais ofensivo que pudesse”. Ele escreveu este primeiro poema que consta na tradução, sem nome, onde o primeiro verso se constituía, apenas, por: mm-hmm. E foi assim que, três semanas depois, ele recebeu em casa uma carta com seu poema impresso, informando que, entre milhões de envios, mm-hmm havia sido selecionado para integrar um grande projeto de publicação em “couro aristocrático e inscrições douradas”, pois apresentava uma “visão única da vida” e “acendia a imaginação”. Mm-hmm foi o primeiro poema Flarf. Gary convidou outros poetas e amigos a enviarem obras para poetry.com e os textos que surgiram foram depois batizados com este neologismo meio difícil de traduzir, mas fácil de intuir. Flarf aglutinaria, primeiramente, noções como “tosco”, “gordurento”, “equivocado”, mas também algo como “fofo” e “porra-louca”. Um termo que marcaria
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bem a intenção de borrar qualquer separação entre o que pode e não pode entrar em um poema. A primeira “técnica” que veio caracterizar a poesia Flarf foi a escrita baseada em buscas na internet. Talvez, fazendo parte de um ethos de uma escrita “não-original”, de “segunda mão”, onde o “recortar-copiar -e-colar” abre margens a duas consequências majoritárias. A primeira, e mais óbvia, é o sem-sentido, a arbitrariedade e uma negação da subjetividade. Mas a segunda é um jogo com algo que, talvez, possamos chamar de uma “superestrutura do senso comum”. Os sofisticados e gigantescos logaritmos do Google permitem ao poeta acessar uma teia de milhões de bilhões de entradas e sair com denominadores da maioria. No meio da miríade rizomática da internet, o mecanismo de busca fornece uma amostra por contabilidade e presunções numéricas. Uma resposta maquinal com base em um grande escopo de entradas pessoais. Como um grande fornecedor do senso comum social. O uso do Google não foi exclusivo nem pioneirismo dos poetas Flarfs, e remonta a uma semelhança, por exemplo, com a prática de Angélica Freitas. Ela, em alguns momentos, faz algo que poderíamos chamar, pelo menos, de “mais ordenado” quando direciona perguntas ao Google e o deixa responder. Assim, a poeta ganha acesso a certo zeitgeist e incorpora ele próprio, o zeitgeist, como matéria de seus poemas. Outras medidas Flarfs, mais dadaístas, consistiam em fazer entradas aleatórias no Google e escrever a partir destes resultados. Assim se dá, por exemplo, o “Three poems on demand”, de Jordan Davis, (que se encontra nestas traduções). Outra característica do Flarf seria idiossincrasias bastante arbitrárias de grafia de palavras e disposição tipográfica do poema como, por exemplo, vemos em Steve Roggenbuck, poeta mais novo do que os outros dois. Às vezes a grafia, em Roggenbuck, parece se assemelhar à pratica de uma digitação informal, porém em outros casos, os “erros” parecem não ter nenhuma ligação com alguma prática de escrita e serem puramente estranhos e arbitrários à norma padrão. Os poetas Flarfs transformaram em um movimento, em uma vertente poética de língua inglesa, algo que, desde o surgimento dos grandes mecanismos de pesquisa, vem sendo apropriado de diferentes formas por escritores, profissionais ou não, do mundo todo. Hoje, existe, por exemplo, alguns sites e blogs destinados somente a prints de entra-
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das e sugestões do Google, sendo que cada print constitui um poema. Um exemplo é o poesiadogoogle.com, mas há diversos outros. A escrita de poemas em ambiente de rede é algo que já remonta há, pelo menos, três décadas; porém que só veio a ganhar maior relevo e estudos iniciais há poucos anos. Mesmo os recursos fornecidos pelas plataformas da internet ainda parecem ser timidamente explorados. Uma escrita em ambiente digital poderia incorporar aspectos verdadeiramente múltiplos e com grandes inovações formais, onde a utilização de buscadores ou formatadores de textos se constituem como apenas alguns dos exemplos. Um novo caminho, ainda apenas iniciado, seria o prosseguimento do desejo concretista por uma “melodia de timbres”, onde a palavra, já em sua natureza verbovisual, se alinhasse à tipografia digital, imagem, vídeo, som e a essas duas características mais próprias e, talvez, menos exploradas na escrita digital: o hiperlink e a atualização em tempo real. E que o ambiente virtual, enfim, presenteasse a literatura com toda esta potência imanente em sua natureza mais referenciada: a velocidade e a multiplicidade. Esta coletânea se faz como uma rápida introdução à poesia Flarf e uma pequena amostra do que nela foi escrito. E, também, como uma brevíssima introdução ao que de novo tem sido feito e ao que se pode fazer na junção entre internet e escrita, principalmente a escrita de poemas. Por isso, a tradução que apresento brinca com certa noção intersemiótica, que retirei das aulas de graduação que venho tendo. Pensando a própria tradução como a arte de chegada, uma recriação desta técnica comum ao Flarf (a escrita com auxílio de buscadores) foi fácil e direta. Os poemas foram escritos e reelaborados com inspiração a partir de resultados e opções providos pelo Google Tradutor e por dicionários de colaboração aberta como o urbandictionary.com.
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gary sullivan poesia flarf Mm-uuhhmm Sim, uumm-huhmm, é verdade grandes pássaros fazem grande caca! Tenho fogo no rabo meu cara(lho) de macaco vai ser agressivo, vai ser gorduroso aêê sim deus quer Cáaa! Caaaaa! Pffffffffffffffffffffffffft! Etcha! oooh assim baby vai tremer e cozer e então receber AÊÊÊSS Tá Cá seu dinnndiin, meu pudim (hiii hiiii) bela-bosta-boa-bunda-buga-buga ei ei! seu gringo retardado! cai fora da gringolândia e me sai com um toddyinho carai bota Gil pra rodar e mexe té vomitar rola-fula-fura-bunda-DING DONG porra! merda! mijo! oh é tão triste esta síndrome chamada Tourette me faz ÊÊÊPAA! gritar bem alto Pq te amo. Obrigado, meu Deus, por escutar!
Mm-hmm Yeah, mm-hmm, it’s true big birds make big doo! I got fire inside my “huppa”-chimpTM gonna be agreessive, greasy aw yeah god wanna DOOT! DOOT! Pffffffffffffffffffffffffft! hey! oooh yeah baby gonna shake & bake then take
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AWWWWWL your monee, honee (tee hee) uggah duggah buggah biggah buggah muggah hey! hey! you stoopid Mick! get off the paddy field and git me some chocolate Quik put a Q-tip in it and stir it up sick pocka-mocka-chocka-locka-DING DONG fuck! shit! piss! oh it’s so sad that syndrome what’s it called tourette’s make me HAI-EE! shout out loud Cuz I love thee. Thank you God, for listening! *
jordan davis canapés Sinto falta do quebra-quebra ao lado da cama. As regras duras e ligeiras, o negócio, Andando pela cidade as mãos do meu bem nas minhas Dão-me angústia mal amadurecida Rosado Quem não adora ouvir alguma angústia. Você não estaria tão equivocada para acordar De um sonho em uma reclusa de um parque em Rioja A Água de Pós-Auden agradece ao burburinho do Timex Esses sentimentos estão em sua boa sorte. Sequer preciso da bolacha duma hóstia Para precisar transmitir maldições Sumir como um docente enquanto a bolsa cai
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amuse-Bouche I miss the moshpit pushed to the side of the bed. The hard and fast rules, the business, Walking across town the baby’s hand in mine Gave me anxiety Rosado barely mellowed. Who doesn’t love to hear about anxiety. You wouldn’t be too wrong to wake from dreaming Into an amusement park sluice of Rioja Eau de post-Auden thanks a lot Timex hubbub. Those feelings are in their way good luck. I don’t even need a communion wafer To feel the need to broadcast imprecations Fade like a docent as the hedge fund falls.
três poemas por encomenda1 Tartarugas geram poemas Nenhuma surpresa que se movam tão lentamente— Alguém ali está Tentando escrever. Imagem de Pernalonga vestido como um vândalo O que me levou a desenhar esta imagem De Pernalonga vestido como um vândalo? Diverso. Imagens. Nem uma vez sequer Esbocei seu lustroso torso tatuado
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Mas repetidamente, dia após dia Ele pareceu malvado, não foi? Quando oh quando acaba esta eleição Pra eu explodir a vida de novo Sem produzir sem querer estes objetos Tão belos e misteriosos-pra-mim? Poema para o sexto de casamento Você sabe melhor do que eu O que está fazendo
three poems on demand Turtle Generate Poems No wonder they move so slowly— Somebody in there is Trying to write. Pictures of Bugs Bunny Dressed Like a Thug What drove me to draw this picture Of Bugs Bunny dressed like a thug? Plural. Pictures. Not once did I sketch The buff tattooed torso of Thug Bugs But many times, over several days.
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He looks mean, doesn’t he? When O when Will this election be over So I can blow off life again Without inadvertently producing objects Of great and mysterious-to-me beauty. Poem for a Sixth Wedding You know a lot better than I do What you’re doing
*
steve roggenbuck gosto de outubro quando estou morto não dou a mínima pra leitura de poemas quem você acha que sou, robert frost? nunca fui à floresta e odeio caminhar (...) você se foi almocei amendoins no almoço (...) tenho dois girassóis murchando na estante é isto apenas cai fora do meu poema
88 · Cisma · primeiro semestre 2015
(...) aluguei um filme e gravei duas horas de mim mesmo por cima grito elogios pra minha família no vídeo queimo meu carro de propósito é janeiro saúdo a mim mesmo pelo início de uma grande carreira
I like october when I am dead i dont care about reading a poem who do you think i am, robert frost? i have never been in the woods and i hate walking (…) you are gone for lunch i had peanuts (…) i have two sunflowers wilting on my bookshelf thats it thats all the poem is done, get out (…) i have two sunflowers wilting on my bookshelf thats it thats all the poem is done, get out (…)
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i rented a movie and recorded over it with two hours of myself on the video i am shouting compliments at my family i burn my car on purpose it is january i greet myself at the beginning of a great career
baixe helvetica em free.com É ASSIM QUE VOCÊ ESCREVE ISSO? ATREYU --O CÉU É LINDO... BOM TRABALHO CAPTURÁ-LO NA SUA FOTO --DESTINO FINAL 3 SAIU EM DVD --ESTOU COMENDO TORTA DE PERA, HAHA BIZARRO BIZARRÃO ---
90 · Cisma · primeiro semestre 2015
NA TV, ELES MOSTRARAM COMO O ESTÔMAGO É REALMENTE GRANDE E EU ESTAVA TIPO UAU... COMO É PEQUENO --ACABEI DE COLOCAR ALGO NA MINHA GAVETA DE CIMA E VI A FOTO DE VOCÊ E DE MIM
download helvetica for free.com IS THIS HOW YOU SPEEL THIS? ATREYU --THE SKY IS BEAUTIFUL... NICE WORK CAPTURING IT IN YOUR PHOTOGRAPHY --FINAL DESTINATION 3
primeiro semestre 2015 · Cisma · 91
IS OUT ON DVD --I AM EATING PEAR PIE, HAHA WEIRD WEIRD INDEED --ON TV, THEY SHOWED HOW BIG A STOMACH ACTUALLY IS, AND I WAS LIKE WOW... THAT IS SMALL --I JUST PUT SOMETHING IN MY TOP DRAWER AND SAW THE PICTURE OF YOU AND ME
92 · Cisma · primeiro semestre 2015
foi a música escura , era música escura” escuro ,
eu te dice (segurando gaitas de foles” .tava “e eu to vendendo as gaitas de
fole” voce dice.
“ escova de cabelo media”eu dice “.porta de garagem de correr alumínio sobre carros brancos porta de garajem girando sobre carros brancos” “escova de cabelo media ,tenho uma v”ce dice “o remo do bote usando isto como um viulino “dice, “ to vendendo a garagem ‘to vendendo o piano como um remo de bote” te falei , + eu realmente t.e falei “. escova de cavalo media “minha pelvis era uma gravata como um remo de bote )v”ce dice “oh, , . remo de bote
. t o vendendo a gaita de fole como um
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it was dark music , it was dark music ” i sayd to you ( holding bagpipes “ .it was dark , “ and i m selling the bagpipes ”you sayd. “ medium hair brush ”i sayd “.garage door swinging aluminum over white cars garage dore swinging over white cars” “medium hare brush ,i have one y”ou sayd “ the bote oar using it like a violyn ”i sayd , “ im selling the garage “im selling the piano like a bote oar ” i told you ,+ i really told yo.u “. medium hare brush “ my pelvis was a necktie like a bote oar )y”ou sayd “oh, , . . i m selling the bagpipes like a bote oar
notas 1. “Três poemas por encomenda” foi escrito em resposta a uma pesquisa na web que levou ao extinto blog de Jordan Davis (os termos das pesquisas tornaram-se o título dos poemas).
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Imagens da mercantilização hegemonia neoliberal e tradições populares na world music brasileira João Oliveira Pace
a lógica de mundialização da cultura, ensejada em fins do século xx por uma nova dinâmica internacional de acumulação capitalista – logo conhecida e propagandeada como “globalização” –, encontra na world music uma de suas mais curiosas e paradoxais manifestações. Resultante de um movimento de estilos musicais que parte de regiões periféricas, até então estranhas à dinâmica da indústria cultural, para ganhar circulação global a partir do centro do mercado, é talvez inadequado tratar a categoria enquanto “gênero”; sua heterogeneidade e variedade estilística só poderiam se enquadrar sob um único rótulo segundo o ponto de vista da produção cultural dos países centrais, para o qual o diferente resume-se a exotismo, regionalismo pitoresco. Contudo, abandonar tal categoria seria não reconhecer algo que lhe é central, e que de fato lhe confere unidade estética – aquilo que vêm a sofrer aqueles estilos, antes alheios à indústria fonográfica, quando a adentram: a padronização, segundo critérios mercadológicos de difusão e consumo. Diante do fenômeno da cultura mundializada, chegou a surgir uma defesa imobilizante e algo estéril das tradições populares; no entanto, como aponta Tatit, no contexto brasileiro, “contrariando todas as previsões lançadas décadas antes, nos anos 1990 as emissoras de rádio foram invadidas por músicas cantadas em português”, o que se deu também com a televisão, e “se apropriando do lugar de outras músicas igualmente de consumo, em especial as norte-americanas”1.
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Mas o regional não alcançava o global inalterado, na mesma forma em que se encontrava em suas comunidades de origem, nas quais a cultura tradicional é elemento participante na organização da vida social. Como é pontuado por Marcia Tosta Dias, “os produtos são, invariavelmente, vestidos de uma roupagem pop”,2 como que travando “diálogo” com os padrões da indústria fonográfica, e com eles estabelecendo uma relação que tem por fim torná-los vendáveis – em resumo, transmutá-los em mercadorias. A world music, que alguns contemporâneos interpretaram como democratização e nova permeabilidade da indústria fonográfica, termina por se adequar aos procedimentos já convencionais do mercado, no qual “as formas concretas de atividade deixam de ter em si mesmas a sua razão de ser; a sua finalidade lhes é externa, a sua forma particular é inessencial”.3 Este processo complexo e contraditório – no qual o local específico se converte em global homogeneizado – deve ser particularizado na análise de um de seus produtos; ora, como apontado, ao contexto brasileiro não faltaram exemplos na década de 1990. Tornou-se claro, em alguns momentos do processo de mundialização da cultura no país, a arbitrariedade da indústria cultural no manejo das tradições populares; prova disso está no fato de que rótulos foram inventados para distribuição e consumo por esta mesma indústria, em uma pretensa roupagem regionalista. É o que se deu com o axé, nome criado para evitar confusões com outros estilos então de grande difusão, como o pagode. Algo como uma nomenclatura esvaziada para as grandes apostas da indústria fonográfica. No entanto, é preciso ressaltar que a origem destes gêneros se encontrava no solo da cultura popular: o axé tinha por base o samba de roda do interior da Bahia, já trazido para a metrópole e ritmicamente acelerado, além de mesclado às novas técnicas de gravação. Trata-se, afinal, do percurso musical do grupo É o Tchan!, que inundou os meios de difusão nos anos noventa, tanto o rádio quanto a televisão, formando com eles um amálgama cultural que auxilia na compreensão, não só de suas próprias composições, mas também de um dos aspectos do processo descrito no início do texto: o modo pelo qual, ao esvaziar determinadas formas ou composição de seu conteúdo específico, a indústria cultural lhes preenche com seus próprios conteúdos ideológicos. “Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear”.4
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Em 1998, dada a saída da dançarina Carla Perez do grupo, o É o Tchan! juntou-se à Rede Globo na promoção de um concurso à procura da melhor substituta para o posto. Exibido no Domingão do Faustão, o concurso “A nova loira do Tchan” recebeu, por conta da imensa exposição nacional, grande audiência; as candidatas seriam avaliadas de acordo com seus desempenhos na dança, mas principalmente conseguinte determinados padrões físicos estabelecidos pela banda e esclarecidos na letra da canção homônima à disputa. Ora, é fácil deduzir deste funcionamento o quanto se reproduz aqui a lógica da concorrência capitalista, em especial no âmbito do mercado de trabalho5. Neste sentido, a composição “A nova loira do Tchan”, por estabelecer os critérios a partir dos quais a seleção das candidatas seria realizada, convocando aquelas que se adequariam ao tipo desejado para se apresentarem, teria função similar àquela dos classificados de empregos nos jornais. Contudo, é preciso reforçar o caráter mercantilizante da canção no contexto do concurso para o qual foi criada: o classificado em questão não se refere tanto a habilidades “técnicas” das candidatas; sua aptidão ao emprego se liga, acima de tudo, a seus traços físicos, e, portanto, traços da esfera da pessoa, e não exclusivamente de sua força de trabalho. Talvez não seja forçar a nota apontar o quão sintomático é a mercantilização da própria individualidade – em lugar de sua força de trabalho – receber vasta audiência e consumo no país de maior histórico escravocrata que se tem notícia... Mescla-se a esta questão, relativa à formação histórica da sociedade brasileira, a misoginia da cultura patriarcal, que enseja uma permanente objetificação da mulher enquanto produto sexual. É preciso, no entanto, proceder à análise da canção “A nova loira do Tchan” em sua imanência formal, deixando de lado, por ora, o aparato midiático que a veiculou. A gravação lançada no mesmo ano de 1998, no álbum “É o Tchan no Havaí”, inicia ao som de um avião; o efeito é logo em seguida explicado pelas usuais anunciações de Beto Jamaica, já acompanhado de instrumentação potente (“É, essa aí é pra decolar, compadre! Eu to falando do avião loiro que vem aí!”): o avião decolando é a própria nova loira do Tchan, que já surge metaforizada enquanto objeto – no caso, um transporte evidentemente moderno. Sua chegada é anunciada pela repetição do verso “Luz na passarela, que lá vem ela”; com isso, a canção novamente estabelece para si um espaço de modernidade, dado que passarela é, em geral, onde se dão
LĂvia Serri Francoio
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desfiles de moda – podendo-se tomá-la também como estrutura em que se dá a exposição de candidatas de um concurso, o que remeteria ao contexto da composição. A sonoridade acompanha a atmosfera de anúncio, simulando suspense. Quando, enfim, nomeia-se o objeto da canção, a nova loira do Tchan, o ritmo e os traços característicos do samba irrompem, e, junto a eles, elementos que se afastam do espaço do moderno, anteriormente construído: quando os cantores pedem que se deixe ela entrar, a expressão faz clara alusão às rodas de samba baianas, retomando, portanto, motivos da tradição popular. Este encontro entre elementos originários de espaços díspares entre si – como a passarela moderna e a roda de samba tradicional – é reiterado em mais de um momento da canção, fazendo-se presente quando, após uma exposição das qualidades corporais da nova loira, Beto Jamaica pede que se “abra a roda e deixa ela entrar, / quero ver a loirinha sambar / abre a roda e deixa ela entrar, / quero ver a galera pirar”; no acompanhamento mesmo destes versos, sonoplastia e instrumentação generosa convivem com o bater de palmas típico do samba de roda; por fim, o próprio recurso, aqui muito recorrente, da repetição, com alguns momentos de variação, é notavelmente característico da composição oral-tradicional. Mesmo os últimos versos, algo esvaziados de significado manifesto para além da metáfora já colocada da mulher como avião (“Ela é um aéreoró pleaplan neonó, / um avião”), guardam algo daquele modo de construção cancional a partir da oralidade, fazendo uso das qualidades fonéticas do português brasileiro, como a abertura das vogais e a clareza maior na articulação das frases, se comparado ao português europeu. Desta série de dispositivos acionados na configuração, pode-se deduzir um significativo princípio formal desta canção: a convivência, em separado porém sem conflitos, de elementos próprios à tradição popular com aqueles do quotidiano da moderna sociedade de consumo. Neste ponto, chega-se a um curioso momento de encontro entre a história cancional brasileira e a world music da qual participa É o Tchan! Ao tratar do desenvolvimento da formação da canção no Brasil a partir de seus momentos de triagem – operação em que se separam os elementos que determinado grupo considera desejáveis da tradição para, com eles, renová-la –, Tatit situa o axé e o pagode em um quarto momento de tal processo, cuja possibilidade histórica fora aberta, por sua vez, pelo tropicalismo, quando este “pôs à mostra os
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tênues limites que separam os diferentes artesanatos cancionais” – no caso, composições “apenas para consumo” e aquelas “de qualidade”6. É de Schwarz a formulação que aqui interessa para definir, na complexão formal mesma da canção, a herança tropicalista que permanece na world music: a “justaposição do antigo” – ou seja, de elementos do Brasil arcaico – “com o novo” – elementos do Brasil burguês7. Desta postulação, criam-se imagens eficazes na compreensão da realidade social nacional; entretanto, apenas esta operação dualista não bastaria para explicar a originalidade e abrangência do movimento, devendo-se ressaltar o viés mercadológico impresso em sua produção, posto que também buscava realizar e difundir por intermédio do mercado. Tomando-se apenas por base a busca por romper as divisas entre “diferentes artesanatos cancionais”, temos em “A nova loira do Tchan” não apenas um ponto de continuação da proposta tropicalista, como também sua radicalização e uma prova de seu triunfo na cultura brasileira: destacada de seu contexto de origem, no qual continha certo “alento desmistificador”8 enquanto contestação do estado de coisas fixado pelo golpe de 1964, resta à fórmula do tropicalismo sua “leitura ingenuamente antropofágica da ‘feijoada’, da ‘geleia geral’ brasileira, agora facilmente incorporada e agendada como negócio pela indústria cultural”, como pontua Alambert9. No entanto, se a composição tropicalista demanda a mencionada operação por justaposição, o produto final deste processo deve configurar-se como algo “absurdo”10 – eis o que afasta a tropicália da world music: nesta, o resultado se expõe de modo absolutamente não problemático; a sonoridade efusiva, fortemente dançante, a letra esvaziada de qualquer problematização do que se expõe, truncam qualquer recepção que não a de consumo rápido e eufórico. A imagem tropicalista ainda pressupunha algum estranhamento: seu pressuposto formal mesmo indica a incompatibilidade entre elementos arcaicos e modernos, cujo encontro esdrúxulo emblematiza, melancólica e criticamente, as fraturas que inviabilizam a formação nacional em sentido pleno. Nada mais compreensível, quando se trata da geração que viveu agonicamente o levante popular de inícios dos anos 60 e sua derrota. No entanto, do ponto de vista de seu efeito artístico, o que se dá com É o Tchan! é de todo distinto: produz em seu ouvinte uma sensação de descontração absoluta e dançante. Em função disto, deve-se apontar outro princípio presente na canção, imbricado àquele da convivência do moderno e do arcaico, e todavia o maior respon-
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sável por barrar toda possibilidade de estranhamento: a introjeção, na canção, da linguagem mercadológico-publicitária – operação pela qual a indústria cultural vem preencher as formas regionais e específicas da tradição brasileira com conteúdos próprios. Já foi apontado que, em “A nova loira do Tchan”, o objeto tratado é semelhante a uma mercadoria que se deseja obter, sendo a própria mulher identificada com um avião – em que pese o uso coloquial e popular da expressão; a própria nova loira, o foco da canção, nunca ganha voz11, o que só reforça a impressão de que não vem a ser sujeito da composição, mas puro objeto que se admira e se deseja. Ora, o estatuto de mercadoria do objeto tratado na canção é patente, e, deste ângulo – destacada do concurso para o qual foi composta, mas em relação ao qual goza de independência – “A nova loira do Tchan” não se assemelha tanto a um classificado, mas a um anúncio publicitário. Observam-se os seguintes versos, que restam analisar: “Tem sessenta de cintura, / que gostosura, / 105 de bundinha, / que bonitinha, / 1,70 de altura, / ninguém segura, / mas que loirinha danadinha”; o que se coloca, aqui, é uma descrição precisa, valendo-se mesmo de proporções matemáticas, do corpo de uma mulher objetificada. Anunciam-se as qualidades do produto, enfatizando o quanto é desejável, como que para alimentar a imaginação de um consumidor; o fato mesmo de que a nova loira não recebe nome algum, apesar da precisão de suas proporções, acusa sua característica dessubjetivada e cambiável – atribuições clássicas da forma-mercadoria. Ou ainda, na colocação de Silvia Viana sobre os corpos-carne quotidianamente expostos nas vitrines dos programas de televisão, “a fantasia que envolve essa massa corpórea humana é justamente a de ser massa indiferenciada e nada mais”12. Faz-se necessário levar em conta, neste momento, as características de uma sociedade na qual tal evidente redução do sujeito a objeto de troca passa despercebidamente, e mais, torna-se grande êxito comercial e motivo de audiência nacional. Assistia-se, em 1998, a uma grande ofensiva das forças do capital sobre todos os âmbitos da vida social brasileira, dominando-os; correspondeu-se a isto a flexibilização das condições de trabalho, o que levou a um acirramento da concorrência por vagas, dada a elevação do desemprego – algo que certamente se sedimentou em uma série de programas televisivos que simulam, em concursos, tal concorrência, como foi dito. O que impediria, neste contexto de massiva penetração da forma-mercadoria na vida social,
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que tais forças de mercantilização alcançassem também a relação com o outro, brutalizado e visto como possível concorrente? Some-se a isto uma problemática formação histórica nacional, na qual séculos de escravismo confluíram para uma alteridade particularmente brasileira, que abre espaço para impulsos de dominação e violação da autonomia do outro13, um contexto social cujas contradições tornam-se mais agudas sob a hegemonia neoliberal. Em lugar de uma conclusão, e retomando as questões de início, uma hipótese acerca da world music: como apontado por Jameson, a característica central da estética pós-moderna em relação aos demais períodos da história da arte seria o recurso ao pastiche, enquanto “mimetismo de outros estilos”14; ora, enquanto retomada de uma série de estilos diversos e específicos, não seria a própria world music uma manifestação pós-modernista enraizada no solo relativamente pouco exigente da sociedade de consumo e seus padrões culturais? A estética contemporânea é ela mesma fruto de um contexto de “obsolescência programada, (...) penetração da propaganda, da televisão, (...) padronização universal”15, a análise pretendeu demonstrar o comparecimento de todos estes elementos na canção do É o Tchan! – grupo que, em suas “viagens” musicais pelo mundo em diversos álbuns e singles, como É o Tchan no Japão ou É o Tchan no Havaí, procedeu de forma curiosamente semelhante àquela da world music, por sua absorção algo caricata e padronizante de elementos regionais. O diagnóstico hipotético poderia assinalar um traço comum à produção artística em tempos de neoliberalismo acirrado e dominação da cultura pela lógica do mercado.
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notas 1. tatit, Luiz. O Século da Canção. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004, pp. 108-109. 2. tosta dias, Marcia. Os donos da voz. São Paulo: Boitempo, 2000, p. 122. 3. schwarz, Roberto. “As tribulações de um pai de família”. In: O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 25. 4. adorno, T. & horkheimer, M. Dialética do Esclarecimento – Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 100. 5. Para uma reflexão aprofundada acerca da reprodução da lógica de concorrência do mercado de trabalho na televisão em tempos de hegemonia neoliberal, ver viana, Silvia. Rituais de sofrimento. São Paulo: Boitempo, 2013. 6. tatit, Luiz. O Século da Canção. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004, p. 104. 7. schwarz, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969”. In: O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 86-93. 8. Idem, ibidem, p. 89. 9. alambert, Francisco. “A realidade tropical”. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 54. São Paulo, mar. 2012, pp. 139-150. 10. schwarz, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969”,. In: O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 90. 11. É curioso notar, nas apresentações do É o Tchan!, certa divisão do trabalho artístico; de um lado, os cantores, e, de outro, os dançarinos. Em geral, tais funções não chegam a se misturar efetivamente. Vale notar, também, o aspecto de gênero de tal divisão: nenhuma mulher canta. 12. viana, Silvia. Rituais de sofrimento. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 37. 13. pasta jr., José Antonio. Formação Supressiva: Constantes estruturais do romance brasileiro. Tese de LivreDocência na Área de Literatura Brasileira, apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2011.
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14. jameson, Fredric. “Pós-modernidade e sociedade de consumo”. In: Revista Novos Estudos, n. 12. São Paulo, jun. 1985, p. 18. 15. Idem, ibidem, p. 26.
referências bibliográficas adorno, T. & horkheimer, M. Dialética do Esclarecimento – Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. alambert , Francisco. “A realidade tropical”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 54. São Paulo, mar. 2012. candido, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas, 2009. jameson, Fredric. “Pós-modernidade e sociedade de consumo”. In: Revista Novos Estudos, n. 12. São Paulo, jun. 1985, p. 18. pasta jr., José Antonio. Formação Supressiva: Constantes estruturais do romance brasileiro. Tese de Livre-Docência na Área de Literatura Brasileira, apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2011. schwarz, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. tatit, Luiz. O Século da Canção. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. tosta dias, Marcia. Os donos da voz. São Paulo: Boitempo, 2000. viana, Silvia. Rituais de sofrimento. São Paulo: Boitempo, 2013.
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Sobre os autores
Ana Araújo, 23 anos, estudante de letras na USP. Gosta de gatos, poesia contemporânea e artes plásticas. Camilla Soto é curitibana, estudante de letras na UFPR, apaixonada pela língua espanhola e por tudo que ela possa oferecer. Com 23 anos e em busca de um novo caminho. Por um “erro de script”, também formada em nutrição. Cardênio de Cornália é um insano cavaleiro que costuma vagar pelas serras tomado por paixão não concretizada, uma vez que sua dama desaparecera sequestrada por um abusado mal-feitor. Deste autor, sob o pseudônimo Pedro Magalhães, suposto estudante de letras, a Cisma, em sua segunda edição, “Literatura contra literatura”, também publicou o artigo “O ovo e a galinha: a alma imoral”, sobre o conto de Clarice Lispector. Danilo Augusto de Athayde Fraga é um poeta, ensaísta e tradutor brasileiro. Publicou os livros Poemas (2014, edição do autor), Zumbi (2014, Coisa Edições) e Sonhos e outros Sonos (2005, Luripress). Colabora com diversas revistas e espaços literários e, atualmente, é editor da revista baiana e independente Evoé e da revista de graduação em Letras pela UFBA, Hyperion. Atualmente organiza sua primeira coletânea de ensaios e seleção de traduções, Beginner. Danilo Gusmão é aluno do último ano de letras. Com orientação de Augusto Massi, desenvolveu a iniciação científica “Imagética do imaginário: invenção e mentira em Manoel de Barros”. É autor de contíguo (Editora Patuá, 2013), em processo de tradução e reedição pela editora mexicana Monte Carmelo, e do livro infantojuvenil Céu-ta-
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manho, a ser lançado no segundo semestre de 2015 pela editora MOV Palavras. Publica desde 2009 no blog poemismo.wordpress.com. Emiliano Baigorri nasceu na cidade de Rosário, em 1984, atualmente vive em Córdoba. Graduando da licenciatura em letras modernas da Universidad Nacional de Córdoba. É roteirista, poeta e redator. Publicou contos, ensaios e poemas em revistas como Árbol de Jítara, Revista Caja Muda, Fuelle y Axxón. Participa como editor da revista digital Vagón de Ostras. J. Cipolla, 23 anos, não binárie. Fez gastronomia e letras mas sempre quis artes plásticas. Cozinha em casa, é artista e escritor. Também gosta de plantas. João Oliveira Pace é graduando em letras (português e francês) pela Universidade de São Paulo. Tem interesses de pesquisa nas áreas de teoria literária e literatura brasileira. Lucas Miyazaki Bancucci é graduando em letras na USP, com habilitação português e espanhol. Está elaborando um projeto acerca da obra de Margo Glantz e sua relação corpo-escrita, com orientação de Adriana Kanzepolsky. Paralelamente, está desenvolvendo um coletivo de criação artística, entre amigos. Escreve poesia; recebeu menção honrosa no Concurso Literário José Luís Peixoto 2014. Marco Antonio Calil (por ele mesmo): pessoa qualquer. Socializado homem, socializado aluno da socializada universidade da socializada cidade de São Paulo. Odeia literatura e está publicando isso porque precisa de AACCs para a licenciatura. Maria Beatriz Neves (por ela mesma): também pessoa qualquer. Tem a sensação de que não terá um filme com seu nome – como tiveram Hannah Arendt e Rosa Luxemburgo, por exemplo – mas lida bem com a ideia. Estuda história, ainda não abriu a licenciatura e não sabe por que está publicando isso. Matheus Cosmo é estudante de letras da Universidade de São Paulo, com habilitação em português e linguística, e autor do projeto de
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iniciação científica intitulado “As seis lições de Richard Boleslavski: um caminho para atuação”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Pedro Köberle é aluno do segundo ano de graduação de letras na USP com habilitação em inglês e português. É editor e revisor da Cisma.
Ilutradores Deborah Salles é ilustradora e estuda design gráfico no Centro Universitário Belas Artes, depois de dois anos de artes visuais na ECA -USP. Vive e trabalha em São Paulo, aonde tem desenhado principalmente o marido e a gata. Gabriel Marcondes cursa o quarto ano de artes visuais no Instituto de Artes da Unesp (bacharelado e lincenciatura), anteriormente formado pelo Centro Paula Souza (ETEC Carlos de Campos) entre 2006 e 2007 como técnico em design gráfico. Trabalha atualmente com grupo de teatro Coletivo Território B. Já trabalhou como assistente de atelier com Vitor Mizael e Rodrigo Cass. Como arte educador, trabalhou na Bienal de São Paulo e Sesc, assistente de professor na Escola Carlitos. Trabalhos em: flickr.com/photos/gmarcondes/ Lívia Serri Francoio nasceu em 1989 em São Paulo, Babilônia. Desenha desde muito pequena. Já monitorou aves, catalogou anfíbios, estudou a epistemologia das ciências biológicas e coordenou um canil. Atualmente, trabalha com ilustração, histórias em quadrinhos e animação 2D. E se dedica a apenas um cachorro. Trabalhos em: liviaserrifrancoio.wix.com/liviaserrifrancoio Malu Risi cursou Artes Visuais no Instituto de Artes da UNESP, desenvolveu trabalhos de cenografia e comunicação visual. Foi artista residente do LABMIS-2012 com o trabalho “Maldita parede” que contou com a orientação de Maurício Ianês.
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Marcelo Martins Ferreira, nascido em SP, expressa com a música o que sente e desenha quando sorri. Como em tudo que vem dele, a sua obra também é acompanhada com uma pitada de humor e de sinceridade.
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Notas Margo Glantz: Agradecemos a gentil permissão concedida pela autora Margo Glantz para publicarmos a tradução do conto “Jarabe de pico”, integrante do livro Historia de una mujer que caminó por la vida con zapatos de diseñador, lançado pelo Editorial Anagrama. Agradecemos a gentil permissão concedida pela autora Yvoty Potyjera para publicarmos a tradução do poema “Guarani Ha’e”. Buscamos os contatos dos responsáveis pelos direitos autorais de “A noite dos feios”, de Mario Benedetti, mas não os encontramos. Quem puder nos oferecer maiores informações, favor entrar em contato através de revistacisma@gmail.com “O dia em que Antonioni veio ao hospício (Rapsódia)” © Anne Carson 2006, reproduzido com permissão da autora. Basquiat: Agradecemos a gentil permissão concedida por Jonathan Geldzahler dos direitos de tradução da entrevista com Jean Michel Basquiat conduzida por Henry Geldzahler.
Cisma
revista de crítica literária e tradução ano iv – número vi – 2015
é fácil ser fossa É o tchan! Rubem Fonseca Lupicínio Rodrigues Sophia de Mello Breyner Andresen textos traduzidos de Langston Hughes, Mario Benedetti, Anne Carson, Yvoty Potyjera, Margot Glantz Poesia Flarf e entrevista com Basquiat
issn 2238-7013