cisma nĂşmero 7: onde a literatura nĂŁo toca
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cisma ISSN 2238-7013
ilustração da capa Gil Machado, 2015
idealizadores da cisma Sofia Nestrovski Tiago Bentivoglio
Agradecemos à Galeria Vermelho e a Marilá Dardot pela permissão do uso das imagens das obras Alices e Cores, Nomes.
2015, ano III, número 7
nota Até o momento da publicação, não conseguimos entrar em contato com os detentores dos direitos de publicação do texto de Kathy Acker. Se alguém possuir informações a esse respeito, pedimos gentilmente que nos informe.
a cisma é Ana Luísa Rodrigues Antonio Castro Bernardo Ceccantini Caroline Micaelia Clarissa Bongiovanni Lopes Clarissa Xavier Pereira Danilo Horă Fernanda Morse Giovana Bardi Guilherme Zani Henrique Amaral Isabel Ferreira Isabela Benassi Júlia Knaipp Maria Duque Milena Varallo Paulo Martins Filho Pedro Köberle Rodrigo Tadeu Sofia Nestrovski Vinícius Hidemi projeto gráfico e diagramação Lucas Blat
Esta versão foi adaptada para leitura online. Os seguintes textos, publicados na versão impressa, tiveram que ser removidos, por questões de direitos autorais: Tradução de dois poemas de Ingeborg Bachmann, por Matheus Guménin Governo do Estado, Secretaria da Cultura, apresentam a revista cisma contato revistacisma@gmail.com www.facebook.com/revistacisma www.revistacisma.com www.revistas.fflch.usp.br/cisma
editorial Caso recorrente na cisma, o tema deste sétimo número parte de uma negativa – Onde a literatura não toca. Resultado não do desejo de ser sempre “do contra” – até porque a formulação assume e mesmo pressupõe a afirmativa, isto é, os muitos lugares que, sim, a literatura toca –, mas da crença, já arraigada em nós, de que é preciso resistir aos hábitos, posicionar-se contra eles. Com o passar do tempo, torna-se cada vez mais claro que “cismar” é, mais do que refletir, assumir certo comportamento, certa postura em relação à reflexão. Nada mais adequado para uma revista que se propõe como um espaço aberto, rotativo, de fala e escuta: as chamadas de textos reciclam nossos objetos de leitura, assim como a entrada e saída de membros, os modos de lê-los. E é dessa desautomatização dos sentidos e do pensamento que o tema fala, na medida em que propõe uma recusa do imediatamente tocante, seja este a comoção fácil do objeto (“A literatura é tocante...”) ou o método de aproximação cautelosa (“No tocante à literatura...”). A proposição está lançada e os textos devem falar por si sós, elaborando e discutindo cada um a seu modo o tema, inclusive com maior ou menor adesão a ele. Antes de lhes passar a palavra, porém, vale a pena destacar algumas afinidades nascidas de seu contato, já que eles ganham muito ao serem lidos em conjunto. Uma delas parece estar na ênfase sobre o “onde”, o(s) lugar(es) de onde a literatura não emana e/ou que ela não pode representar. Aqui são muito variadas as possibilidades, passando pelo não lugar (utópico?) da reificação de Um homem: Klaus Klump, romance de Gonçalo Tavares, tanto quanto pela crítica do alcance mesmo da letra, nas proposições de um novo horizonte para uma literatura “em campo ampliado”, avizinhada de outras mídias e gêneros artísticos. Claro que nesse horizonte está – assim como no da cisma – a resistência à instituição literária, no que esta abriga de massificador, de jargão artístico e crítico, de linguagem comum. É 5
preciso que contra ela se insurja, como no texto de Kathy Acker aqui traduzido, uma linguagem do corpo, reinventando o toque possível. Mesmo que este esteja nos músculos de uma bodybuilder. Ou nas mãos de um cego, metáfora para o exercício “traduzante”, tateante por princípio, de propor novas versões – a contrapelo, isto é, levando em conta as já existentes em português – de clássicos como o estudo de Walter Benjamin sobre Proust. Nascidos de lugares diversos, seja dentre os autores ou no corpo editorial, esses posicionamentos delineiam o intervalo em que se move esta cisma: entre o tato e o toque, a fala e a troca, a palavra e o ato. E é justamente a ele que desejamos convidar nosso leitor, para que, a partir dele, entre, leia, manuseie.
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Entre a máquina e o bicho: as relações de domínio em Klaus Klump Daniel Souza Silva
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Contra a linguagem comum: a linguagem do corpo de Kathy Acker, traduzido por Fernanda Morse e Barbara Mastrobuono
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Um quadro para ser lido, um livro para ser visto Caroline Freitas
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Traduzir com as mãos de um cego Patrick Bange
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Escrita intermidiática: a poesia em campo ampliado Sara Sabino
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colaboradores
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Entre a máquina e o bicho: As relações de domínio em Klaus Klump Daniel Souza Silva Criador de múltiplos projetos literários inacabados e em progresso, o romancista angolano Gonçalo M. Tavares começou a sua série O reino com o livro Um homem: Klaus Klump (2003), que trata, numa narrativa fragmentária e veloz, do estado de exceção criado pela ocupação bélica e seus reflexos na vida de Klaus e de outros personagens a ele ligados. Este artigo quer, no bojo de algumas tendências contemporâneas, discutir o lugar ocupado pelo ser humano na lógica de dominação que o narrador concebe, bem como analisar o foco narrativo presente e um episódio central do enredo, estabelecendo conexões intertextuais com a literatura voltada à guerra. Em detrimento do enredo, as passagens selecionadas obedecem a um critério de exemplaridade dos aspectos identificados. A concatenação dos fatos e a dimensão singular e funcional dos personagens próprios ao gênero não são levados em conta. Busca-se evidenciar como fator mais candente o enquadramento das figuras na hierarquia que aqui se delineia e a maneira como a narratividade retrata essa estrutura. O romance é redigido numa linguagem fragmentária, com um texto partido em trechos de tamanho irregular. A obra se constitui de uma epígrafe inicial seguida de trinta e seis capítulos com trechos trincados em fragmentos por sua vez des9
feitos nas imagens nem sempre coesas entre si. Os cinco primeiros capítulos introduzem a pesada matéria de que trata, separados da nomeada Parte II (a primeira não leva título), com os trinta e um restantes. A epígrafe é de Uma viagem à Índia, outra obra de Gonçalo, que procura dialogar com Camões e Joyce numa busca pelo caráter “épico” (ou anti-épico) do homem em torno da melancolia. “Nada de novo” postula a voz de uma narração não mais possível no sentido da grande literatura do passado, traçando o desenho de uma sociedade distópica consumida pelo dinheiro “criado nas fábricas”, pela industrialização que tinge de preto “meias que de manhã/ Eram brancas” (p. 5) e pela imoralidade da distração – ou alienação – que passa de pai para filho a pornografia como se passavam canções de ninar. O estilhaçamento do livro em divisões textuais com pedaços de tamanho irregular, os quais nem sempre se encaixam uns aos outros, informa algo sobre o que tange à literatura tavareana, nos trilhos contemporâneos do “sujeito dissolvido” e seus limites inenarráveis. Atravessando o clássico e o moderno por meio da estética do fragmento, o autor promove uma narração descomprometida com tomadas de posições, alternando focos narrativos de maneira a anular a presença de um ponto de vista hegemônico, como se verá adiante. Por ora, o título do livro parece responder a um clássico da literatura memorialista de guerra. É isto um homem? (Se questo è un Uomo) é um romance testemunhal do químico e autor italiano que conta sua passagem pelo campo de concentração de Auschwitz, de onde conseguiu sair vivo. De 1947, o livro tem alguns versos introdutórios baseados na liturgia hebraica: Considerem se isso é um homem Que trabalha no lodo Que não conhece paz Que luta por meio pão Que morre por um sim ou por um não. 10
1 Trad. livre. No original: “Considerate se questo è un uomo/ Che lavora nel fango/ Che non conosce pace/ Che lotta per mezzo pane/ Che muore per un sì o per un no”.
O questionamento ecoa nos retratos cruéis da literatura ambientada na Segunda Guerra Mundial, colocando em cheque os valores construídos do ser humano frente ao estado de exceção da “guerra total”. Mais interessado em responder que em indagar, o autor estabelece que Klaus é um homem, conforme o título informa categoricamente. Um homem narrado após a experiência aniquiladora dos campos de concentração e de toda a revisão de temas e formas do pós-guerra. Gonçalo apresenta, na obra, algo do que constituiu a metamorfose ficcional de um homem frente à guerra e seu maquinário repressivo. A empreitada pelo “nível humano” da exploração (que abarca outros níveis, como se pretende demonstrar) se opõe ao romance que se segue a Um homem: Klaus Klump na série O reino: A máquina de Joseph Walser, que conta a história do homem que nega o drama humano e não é modificado pelo estado de exceção provocado pela guerra, mantendo-se incólume. Fundamental autor do teatro alemão depois de Brecht e certa referência literária de Gonçalo (descrito na sua famosa Biblioteca), Heiner Müller (des)constrói a crise do seu drama, fortemente político, com uma técnica muito próxima do estilo antinarrativo aqui presente. Mais cômicos que trágicos pela posição rebaixada, os heróis de Tavares e de Müller se encontram no seu insucesso enquanto representantes de um valor qualquer que seja de uma classe ou mesmo de uma essência do homem. Em Hamlet-Máquina (Die Hamletmaschine, 1977), o herói shakespeariano dá lugar a uma Ofélia que, enquanto é terapeuticamente embrulhada, pragueja, viva, as reivindicações do passado na voz da Electra dos clássicos. É ela que toma o lugar do personagem “principal”, que abre a peça com um lapidar “Eu era Hamlet”. Do mesmo modo, a personagem tavareana do romance de guerra em crise parece girar sem lugar em meio aos eventos que o engolfam, que também não têm definição temporal ou local. Fala-se em país, em geografia, em nomes alemães e ingleses, focam-se instantes de um tempo em que a indústria tenha proporcionado tanques de guerra. O Joseph Walser do se11
gundo livro da série desperta a figura do escritor suíço-alemão das “mikrogrammes” (1924-1933), Robert Walser, que deu forma mínima aos seus escritos de difícil decifração durante o período entreguerras. O personagem tavareano tem uma relação ambivalente com a guerra: se a batalha o atinge, o faz só positivamente, por meio do decorrente avanço tecnológico que proporciona. Homem e máquina se opõem e se confrontam, quando em tempo de guerra, o que querem efetivamente é tomar um o lugar do outro. Um homem: Klaus Klump desenha uma estrutura piramidal de dominação calcada em três níveis: máquina, homem e animal (não-humano) confrontam-se numa relação de subordinação total deste último ao homem, e do homem à máquina: urge ao homem ser dominador e dominado, é neste lugar do meio que Gonçalo coloca o ser humano através da história de Klaus. O personagem, e não só este, reafirma no percurso do texto sua posição dominadora: tem como diversão o esmagamento de pequenos animais. A presença de um cavalo apodrecendo no meio da rua permeia toda a obra (além de aparecer no segundo volume d’O reino, já comentado), exibindo o estanque estado de horror e exposição da barbárie na decomposição de um animal largamente empregado, na história das civilizações, como instrumento de guerra: O cavalo apodrecido no meio da rua, coberto por milhares de moscas, não tinha vindo uma única vez no jornal. Aquela rua não lhes interessava: era estreita, os tanques dificilmente podiam ser felizes na rua que era agora centralmente ocupada pelos restos de um cavalo que apodrecia. A cabeça do cavalo está vazia, está mais pequena que a cabeça de um pássaro. A cabeça do cavalo é um balde preto, vazia por dentro. (p. 34) O animal reificado à potência de um balde vazio enfatiza a nulidade total dessa forma de vida perante o estado de exceção, enquanto a personificação eleva a figura dos tanques à situação 12
de seres que podem, eventualmente, “ser felizes”. A primeira imagem de um animal ocorre no trecho mais fragmentário, hermético, da obra, o início. Trata-se de um cão a ser arrancado do solo, pois “os animais não resistem como o mundo botânico”. Resistir a uma ventania poderosa? ao impacto de bombas? O narrador não dá muitas pistas, só deixa uma primeira exibição da fragilidade animal. Pouco depois, ele desvela o lugar do homem acima do bicho com outro exemplo, de outra espécie, numa cena de sadismo: Uma mulher extraordinária olha longamente para uma formiga. Uma formiga, um. Uma coisa estúpida e preta. Uma terra santa e preta que avança no mundo minúsculo, mais baixo que os nossos pés, há coisas mais baixas que os nossos pés, vês? Uma formiga que vai ser furada pela agulha neutra de uma mulher. De uma mulher magnífica. (p. 7) Na literatura soviética, o poeta Siérguei Iessiênin legou um poema cuja poderosa imagem central se conecta intertextualmente ao cavalo morto de Gonçalo. “Naves-Éguas”2, de 1919, traz na primeira estrofe a forte imagem de um cadáver de égua em decomposição:
2 Também traduzido como “Veleiros-Jumentas” em Bernardini, 2003, p. 214.
Quando o lobo ulula para a lua É porque as nuvens destroçaram o céu Ventres rasgados de éguas, Negras velas de corvos ao léu. Esta e outras imagens do poema teriam sido inspiradas pelas impressões que a Moscou de 1918 trouxera a Iessiênin. O amigo, poeta e memorialista Anatoli Marienhof relata que: Os cavalos caíam pelas ruas, morriam semeando pelas calçadas suas carcaças. [...] Diante da agência do correio jaziam duas carcaças inchadas. Uma negra, sem rabo, e uma branca, com os 13
dentes arreganhados. Na branca estavam pousadas duas gralhas que atacavam de bicos a gelatina do olho nas órbitas vazias. (Bernardini, “Giuseppe Ungaretti e a tradução de Seguei Essiênin”, p. 213) O veleiro que navega imóvel rumo à própria destruição corporal constitui-se em uma belíssima e mórbida imagem do porvir dos acontecimentos num estado de exceção – em Tavares e em Iessiênin. Se no russo o cadáver se desdobra em símbolo de uma plástica representação da guerra civil que resultou na vitória bolchevique, na guerra sem referências claras de Tavares a imagem reafirma a posição instrumental, em consonância com o mundo vegetal (“semeam-se” as carcaças, como colocara Marienhof) dos animais de guerra, dos cachorros, dos insetos. A putrefação do cavalo no nível mais baixo da ordem mantém-se no plano de fundo dos acontecimentos ao longo da obra, como um ruído maldito, um fedor que não se pode desinfetar. A permanência do dejeto no plano temporal da narrativa traz uma concepção degradante da sucessão de fatos, já que a decomposição corrói e o fato de não haver uma localização mais precisa que os nomes alemães e que as invenções da indústria bélica citadas torna a representação do tempo universalista. A guerra liquida a vida dos inferiores para que os superiores possam navegar sobre eles. Um verso mais adiante do poema de Iessiênin assinala que o “Vento de outubro corrói a floresta”. Os combates da revolução (de outubro, do proletariado russo) não podem ter harmonia com a natureza se dependem da máquina. Resta ao poeta (e, por metonímia, à literatura) tentar estabelecer o vínculo, pois que “Veio para beijar as vacas”. Não se pode mais, no entanto, falar em uma literatura que aponte para este vínculo perdido. A narrativa em Tavares é composta de personagens sem empatia, apresentados como objetos movidos por um determinismo que se justifica num foco narrativo peculiar às histórias de guerra, permeadas de memoria14
lismo e referencialidade. Sem referência histórica e sem a presença de um narrador que conjure a vivência da guerra ou que harmonize os olhares (que não chegam a ser vozes) ao qual o romance dá lugar, o foco narrativo se define pela ausência. O narrador continua sua desventura pelas relações de domínio, relatando a chegada dos soldados – dos “homens mais fortes” que violam as “mulheres que ficaram atrás”. O órgão que o alça na sociedade patriarcal é ressaltado, vermelho como o seu rosto: "O homem tem o rosto ainda mais vermelho e o pénis também vermelho. Matéria vermelha fornica longamente uma mulher fraca" (p. 9). É a força quem manda quando a ordem está perturbada pela ocupação da região pelos tanques, como ocorre no subnível dos animais não-humanos e da natureza, segundo o narrador: “Os animais sabem a lei: a força, a força; a força. Quem é fraco cai e faz o que o forte quer. […] não há a mais breve compaixão entre os animais e a água, o mar engoliu milhares e milhares de cães desde o início do mundo. […] A natureza avança com o que é forte” (p. 12). Mais adiante, temos o primeiro acesso a um vício do protagonista: “Klaus gostava de apanhar borboletas com a mão direita e apertar com força até sair por entre os dedos uma matéria colorida. É o único animal que até esmagado é estético” (pp. 25-26). No ensaio-aula O animal que logo sou, apresentado em 1997, o filósofo francês Jacques Derrida reflete sobre a alteridade absoluta que identifica ao se perceber nu sob o olhar de um gato. Inicialmente, busca despojar o animal de toda a carga simbólica dos gatos de Baudelaire, Rilke e de toda a literatura propensa à vasta tradição simbólica e fazer considerações sobre a resposta que o bicho vem a oferecer com respeito aos seus gestos. Então, Derrida acusa na humanidade uma objetificação e uma generalização que marcaram a perspectiva antropocêntrica do homem com relação aos demais animais (que nunca tiveram especifici15
Gil Machado, 2015
dade), propondo-se a problematizá-la no campo filosófico. As “borboletas estéticas” de Klaus se inserem como símbolos dessa dominação, marcada por uma deliberada violência sem qualquer propriedade patética atrelada às suas vidas. Trata-se apenas de um provedor para a “matéria” colorida expelida em favor do prazer “estético” humano, tal qual a figura da mulher fraca, que serve à brutalidade masculina dos soldados. De volta ao início da obra, a personagem Johana tem um embate com uma máquina na qual deve colocar uma moeda para ouvir música. Recusa-se e discute o “preço: demasiado caro” (p. 8) com o balconista do bar. Na ordem capitalista, a máquina assume a posição dominante. A “pedra forte, pequena, mas densa” (p. 8) que é a moeda, o dinheiro, é o seu combustível. Então, os tanques invadem a cidade, com a revoltante imposição de suas músicas, pois “limpam a linguagem porque quando os tanques passam, os homens falam baixo” (p. 10). Klaus recomenda “que um homem durante a guerra deve ser surdo-mudo até ser possível. E ficar quieto” (p. 18). A questão da língua insere-se, ainda, como elemento de resistência. A certa altura, os homens dizem às irmãs que devem “defender a pronúncia como defendes a vagina” (p. 21). Lembre-se o episódio em que Ivor, o soldado, invade a casa de Johana e jura voltar um dia, que Johana não se esqueceria dele. Fala em outra língua, “língua que Johana era obrigada a perceber” (p. 21). Vulnerável, a moça sucumbe ao domínio linguístico dos invasores. A questão volta em diversas passagens, caracterizando a ocupação na guerra também pelo idioma como instância de poder: “Os lugares mudam de sons de acordo com as pessoas. Se há mais pessoas a falar outra língua em cima de um lugar esse lugar muda: são os sons que mais mudam um lugar” (p. 64). Também o som das máquinas e da natureza fornecem a situação do homem na guerra, quando Klaus se esforça para entender se o som de uma frase está “mais afastado do humano que o som do vento sobre as coisas, nas árvores, ou o som da água” (p. 86), fazendo uma reveladora associação do nível supe17
rior do maquinário de guerra com o plano religioso: Qual o sentido dos sons da natureza? Klaus sempre o quis perceber, mas nunca concluíra nada. […] Mas que som era aquele que saía das máquinas, se não era o do disforme da natureza nem uma frase. E se não era nem de perto nem de longe semelhante à mistura animal-homem dos gemidos dos amantes de que Klaus se recordava. Seriam então esses sons o que alguns designaram, durante a História, como sons místicos, sons que não são dos homens nem da terra? (pp. 86-87) O ambiente tomado pelos tanques é, também, colocado contra o espaço da natureza; mais que dominador do homem, ele se impõe nos passeios e os soldados ocupam todo o espaço, abolindo o lar humano: Na paisagem as máquinas substituíram os animais. As máquinas não deixam fezes nos passeios. Antigamente as mulheres enojavam-se com os excrementos que os cães deixavam no passeio. Hoje as mulheres enojam-se quando cinco soldados entram em casa e pegam nelas e as violam, um soldado e depois outro. (p. 33) A posição intermediária do homem entre máquina e vida na natureza, não se esquecendo, ainda, da submissão ainda maior das mulheres, se estabelece em conformidade com a implacável lei do mais forte pregada no primeiro capítulo: “foram os fracos que inventaram a injustiça para mais tarde poderem inventar a compaixão” (p. 7), pois “A vida em guerra só tem dois sentidos: com eles ou contra eles. Se não queres morrer, beija as botas do mais forte, é isto” (pp. 12-13). O narrador do livro oscila entre tentativas radicais de neutralidade e dissonantes focos narrativos, por vezes objetivos como filmadoras que se fundem na difícil coesão das câmeras, possibilitando experiências múltiplas de leitura. Tal efeito da nar18
ratividade carrega a ambiguidade dos episódios, levando o leitor a percorrer os caminhos do processo de escritura, a questionar o jogo lúdico de pontos de vista distantes: ora profundamente psicológicos, revelando pensamentos sugestivamente íntimos, ora neutros e restritos à contemplação física dos fatos em cena. Exemplar na exposição do potencial tavareano, com seu dinâmico foco narrativo, é a mais violenta passagem do livro (cap. 11), em que o protagonista se vê encarcerado com outros sete homens nus, que o estupram na cela. O capítulo começa com a imagem do pênis de Klaus sendo motivo de chacota para os demais presos. Surge um homem que seguirá babando na nuca de Klaus durante toda a cena. Com a sua masculinidade diminuída, temos acesso à trágica conclusão do personagem: “A civilização termina ali: os presos eram antigos, havia crimes de família, vivos metade loucos. Não havia remorsos. [...] nenhum percebia a sua saúde, o modo justificado como ele odiava” (p. 38). Em meio aos presos comuns, julgados perigosos, o personagem se recolhe a um canto, assustado. Detido político por um golpe da ardilosa personagem Herthe, sua percepção do espaço se emancipa: Klaus é atirado a um inferno dantesco habitado por quem está fora do tempo: “Não conheciam os tanques recentes, ou o cavalo hóspede que apodrecia há meses no centro de uma rua: os presos eram gente louca e velha que não abria os olhos” (p. 38). A cena tem prosseguimento com a reiteração dos assobios e canções infantis, referência sutil a um mundo atemporal que prescinde da razão que culmina na guerra. A enunciação sintética dos fatos desafia o leitor a criar o tempo percorrido, comparando-o dentro e fora da diegese, com a repetição dos fatos e consequente criação de uma temporalidade imprecisa porque psicológica e uma atmosfera de pavor associada aos sons e ao espaço exíguo: O homem de queixo com baba canta uma canção infantil e repete-a quinze vezes. Klaus está sozinho. O seu pénis foi motivo de 19
troça. Estavam todos nus: com ele oito homens nus na mesma cela e um deles a aproximar-se e a pôr baba na nuca de Klaus. Eram loucos. Um outro não parava de assobiar, virava as costas ao grupo principal. (p. 38) O uso dos verbos no presente do indicativo combinado ao abuso da parataxe traz o leitor à emergência do perigo, passando para um rápido e trágico pretérito perfeito, que evidencia o já predestinado fim do episódio, de modo que é inevitável a situação. O prevalecente imperfeito e o infinitivo interposto estendem a manutenção do tempo, intensificando o efeito de suspense do trecho. A sujeição de Klaus frente à situação vem com a sentença anunciada: A tua picha ainda não foi experimentada, disse o homem. Klaus não sabia o que isso queria dizer. […] tentou sinais de delicadeza. Não se atrevia a olhar para o pénis dos homens, mas desde que tinha entrado que o seu era motivo de troça. Não entendia o que se passava: nos olhares rápidos não percebia nenhuma diferença. Estava preso e passava os minutos a tentar comparar o seu pénis com o dos outros sete homens. Estavam loucos. (p. 39) O jogo entre incompreensão e insanidade é a busca inconsciente de Klaus pela justificativa da violência. Se, num primeiro momento da narrativa, ele não se atreve a olhar para o pênis dos presos, logo depois ele não conclui qualquer diferença através de olhares rápidos. O descontrole mental causado pelo seu medo torna-se evidente na narrativa que se contradiz. Por outra passagem, mais reflexiva, constata-se a relevância da imagem da genitália masculina como o que designa a posição submissa do personagem: “Há dois órgãos que nunca deves deixar que acabem: o cérebro e o pénis. São os dois órgãos principais e são os dois órgão de excitação: dizem-nos a que distância estamos de morrer” (p. 64). 20
Há diversos trechos em que o gesto de urinar (ao pé de uma árvore, nas flores, no “país” ou num animal) é colocado como situação de conforto e controle, inclusive na imagem do cão que urina no tanque, colocando em questão mesmo a imposição máquina-natureza. Ecoando o famoso Soneto da intimidade de Vinícius de Moraes,3 o narrador aproxima animais humanos e não-humanos pelo ato primordial e comum de suas naturezas idílicas, vivas: o mijo. Entretanto, diferente da concepção harmônica do brasileiro, em que "as vacas e os bois" o "olham sem ciúme", Gonçalo faz uso do ato de urinar (e de cuspir) como elemento de dominação, que desbanca a superior máquina política como faz com o inferior mas indiferente animal domesticado:
3 Cujos tercetos finais, “Fico ali respirando o cheiro bom do estrume/ Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme/E quando por acaso uma mijada ferve/Seguida de um olhar não sem malícia e verve/Nós todos, animais, sem comoção nenhuma/Mijamos em comum numa festa de espuma” também situam o homem em comunhão com os outros animais.
Não te atreves a cuspir num lobo, mas se necessário mijas para cima da cabeça de um cão. [...] Nenhum país veio para me salvar, cuspo no país e o país não é um lobo que te morde, é uma paisagem estúpida e subserviente que aceita: podes mijar para cima da cabeça do teu país como fazes aos cães bem domesticados, que ele aceita bem: vai abanar a cauda. (p. 63) De volta à cena de estupro, no final do capítulo a resistência de Klaus em meio ao efeito de repetição dos assobios, do arame e da baba nada vale, inserida na ordem da barbárie que ali impera. Será ainda um homem? Klaus tentou reagir, os homens agarram-no, o homem continuava com a sua boca na nuca de Klaus, ouviu ainda alguém assobiar, e o arame, enquanto muitos homens o seguravam e ele tentava sair. Alguém lhe agarrou no pénis com força, empurraram-no para baixo, e foi aí que sentiu de novo, com nojo, a baba na nuca que não parava. (p. 39) A série de transformações que Klaus sofre após o episódio isolado naquele mundo à parte e oculto, narrado na confusão entre passado próximo e presente emergente dos tempos verbais, tal21
vez seja um bom correlato daquilo que ele próprio demonstrara em outro momento, anterior, com um banal gesto de destruição da vida. Esmagando com o pé um caracol que "quase não passa de tão pequeno", o homem é questionado: Por que fizeste isso? Klaus não respondeu. Não ver nada é ficar oculto. (p. 11) É na impossibilidade da memória, na destruição total da lembrança dos meios bélicos de repressão, desde que fiquem seus postulados de quem está acima na ordem política do mais forte, que Gonçalo M. Tavares baseia sua tese de como operam as grandes guerras de nossa história, de que modo legitimam seus objetivos acima de um ilusório humanismo. Um corpo em decomposição não precisa mais feder e contaminar um estado e um povo incapazes de removê-lo. Porque, ao final de Um homem: Klaus Klump, está exposta a condição imutável de subordinação e jogos de poder que rege não só a guerra, mas a "paz" da ordem capitalista, nos desígnios de uma burguesia que a constrói nos passeios diários. No fim, Klaus reencontra animadamente as pessoas que destruiu e que o destruíram, na harmonia dos negócios entre suas empresas.
BERNARDINI, Aurora. “Giuseppe Ungaretti e a tradução de Seguei Essiênin” In: Ungaretti, Giuseppe. Daquela estrela à outra. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Tradução: Fábio Landa. São Paulo: Editora UNESP, 2002. IESSIÊNIN, Serguei. “Naves-Éguas”. In: Poesia moderna russa. Tradução: Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2009. LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução: Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1988. MOR AES, Vinícius de. Livro de sonetos. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. MÜLLER, Heiner. “Hamlet-máquina”. In: Peixoto, Fernando (org.). Quatro textos para teatro: Mauser, Hamlet-máquina, A missão, Quarteto. Tradução: Reinaldo Mestrinel. São Paulo: Hucitec, 1987. TAVARES, Gonçalo M. Biblioteca. Porto: Campo de Letras, 2004. ______ . Um homem: Klaus Klump. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. ______. A máquina de Joseph Walser. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. ______. Uma viagem à Índia. Lisboa: Editorial Caminho, 2010.
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Contra a linguagem comum: a linguagem do corpo de Kathy Acker, traduzido por Fernanda Morse e Barbara Mastrobuono Prefácio-diário Já faz dez anos que pratico bodybuilding,1 seriamente há quase cinco. Ao longo dos últimos anos, venho tentando escrever sobre bodybuilding. Tendo falhado algumas vezes, eu fiz o seguinte plano quando me foi dada a oportunidade de escrever este ensaio: treinaria como de costume. Imediatamente após cada treino, eu iria descrever tudo o que tinha acabado de experimentar, pensar e fazer. Essas entradas de diário iriam servir de material bruto. Ao fim de cada treino, eu esquecia de escrever. Repetidamente. Eu… alguma parte de mim… a parte do “Eu” que pratica o bodybuilding… estava rejeitando a linguagem, qualquer descrição verbal do que era bodybuilding. Eu vou começar descrevendo, escrevendo sobre o bodybuil23
1 O termo se refere à pratica do fisiculturismo. Como carrega em si um sentido de construção do corpo que pode ser aplicado também à linguagem, e é por muitas vezes utilizado como verbo ao longo do texto, optamos por mantê-lo na língua original. (N.T.)
ding do único modo que sei: eu vou começar com a análise dessa rejeição a uma linguagem comum ou verbal. Qual é o retrato do antagonismo entre o bodybuilding e a linguagem verbal? Uma linguagem sem palavras Imagine que você está em um país estrangeiro. Já que você vai ficar neste lugar por algum tempo, está tentando aprender a língua. No ponto inicial em que se está aprendendo essa nova língua, logo antes de começar a entender alguma coisa, você começa a esquecer a sua. Dentro dessa estranheza, você se percebe sem uma linguagem. É aqui, nessa geografia da nenhuma linguagem, nesse espaço negativo, que eu posso começar a descrever o bodybuilding. Pois estou descrevendo algo que rejeita a linguagem. Elias Canetti, que cresceu dentro de uma infinidade de línguas faladas, começou sua autobiografia recontando uma lembrança. Nela, sua mais antiga recordação, a perda da linguagem é ameaçada: “Minhas primeiras recordações estão imersas no vermelho. Saio por uma porta nos braços de uma menina, o chão à minha frente é vermelho e à minha esquerda desce uma escada igualmente vermelha”2. Um homem sorridente se aproxima da criança; a criança, após um pedido, põe a língua para fora, no que o homem se vira, abre um canivete e segura a lâmina afiada contra a língua vermelha. “... Ele diz: ‘agora lhe cortaremos a língua’.” No último instante, o homem puxa a faca de volta. De acordo com a sua memória, essa sequência acontece todos os dias. “Assim começa o dia”, Canetti acrescenta, “e a história se repete muitas vezes.” Estou na academia três de cada quatro dias. O que acontece lá? Como é a linguagem naquele lugar? De acordo com o cliché, atletas são burros. Ou seja: eles são desarticulados. A linguagem falada dos bodybuilders torna este cliché real. A linguagem verbal na academia é mínima e quase sem sentido, reduzida a 24
2 Canetti, Elias. A língua absolvida: história de uma juventude. Trad. Kurt Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (N.T.)
números e poucos substantivos. “Séries”, “agachamentos”, “repetições”... Os únicos verbos são “faça” ou “falhou”, adjetivos e advérbios não existem; frases, se chegam a existir, são simples. Essa linguagem falada é parente dos “jogos de linguagem” que Wittgenstein propõe em O livro castanho.3 Na academia, a linguagem verbal ou linguagem que busca fazer sentido, ocorre, se muito, apenas no limite que antecede sua perda completa. Mas quando estou na academia, a minha experiência é de uma imersão em um mundo rico e complexo. O que realmente acontece quando eu pratico bodybuilding? Transgredir o limiar de um universo definido pela linguagem verbal e adentrar a academia, onde não é permitida a entrada do mundo de fora (e todas as suas linguagens) (neste sentido, a academia é sagrada), demora alguns minutos. O que ocorre, durante esses minutos, é o meu esquecimento. Massas de pensamentos em turbilhão, verbalizados enquanto estou consciente deles, desaparecem logo que minha mente ou pensamentos começam a se focar. A fim de analisar esse foco, preciso descrever o bodybuilding em termos de intenção. Bodybuilding é um processo, ou talvez um esporte, pelo qual uma pessoa dá forma ao seu próprio corpo. Esse processo está sempre relacionado ao crescimento da massa muscular. O coração e os pulmões são exercitados durante o treino aeróbico e em circuito. Mas os músculos só crescem se forem não exercitados ou movimentados, mas de fato rompidos. A regra geral por trás do bodybuilding é que o músculo, se rompido de modo controlado e então provido de condições adequadas para o crescimento, como nutrientes e descanso, voltará a crescer maior que antes. A fim de romper áreas específicas dos músculos, não importando quais, é necessário trabalhá-las isoladamente até que falhem. Bodybuilding pode ser visto como nada além da falha. Um 25
3 Aqui, e ao longo de todo o ensaio, toda vez que me refiro a “jogo de linguagem” estou me referindo à discussão de Ludwig Wittgenstein sobre jogos de linguagem em O livro castanho.
bodybuilder está sempre trabalhando em torno da falha. Ou eu trabalho uma massa muscular isolada, por exemplo, uma das cabeças do tríceps, até que esta falhe. Para fazer isso, eu trabalho esse grupo muscular até ele praticamente não conseguir mais se mover. Mas se eu trabalhar o mesmo grupo muscular até o ponto em que ele não consiga mais se mover, preciso então trabalhá-lo através da falha. Começo a fazer as chamadas “repetições negativas”, exercitando o grupo muscular para além de sua capacidade de movimentação. Este é o segundo método para se trabalhar através da falha. Independente do método que eu escolher, sempre quero trabalhar o meu músculo, grupo muscular, até que ele não consiga mais se mexer: eu quero que ele falhe. Assim que eu realizar uma determinada tarefa, tal quantidade de peso por tantas repetições durante um certo tempo, preciso aumentar um dos aspectos dessa equação para que eu possa falhar novamente, seja o peso, as repetições ou a intensidade. Quero romper o músculo para que ele cresça ainda maior, mas não quero destruir o músculo de forma a impossibilitar seu crescimento. Para evitar lesões, eu primeiro alongo o grupo muscular, e então cuidadosamente trago ele ao ponto de falha. Eu faço isso trabalhando-o durante uma série predeterminada que dura um período de tempo predeterminado. Se eu tentar fazer um grupo muscular falhar imediatamente, trabalhando com o maior peso que eu conseguir aguentar, posso me machucar. Eu quero forçar meu corpo a crescer; não quero machucá-lo. Por isso, no bodybuilding, a falha é sempre associada ao cálculo. Eu calculo qual peso vou utilizar; depois, eu conto quantas vezes eu vou levantar aquele peso e conto os segundos entre cada ação. É assim que eu controlo a intensidade de cada série. Intensidade vezes movimento de peso máximo igual a destruição muscular (crescimento muscular). Será que a equação entre crescimento e destruição também se aplica à arte? 26
Bodybuilding gira em torno da falha porque a sua prática, o crescimento e modelagem do corpo, ocorre em face à materialidade, ao movimento inexorável do corpo em direção à sua falha final, em direção à morte. Para romper um grupo muscular, eu quero fazer este grupo trabalhar até, ou ainda para além, da sua capacidade. Para isso, ajuda e é até necessário visualizar a parte do corpo que está envolvida. Então, enquanto se pratica o bodybuilding, a mente ou o pensamento estão sempre focados em enumerar ou contar e, frequentemente, em visualizações precisas. Certos bodybuilders têm dito que o bodybuilding é uma forma de meditação. O que eu faço quando eu pratico bodybuilding? Eu visualizo e eu conto. Eu determino o peso; eu conto séries; eu conto repetições; eu conto os segundos entre repetições; eu conto o tempo, os segundos ou os minutos, entre as séries: a fim de manter a intensidade, devo continuar contando desde o início até o fim de cada treino. Por esta razão, a linguagem do bodybuilder é reduzida a um conjunto mínimo, até fechado, de substantivos, e à repetição numérica, reduzido a um dos jogos de linguagem mais simples. Vamos nomear este jogo de linguagem: a linguagem do corpo. A riqueza da linguagem do corpo A fim de analisar tal linguagem, um jogo de linguagem que resiste à linguagem comum, através da lente da linguagem comum ou de uma cuja tendência é criar sintaxe ou fazer os significados se proliferarem, eu devo usar uma rota indireta. Em um de seus livros, Elias Canetti começa falando sobre e a partir daquela geografia que se faz sem a linguagem verbal:
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Uma substância maravilhosamente luminosa, viscosa, é deixada para trás em mim, desafiando as palavras… Um sonho: um homem que desaprende as línguas do mundo até que ele não possa entender em nenhum lugar da terra o que as pessoas estão dizendo. 4 Estar em Marrakech é o sonho realizado de Canetti. Existem linguagens aqui, ele diz, mas eu não entendo nenhuma delas. Quanto mais próximo estou me movendo em direção ao estrangeiro, dentro do estranhamento, para a compreensão do estrangeiro e do estranhamento, mais eu vou perdendo a minha própria linguagem. A pequena perda da linguagem ocorre quando eu viajo para e por dentro do meu próprio corpo. O meu corpo é uma terra estrangeira para mim? O que é esta imagem do “meu corpo” e do “eu”? Por anos, eu disse no início deste ensaio, estive tentando descrever o bodybuilding; sempre que tentei fazê-lo, a linguagem comum fugia de mim. “O homem,” Heidegger diz, “é o que há de mais estranho.”5 Por quê? Porque em todo lugar ele ou ela pertencem ao ser ou à estranheza ou ao caos, e ainda assim, em todos os lugares ele ou ela tentam abrir um caminho através do caos:
4 Elias Canetti, The voices of Marrakesh. New York: The Seabury Press, 1978, p. 23 (tradução livre). 5 Martin Heidegger, An Introduction to Metaphysics, New York: Anchor Books, 1961. Por “homem”, Heidegger se refere a “humano” (tradução livre). 6 Ibid., p. 26.
Em todos os lugares, o homem cria um caminho para ele próprio; ele se aventura em todos os âmbitos do ente, do poder avassalador, e, ao fazê-lo, é arremessado para longe de todos os caminhos.6 O físico ou material, as coisas que são, estão em constante e imprevisível mudança: é caótico. Esse caos se entrelaça com a morte. Pois é a morte que rejeita todos os nossos caminhos, todos os nossos sentidos. Quando alguém pratica o bodybuilding, ele ou ela estão sempre tentando entender e controlar o físico em face a essa morte. Não é de se admirar que o bodybuilding concentre-se na falha. A antítese entre o significado e a essência é observada frequentemente. Wittgenstein ao final do Tractatus: 28
O sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo, tudo é como é e tudo acontece como acontece; não há nele nenhum valor – e se houvesse, não teria nenhum valor. Pois todo acontecer e ser-assim é casual.7 Se a linguagem comum ou os significados se encontram fora da essência, qual é a posição daquele jogo de linguagem que eu chamei de linguagem do corpo? Pois bodybuilding (a linguagem do corpo) rejeita a linguagem comum e ainda constitui uma linguagem em si, um método para entender e controlar o físico que neste caso é também o “eu”. Agora eu posso falar diretamente sobre bodybuilding. (Como se a fala alguma vez fosse direta.) O jogo de linguagem chamado a linguagem do corpo não é arbitrário. Quando um bodybuilder está contando, ele ou ela estão contando a própria respiração. Canneti fala dos mendigos de Marrakech que possuem um jogo de linguagem semelhante e ainda mais simples: eles repetem o nome de Deus. Na linguagem comum, o significado é contextual, enquanto que o choro do mendigo significa nada além do que é; no choro do mendigo, o impossível (como o Wittgenstein do Tractatus e Heidegger observam) ocorre quando o sentido e a respiração tornam-se um. Aqui está a linguagem do corpo; aqui, quem sabe, está a razão pela qual bodybuilders exercem o bodybuilding como uma forma de meditação. “Eu entendi o fascínio presente em uma vida que reduz tudo ao tipo mais simples de repetição”,8 diz Canetti. Uma vida onde sentido e essência não mais se opõem. Uma vida de meditação. “Eu entendi o que aqueles mendigos cegos realmente são: os santos da repetição...”.9
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7 Wittgenstein, Ludwig. Tractatus LogicoPhilosophicus. Trad. Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp, 2001, p. 275.
8 Canetti, The Voices of Marrakesh, p. 25. 9 Ibid., p. 26.
Linguagem do Corpo, por Helena Obersteiner, 2015
A repetição do um: uma espreitada no caos ou essência Estou na academia. Estou começando o treino. Ou eu digo o nome “supino” e ando até ele, ou simplesmente ando até ele. Então, pode ser que eu visualize o número do meu primeiro peso; provavelmente, já que eu sempre começo com o mesmo peso de aquecimento, eu só coloco os pesos apropriados na barra. Levantando a barra de seus apoios e então trazendo-a para a parte inferior do meu tórax, eu conto “1”. Eu estou visualizando a barra, me assegurando que ela toca o meu peito no ponto certo, colocando-a de volta em seus apoios. “2”. Eu repito os mesmos movimentos precisos. “3”... Após doze repetições, eu conto trinta segundos enquanto aumento o peso. “1”.. O processo começa de novo, idêntico, a única diferença agora é que eu termino no “10”... Essas repetições todas acabam somente quando eu termino meu treino. Sobre a contagem: cada número equivale a uma inspiração 30
e uma expiração. Se eu paro a minha contagem ou perco o foco de alguma maneira, corro o risco de deixar cair o peso ou então manuseá-lo de forma errada, machucando meu corpo. Nesse mundo da repetição contínua de um número mínimo de elementos, nessa aura labiríntica, é fácil se perder. Quando tudo é repetição em vez de produção de sentido, cada caminho assemelha-se a qualquer outro caminho. Todos os dias na academia eu repito os mesmos gestos controlados com os mesmos pesos, as mesmas repetições... Os mesmos padrões de respiração. Mas volta e meia, vagando pelos labirintos do meu corpo, eu me deparo com algo. Algo que eu posso conhecer porque o conhecimento depende da diferença. Um evento inesperado. Pois embora eu esteja apenas repetindo certos gestos durante alguns intervalos de tempo, meu corpo, sendo material, nunca é o mesmo; meu corpo é controlado pela mudança e pelo acaso. Por exemplo, ontem eu treinei o peito. Geralmente eu suspendo com facilidade a barra com vinte e sete quilos por seis repetições. Ontem, inesperadamente, quando eu cheguei na sexta repetição, mal consegui levantar esse peso. Eu procurei uma razão. Sono? Dieta? Ambos estavam normais. Estresse emocional ou profissional? Não mais que o normal. O clima? Não é uma razão boa o suficiente. Minha falha inesperada na sexta repetição estava me permitindo olhar, como através de uma janela, não para qualquer coisa externa, mas para dentro do meu próprio corpo, para o seu funcionamento. Me foi permitido vislumbrar as leis que controlam o meu corpo, aquelas da mudança e do acaso, leis que são mal, se muito, conhecíveis. Ao tentar controlar – moldar – o meu corpo através das ferramentas calculadas e métodos do bodybuilding, e, de tempos em tempos falhando em fazê-lo, eu sou capaz de encontrar aquilo que não pode ser por fim controlado e conhecido: o corpo. É nesse encontro que reside o fascínio, se não o propósito, do bodybuilding. Colocar-se cara a cara com o caos, com a minha própria falha ou com um tipo de morte. 31
Canetti descreve a arquitetura de uma casa típica do labirinto geográfico de Marrakech. O interior da casa é fresco, escuro. Poucas janelas, se existem, têm vista para a rua. Pois toda a construção dessa casa, janelas etc., se direciona para dentro, para o pátio central, onde existe apenas a abertura para o sol. Tal arquitetura é um espelhamento do corpo: quando eu reduzo a linguagem verbal ao sentido mínimo, à repetição, eu fecho as janelas externas do corpo. O significado se aproxima da respiração enquanto eu pratico o bodybuilding, enquanto eu começo a me movimentar através dos labirintos do corpo para encontrar, mesmo que só por um segundo, aquilo que o meu consciente normalmente não pode ver. Heidegger: “O ser-aí do homem histórico significa: ser colocado como a violação em que a força preponderante do ser explode em seu surgimento, para que essa violação se estilhace contra o ser”.10 Em nossa cultura, nós simultaneamente fetichizamos e desdenhamos o atleta, aquele que trabalha no corpo. Pois ainda vivemos sob o signo de Descartes. Esse signo é também o signo do patriarcado. Enquanto continuarmos a olhar o corpo, aquilo que está sujeito a mudanças, ao acaso e à morte, como hostil e repugnante, iremos continuar nos vendo como um outro perigoso.
Kathy Acker (1947-1997) foi uma terrorista literária, romancista pirata, poeta, ensaísta, feminista libertária e bodybuilder. Nascida em Nova York, suas primeiras publicações emergiram da cena literária underground da cidade nos anos 70. Sofreu grande influência de propostas como os cut-ups de William S. Burroughs, por seu viés apropriativo, impulsionando o envolvimento com o plágio que marcou parte de sua obra. Entre seus livros mais conhecidos está Blood and Guts in High School (1984) onde conta a história de Janey Smith, personagem que se envolverá em relações incestuosas, abusivas e que chega a conhecer Jean Genet em Tânger, vindo a desenvolver, com ele, uma relação amorosa e masoquista. O presente ensaio integra suas investigações acerca da relação corpo-linguagem, e foi publicado em 1993 em uma coletânea de ensaios chamada “The Last Sex: Feminism and Outlaw Bodies”. Kathy Acker foi diagnosticada com câncer de mama em 1996, e veio a falecer em 1997 realizando um tratamento em Tijuana, México.
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10 Heidegger, An introduction to Metaphysics, p. 137. (tradução livre)
Gil Machado, 2015
Fernanda Carneiro, 2015
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Um quadro para ser lido, um livro para ser visto: o horizonte aberto da literatura Caroline Freitas Na parede, um quadro de uma só cor. No seu centro, um verso. Apenas um verso que remonta à cor escolhida. A tinta do quadro ultrapassa suas bordas e atinge a parede. Entre pintura e poesia, a obra se materializa. Mas em que momento tornam-se ali – pintura e poesia – um só objeto, e em que momento se dissociam? Na prática artística contemporânea, na verdade, não há essa dissociação. Uma vez disponível no mundo, qualquer elemento pode ganhar nova forma pelas mãos do artista, não mais restrito a um meio específico ou a um único suporte para desenvolver seu trabalho. Como disse Susan Sontag, já na década de 1960, no texto “Uma cultura e a nova sensibilidade”, “a arte hoje é um novo tipo de instrumento, um instrumento para modificar a consciência e organizar novos modos de sensibilidade. E os recursos para a prática da arte foram radicalmente ampliados” (p. 39). Segundo ela, os artistas começaram a responder a uma nova função, mais sentida do que claramente expressa: eles tiveram que se tornar mais conscientes e desafiar continuamente seus recursos, seus materiais e seus métodos. 36
A obra descrita no início do texto é da artista brasileira Marilá Dardot e se chama Cores, nomes, em referência ao álbum1 homônimo de Caetano Veloso. Nela, Marilá reúne uma série de seis quadros feitos a partir da utilização de versos extraídos de poemas escritos por João Cabral de Melo Neto, Manoel de Barros, Murilo Mendes e Paulo Leminski. Nasceram, assim, o Branco e o vermelho, Murilo (Mendes); o Negro e o amarelo, João (Cabral de Melo Neto); o Verde, Paulo (Leminski), e o Azul, Manoel (de Barros). Os versos escolhidos por Marilá para compor a obra foram: “amarelo vegetal, alegre de sol livre”, do poema Os reinos do amarelo, e “negro que pode haver na pólvora: negro de vida, não de morte”, de Poema(s) da cabra, de João Cabral de Melo Neto; “o azul me descortina para o dia”, do poema “3.4” do Livro das ignorãças, de Manoel de Barros; “branco é luz domada: dinâmica da nossa contemplação”, do Texto branco, e “rojo, rouge, rosso, enfim todas as tonalidades de vermelho, cor decisiva, antiga, atualíssima”, do poema “O pão e o vinho”, de Murilo Mendes; “da cor verde, a mais verde que existe/ a cor mais alegre, a cor mais triste”, do poema “Verdura”2, de Paulo Leminski.3
1 O álbum Cores, nomes foi lançado em 1982 e tornouse referência na carreira de Caetano Veloso. Nele foram gravadas canções que depois se tornaram sucessos como "Queixa", "Meu bem, meu mal" e "Trem das cores". 2 Em 1981, o poema “Verdura”, de Paulo Leminski, foi musicado por Caetano Veloso e gravado no álbum Outras palavras. 3 Todas as séries de Marilá Dardot podem ser consultadas online no endereço: http://www. mariladardot.com/images. php?id=46#/#/10
parte da obra Cores, Nomes foto: Mario Grisolli
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Nesse processo, a artista se vale da apropriação literária para compor o trabalho, ou seja, os versos estão colocados ali exatamente como se encontram nos livros dos quais foram retirados, sem nenhuma interferência ou modificação, porém agora em um novo contexto. Na arte contemporânea, a apropriação é a primeira fase daquilo que o curador, crítico e ensaísta francês Nicolas Bourriaud chamou de “pós-produção”. Normalmente utilizado no universo audiovisual (televisão, cinema e vídeo), pós-produção é um termo técnico, que designa a última etapa do processo de criação, em que se trabalha sobre o material já gravado; é o momento da montagem. Em seu livro Pósprodução: como a arte reprograma o mundo contemporâneo, Bourriaud propõe o conceito a fim de compreender o que está em jogo em uma tendência crescente no campo das artes desde a década de 1990. Bourriaud refere-se a práticas artísticas que se servem de trabalhos pré-existentes, reinterpretando, reproduzindo ou recontextualizando elementos do patrimônio artístico e cultural. Sendo assim, os artistas não se servem de matérias-primas para elaborar seus trabalhos, mas reconfiguram elementos já existentes, a partir dos quais programam novas formas e conceitos de uso. Já na obra Alices, criada a partir do clássico Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, a relação com a literatura é outra: Dardot se inspira na mudança de tamanho da personagem ao longo do livro, e cria uma instalação que propõe uma reflexão sobre a transformação do leitor no decorrer de sua leitura. O trabalho é composto por treze peças que reproduzem as páginas do livro de Carroll. As páginas foram reproduzidas em fotografias e, posteriormente, montadas com material espelhado. Os quadros que reproduzem as páginas também mudam de tamanho, assim o reflexo criado faz com que o espectador seja incluído no livro (numa referência também à obra Através do espelho e O que Alice encontrou por lá, continuação ao País das Maravilhas) e também mude de tamanho, como a personagem.
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Marilá Dardot é considerada uma das mais importantes artistas brasileiras contemporâneas, e tem na literatura sua maior influência. Marilá trabalha com as palavras em suas instalações, vídeos e esculturas, dialogando com as práticas da escrita e da leitura. Já realizou projetos inspirados nas obras de James Joyce, Julio Cortázar e Jorge Luis Borges, entre outros escritores. Sobre seu método de trabalho e sua relação com a literatura, Dardot diz:
acima: parte da obra Alices foto: Galeria Vermelho
A literatura é presente no meu trabalho muito naturalmente, como é presente na minha vida. Acho que cada artista cria a partir de seu universo próprio suas referências, que têm a ver com as experiências vividas por cada um: como nascem, crescem, que curiosidades eles têm. […] Meu trabalho é um diálogo meu com um outro, e esse outro pode ser um autor, um livro, o visitante da exposição, os meus amigos que jogam os dados. Sempre tem algum outro na “jogada”; nunca crio nada sozinha. (“Entre nós: depoimento”, p. 135) 39
Percebe-se, nas obras citadas, como o discurso artístico pode ser construído e reconstruído através de citações e referências, levando ao extremo a prática da apropriação literária na arte dentro de um campo cada vez mais ampliado. No entanto, essa construção se inicia com o processo de constituição de um arquivo pessoal, resultante de leituras e da observação do livro como um todo; do conteúdo verbal ao objeto físico. Os exercícios de embaralhamento desses arquivos, de aproximação e de renovação do olhar são primordiais para reconstruí-los de forma crítica. No que diz respeito aos procedimentos de formação de seus arquivos, Marilá Dardot explica:
acima: parte da obra Alices foto: Mario Grisolli
Junto aos livros que leio carrego quase sempre uma provisão de pequenos marcadores coloridos. Com eles vou colorindo as páginas e alimentando arquivos (com os silêncios, as palavras, os livros). Talvez seja um vício. Uma mania. Ou uma tentativa de construir outros mundos com os tijolos deixados por outros, tes40
tar seus encaixes. Por isso não posso parar no trabalho de arquivista (acho tediosos os arquivos sem fim). Eles são constituídos sim para desencadear um trabalho de delírio laboratorial: juntar amostras, testar suas combinações, investigar suas ocorrências, roubar-lhes o sentido, o contexto, o endereço, criar bichos fantásticos e geografias impossíveis. (“De livro, o livro é um livro, sou eu”, p. 127) Sobre esse processo, é possível refletir acerca do que disse Luis Cláudio da Costa 4 sobre o ato de ler, em seu artigo “O artista an-arquivista: os dispositivos de coleção na arte contemporânea”. Para ele, “ler é traduzir; ler é transferir. Toda leitura é já criação. Isso porque não se lê apenas com o olho, mas com todo o corpo” (p. 86). Ora, nesse caso, pode-se, então, ampliar a experiência da leitura para além do texto: um exercício dos sentidos começa a ser articulado de forma a oferecer uma nova experimentação, tanto para o artista quanto para o leitor/espectador que desfrutará das intervenções e modificações propostas. A articulação e a experimentação envolvendo o texto literário, quando este é transposto para o campo das artes visuais, trazem consigo o desafio de contar uma história já contada, de interpretar um texto com inúmeros caminhos, além de revelar, de alguma forma, um pensamento crítico particular, uma análise, uma nova narrativa. É o que poderíamos chamar, em tese, de literatura expandida, uma extensão do livro para fora de sua página. Podemos entender o conceito de literatura expandida retomando a expressão “campo ampliado” ou “campo expandido”, criada por Rosalind Krauss no final dos anos 1970. A questão foi pensada inicialmente na esfera da crítica de artes plásticas, para discutir como e por que as formulações dos então recentes trabalhos de escultura já não podiam ser consideradas modernistas, pois tanto ultrapassavam o que se entendia por escultura quanto por arquitetura, e até por paisagem. Rosalind Krauss explica também que:
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4 Luis Cláudio da Costa é pesquisador e professor do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
No pós-modernismo, a praxis não é definida em relação a um determinado meio – escultura – mas sim em relação a operações lógicas dentro de um conjunto de termos culturais, para os quais vários meios – fotografia, livros, linhas em paredes, espelhos ou escultura propriamente dita – possam ser usados. (“A escultura no campo ampliado”, 1984, p. 136) A literatura expandida pode ser manifestada de diferentes maneiras: de modo quase literal, materializando imagens ou sensações provenientes de textos literários etc. A relação existente entre a literatura e a arte contemporânea não consiste sempre em uma desconstrução ou em uma aplicação direta do conteúdo literário de um livro. Há, antes de tudo, uma necessidade de entender e apreender o processo textual, numa busca por novas formas de representá-lo. No livro Sob o signo do silêncio, Lourival Holanda5 diz que “a literatura não dá o existente, apenas aponta o possível. Chamei a isso espaço utópico – lugar de inquirição e alargamento do possível, não do real” (p. 86). Segundo Fabio Morais6, o trabalho da artista Marilá Dardot aponta para o que está entre as palavras: os espaços em branco das páginas dos livros. Marilá parece sugerir que é nesse espaço que surge a possibilidade de uma leitura diferente da mesma obra. É preciso ir além do que está textualmente escrito, e caminhar entre as várias formas de expressão da arte para promover um movimento de aproximação com o que está sendo lido. Sobre essa intimidade da artista com as palavras não escritas, Fabio Morais completa:
5 Lourival Holanda é Doutor em Letras (Língua e Literatura Francesa) pela Universidade de São Paulo; Pesquisador do Núcleo Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros UFPE. 6 Fabio Morais é artista visual e escritor de artes visuais.
O livro que Marilá Dardot jamais escreverá já existe. Está espalhado nas milhares de páginas por onde a artista transita, para, olha para trás e, em silêncio, nos joga um aceno. Talvez a artista não acredite num livro universal, coletivo, sendo escrito aos poucos. É bem provável que Dardot prefira acreditar numa realidade universal, coletiva, sendo vivida aos poucos, fadada a ilustrar as situações que existem dentro dos livros. (Uma escritora, p. 1) 42
Toda obra literária traz consigo uma possibilidade de criação, de releitura: uma provocação artística, ou a marcação de um lugar onde a literatura, mesmo dentro dela, ainda não chegou. Susan Sontag, em “Contra a interpretação”, diz que “a arte é a objetivação da vontade numa coisa ou numa representação, e a provocação ou estimulação da vontade” (p. 16), funcionando assim, do ponto de vista do artista, como a objetivação de uma escolha e, do ponto de vista do espectador, como a criação de um cenário imaginário para a vontade. Como afirma Lourival Holanda, no livro mencionado: “o texto diz não só o que sei, mas mais; aquilo que o outro vê e eu ignoro. Sua possibilidade de sentidos está além do que cada um concebe” (p. 86).
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Milton Mastabi, 2015
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Traduzir com as mãos de um cego Patrick Bange Para Lucas Alves Ferreira, e outros abalos císmicos, carinhosamente. Para investigar uma teoria da tradução em Marcel Proust, recorri a Madame Bovary, de Gustave Flaubert, pensando especialmente a figura do cego, que, como se verá, transmite uma lição de leitura para retornar a Proust com um gesto crítico mais, digamos, impostado. Ao texto: Frequentemente, durante a viagem, seu chapéu com um movimento brusco entrava na diligência pelo postigo, enquanto ele se agarrava com o outro braço no estribo, entre a lama das rodas. Sua voz, a princípio fraca e chorosa, tornava-se aguda. Arrastava-se na noite, como o indistinto lamento de um vago desespero; e entre o som dos guisos, o murmúrio das árvores e o roncar da caixa oca, ela possuía algo de longínquo que perturbava Emma. (Flaubert, Madame Bovary, p. 234) Nessa passagem, o narrador fala de um cego que vaga por uma encosta, pela qual Emma Bovary passa toda vez que retorna de Rouen, onde se encontra com Léon, seu amante, para Yonville, onde mora com seu marido, Charles. Para pensar esse cego, é necessário lembrar que o narrador lança mão de uma estratégia 45
que perpassa todo o livro, como nos diz Erich Auerbach: o narrador traduz o modo como Emma sente e percebe o mundo, mas ela mesma é incapaz de elaborá-lo na linguagem, uma vez que lhe falta “uma prestação de contas consigo mesm[a]” (Mimesis, p. 434), de modo que, fosse Emma capaz de traduzir suas sensações, estaria livre para tomar as rédeas de suas ações, ao invés de estar, até o fim, submetida a elas. Dessa forma, objetos que surgem ao longo da narrativa são dotados da subjetividade de Emma, como na cena em que Auerbach se concentra, na qual “toda amargura da existência parecia-lhe servida em seu prato” (retoma Auerbach, em Mimesis, trecho do romance de Flaubert, p. 434). Com isso, somos impelidos a ler o cego como uma tradução de Emma, de algo que não pode ser dito, mas que só é transmitido pelo avesso do dizer do narrador: um autêntico ponto cego, que traz à tona aquilo que nem Emma, nem o narrador podem trazer. Por isso, podemos dizer, a voz do cego dispara em Emma algo tão incontornável: [...] ela possuía algo de longínquo que perturbava Emma. Descia-lhe ao fundo da alma como um turbilhão num abismo e transportava-a para os espaços de uma melancolia sem limites. (Madame Bovary, p. 234) Analisar assim esse ponto cego de Emma implica a elaboração de um modo de leitura. Explico: aqui, o cego, sim, é leitor de Emma, e não o contrário. O narrador – um tradutor –, também não pode dizer de Emma aquilo que o cego pode. Assim, o cego ensina a ler Madame Bovary tanto fora da perspectiva de Emma como também fora da perspectiva do narrador. Em outras palavras, ele instaura uma lógica que o desloca do lugar de um dos objetos da narrativa para o lugar de um sujeito, cuja presença diz algo. Ele ensina outra direção, uma que, com Walter Benjamin, naquela sétima tese sobre o conceito da história, a mesma em que cita Flaubert, podemos chamar de uma leitura a contrapelo do romance. Benjamin cita Flaubert a propósito da empatia, necessá46
ria ao materialismo histórico, e da acedia, essa melancolia intensa, que, diz Benjamin, Flaubert conhecia: “Pouca gente adivinha como é preciso estar triste para ressuscitar Cartago”, a cidade destruída pelos romanos (citação que Benjamin faz de Flaubert na sétima tese sobre o conceito da história, em Magia e técnica, arte e política, p. 244, tradução minha). O cego, personagem de Flaubert, é exemplo categórico dessa empatia pelos vencidos. A esse respeito, note-se como o personagem Homais, o grande vencedor de Madame Bovary, constitui o contrário radical do cego. Sobre ele, Homais faz referência somente para apagá-lo: Não compreendo como as autoridades permitem ainda tão culposos expedientes! Dever-se-iam prender estes infelizes que seriam obrigados a fazer algum trabalho! O progresso, palavra de honra, caminha a passos de tartaruga! Chafurdamos em plena barbárie! (p. 259, grifo nosso) A crítica do romance por esse ponto de vista a contrapelo – a contrapelo do progresso, a contrapelo da história oficial –, implica encarar o cego como uma lição de leitura também a contrapelo, lição que só nos chega através do narrador de Madame Bovary, desse tradutor. Se o cego é um aspecto de Emma objetivado, se ele é uma tradução de Emma manifestada pela voz do narrador, então pensar esse romance implica pensar a questão da tradução. Com o cego, estamos convidados a pensar a tradução a contrapelo. Tentarei demonstrar, a seguir, como o cego ensina a pensar a tradução que faço do ensaio “Zum Bilde Prousts”, de Benjamin, que traduzo como “À imagem de Proust”, tentarei demonstrar, enfim, como o cego ensina um modo de operar essa leitura de Madame Bovary de maneira estrutural, isto é, de maneira que esse caminho de leitura ensine o modo mesmo de ler e de traduzir. Como é possível traduzir o ensaio “Zum Bilde Prousts” à luz da lição do cego de Flaubert? Se o cego ensina a jogar com as posições de sujeito e objeto, se ele ensina uma tradução a contrapelo, então é possível pensar um modo de traduzir o ensaio 47
de Benjamin sobre Proust à luz de uma teoria proustiana da tradução. Aqui, portanto, Proust se desloca do lugar de quem é lido por Benjamin e passa a leitor de Benjamin, como o cego passa a leitor de Emma, daquele que diz dela. Como leio e traduzo Benjamin com Proust? Ao texto: [...] o que não aprenderes hoje de nós, nunca o poderás saber. Se nos deixar cair outra vez neste caminho de cujo fundo queríamos içar-nos até a tua altura, toda uma parte de ti mesmo que nós te trazíamos, voltará para sempre ao nada. (À sombra das raparigas em flor, p. 354) A fala representa aquilo que o narrador do romance de Proust imagina ser a fala de três árvores que ele observa enquanto passeia de carro por Balbec, em companhia da sra. de Villeparisis. Nessa cena, de À sombra das raparigas em flor, a sensação de felicidade que acomete o narrador permanece incompleta: “de repente me invadiu essa profunda sensação de felicidade análoga à que me deram, entre outras coisas, os campanários de Martinville. Mas, dessa vez, essa sensação ficou incompleta” (p. 352). Se relembramos a cena da madeleine, podemos afirmar que as duas funcionam de maneira distinta, já que “toda Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez saiu, cidade e jardins, da minha xícara de chá” (No caminho de Swann, p. 74). Maurice Blanchot, na seção “O apelo do desconhecido”, de seu ensaio “A experiência de Proust”, escreve sobre esse encontro do narrador com as três árvores: No entanto, pelo menos uma vez, Proust se encontrou diante desse apelo do desconhecido, quando, diante das três árvores que ele olha e não consegue relacionar com a impressão ou lembrança que sente prestes a despertar, acede à estranheza do que não poderá jamais recuperar, e que está porém ali, nele, em sua volta, mas que ele só acolhe por um movimento infinito de ignorância. Aqui, a comunicação fica inacabada, permanece aberta, 48
deceptiva e angustiante para ele, mas talvez seja então menos enganadora do que qualquer outra, e mais próxima da exigência de toda comunicação. (p. 24) Note-se como na cena da madeleine existe algo submerso que, pela força do acaso, vem à tona. Podemos dizer, também, que nela existe um dizer que encontra um dito, um conteúdo que, antes, se anunciava ainda sem forma. A cena das três árvores, ao contrário, fala de um dizer, cujo conteúdo não é detectado, uma substância que a literatura não pôde tocar, ou, se tocou, não pôde apreender, isto é, não pôde fazer caber nas mãos. Mais uma vez, ao texto: Olhei para as três árvores, via-as perfeitamente, mas meu espírito tinha a sensação de que ocultavam alguma coisa que não podia apreender; assim acontece com objetos colocados a distância tal que, embora alonguemos o braço, não conseguimos mais que acariciar a sua superfície com a ponta dos dedos, sem poder apanhá-los. (À sombra das raparigas em flor, p. 352) Assim, essa cena fundamental destaca um dizer e não um dito, um anúncio de algo e não a coisa mesma. Se levarmos em consideração especialmente a cena das três árvores, mas também a da madeleine e o próprio fenômeno do livro por vir, isto é, do livro que se anuncia, sem que encontremos uma linha que fale da escrita desse livro, ou um momento em que fosse possível flagrar o projeto futuro de escrita encontrando a escrita que temos em mãos; se levarmos isso em consideração, podemos pensar em um modo de tradução que privilegiasse proustianamente o dizer, isto é, a enunciação. Se experimento traduzir o ensaio de Benjamin à sombra das três árvores de Proust, interrogado por elas e buscando extrair-lhes uma prática, aprendendo com a lição do cego de Madame Bovary, agora, portanto, criticamente impostado, chego, em muitas passagens, a resultados diferentes da tradução 49
disponível no mercado, a de Sergio Paulo Rouanet, revisada por Márcio Seligmann-Silva. Um exemplo: logo no início de seu ensaio sobre Proust, Benjamin escreve: “Unter ihnen ist aber dieser einer von den unfaßlichsten” (p. 310). Rouanet sugere a seguinte tradução para a passagem: “Mas, mesmo entre elas, esta [obra] é uma das menos classificáveis”. Se opto por levar em conta aquilo que as três árvores destacam, dou especial atenção, na leitura que fiz ainda no alemão, ao modo como cada palavra se diz, antes de dar atenção àquilo que é dito por elas – o seu conteúdo, poderíamos dizer. Assim, sublinho o fato de que o adjetivo “unfaßlich”, antes de significar “classificável”, também contém a raiz do verbo “ fassen”, que significa “agarrar e segurar; agarrar com a mão em um lugar específico”. Na tentativa de privilegiar esse modo de dizer da palavra “unfaßlich”, antes de traduzir logo aquilo que é dito por ela, sugiro a seguinte forma: “Mas entre elas essa [obra] é uma das que menos cabem nas mãos”. Note-se como não há problema com o sentido na tradução de Rouanet. Entretanto, o modo com que dizemos “unfaßlich” perdeu algo de sua concretude, que busco restituir. Outro exemplo, agora na terceira seção do ensaio de Benjamin: “Und seine ironische, philosophische, didaktische Reflexion ist allemal das Aufatmen, mit welchem der Alpdruck der Erinnerungen ihm vom Herzen fällt” (p. 323). Rouanet, revisto por Márcio Seligmann-Silva, traduz assim: “E sua reflexão irônica, filosófica, didática, é sempre a sua maneira de recobrar o fôlego quando se liberta dos demônios de suas rememorações”. Se traduzo considerando a cena das três árvores, chama a atenção em Rouanet a ausência das palavras “Aufatmen [substantivo do verbo inspirar]”, “Herz [coração]” e do verbo “ fallen [literalmente, cair]”. Digo isso porque o modo das palavras se dizerem em alemão, muito marcante, desaparece nas expressões “recobrar o fôlego” e “se libertar” do português. Formulo, então, outra forma de traduzir a passagem: “E sua reflexão irônica, filosófica, didática, é sempre o suspiro fundo, com o qual o demônio do lembrar lhe foge do coração”. 50
Além dos resultados a que chego ao longo da tradução, como os exemplos acima ilustram, creio ser necessário comentar uma consequência dessa tradução a contrapelo: o fato de que, retornando “ao pelo” – não ao contrapelo –, a interpretação de Benjamin da obra de Proust também sofre algumas modificações. Portanto, voltar à ordem normal das coisas, depois de “contralê-las”, diz novos aspectos do Proust de Benjamin. Por exemplo, quando restituo a noção “não caber nas mãos”, também está delatado como, segundo Benjamin, há uma relação corporal que a obra de Proust promove, uma relação que passa pelas mãos. A esse respeito, lembremos, como lembrou Flavia Trocoli, o corpo adormecido, ou a mulher que nasce da coxa do narrador, no início da Recherche. Este trabalho, finalmente, constitui uma tentativa de pensar isto: a partir do (ponto) cego de Madame Bovary, como traduzir o ensaio “Zum Bilde Prousts”, de Walter Benjamin, na medida em que Proust revela uma teoria da tradução para traduzi-lo? Como se viu, essa teoria, com a cena das três árvores, nos impele a rejeitar um gesto, podemos dizer, colonizador, na medida em que abre a possibilidade de operar segundo uma lógica que não domina o que se anuncia, que não o apreende, mas que suporta esse movimento infinito de ignorância para tocar(!) a exigência de toda comunicação. Assim, podemos concluir algo curioso: a literatura, aqui, não toca, pelo menos não apreende, justamente para correr o risco de tocar a radicalidade de um outro. Como um cego que tateia.
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2009. BENJAMIN, Walter. “Zum Bilde Prousts”. In: ______. Gesammelte Schriften: II-1 – Aufsätze, Essays, Vorträge. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1977, pp. 310-324. ______. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. Rev. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Brasiliense, 2012. BLANCHOT, Maurice. “A experiência de Proust”. In: ______. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2013, pp. 14-34. FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary: costumes de província. Trad. Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo: Nova Alexandria, 2007. PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Trad. Mario Quintana. São Paulo: Globo, 2006a. ______. À sombra das raparigas em flor. Trad. Mario Quintana. São Paulo: Globo, 2006b.
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O que a literatura n達o toca, por Helena Obersteiner, 2015
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Escrita intermidiática: a poesia em campo ampliado Sara Sabino “Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com frequência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxos de ideias, excitações, associações? Numa palavra, nunca lhe ocorreu ‘ter levantado a cabeça’?” (Barthes, “Escrever a leitura” 2004, p. 27). Com essa questão, Roland Barthes abre seu ensaio “Escrever a leitura”. Diante de um texto, somos capazes de associar diferentes imagens e ideias, que colaboram para a construção de sentido. Assim, questionando o lugar absoluto do autor, Barthes concede ao leitor o lugar de coautor da significação. Quando lemos, formamos nosso próprio texto. Barthes afirma que ler também é escrever, e classifica esse texto que escrevemos em nossa cabeça como “texto-leitura”, que não é somente aquilo que a obra literária ou o autor diz. Nessa “nova leitura”, o leitor “dispersa”, “dissemina” o significado do texto. Assim, “essa lógica não é dedutiva, mas associativa: associa ao texto material (a cada uma de suas frases) outras ideias, outras imagens, outras significações” (Ibid., p. 28). Ora, parece-nos que muitos artistas contemporâneos, ao dialogarem com a literatura, empenham-se justamente em dar corpo a esse “texto-leitura”, ampliando o campo de percepção da obra literária. Tais artistas se aproximam, assim, do que o 53
ensaísta, crítico e curador francês Nicolas Bourriaud chama de “semionautas”: Ao artista que inventa percursos pessoais através dos signos vamos qualificar de semionauta. Um semionauta concebe itinerários e os permeia com obras, ações e projetos. Trata de esboçar linhas de pensamento no campo dos fenômenos sociais, culturais ou mentais. Quer isole elementos há demasiado tempo associados, quer ponha em contato realidades disparatadas, quer opere dentro dos canais comunitários, quer crie novas aberturas, ele se move na paisagem das ideias e das representações como um transformador de energias. (Formas de vida: A arte moderna e a invenção de si, pp. 148-149) É nesse sentido que pretendemos abordar as videoinstalações da artista carioca Laura Erber, entendendo-as como uma espécie de escrita intermidiática de suas leituras. A artista tem um trabalho marcado pelo constante trânsito entre as linguagens. Com obras exibidas em diferentes museus e centros de artes no Brasil e na Europa, tem trabalhos também na área do audiovisual (como o curta-metragem Diário do Sertão, 2003) e na literatura, tendo publicado quatro livros de poesia e um romance.1 Em alguns trabalhos de Laura Erber, o vídeo promove recontextualizações: poemas de outros autores são justapostos a elementos diversos e ganham nova significação. Como as imagens do mar mediterrâneo associadas ao livro de poemas Diálogos com Leucó, do escritor italiano Cesare Pavese, na videoinstalação Vênus Titubeantis (2010). Os espaços se articulam e se comunicam também na instalação multimídia O funâmbulo e o escafandrista (2008). Entre as referências desse trabalho está o poeta romeno Ghérasim Luca, que foi tema da dissertação de mestrado da artista e posteriormente do livro Ghérasim Luca por Laura Erber (2012). No âmbito deste ensaio nos interessa, especificamente, a videoinstalação História antiga (2005), que é uma homenagem à escritora argentina Alejandra Pizarnik (1936-1972). 54
1 O curta-metragem Diário do sertão foi premiado como a melhor adaptação livre da obra de João Guimarães Rosa pelo Prêmio Nova Fronteira, em 2011. Em 2012, Laura Erber fez parte da lista dos vinte melhores jovens autores brasileiros da revista britânica Granta com o conto “Aquele vento na praça”. Foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura em 2009 e do Prêmio São Paulo de Literatura 2014 com os livros Os corpos e os dias (2008) e Esquilos de pavlov (2013), respectivamente.
Nessas videoinstalações, a literatura tem seus significados expandidos quando associada a determinado ambiente, a projeções e a novos elementos inseridos pela artista. Desse modo, consideramos esses trabalhos como “poesia em campo ampliado”. Partimos da aposta de que tal conceito possa funcionar como um importante operador crítico. A noção de “campo ampliado” ganhou força com a publicação, em 1979, do artigo “A escultura em campo ampliado” de Rosalind Krauss. Segundo a historiadora e crítica de arte norte-americana, a partir dos anos 1960, o termo “escultura” estava sendo aplicado a uma série de trabalhos heterogêneos. Dessa forma, ultrapassava a sua noção tradicional, baseada na tridimensionalidade. Krauss aponta para a elasticidade dessa ideia que só poderia ser entendida a partir de seus limites com a paisagem e com a arquitetura. A autora sugere, então, que a escultura transformou-se na combinação de duas exclusões: não-paisagem e não-arquitetura (p. 133). Assim, a questão da perda da especificidade dos meios artísticos é abordada, e observa-se uma transformação na prática individual dos artistas, que passam a ocupar diferentes lugares dentro do “campo ampliado”. Como explicam Renato Rezende e Kátia Maciel (Poesia e videoarte, p. 18), “o ‘campo ampliado’ pressupunha, portanto, desde logo uma relação mais dinâmica e ambígua entre os meios”. Nesse sentido, entra em pauta a ampliação do espaço dos poemas. “História Antiga”: uma leitura ampliada "Sólo te acepto viva, Alejandra.” Julio Cortázar A escritora e poeta argentina Alejandra Pizarnik produziu diversos poemas e diários, tendo publicado seu primeiro livro La tierra más ajena em 1955. Em setembro de 1972, saiu de uma clínica psiquiátrica para passar o fim de semana e suicidou-se, ingerindo uma alta dose de barbitúricos. Foi extremamente sim55
ples para a crítica vincular suas obras ao suicídio, como se cada palavra escrita por Alejandra retratasse o ocorrido, como indica Luciana Di Leone,2 em “Despertando a história antiga”: É verdade que o vínculo com a morte se estabelece tanto na poesia de Pizarnik, quanto em seus textos críticos e diários. É verdade também que, uma e outra vez, esse vínculo é remetido aos poetas malditos que Alejandra lia e admirava. É ainda verdade, ao menos numa leitura superficial, que seus poemas são monotemáticos – e, por esse motivo, entre outros, altamente poderosos [...]. (p. 1) Muitos de seus poemas tratam de temas relacionados à morte e à noite, como em alguns versos de “La Enamorada” e “Salvación”, respectivamente: “Te culpan las noches/te duele la vida tanto tanto/desesperada ¿adónde vas?” (Pizarnik, 1956; “Perdidos en la fuente del tormento/como el navegante en el horror de la civilación/que purifica la caída de la noche” (Pizarnik, 1956). No entanto, não podemos guiar a nossa leitura somente sob a perspectiva do suicídio. Como sugere Di Leone, que cita César Aira: precisamos ler Pizarnik a contrapelo. Surge, então, a pergunta: como podemos abrir novos sentidos para esses poemas canonizados? Laura Erber assume o papel de coautora na significação de sua obra, quando reescreve a “história antiga”. Em sua videoinstalação, são projetados, do alto, poemas de Pizarnik sobre um livro com folhas em branco. Acerca deste trabalho, em entrevista, Laura Erber diz: “[...] me interessava ainda a possibilidade de perturbar a fixidez da palavra impressa num meio como o vídeo, pois a palavra filmada tem outra materialidade e outra maleabilidade”.3 A artista insere um “elemento modificador” às páginas dos poemas, que consiste em imagens da agonia de um peixe fora de seu habitat, agonizando na tentativa de respirar. Os espectadores são convidados a tocar no livro, e até mesmo a virar as páginas, ainda que, ao fazê-lo, o texto conti56
2 Luciana Di Leone nasceu em Buenos Aires, formou-se em letras pela UBA. Atualmente cursa doutorado em literatura comparada na UFF e pesquisa poesia contemporânea. 3 Em “Corpos petulantes: desafios, esquivas, derivas” de Ana Chiara. Disponível em: www.antoniodisas.com
nue a ser o mesmo e o peixe permaneça ali. Em certo momento do vídeo, uma mão delicada recoloca o peixe sobre as páginas em branco, agora sem nenhum texto. Essa mesma mão, com uma caneta preta, tenta contornar o peixe. Nas primeiras tentativas, é impossível delimitar o seu corpo, pois ele está em constante movimento, em agonia. Nos momentos posteriores, o peixe exausto já não se movimenta tanto, facilitando o contorno. Ao final dessas tentativas, há várias formas desenhadas em diferentes lugares da página, todas distintas entre si, e nenhuma coincidindo com a forma exata do peixe. Esse ato pode remeter à poética de Pizarnik: apesar das inúmeras tentativas, não se pode delimitá-la em uma única forma. O peixe é retirado das páginas em branco e colocado sobre a página com os poemas “La mácara y el poema”: “El espléndido palacio de papel de los peregrinajes infantiles/a la puerta del sol pondrán a la volatinera en una jaula, la llevarán a un templo ruinoso y la dejarán allí sola” e “Historia Antigua”, que a videoinstalação toma por título: En la medianoche Vienen los vigías infatiles Y vienen las sombras que ya tienen nombre Y vienen los perdonadores De lo que comentieron mil rostros míos En la ínfima desgarradora do cada jornada. Em sua tentativa de respirar, o peixe gera momentos de agonia também no espectador, incapaz de retirá-lo das páginas secas com os poemas. Até que a água inunda completamente as páginas, tornando o espaço apropriado para que ele volte a respirar. O peixe, então, nada livremente pelos poemas, insuflando-lhes vida. Embora permaneçam nas páginas, os poemas são deformados pela camada líquida, turva, que embaça as letras e impede uma leitura nítida, transparente. Desse modo, Laura retrabalha os textos estereotipados pela crítica, abrindo-os a novos 57
sentidos, libertando-os da “história antiga”, a leitura vinculada à morte da autora. A videoinstalação funciona, assim, como uma leitura intermidiática dos poemas de Pizarnik. Barthes afirmara que o texto-leitura funciona “como um texto, que escrevemos na cabeça, quando a levantamos” ("Escrever a leitura", p.27). Ora, tudo se passa como se Laura não se contentasse em escrever esse texto em sua cabeça, mas quisesse lhe dar uma forma bastante concreta, uma forma, aliás, híbrida. Assim, entendemos que a videoinstalação História antiga é a explicitação de um modo de ler. Associados a projeções e outros elementos, frutos de elaborações feitas pela artista, os poemas abrem-se a novas leituras, convidando o leitor/espectador a continuar, por sua vez, o jogo da construção de sentidos.
BOURRIAUD, Nicolas. Formas de vida: A arte moderna e a invenção de si. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ______. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009. BARTHES, Roland. “Escrever a leitura”. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. CHIAR A, Ana. “Corpos petulantes: desafios, esquivas, derivas”. In: Revista Letras v.83, n. 84, Curitiba, Jul./Dez. 2011. KR AUSS, Rosalind. “A escultura no campo ampliado”. Gávea: Revista semestral do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, Rio de Janeiro: PUC-RJ, n. 1, 1984. KR AUSS, Rosalind. A voyage on the North Sea: art in the age of the post medium condition. Londres: Thames & Hudson, 1999. LEONE, Luciana Maria Di. “Despertando a História Antiga: Laura Erber leitora de Alejandra Pizarnick”. In: Revista Carbono nº. 03. Rio de Janeiro, Jun.2013. Disponível em: <http:// revistacarbono.com/artigos/03historia-antiga-lauraerber/> Acesso em: 14 de Julho de 2015. PIZARNICK, Alejandra. Poemas disponíveis em: http://sergiomansilla.com/cgi-bin/revista/exec/search.cgi MACIEL, Katia. Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009. MANSILLA, Sergio. Alejandra Pizarnik. Poesias completas; Disponível em < http://sergiomansilla. com/cgi-bin/revista/exec/search.cgi >. Acesso em: 14 de Julho de 2015. MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. São Paulo: Senac, 2008. REZENDE, Renato; Maciel, Katia. Poesia e videoarte. Rio de Janeiro: Circuito; Funarte, 2013.
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colaboradores Barbara Wagner Mastrobuono é formada em russo e português pela Universidade de São Paulo. Atualmente trabalha como assistente editorial na Cosac Naify, e é co-fundadora do selo editorial independente Cactus. Escreve para a revista Ovelhamag. Caroline Freitas é graduanda em Letras (português e literatura), na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e membro do grupo de pesquisa “Literatura e linguagens: fronteira, espaço, performance, memória”. Daniel Souza Silva é de São Paulo e concluiu há pouco o bacharelado em português e italiano na Universidade de São Paulo. Seu projeto de mestrado envolve a tradução da lírica final de Jorge de Lima. Tem interesse por literatura brasileira e teoria literária, além de filologia românica e crítica textual. Fernanda Carneiro tem 21 anos de lugar nenhum. Pé baiano e corpo em São Paulo por destino. Estuda audiovisual e atualmente tem trabalhado na construção de cenários por aí. É de dentro do cinema que se desdobra para alimentar seu amor 59
por rabiscos, o qual a acompanha desde pequena, quando via seu pai desenhar cisnes em todas as notinhas fiscais recebidas. Fernanda Morse é poeta e estudante de Letras (inglês) na Universidade de São Paulo. Tem dois livros publicados: um pela Coleção Kraft (2014), da Editora Cozinha Experimental e outro pelo selo Cactus, chamado Impossíveis (2015). Integra a revista cisma e é monitora bolsista da revista Linha d’água, vinculada ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP. Gil Machado, português, nasceu em Vila Real de Trás-os-Montes em 1988. Desde então tenta, sempre sem sucesso, entender o que faz aqui. Mesmo assim vai fazendo algumas coisas. É arquitecto pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, actor nos tempos livres e gosta de fazer desenhos e escrever coisas sem sentido. Viveu no Porto e em São Paulo. Hoje em dia mora na sua terra natal e vai dizendo que qualquer dia muda de cidade. Tem um gosto especial por quartos com muitos livros ou florestas bem escuras. Helena Obersteiner é formada em Desenho de Moda pela Faculdade Santa Marcelina. É ilustradora, moderadora da Oficina Colaborativa de Modelo
Vivo, projeto realizado no Instituto de Artes Universidade Estadual Paulista, e trabalha como aderecista e figurinista. Matheus Guménin (1992- ) cursa Letras (português e alemão) na Universidade de São Paulo. Publicou duas traduções da poetisa austríaca Ingeborg Bachmann na revista cisma nº 4 (2014), às quais se somam estas duas da cisma n° 7. Escreve quinzenalmente para os jornais mato-grossenses Diário de Cuiabá e Olhar Conceito. Milton Mastabi Filho é formado em Letras pela Universidade de São Paulo. Desenha desde a infância, mas só recentemente começou a se aventurar profissionalmente. Já fez ilustrações para material didático e quadrinhos independentes. Atualmente, trabalha com design de games e produz histórias em quadrinhos impublicáveis. Patrick Gert Bange é graduando em Letras (português e literaturas) na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desenvolve projeto de pesquisa sobre Walter Benjamin, Marcel Proust e a tarefa do tradutor, sob orientação da professora Flavia Trocoli.
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Sara Sabino é aluna de Letras da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, bolsista de iniciação cientifica da FAPERJ. Tem um subprojeto intitulado: “Poesia em campo ampliado: as videoinstalações de Laura Erber”, vinculado ao projeto da professora Carla Miguelote.