REVISTA CISMA 2015 – ANO IV EDIÇÃO ESPECIAL HAROLDO DE CAMPOS
LEVÍXEL INFLEXÍ GERADO ENTRET OTNATE TRANSB ADROBS SEMPRE ON CAMI NO
REVISTA CISMA EDIÇÃO ESPECIAL HAROLDO ODLORAH ED CAMPOS DE SOPMAC Renan Nuernberger, Diana Junkes Bueno Martha, Jacques Derrida, João Cabral de Melo Neto, Octavio Paz e Guillermo Cabrera Infante Traduções de Henrique Amaral, Eliana Teruel e Guilherme Tauil
Revista Cisma ISSN: 2238-7013 Idealizadores da Cisma Sofia Nestrovski Tiago Bentivoglio 2015 ano IV — edição especial Reimpressão Colaboradores Diana Junkes Bueno Martha Eliana Teruel Guilherme Tauil Henrique Amaral Renan Nuernberger Revisão Caroline Micaelia Clarissa Pereira Giovana Bardi Henrique Amaral Isabela Benassi Milena Varallo Projeto gráfico e diagramação Lucas Blat Ilustrações Victor Maia Agradecimentos Arthur Nestrovski Cristina Moerbeck Pietraróia
Agradecemos à Pontifícia Universidade Católica por nos conceder a autorização para a presente publicação. Governo do Estado, Secretaria da Cultura, apresentam a Revista Cisma – Edição especial Haroldo de Campos. Contato revistacisma@gmail.com www.facebook.com/revistacisma www.revistacisma.com www.revistas.fflch.usp.br/cisma
NOTA DOS EDITORES Em 2012, a revista Cisma foi criada com um propósito definido: utilizar o exercício da escrita como forma de ocupar, física e intelectualmente, um espaço acadêmico ainda restrito. Dentro da academia, nos posicionamos em relação aos espaços da crítica literária e da criação tradutológica. Por isso, manter o nosso projeto com a colaboração e o apoio de pessoas de todo o Brasil, e também de fora dele, nos mostra que esses espaços estão sendo, aos poucos, reabilitados e expandidos. Agora, em 2015, publicaremos não só os números 6 e 7 da Cisma, mas também um projeto muito trabalhoso que tem sido gestado desde o ano passado: a Revista Cisma Haroldo de Campos. Aqui, porém, resta apenas um esclarecimento: sempre nos definimos como um grupo de alunos da graduação em Letras e contrário às propostas acadêmicas convencionais. Por isso, embora esta revista seja o fruto do trabalho contínuo de várias pessoas – algumas que não participam mais e outras que continuam conosco – optamos por nomear apenas aquelas envolvidas em trabalhos mais pontuais, como a revisão e as traduções. Assim, pensamos fazer jus ao desafio de uma oxigenação coletiva, não apenas como alunos, e sim como um grupo, em constante formação, de críticos jovens, relutantes.
EDITORIAL Esta edição especial da Cisma reproduz quatro testemunhos sobre Haroldo de Campos: na ordem, um primeiro do filósofo francoargelino Jacques Derrida; outro do pensador e poeta mexicano Octavio Paz; um terceiro do nosso João Cabral de Melo Neto; e, por último, um do escritor cubano, naturalizado britânico, Guillermo Cabrera Infante. Esse conjunto, pelo peso e variedade dos nomes, oferece uma amostra da extensão dos diálogos e relações de Haroldo, poeta, crítico, tradutor... e amigo – um grande-amigoadmirável, no dizer de Derrida – cuja presença, textual e corpórea, é celebrada pelos quatro autores. E por que re-presentificar Haroldo num número especial da Cisma, revista de crítica literária e tradução da graduação em Letras da USP, universidade que de resto costuma subestimá-lo? A resposta veio em flashes, numa sucessão de instantâneas (tal qual no poema de Octavio Paz), ao longo do processo de facção da revista, e nos obriga a rememorá-lo um pouco. Ideia e possibilidade surgiram juntas, quando, ainda em 2014, obtivemos junto à editora da PUC os direitos de republicação dos textos constantes de um pequeno libreto impresso, em 1996, por ocasião de uma homenagem a Haroldo de Campos, professor emérito e um dos fundadores do programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica dessa universidade. Os textos – os mesmos que ora reproduzimos – nos seduziram de imediato, e logo demos início ao processo, que passou por: novas traduções dos originais em língua estrangeira, abrindo um espaço para três tradutores ainda em graduação; duas apresentações inéditas do material, uma da Diana Junkes Bueno Martha, professora de literatura brasileira da UFSCAR e estudiosa da obra de Haroldo de Campos, outra do Renan Nuernberger, poeta e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP; ilustrações feitas especialmente para a revista pelo Victor Maia; e, por fim, projeto gráfico idealizado pelo Lucas Blat. Neste ano, graças ao financiamento obtido mediante edital da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, conseguimos finalizar o projeto. E assim o devolvemos a público, renovado, para que realize, cada vez mais, seu enorme potencial artístico, crítico, tradutológico... haroldiano.
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Introdução Renan Nuernberger
Instantáneas Octavio Paz
11 Haroldo, o poder armado Diana Junkes Bueno Martha
16 Chaque fois, c’est-à-dire, et pourtant, Haroldo... Jacques Derrida
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30 Instantâneas Tradução de Eliana Teruel
32 Haroldo sempre trae regalos Guillermo Cabrera Infante
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Cada vez, isto é, e no entanto, Haroldo... Tradução de Henrique Amaral
Haroldo sempre traz lembranças Tradução de Guilherme Tauil
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Depoimento de João Cabral de Melo Neto
Editorial primeiro PUC
INTRODUÇÃO RENAN NANER NUERNBERGER REGREBNREUN Haroldo de Campos é uma figura imensa. Sua atuação como poeta (que engloba o crítico, o teórico, o transcriador) promoveu uma inquestionável renovação no campo das letras e projetou a produção brasileira, de maneira inédita, a um lugar de destaque na reflexão e criação poéticas de seu (nosso) tempo. Sua trajetória (con)funde-se à trajetória da própria poesia brasileira da segunda metade do século XX: da compreensão refinada do “momento construtivista” do pós-guerra à percepção de uma mudança profunda nas condições históricas que sustentavam a utopia da vanguarda, Haroldo foi o poeta concreto que mais soube se desprender do rigor ortodoxo – inicialmente necessário – do movimento concretista para se tornar, em seu livre movimento, um poeta cada vez mais concreto. A palavra-carnadura: dos cinco sentidos às galáxias. Por isso, hoje precisamos (ainda) encarnar Haroldo de Campos. Seu espírito ambicioso é um grande sol interno para nós, jovens críticos e poetas, que olhamos estupefatos o século passado se dissolvendo. Precisamos encarná-lo, compreender seu percurso e a amplitude de seu pensamento: o diálogo amplo e corajoso que estabeleceu com tantos e tão múltiplos pensadores – como bem atestam os textos aqui reunidos – pode ser uma das vozes, entre as tantas outras almejadas, que tecemos em nossa própria reflexão. Bom índice desse processo, cujo desenho ainda se esboça, é a republicação dessa homenagem (as flores em vida – ainda vivas). Resultado de um evento que comemorava os 50 anos da PUC/SP, em
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1996, a edição original do libreto celebrou a contribuição de Haroldo de Campos como professor emérito e fundador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da instituição. Agora, em 2015, a equipe da Cisma, revista da graduação em Letras da USP, celebra novamente a contribuição de Haroldo, fundindo em seus próprios termos – há traduções inéditas feitas para esta edição – a trajetória do poeta à sua (nossa) própria trajetória.
A PALAVRA-ARUDANRAC: CARNADURA DOS OCNIC SENTIDOS ÀS GALÁXIAS CINCO Desde 2003, o poeta não está mais, de corpo presente, entre nós. Seu pensamento, sim, está vivo e se desdobra em novas edições de seus livros e em novos ensaios sobre sua obra, iluminando e animando o debate no campo das letras. Por isso mesmo, precisamos (também) encarar Haroldo de Campos. Colocá-lo à prova do tempo presente, ininterruptamente. Seus olhos de lince não puderam acompanhar as transformações deste novo século – e é nosso dever fazê-lo. Essa é uma das formas mais generosas de homenagem. E é isso que, me parece, a Cisma tem proposto.
HAROLDO, O PODER ARMADO DIANA JUNKES ANAID SEKNUJ BUENO AHTRAM ONEUB MARTHA Quando os editores de Cisma convidaram-me para escrever algumas páginas sobre Haroldo de Campos, a fim de apresentar um material a ser editado pela revista, recebi com alegria o convite e voltei a ler muitas coisas sobre o poeta e sua obra, à qual dedico estudos há mais de uma década, com o entusiasmo e a paixão da descoberta que guiaram as primeiras conversas que tive sobre ele com João Alexandre Barbosa, que gostava de chamar Haroldo de “O cosmonauta do significante”, título, aliás, de um de seus belos ensaios sobre o poeta e que abre o volume haroldiano Signantia: quasi coelum; signância quase céu. O material que vem a público novamente foi editado em 1996, pela PUC, com tiragem de dois mil exemplares, e fez parte da série Autores Brasileiros, organizada pela presidência de Pós-Graduação. Ele é resultado de uma homenagem que aquela universidade prestou ao poeta, alguns anos depois de sua aposentadoria. Além dos textos que agora poderão ser apreciados novamente, o evento contou com Tomie Ohtake, Cristina Pereira e Bob Wolfenson, entre muitos outros, e teve lugar em setembro/1996, no TUCA. Sempre que penso em Haroldo, vem-me à mente, em primeiro lugar, o título de um ensaio de Celso Lafer sobre ele: “O prazer da palavra e a escrita justa: sobre o percurso de Haroldo de Campos”. Além
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Barbosa, J. A. “Um cosmonauta do significante: navegar é preciso”. In: Campos, H. Signantia quasi coelum, signância quase céu. São Paulo: Perspectiva, 1979. O volume reúne, além da abertura de João Alexandre Barbosa, textos de Severo Sarduy, Andrés Sánchez Robayna e Benedito Nunes.
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Ambos os textos estão reunidos em: Motta, L. T. Céu acima. São Paulo: Perspectiva, 2005.
Campos, H. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 2005.
disso, ocorre-me um esclarecedor artigo de Luiz Costa Lima sobre o poeta chamado “Haroldo, o multiplicador” do qual, dentre as muitas lições ali aprendidas, guardo a seguinte: converter em dogmas as palavras de um inventor é o pior serviço que se pode prestar a ele. Entre o prazer da palavra e a necessária abordagem antidogmática de sua obra – aberta – é que se deve buscar, nos intervalos da leitura, o pensamento poético de Haroldo e sua vocação para o diálogo com grandes poetas, intelectuais, artistas das mais diferentes nacionalidades, transitando pela cultura em seus diferentes matizes, da pop à erudita, do compromisso acadêmico em universidades do Brasil e do exterior, como Yale, estabelecendo ali laços importantes de amizade, dentre as quais deve-se sublinhar o profícuo intercâmbio com Kenneth David Jackson e muitos outros. Aliás, são inúmeros os laços de amizade que Haroldo construiu ao longo de sua atividade de poeta e professor. Como se sabe, Haroldo de Campos (1929-2003) dedicou-se por mais de cinquenta anos à poesia, à crítica e à tradução, pautando-se sempre pela busca da inventividade e da poeticidade. Se a fase da poesia concreta corresponde a um período de seu percurso criativo, datado historicamente, a concretude da palavra poética, a escrita justa, o palpável dos signos jakobsoniano são a marca inconfundível de sua atividade e de sua postura ousada e poética diante da linguagem, de sua postura inquiridora diante da tradição, que releu, recriou, transcriou, numa “vivissecção implacável” como ele mesmo costumava dizer. É a partir de uma visada sincrônica dos estudos literários que Haroldo estabelece sua poética mallarmaica e caleidoscópica, sua ressignificação do make it new poundiano, a qual, no caso dele, é antropofágica. Haroldo leitor criou, como Borges, seus precursores, com estilo extremamente autoral, fazendo-nos reconhecer, em cada uma de suas obras, criativas e/ou críticas, suas idiossincrasias, passando dos orientais aos textos bíblicos, de Goethe a Joyce, de Homero a Dante e Camões, e por muitos outros e por muitas outras línguas, numa multiplicidade de vozes, acompanhado de companheiros de viagem pela linguagem de que os textos que seguem neste volume de Cisma dão amostra. Para introduzi-los brevemente, seguirei não a ordem em que são apresentados no sumário, mas aquela que, a meu ver, pode dar
a conhecer múltiplas facetas desse poeta de “campos e espaços”. Parto do breve depoimento de João Cabral de Melo Neto, que reproduzo aqui: “Haroldo de Campos é essa coisa extraordinária: um poeta e tradutor que veio para a literatura armado de um invejável conhecimento do fenômeno literário”. É interessante Cabral chamar atenção, com o uso dos dois pontos, que lhe são tão característicos, justamente para o caráter extraordinário do Haroldo poeta e tradutor, ou seja, algo extra-ordinário, fora do comum, poderíamos dizer, ex-cêntrico, fora do centro, subversivo; caráter que marca a reflexão do poeta sobre seu fazer artístico e crítico-tradutório, os quais vêm à luz, seguindo as palavras do mestre João Cabral, pelo invejável conhecimento do fenômeno literário de que dispõe o poeta, porque Haroldo era um famélico estudioso, um devorador de livros e culturas, de saberes. Sua atitude diante da literatura é resultado do seu invejável saber, mas, como disse acima, de sua postura diante da linguagem e da vida. É Cabrera Infante em seu texto denominado “Haroldo sempre traz lembranças” que vai convocar a etimologia do nome de Haroldo, do nórdico clássico, e que quer dizer, “poder armado”. Ora, se voltarmos ao depoimento de Cabral, leremos justamente: “ [...] veio para a literatura armado de um invejável conhecimento [...]”. Haroldo, o de “poder armado”, é um artista de vanguarda, a linha de frente, o famélico devorador, o implacável leitor, o poeta galáctico que também era o contador de histórias a um grupo de jovens na Londres de 1968, quando passou uma temporada na mesma casa alugada por Gil e Caetano, conforme rememora Infante, que se lembra, ainda, vejam só, do poeta como um Papai Noel, imagem singular para definir este Haroldo de que tanto a academia fala. Haroldo era o grande intelectual, sim, mas que dançava “para a vida ficar Odara”, como bem recordou Lucia Santaella há alguns anos em uma pequena matéria publicada no caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo. E talvez seja por essa Odara-dança, vista de outra perspectiva, menos tropicalista e mais literariamente erudita, que sua atitude, além do poder armado e do companheirismo aos jovens músicos em suas baladas até o alvorecer, rememoradas por Infante, era também a do incomparável pensador que é convocado por Jacques Derrida em seu texto, “Cada vez, isto é, e no entanto, Haroldo...”. Nesse belo ensaio, que abre a reunião de textos deste volume, Derrida fala da
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Arquivo aberto: memórias que viram histórias – Haroldo no círculo odara Domingo, 16 jan. 2011. http://www1.folha.uol. com.br/fsp/ilustrissima/ il1601201109.htm. Acesso em 05 jan. 2015.
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Barbosa, J. A. “O continente Roman Jakobson”. In: Jakobson, R. Poética em Ação. Organização: João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1990, p. 13-23.
amizade e de sua singularidade e importância diante da finitude da vida: “cada vez que penso em todas as figuras da finitude [...] figuras do que terá me faltado no tempo [...], conto meus admiráveis amigos”. Haroldo é um desses amigos que Derrida lamenta não encontrar mais vezes, aquele tipo de amigo que o faz pensar e desejar os encontros passados e os encontros por vir e as razões dessa bem-querença, a começar pela generosidade haroldiana, também lembrada por tantos que conheceram e conviveram com ele. Derrida nos fala do “gênio haroldodecamposiano em sua fulguração poético-pensante”, de seu trabalho de “tradução geradora e generosa”, da “única fonte libidinal de todo pensamento poético”. Mas diz-nos também, sobretudo, algo fundamental: Haroldo, não a pessoa, mas o amigo, o poeta, o pensador, é infinito: “um íntimo, desde que eu aprenda a lê-lo”, ou, acrescento eu, íntimo a cada vez que o reencontramos outro do mesmo na leitura, eterna dobra e desdobra deleuziana, aprendizado, rasura nas origens da literatura, da poesia, da palavra tensionada em função poética, lalíngua constelar, galáxia(s). Todas essas características fazem-me pensar nas razões pelas quais Derrida afirma que Haroldo de Campos é o admirável amigo do qual tanto se recebe, mas do qual não se sabe receber o bastante, justamente pela vastidão e pela envergadura de suas reflexões. Há, talvez, uma imagem que nos permitiria refletir sobre isso: a do oceano em que a obra de Haroldo e seu pensamento constelar podem ser reunidos. Em um famoso texto, que abre o livro Poética em ação, no qual estão reunidos artigos de Roman Jakobson, João Alexandre Barbosa intitula o prefácio de “O continente Roman Jakobson”. Se o poeta da linguística é um continente, Haroldo é o oceano que circunda continentes, que engendra viagens e aventuras por onde a linguagem é a via de passagem, é “Servidão de passagem”, o lance de dados e o jogo do enxadrista em náutica deriva. Haroldo, o mar, é também o viajante, o que faz o poema dos restos do naufrágio porque ultrapassa o signo. Há sempre o desafio da hybris a lhe seduzir, como ele nos diz em Depoimentos de oficina e como sugere a epígrafe de seu Finismundo, a última viagem, em retomada de Bocaccio, leitor de Dante e Homero (“Amoroso viosine”, Canto XXVII): “per voler veder trapassò il segno”. Diante de todas essas perspectivas da obra, nada poderia homenagear mais Haroldo do que a republicação desses textos numa
revista chamada Cisma, cuja polissemia indica tanto aquele que se aparta de um grupo (em seu caso, o do senso comum) quanto o obsessivo leitor e poeta-pensador que cisma. Haroldo é Oceano, Odisseu preso ao mastro que arrisca o canto das sereias, sua algaravia. Para encerrar esta apresentação, deixei por último as “Instantâneas” de Octavio Paz, porque é sempre melhor quando um poeta fala a ou de outro poeta. O poema de Paz inicia convocando reminiscências e anunciações que aparecem em um flash e já nesta primeira estrofe a marca da fugacidade ditará o tom da estrofe seguinte em ricas imagens: “cometa”, “passos do vento”, “surpresa”, “rosa súbita”. Tais imagens sofrem um endurecimento na terceira estrofe pela emergência das forças da memória e do esquecimento, ou do amigo distante, como sugere Derrida, ou ainda, pelo barroquizan-
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SE O POETA DA LINGUÍSTICA É UM ETNENITNOC, HAROLDO É O OCEANO CONTINENTE QUE CIRCUNDA ADNUCRIC CONTINENTES te e inapreensível Haroldo. Essas imagens, o “grito petrificado”, “a praia da memória”, “a paralisia repentina de um deserto de vidro”, “a melancolia”, “as premonições” e “as recordações” adensam-se no corpo das estrofes seguintes, concretizam-se talvez em oposição à volatilidade das imagens dos primeiros versos e é, talvez, na sétima estrofe que se encontram as melhores imagens para este Haroldo de que falamos aqui, por meio dos textos que o homenageiam, aquele do transpassar dos signos e da proliferação de signos, da chuva pela qual a palavra aflora: “chuva rápida sobre as pálpebras do amanhecer, chuva/ tenaz sobre o verão devastado, chuva tênue sobre a/ janela da convalescente, chuva sobre o confete da/ festa, chuva de pés leves e sorriso triste;”. Por isso é que Haroldo entre nós permanece, em sua obra, maior do que ele, do que sua grandeza, porque a poesia que de seus versos, transcriações, estudos críticos, emana é “semente de tempo” ou, simplesmente, “destempo”.
CHAQUE FOIS, C’EST-À-DIRE, ET POURTANT, HAROLDO… JACQUES SEUQCAJ DERRIDA ADIRRED Chaque fois, c’est-à-dire souvent, chaque fois que je pense à la brièveté de la vie (« comme la vie aura été courte », ce sont hélas les mots de mon soupir préféré), c’est-à-dire chaque fois que je pense à toutes les figures de la finitude, c’est-à-dire à toutes les figures de ce qui m’aura manqué dans le temps, c’est-à-dire dans l’espace, alors chaque fois je compte ceux et celles que j’appelle pompeusement mais humblement mes grands-amis-admirables, mes grandes-amies-admirables, c’est-à-dire que je pleure alors chaque fois sur la rareté de nos rencontres, passées ou à venir, c’est-à-dire qu’incalculablement, au délà de toute arithmétique, car ces grandes personnes de tout âge sont si singulières, c’est-àdire si uniques en elles mêmes et pour moi, je compte sans compter le temps qui reste, chaque fois je compte les fois qui restent, c’està-dire que je compte sans compter sur mes doigts, « hors d’anciens
calculs, où la manœuvre avec l’âge oubliée… ». Une pensée du doigt, non de « la main crispée », jamais je n’ai su la dissocier d’un coup de dés. Quand reverrai-je Haroldo de Campos ? Nous nous sommes si rarement rencontrés, une première fois à Paris il y a des décennies, et ce fut pour moi la révélation (« cet homme est un immense poète-penseur qui sait tout, me disai-je aussitôt, quel est le sécret qu’il détient ? »), une autre fois il y a quelques mois à São Paulo, au cours d’une soirée bénie, chez Leyla Perrone-Moisés. Depuis décembre, je suis plongé dans les nouveaux chefs-d’œuvre que j’ai rapportés avec moi, en particulier Bere’Shith, a cena da origem– où entre tant d’autres trésors, je retrouve les mots qui décriraient le mieux, peut-être, la forme du génie haroldodecamposien dans sa fulgurance poético-pensante : O palimpsesto proliferante, Hibridização generalizada, Intertextualidade, Um multicanto paralelo et pour citer deux autres grands amis : saber com sabor. Deux fois seulement, c’est-à-dire que je crois n’avoir parlé que deux fois avec lui, littéralement, et pourtant, tout aussi littéralement, l’entretien est sans fin, et pourtant Haroldo est un intime, dès lors que j’apprends à le lire, et pourtant j’ai encore tant à apprendre de lui, en tant de langues, à commencer par la sienne, l’hébreu et quelques autres, et pourtant je sais déjà d’un savoir absolu, intemporel, définitif, inaltérable, indubitable, que je peux penser à lui,
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CET HOMME EST UN IMMENSE POÈTE-PENSEUR QUI SAIT TOUT, ME ETÈOP-RUESNEP DISAI-JE AUSSITÔT, LEUQ QUEL EST LE SÉCRET LI’UQ QU’IL DÉTIENT ? en permanence, comme à un de ces rares grands-amis-admirables que je n’aurai jamais rencontrés assez souvent, dont j’ai tant reçu mais dont je n’ai pas su assez recevoir, à qui je n’ai pas assez dit, manifesté, laissé savoir mon admiration et ma reconnaissance. Et pourtant, tout ce qui a pu signifier la loi, le désir aussi, l’urgence,
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mais l’urgence la plus aventureuse et la plus audacieuse pour moi, dans l’ordre de la pensée, de l’écriture, de la poésie – « unique source » – dans l’horizon de la littérature, et avant tout dans l’intimité de la langue des langues, chaque fois tant de langues dans toute langue, je sais que Haroldo y aura eu accès comme moi avant moi, mieux que moi. C’est-à-dire qu’il m’attendait pourtant, déjà, de l’autre côté, arrivé avant moi, le premier, sur l’autre rive. Je rêve donc à notre prochaine rencontre, j’attends la prochaine fois, j’attends de le lire encore, en ce temps, ici bas, mais en sachant déjà qu’il y faudra pourtant une autre vie. C’est-à-dire qu’il faudra des siècles pour mesurer ce que ce siècle doit à cette œuvre unique : « unique source » d’avoir signé un corpus poétique et théorique original tout en fécondant pourtant, volant chaque fois d’une langue à l’autre, une sorte de traduction inflexible et adorante, génératrice et généreuse, c’est-à-dire qui se déborde pourtant elle-même, penchant simultanément, avant de se poser sur la piste d’écriture, sur le sol du poème, pour ne renoncer à rien (ne renoncer à rien, c’est le génie de l’inconscient et l’inconscient du génie, l’unique source libidinale de toute pensée poétique), à la fois du côté de la mondialité et pourtant du côté de la plus irréductible singularité de l’idiome. On a toujours envie d’être du côté de chez Haroldo, parce qu’il y en a plus d’un, envie de demeurer à son côté c’est-à-dire à ses côtés, si utopique chaque fois que cela demeure. Entre ces deux vies, c’est-à-dire de tous ces côtés à la fois, pourtant, je le salue, aujourd’hui, à cette date. Je n’ai pas la force d’écrire longuement, je le fais entre deux voyages, entre deux continents, et j’en demande pardon à tous, à Haroldo pour commencer. Je ne voulais pas manquer aussi ce rendez-vous de l’amitié mais je prie pourtant tous les dieux à la fois pour qu’il y en ait beaucoup d’autres, c’est-à-dire beaucoup d’autres fois, d’un côté ou d’un autre, sur une côte ou sur une autre.
25 mai 1996
CADA VEZ, ISTO É, E NO ENTANTO, HAROLDO... SEUQCAJ JACQUES ADIRRED DERRIDA Cada vez, isto é, frequentemente, cada vez que penso na brevidade da vida (“como a vida terá sido curta”, eis infelizmente as palavras de meu suspiro preferido), isto é, cada vez que penso em todas as figuras da finitude, isto é, em todas as figuras do que terá me faltado no tempo, isto é, no espaço, então cada vez eu conto aqueles e aquelas que denomino pomposamente mas humildemente meus grandes-amigos-admiráveis, minhas grandes-amigas-admiráveis, quer dizer que lamento então cada vez a raridade de nossos encontros, passados ou por vir, isto é, incalculavelmente, para além de toda aritmética, pois essas grandes pessoas de todas as idades são tão singulares, isto é, únicas nelas mesmas e para mim, eu conto sem contar o tempo que resta, cada vez conto as vezes que restam, quer dizer que conto sem contar nos dedos, “fora de antigos cálculos/ onde a manobra com a idade olvidada...”. Um pensamento do dedo, não d’“a mão crispada”, eu nunca soube dissociá-lo de um lance de dados. Quando verei novamente Haroldo de Campos? Nós nos encontramos tão raramente, uma primeira vez em Paris décadas atrás, e
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Tradução de Haroldo de Campos para o trecho “hors d’anciens calculs/ oú la manœuvre avec l’âge oubliée”, do poema Um lance de dados [Un coup de dés], de Stéphane Mallarmé. (N. do T.)
“a mão crispada” [“la main crispé] e, no parágrafo seguinte, “o segredo que guarda” [“le sécret qu’il détient”] são as traduções haroldianas para tais fragmentos do mesmo poema. (N. do T.)
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Tradução haroldiana para a expressão “unique source”, com a qual se encerra o Préface de Mallarmé a Un coup de dés. (N. do T.)
isso foi para mim a revelação (“este homem é um imenso poeta-pensador que sabe tudo, logo me disse, qual é o segredo que guarda?”), uma outra vez há alguns meses em São Paulo, durante uma agradável noite na casa de Leyla Perrone-Moisés. Desde dezembro, estou mergulhado nas novas obras-primas que trouxe comigo, particularmente Bere’Shith, a cena da origem – onde, entre tantos outros tesouros, encontro as palavras que porventura melhor descrevam a forma do gênio haroldodecamposiano em sua fulguração poético-pensante: O palimpsesto proliferante, Hibridização generalizada, Intertextualidade, Um multicanto paralelo e para citar dois outros grandes amigos: saber com sabor sabor. Duas vezes apenas, isto é, creio ter falado com ele duas vezes apenas, literalmente, e no entanto, também literalmente, o encontro é sem fim, e no entanto Haroldo é um íntimo, desde que eu aprenda a lê-lo, e no entanto ainda tenho tanto a aprender dele, em tantas línguas, a começar pela sua, o hebraico e algumas outras, e no entanto já sei de um saber absoluto, intemporal, definitivo, inalterável, indubitável que posso pensar nele, continuamente, como num desses raros grandes-amigos-admiráveis que nunca terei encontrado o bastante, de quem tanto recebi mas de quem não soube receber o bastante, a quem não disse, manifestei, deixei intuir o bastante minha admiração e meu reconhecimento. E no entanto, tudo que pôde significar a lei, o desejo também, a urgência, mas a urgência mais aventurosa e mais audaciosa para mim, no âmbito do pensamento, da escritura, da poesia – “única fonte” –, no horizonte da literatura, e antes de mais nada na intimidade da língua das línguas, cada vez tantas línguas em cada língua, sei que a tudo isso Haroldo terá tido acesso como eu antes de mim, melhor que eu. Quer dizer, contudo, que ele já me esperava do outro lado, chegado antes de mim, primeiro, à outra margem. Eu sonho, pois, com nosso próximo encontro, espero a próxima vez, espero lê-lo ainda, neste tempo, aqui embaixo, mas já sabendo que no entanto será necessária uma outra vida. Isto é, serão necessários séculos para mensurar o que este século deve a essa obra única: “fonte única” de ter assinado um corpus poético e teórico original que no entanto não deixa de fecundar, recolhendo sempre de uma língua a outra, uma sorte de tradução inflexível e adorante, geradora e generosa, entretanto que transborda a ela mesma, pendendo si-
multaneamente, antes de se colocar no encalço da escritura, sobre o solo do poema, para não renunciar a nada (não renunciar a nada, eis o gênio do inconsciente e o inconsciente do gênio, a única fonte libidinal de todo pensamento poético), a um só tempo ao lado da mundialidade e no entanto ao lado da mais irredutível singularidade do idioma. Sempre desejamos estar no caminho de Haroldo, pois há mais de um nele, desejo de caminhar a seu lado, isto é, a seus lados, tão utópico cada vez que ao lado há caminho. Entre essas duas vidas, isto é, de todos esses lados ao mesmo tempo, contudo, eu o cumprimento, hoje, nesta data. Não tenho o vigor para escrever longamente, o faço entre duas viagens, entre dois continentes, e peço perdão por isso a todos, a começar por Haroldo. Tampouco queria faltar a esse encontro da amizade, mas peço no entanto a todos os deuses ao mesmo tempo para que haja muitos outros encontros, isto é, muitas outras vezes, de um lado ou de outro, desta ou da outra margem.
25 de maio de 1996
Henrique Amaral é membro da Cisma e graduando em Letras pela USP.
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Jacques Derrida
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CAMPOS
DEPOIMENTO JOÃO CABRAL DE MELO NETO
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Jo達o Cabral de Melo Neto
INSTANTÁNEAS OIVATCO ZAP OCTAVIO PAZ Al poeta admirable y al amigo querido Haroldo de Campos
Aparecen, desaparecen, vuelven, pían entre las ramas del árbol de los nervios, picotean horas ya maduras — ni pájaros ni ideas: reminiscencias, anunciaciones; cometas — sensaciones, pasos del viento sobre las ascuas del otoño, centelleos en el tallo de la corriente eléctrica: sorpresa, rosa súbita; caracola abandonada en la playa de la memoria, caracola que habla sola, copa de espuma de piedra, alcoba del océano, grito petrificado; lenta rotación de países, incendios nómadas, parálisis repentina de un desierto de vidrio, transparencias pérfidas, inmensidades que arden y se apagan en un cerrar de ojos; la sangre fluye entre altas yerbas de menta y colinas de sal, la caballería de las sombras acampa en la orillas de la luna, redoble de tambores en el arenal bajo un planeta de hueso; melancolía de una tuerca oxidada, coronan a un escarabajo rey de una taza rota, mariposas en vela sobre un fuselaje dormido, girar de una polea sonámbula: premoniciones y rememoraciones;
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lluvia ligera sobre los párpados del alba, lluvia tenaz sobre el verano devastado, lluvia tenue sobre la ventana de la convalesciente, lluvia sobre el confeti de la fiesta, lluvia de pies leves y sonrisa triste; calavera de cuarzo sobre la mesa del insomnio, cavilaciones de madrugada, huesos roídos, tijeras y taladros, agujas y navajas, pensamiento: pasadizo de ecos; discurso sin palabras, música más vista que oída, más pensada que vista, música sobre tallos de silencio, corola de claridades, llama húmeda; enjambre de reflejos sobre la página, ayer y hoy confundidos, lo visto enlazado a lo entrevisto, invenciones de la memoria, lagunas de la razón; encuentros, despedidas, fantasmas del ojo, encarnaciones del tacto, presencias no llamadas, semillas del tiempo: destiempos.
Octavio Paz
INSTANTÂNEAS OCTAVIO ZAP OIVATCO PAZ Ao poeta admirável e ao querido amigo Haroldo de Campos
Aparecem, desaparecem, voltam, piam entre os galhos da árvore dos nervos, bicam horas já maduras — nem pássaros nem idéias: reminiscências, anunciações; cometas — sensações, passos do vento sobre as áscuas do outono, cintilação no caule da corrente elétrica: surpresa, rosa súbita; búzio abandonado na praia da memória, búzio que fala sozinho, taça de espuma de pedra, alcova do oceano, grito petrificado; lenta rotação de países, incêndios nômades, paralisia repentina de um deserto de vidro, transparências pérfidas, imensidades que ardem e se apagam num piscar de olhos; o sangue flui entre altas ervas de hortelã e colinas de sal, a cavalaria das sombras acampa nas margens da lua, redobre de tambores no areal sob um planeta de osso; melancolia de uma porca enferrujada, coroam a um besouro rei de uma taça rota, borboletas insones sobre uma fuselagem dormida, girar de uma roldana sonâmbula: premonições e recordações;
chuva rápida sobre as pálpebras do amanhecer, chuva tenaz sobre o verão devastado, chuva tênue sobre a janela da convalescente, chuva sobre o confete da festa, chuva de pés leves e sorriso triste; caveira de quartzo sobre a mesa da insônia, cismas de madrugada, ossos roídos, tesouras e furadeiras, agulhas e navalhas, pensamento: passadiço de ecos; discurso sem palavras, música mais vista que ouvida, mais pensada que vista, música sobre caules de silêncio, corola de claridades, chama úmida; enxame de reflexos sobre a página, ontem e hoje confundidos, o visto enlaçado ao entrevisto, invenções da memória, lagoas da razão; encontros, despedidas, fantasmas do olho, encarnações do tato, presenças não chamadas, sementes de tempo: destempos.
Eliana Teruel – formação como atriz pela EAD – Escola de Arte Dramática da USP, atualmente cursa o quinto ano de Letras na USP. Traduziu as peças A razão das coisas de Quim Monzó e O porco de Raymond Cousse. Autora da peça Fazer arte, sobre a história da arte.
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HAROLDO SIEMPRE TRAE REGALOS GUILLERMO OMRELLIUG CABRERA ARERBAC ETNAFNI INFANTE Haroldo de Campos llegó la primera vez a mi casa de Gloucester Road y la convirtió en Glowster Road: la calle que fulgía, refulgía com su resplandor. A primera vista era grande, gordo, barbado como una versión de un Santa Claus del Sur. Su lengua era lusa, ilusa, lúdica. Hablamos. Mejor dicho habló él con su torrente español perfecto pero com un cierto acento, un dejo brasileño que lo hacía encantador, encantatorio. Hablamos de otros autores que vivían más o menos en Londres y aun de otro que vivía en Barcelona. Me dijo: “No me interesan. Un best-seller no tiene sentido para mí si hablamos de literatura. Ni Cervantes ni Joyce ni Machado fueron best-sellers, pero son la literatura. Por otra parte no me interesa la literatura narrativa. Eso hay que dejarlo al cine”. ¿Tengo que decir que estuvimos de acuerdo, un acuerdo que dura todavía? Era 1968 y nos vimos varias veces: en Londres, en Nueva York, en São Paulo.
En una ocasión – ¿o fueron dos ocasiones? – Haroldo se rompió una pierna y con ella enyesada parecía que Santa Claus se había olvidado de limpiar la nieve de uno de sus miembros. Vivió entonces en Chelsea, corazón del Swinging London en una casa alquilada por Caetano Veloso y Gilberto Gil junto con cuarenta músicos más. Haroldo, central, contaba cuentos, leía poemas, recitaba versos y toda aquella patrulla de la aurora (nadie se acostaba allí antes de las tres de la mañana. ¿Cómo sabían qué hora era? Muy simple: Haroldo cantaba el vals “A las tres de la mañana” que ningún otro sabia) y dormían hasta tarde. Haroldo se convirtió en uno de esos bellos durmientes hasta tarde y uno que otro monólogo suyo pasó a ser canción. Nunca lo vi más feliz que entre aquellos muchachos: ellos cantaban, él cantaba. Una vez en Nueva York (¿o fué en Yale, universidad de la que parecía tener la llave? Nueva York, Manhattan, la Gran Manzana, ¿qué mas da?) vi que Haroldo había ganado tantas libras sin perder su jovialidad que Emir Monegal, su amigo, mi amigo, nuestro amigo estaba preocupado por su salud. No la suya, que debió haberle preocupado más, porque en poco tiempo moría de cáncer del colon. Mientras que Haroldo, como Johnny Walker, sigue tan campante. Para demostrarlo, cuando fui a São Paulo invitado por la Folha, Haroldo organizó un concierto con Caetano y Gilberto cantando sus canciones, mientras yo leía uno o dos fragmentos difícilmente legibles pero fácilmente olvidables. Más de dos mil personas, casi todos jóvenes, vinieron a oír a – Gilberto y Caetano. Lo que demuestra el poder de convocatoria que tiene Haroldo. No en balde su nombre es Haroldo, que en el Norse antiguo quiere decir “poder armado”. Este es el nombre favorito de Borges, recordando al rey sajón que combatió contra Guillermo, el Conquistador – para perder la batalla de Hastings. “Allí, en un convento”, le recordé a Haroldo, “estudiaron mis hijas Ana y Carola”. Para hablar un inglés que es mezcla de anglo y sajón com mucho del francés que trajo consigo el rey Guillermo al desembarcar. Haroldo de Campos domina todos esos idiomas pero además domina el lenguaje, como lo ha probado en sus poemas donde no sólo la palabra sino hasta la letra significa poesía. Sus traduciones (de Joyce, del Joyce de la poesía: Mallarmé) le han permitido conversar (y convertir) con los autores más abstrusos en verso abstracto.
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Por otra parte (la mejor parte) no conozco un mejor animador de la cultura en Brasil y fuera de. Solo su hermano Augusto, un caballero paulino, estĂĄ a su altura en Sudamerica, que es como decir AmĂŠrica, que es decir un nuevo continente para la literatura. Haroldo de Campos concibiĂł su Galaxias de miles de estrellas. Ahora, en mi rima, quiero que se le celebre como una de ellas.
Londres, mayo de 1996
Guillermo Cabrera Infante
HAROLDO SEMPRE TRAZ LEMBRANÇAS GUILLERMO OMRELLIUG ARERBAC CABRERA ETNAFNI INFANTE Haroldo de Campos chegou a primeira vez em minha casa de Gloucester Road e a transformou em Glowster Road: a rua que fulgia, refulgia com seu resplendor. À primeira vista era grande, gordo, barbado como uma versão de um Papai Noel do Sul. Sua língua era lusa, ilusa, lúdica. Conversamos. Melhor dizendo, ele que falou com seu fluente espanhol perfeito mas com um certo sotaque, um quê brasileiro que o tornava encantador, encantatório. Conversamos sobre outros autores que viviam mais ou menos em Londres e também de um outro que vivia em Barcelona. Disse-me: “Não me interessam. Um best-seller não tem sentido para mim se falamos de literatura. Nem Cervantes nem Joyce nem Machado foram best-sellers, mas são a literatura. Por outro lado, não me interessa a literatura narrativa. Isso fica por conta do cinema”. Preciso dizer que concordamos, e que ainda hoje sobrevive a concordância? Era 1968 e nos vimos
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A versão brasileira da valsa “A las tres de la mañana”, de Julián Rebledo, recebeu o título de “Ao alvorecer”, com gravação de Jaime Redondo. (N. do T.)
várias vezes: em Londres, em Nova York, em São Paulo. Em uma ocasião – ou foram duas ocasiões? – Haroldo quebrou uma perna e com ela engessada parecia que Papai Noel tinha esquecido de limpar a neve de um de seus membros. Morou então em Chelsea, coração do Swinging London em uma casa alugada por Caetano Veloso e Gilberto Gil, junto com quarenta outros músicos. Haroldo, central, contava contos, lia poemas, recitava versos e toda aquela patrulha da aurora (ninguém ali dormia antes do alvorecer alvorecer. E como sabiam que horas eram? Muito simples: Haroldo cantava a valsa Ao alvorecer que mais ninguém sabia) e dormiam até tarde. Haroldo se tornou um desses belos adormecidos até tarde e um ou outro de seus monólogos passou a ser canção. Nunca o vi mais feliz que entre aqueles rapazes: eles cantavam, ele contava. Uma vez, em Nova York (ou foi em Yale, universidade da qual parecia ter a chave? Nova York, Manhattan, a Grande Maçã, que diferença faz?), vi que Haroldo tinha ganhado tanto peso sem perder sua jovialidade que Emir Monegal, seu amigo, meu amigo, nosso
NINGUÉM ALI AIMROD DORMIA ANTES DO ALVORECER. E COMO SABIAM QUE HORAS ERAM? OTIUM EUQ MUITO SIMPLES: HAROLDO CANTAVA AVATNAC A VALSA AO ALVORECER QUE MAIS MÉUGNIN SABIA NINGUÉM amigo estava preocupado com sua saúde. Não a dele mesmo, com a qual deveria ter se preocupado mais, porque em pouco tempo morreria de câncer de cólon. Enquanto Haroldo, como Johnny Walker, segue tão satisfeito. Para exemplificar, quando fui a São Paulo convidado pela Folha, Haroldo organizou um show com Caetano e Gilberto cantando suas canções, enquanto eu lia um ou dois fragmentos difíceis de ler mas
fáceis de esquecer. Mais de duas mil pessoas, quase todas jovens, vieram ouvir – Gilberto e Caetano. O que demonstra o poder de convocatória que tem Haroldo. Não à toa seu nome é Haroldo, que em nórdico arcaico quer dizer “poder armado”. Esse é o nome favorito de Borges, remetendo-o ao rei saxão que combateu Guilherme, o Conquistador – para perder a batalha de Hastings. “Ali, em um convento”, lembrei a Haroldo, “estudaram minhas filhas Ana e Carola”. Para falar um inglês que é mistura de anglo e saxão com muito do francês que trouxe consigo o rei Guilherme ao desembarcar. Haroldo de Campos domina todos esses idiomas mas, além disso, domina a linguagem, como provou em seus poemas em que não apenas a palavra mas também a letra significa poesia. Suas traduções (de Joyce, do Joyce da poesia: Mallarmé), o permitiram conversar (e converter) com os autores mais recônditos em verso abstrato. Por outro lado (o melhor lado), não conheço um melhor agitador de cultura no Brasil e fora dele. Somente seu irmão Augusto, um cavaleiro paulino, está à sua altura na América do Sul, que é como dizer América, que é dizer um novo continente para a literatura. Haroldo de Campos concebeu suas Galáxias a partir de milhares de celestiais esferas. Agora, para a minha rima, quero que se celebre como uma delas.
Londres, maio de 1996
Guilherme Tauil é graduando em Letras pela USP. Desenvolveu iniciação científica pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada acerca das crônicas de Rubem Braga e mantém um acervo digital sobre a música de Chico Buarque.
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EDITORIAL PRIMEIRO PUC CUP Poeta, tradutor, ensaísta e crítico, Haroldo de Campos tem sido uma das presenças mais marcantes no cenário literário e cultural brasileiro das últimas quatro décadas. Professor emérito da PUC/ SP, foi um dos fundadores do programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, onde lecionou até aposentar-se, em 1989. Em 1996, ano em que a PUC comemorou seu 50º aniversário, tivemos a grata satisfação de prestar essa homenagem ao poeta. Na noite de 25 de setembro, em cerimônia especial no Teatro da Universidade (TUCA), foram lidos os textos aqui reunidos; e o professor foi presenteado com uma gravura de Tomie Ohtake. Durante a semana seguinte, foi realizada uma exposição dos livros de Haroldo de Campos na Biblioteca Central da PUC/SP, ocasião em que foram exibidos também dois vídeos sobre a sua obra, dirigidos por Cristina Fonseca, e fotografias de Bob Wolfenson. Outra gravura de Tomie Ohtake foi posteriormente reunida com os textos numa edição especial, com apenas trinta exemplares. A presente edição vem somar-se, agora, à série “Autores Brasileiros”, sob a coordenação da Presidência da Comissão Geral de Pós-Graduação. Composta por dois mil exemplares, fora de comércio, destina-se a professores, alunos, funcionários e amigos da PUC/SP. A ligação duradoura do professor Haroldo de Campos com a universidade é para nós um motivo de orgulho. A convivência com ele permanece, hoje como sempre, uma educação, no modelo mais elevado a que pode aspirar uma universidade.
ÚNICA” D E CORPUS SUPROC ORIGINA OÃN DEI NÃO RECOLH ODNEHL DE UMA UMA SO