Claro! - Trabalho

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claro!

/ MAIO DE 2015

TRABALHO

A (outra) MORTE DO LEITEIRO Ele morreu, mas não baleado

PROFISSÃO: CRIANÇA O que você quer ser quando crescer?


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Carta ao leitor Desde pequenos, somos questionados a uma definição. Ainda crianças, sabemos que o somos, mas almejamos o mundo adulto com pressa. Recebemos a mais comum das perguntas tão logo tenhamos consciência de que, um dia, vamos crescer: “O que você quer ser?”. Ser. Não fazer. Enquanto crescemos, na rotina diária dos adultos que nos cercam, nos programas aos quais assistimos na TV e nos brinquedos que ganhamos, por vezes aprendemos que o que escolheremos para a nossa carreira profissional será o que nos construirá enquanto indivíduos. Enquanto pessoas. Nos acostumamos com a ideia e a empregamos com destreza. Se alguém nos perguntar o que somos, com essas palavras, provavelmente teremos de pensar muito antes de dar uma resposta simples como “sou feliz”. Estamos habituados a rótulos: podemos ser médicos, advogados, professores ou engenheiros. Mas não nos imaginamos como a pessoa que sequer tem seu trabalho reconhecido. A pessoa que é julgada por transpor o senso comum no mundo profissional. A pessoa desempregada. Cultivamos sonhos, mas conforme somos realmente chamados à vida adulta, o sistema nos ensina que, muito além de fazer o que gostamos, a atividade que desenvolveremos em nossas vidas será a fonte de nosso sustento. Mais do que

isso; lidamos com o excesso. Temos de ser bem-sucedidos e acumular não só dinheiro, mas também status e conquistas de carreira para sermos reconhecidos de alguma forma. Nesse tipo de lógica torta, talvez demoremos a perceber que, enquanto membros de uma sociedade embasada nesses valores, julgamos as pessoas de acordo com seu trabalho. Exploramos: construímos uma escala e temos dificuldade em reconhecer os direitos daqueles que julgamos profissionalmente inferiores. Desprezamos: não encontramos valia no que nos parece mais fácil ou menos intelectual. Não vemos que a competição e as duras cobranças de um sistema que não nos permite a falha podem solapar a

tranquilidade e a paz de espírito absolutamente necessárias a qualquer ser humano. Apesar de tudo isso, e como tudo na vida, o trabalho tem seu lado bom. Ele pode, sim, ser um espaço de satisfação pessoal e de realização de sonhos, muitas vezes desligado de qualquer expectativa financeira. Pode ser um espaço de luta por direitos e reconhecimento, não só profissionais, mas também humanos. Um espelho de como a sociedade pode mudar sua organização, suas ferramentas e até seus valores.

E dentro de todas as possibilidades e dificuldades, o trabalho é essencial. Do momento que nascemos àquele em que abandonamos esse mundo, seremos cercados por ele, não importa se na forma de um sonho, objetivo, ocupação, sobrevivência, fardo ou libertação. Esta edição do Claro! convida você, leitor, a refletir sobre todas essas nuances do trabalho. Questione a si mesmo: como elas moldam a sua visão de mundo?

EXPEDIENTE ECA-USP Diretora Margarida Maria Krohling Kunsch Departamento de Jornalismo e Editoração Chefe Dennis Oliveira Redação Professora Responsável Eun Yung Park Editores de conteúdo: Gabriela Romão e Ana Carla Bermúdez Equipe online: Gabriel Lellis, Dimitrius Pulvirenti, Ana Helena Rodrigues e Pedro Passos Editora de imagem: Ana Carolina Leonardi Diagramadores: Thiago Quadros, Sara Baptista, Ana Luisa Abdalla e Bruna Larotonda Ilustradores: Arthur Aleixo e Maria Alice Gregory Repórteres: Anaís Motta, Otávio Nadaleto, Thiago Neves, Thaís Matos, Júlia Pellizon, Rafael Bahia, Maria Beatriz Gimbo, Fabíola Costa, Victoria Salemi e Breno França Making Of Thais Freitas e João Paulo Freire Endereço Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, Bloco A. Cidade Universitária, São Paulo - SP CEP: 05508-900 - Telefone: (11) 3091-4211 O suplemento Claro! é produzido pelos alunos do 5º semestre de graduação de Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso III Tiragem: 8000 exemplares


Profissão: criança Breno França Ela se encontra naquela fase de perder os dentes de leite. E agora, além do banho e da tarefa de casa, soma-se a janelinha no sorriso tímido. A menina não fala sobre o assunto, mas a mãe entrega. “Ela vive reclamando que os dentes dos amiguinhos já nasceram e o dela nem dá sinal.” Levar pra escola nessa idade vira o pesadelo dos pais, mas com a profissão que ela quer, não dá pra bobear. Os cadernos dele são uma bagunça só e a profesora tem um trabalho especial para fazê-lo prestar atenção nas aulas de matemática. A mãe chega em casa à noite e precisa pôr ordem na lição de casa, mas os desenhos são uma maravilha. “A gente foi obrigado a colocar um mural no quarto dele antes que ele saísse pintando e desenhando nas paredes.” Pra convencer Sophia a ir pra escola é preciso treinar bastante os argumentos. A avó, encarregada do assunto, revela uma das soluções encontradas. “Ela disse que quer ser médica quando crescer, então eu disse que pra ser médica precisa estudar muito. Enquanto ela não mudar de ideia, essa história ainda serve”, conta rindo. Porém, o interesse pela medicina surgiu com uma notícia não tão animadora. Diagnosticada com uma doença grave aos três meses de idade, Sophia precisou frequentar consultórios desde muito cedo. No começo do ano, na hora de comprar o material escolar foi uma confusão. Lucas só queria saber do lápis de cor e das canetinhas. “Pra convencer ele de que os livros também eram legais, eu tive que procurar uns desenhos até ele ficar interessado”, relata a mãe. Se a preferência do menino que quer ser desenhista é pelos desenhos de carro, a família exibe com orgulho os desenhos que ele fez dos membros da família.

Quando está num consultório qualquer coisa é novidade e motivo de interesse. A mãe conta que Sophia pergunta de tudo. “O que as outras crianças têm? Que aparelho o médico tá usando? Ela até já pediu pra mexer no computador do médico, como se ela entendesse.” Com um lápis e uma caneta como instrumentos e o bloquinho de anotações do telefone, Lucas quase não pode ser notado na sala. Sua presença só se manifesta quando ele interrompe a mãe e pede. “A caneta não está funcionado. Me dá outra?”. Passam uma, duas, três horas, e o garoto não se cansa. O pai revela uma rotina graças ao interesse do filho. “Eu já comprei tantos gibis diferentes que o jornaleiro até deixa alguns separados pra mim”, conta. Pra Sophia, o médico precisa conhecer cada parte do corpo humano pra descobrir o que a pessoa tem e dar o remédio certo. “Quando eu crescer eu quero ser médica, porque eu quero cuidar das crianças, das pessoas que estão doentes. Daí eu vou examinar, passar remédio, cuidar e ver o que tem que fazer pra elas ficarem boas logo”, imagina animada olhando pra mãe, que não consegue disfarçar o orgulho. Já Lucas não parece nada preocupado com o que tem que fazer. Pra ele é muito simples, o importante é desenhar. “O que eu mais gosto é de desenhar carros. Eu vejo eles na televisão e faço parecido, depois eu penduro no meu quarto e mostro pros meus amigos na escola.” O gosto do menino por cores fica claro em tudo que ele usa: na camiseta, no tênis, na mochila e até no óculos. A vontade de Sophia e a intenção de Lucas nos fazem ter um noção da visão do mundo do trabalho que eles têm. Mas, com mudanças tão rápidas no mercado e na vida dos pequeninos, será que tudo vai se realizar? E você? Conseguiu se tornar o que queria quando criança ou mudou tantas vezes de ideia que já nem se lembra mais?


E ainda dizem que eu não trabalho Victoria Salemi

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A ideia generalizada que se tem do trabalho é aquela do emprego, seja com carteira assinada ou não, mas de onde se tira o sustento financeiro a partir de uma obrigação. Porém, será que só isso pode ser considerado? ATLETA Ainda meio zonza, acordo sem saber onde estou e levanto da cama. Olho no relógio: seis da manhã. Os músculos do meu corpo ainda doem do treino de ontem, mas não adianta ficar pensando nisso. Começo o dia com musculação, que não é meu esporte, mas preciso para melhorar meu rendimento. É dolorido, ainda mais sabendo que o treino mesmo só vem mais tarde, mas faço de tudo pra melhorar meus resultados. Agora sim, começa o treino de verdade. Duas horas e meia do que muita gente diria que é um sacrifício. Pra mim, é só uma forma de atingir meus objetivos. E não pense que o rendimento é sempre bom. Tem dias em que não sai nada como esperamos e a frustração é dupla — além de não conseguir o que quero, ainda levo broncas do meu técnico. Terminada a primeira sessão de treinamento, ufa, hora de almoçar, mas sempre com cuidado, já que tenho que manter a composição corporal ideal. Se bem que é quase impossível não fazer aquele prato que parece uma montanha de comida, de tanta fome que tenho! Depois de um intervalo, hora de voltar para mais uma rodada. Você achou que o dia já tinha acabado? Nada disso, mais um treino de duas horas. Pra mim, isso é uma coisa que faz parte. E não tem nada melhor do que um treinamento bem feito! Janto rapidinho antes de ir para a aula. Apesar de tanto esforço, sei que um atleta de ponta tem vida útil curta no esporte, então preciso pensar no futuro. Em algum momento, vou me aposentar e, ainda assim, tenho que me sustentar. Por isso, mesmo que eu não goste muito ou esteja cansada demais, preciso ir à faculdade. Finalmente, vou dormir. É bom eu ir logo pra cama, senão o cansaço pode prejudicar meus treinos de amanhã. Boa noite!

Dona de Casa

Acordo antes das sete todos os dias. Meus filhos já se viram sozinhos, mas, se eu não arrumar a casa logo, não dá tempo de deixar o almoço pronto. Me acostumei com o horário de quando levava as crianças para a escola e prefiro me organizar assim. Depois de tomar o café da manhã, começo a fazer tudo: junto as roupas sujas pra lavar, limpo o banheiro, a cozinha, junto as coisas que os outros deixam jogadas. Dizem que eu não trabalho, mas ninguém tira a toalha molhada da cama ou guarda as próprias roupas e ainda esperam que elas apareçam magicamente na gaveta. Perto do meio dia preparo o almoço porque minha família vem comer aqui. “Tem comida pronta? Oba!”, sem parar pra pensar em quem teve o trabalho pra que tudo estivesse na mesa. Isso sem falar nas compras. Tento me programar pra ir uma vez a cada 15 dias, mas é comum ter que correr até o mercado porque faltou alguma coisa. Depois do trabalho preparando, hora de comer. É bom passar um tempo com filhos, netos, mas sempre vem um “Mãe, tem suco? Pega outro prato pra mim?”. As pessoas sempre elogiam esse jeito de mãezona, mas acho que elas não pensam muito na energia que gasto pra que a família esteja sempre bem. Durante a tarde, tenho que cuidar da minha neta. E claro, devem achar que passo o dia todo me divertindo com ela. Mas cuidar de uma criança pequena envolve muitas coisas trabalhosas: dar banho, trocar, arrumar a bagunça que ela faz e, às vezes, até fazer o serviço da casa com um olho nela, já que ela está começando a andar. Costumo ficar com ela até de noite. É uma maratona. Depois que minha filha chega pra cuidar da minha neta, posso relaxar um pouco. Quem chega em casa e vê a dona de casa em um momento mais descontraído acha que é

sempre assim, porque não enxerga o esforço que a gente faz pra deixar tudo confortável pra todos. Lá por das dez da noite já estou morrendo de sono e de cansaço, então vou dormir cedo. Deito, muitas vezes até com dores no corpo, e fecho os olhos. Que delícia, finalmente vou dormir, podendo não pensar em nada… Mas será que ainda tem creme de leite pra fazer es-trogonofe amanhã? Se não tiver, acho que posso fazer uma macarronada. Ih, mas também acabou o molho vermelho. Que tal então um bife? Mas…. Zzzzzzzzzz.


Na sala de ESPERA...

Fabíola Costa

O grande hospital vivia mais um de seus movimentados dias. Centenas de pessoas circulavam nos corredores, ocupavam os leitos e preenchiam as salas de espera. São mais de mil atendimentos diários, fora as internações. Os profissionais, naquele apressado jeito de andar, tentavam atender a todos. O ambiente gélido trazia consigo a tensão invisível, mas sempre presente, na vida de um hospital. Burburinhos das conversas baixas, choro ardido da criança doente, sirene estridente da ambulância, som abafado do alto falante que anuncia o próximo paciente... Todos momentaneamente silenciados. Agora era a vez do som metálico, e ao mesmo tempo suave, do saxofone. O saxofonista vestia jaleco branco de mangas curtas e andava em passos lentos por entre os corredores da sala de espera. Careca, de pele morena e óculos de grau, o homem dedilhava o instrumento com precisão e agilidade. Do alto de seus cerca de 1,80 de altura, lançava um olhar esperançoso e demonstrava confiança ao tocar. Isso logo atraiu a atenção de todos. Ao fundo surgiram o acompanhamento suave do piano, a batida tranquila da bateria e a melodia de outros instrumentos, vindos de uma

pequena caixa de som ligada a uma tomada no canto da sala. Enquanto tocava, o ambiente do grande hospital parecia mais acolhedor. A melodia era sentida de maneira particular por cada um ali daquela sala de espera. Uns esboçavam sorrisos tímidos, outros fechavam os olhos, alguns cabisbaixos. Havia também aqueles com os olhos marejados e outros com largos sorrisos. A criança do choro ardido olhava atenta e silenciosa para o saxofonista. Há três anos e meio o artista dedica dois dias de sua semana para levar música ao hospital. Começou ali na sala de espera. Depois o convidaram para tocar nas salas de quimioterapia, radioterapia, e, quando se deu conta, todas as alas do hospital já ouviam seu som. Os médicos o convidaram para tocar até no centro cirúrgico! Na UTI não pode entrar, mas ele vai até a porta do quarto e dali mesmo faz seu som… Uma vez uma paciente despertou do coma enquanto o rapaz tocava. O fato aconteceu há um ano e meio, mais ou

menos. Mas história marcante não tem como ser esquecida! Na sala de espera, depois do último acorde, o saxofonista de jaleco branco se apresentou: – Sou Hilquias, esse é um trabalho voluntário que faço aqui. Que Deus abençoe vocês. A minha frase é sempre esta: nunca desista, nunca desanime, porque Jesus está no barco da nossa vida, e ele nunca nos deixa só. Talvez nem todos deem muito crédito para o que o saxofonista diz. E nem precisam, a música já transmitiu o recado. O músico pega um punhado de CDs e os distribui para as famílias que estão naquela sala de espera. São em média 400 discos por semana. Conversa com cada um, oferece abraços e apertos de mãos. No grande hospital, a frieza foi substituída pela gratidão. Quando chega perto da criança que chorava, o saxofonista novamente saca o seu instrumento e, abaixado, olhos no garoto, sopra um tre-

cho de “Wood Woodpecker”, música tema de Pica Pau. Pronto! Logo a criança abre um largo e gostoso sorriso! O saxofonista parte para sua próxima tarefa: espalhar amor e, com seu gesto, aquecer o ambiente frio dos quartos de internação, do centro cirúrgico e de cada canto do grande hospital.


A (outra)

morte do leiteiro Ele sumiu. E levou muita gente junto.


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O homem cria a ferramenta. A ferramenta recria o homem

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cido, então pressupõem avanços nas relações das tarefas com as pessoas”, explica Allan Gonçalves, brand manager da Oppa, empresa brasileira de design de móveis que atua sobretudo na área de e-commerce. Sempre conectado, ele esteve por mais de dois anos no Kekanto, um guia colaborativo de serviços. Na start-up, além do cargo de brand manager, chegou a acumular funções de gerente de parcerias e community mannagement (CM). Esta última, inclusive, tende a ganhar espaço no mercado. Os CMs, ou Gestores de Comunidade, são responsáveis pela comunicação com os consumidores da empresa através de blogs, fóruns e redes sociais. Como uma espécie de “eu-lírico”, eles são as vozes por trás das telas de computador. Quase invisíveis, compõem parte da imagem da empresa para o público. Imagem esta que deve ser preservada a todo custo, sobretudo dos ataques públicos – e virais – dos implacáveis consumidores. Seguindo na mesma direção, a internet também se mostra como alternativa para a publicidade. A cada clique em ads (propaganda) hospedados em sites, estes lucram uma porcentagem sobre elas. Para 2015, a Interactive Advertising Bureau , uma associação de empresas do mercado de mídia interativa, estima que os gastos com publicidade digital cheguem a R$ 9,5 bilhões. Também foi com a internet que surgiram as mídias sociais, como o Facebook. Com efeito, cada vez mais as marcas investem em plataformas digitais. Embora ainda não se possa afirm ar com segurança que há estabilidade no cenário empregatício mundial, é certo que ainda podemos crer na expansão dos cargos ligados à internet. Enquanto assistimos a este espetáculo, um tanto encantados, um tanto bestializados, aproveitamos para sorver um gole de café. Na pressa, frio e puro – sem leite. O verde no semáforo indica: podemos seguir. Ou seria o verde de mais uma notificação no celular?

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ouve um tempo em que o café da manhã era uma refeição feita com calma. Na mesa, pão, queijo, manteiga, café e leite. Leite quente, que fora fervido após vir de longe, trazido pelo leiteiro. Jornais, impressos, eram folheados, feitos por repórteres que, com suas matérias, ajudavam a aumentar as vendas. Cartas eram esperadas. Cartas de parentes, amigos e amantes… Entregues de porta em porta pelos carteiros, que conheciam nossos nomes e nos recebiam com simpáticos “bons dias”. Hoje, o desjejum é uma refeição rápida, feita às pressas, com sonolência. Um gole de café, uma mordida no pão; um olho na tela do celular, nas mensagens do Facebook. Mudaram-se os tempos e todas essas profissões já não gozam de tanta estabilidade. O leiteiro morreu, porém não baleado, como cantou Drummond, e tendo sangue e leite misturados, “formando um terceiro tom / a que chamamos aurora”. Ele morreu obsoleto. Já o carteiro, ele ainda passa, mas não sabemos por quanto tempo. As constantes quedas anuais de 5% no número de cartas postadas fazem com que as estimativas de retração do mercado para essa profissão chegue a 28% nos próximos sete anos, segundo um estudo da empresa de consultoria em empregos CareerCast. As cartas que chegam não são mais de amor – no máximo, contas ou publicidade. Por que aguardar semanas até que um envelope – branco, pardo, amarelo – chegue a um amigo? WhatsApp não exige selos. É sintomático que, hoje, 46% dos lucros da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos se devam a atividades como compras pela internet. “O homem cria a ferramenta. A ferramenta recria o homem”, dissera Marshall McLuhan. Recriados, vemos as funções antes tradicionais desaparece-

rem ou se transformarem. Um estudo, realizado pela Universidade de Oxford (EUA), constatou que 47% das profissões correm risco de desaparecer devido ao surgimento de novas tecnologias. Houve mudanças nas demandas do mercado. Passamos para uma cultura imediatista, em que tudo é “pra ontem”. Se antes os jornais davam tempo para seus repórteres se debruçarem sob uma pauta, hoje vemos, inclusive, softwares que fazem textos sozinhos e em tempo recorde. Os cartórios e escritórios, antes dominados por datilógrafos, hoje contam com um ou dois funcionários que fazem tudo e mais um pouco com um simples computador. Em função disso, muitas pessoas se veem forçadas a mudar os rumos de suas carreiras. Flávia Sanchez é uma delas. Muito antes do Word Office se popularizar como editor de texto, ela se dedicava a ensinar datilografia para jovens por volta de seus 12 anos. Quase vinte anos após mudar de carreira, as batidas metálicas no teclado, repetidas à exaustão, ainda reverberam em sua cabeça sob a forma de cinco letras: “A, S, D, F, G / A, S, D, F, G / A, S, D…”. A Olivetti 82 virou peça de decoração em seu escritório. “Eles aprendiam a fazer ofícios, cartas, atas… todos os concursos públicos tinham alguma fase que era em máquina de escrever”. Com tempo contado e vendo apenas o que surgia no papel, os alunos eram submetidos a avaliações. Se bem sucedidos, terminavam o curso com diploma nas mãos e portas abertas. Mas na virada do milênio, a migração para os computadores tornou-se inevitável. Nesta época, a internet no Brasil começava a engatinhar. Com pequenos passos, ainda desajeitados, caminhava para se tornar, aqui e em todo o mundo, uma ferramenta hegemônica. Através da rede, novas empresas surgiram, habitando o mundo virtual. Dela, todo um novo ramo de profissões iria eclodir. “As novas profissões estão buscando alternativas ao que já foi estabele-

Por Otávio Nadaleto e Maria Beatriz Gimbo


Serviço de mulherzinha

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Thais Matos

Mediadora: Nossa mesa redonda de hoje vai tratar da divisão de profissões por gênero e como essa classificação prejudica a todos, mas principalmente às mulheres, que sofrem opressão e exploração no ambiente de trabalho. Quem quer começar? Damiana: Posso começar? (todos assentem). Trabalho como pintora de casas há três anos e as mulheres para quem eu trabalhei sempre me admiraram por desempenhar essa função. Elas me dizem “nossa, você é muito corajosa, uma guerreira”. Já os homens olham sempre com curiosidade e um pouco ressabiados. Quando estou fazendo a parte de fora das casas, as pessoas param para olhar. Mas eu amo a minha profissão, não tenho vergonha. Manoel: Eu estou desempregado há três meses. Faço faxina e essa é uma área que ainda oferece bastante vaga. Mas tenho certeza que serei rejeitado se oferecer meus serviços individualmente. As pessoas estão acostumadas com mulheres fazendo isso. Não sei se elas deixariam um homem entrar na casa delas. Giulia: Essa diferença entre essas profissões consideradas femininas ou masculinas tem a ver com a maneira que as pessoas são criadas. Professor de ensino infantil, que cuida de criança, é uma categoria esmagadoramente feminina e se enquadra na ideologia de que as mulheres são mães por natureza e nasceram pra cuidar de crianças. No ensino universitário, tem muito mais homens, porque tem a ver com a intelectualidade, que não está ligada à ideia da mulher emocional e não racional. É uma ideologia falsa, porque os homens podem sim, e devem, cuidar das crianças e têm totais condições de serem professores infantis. E as mulheres têm capacidade de serem professoras universitárias e não são inferiores.

Márcia: Eu sou a Márcia, trabalho na construção civil, no estado do Pará, e sou da diretoria do sindicato da construção civil. Dentro do canteiro de obras, o sistema machista é muito opressor e as mulheres sofrem muito assédio moral. A mulher é considerada o sexo mais frágil, falam que ela não dá conta de carregar as coisas, de desempenhar as tarefas físicas, que o trabalho da mulher não pode ser classificado por não ter a função. Nós estamos lutando pra que elas sejam classificadas e qualificadas, porque nós temos pedreiras, ajudantes de obra, marceneiras, carpinteiras. Fora isso, tem toda a questão do assédio sexual. Quando a mulher vai atrás de um emprego, ela tem que ser bonita. Se ela é bonita, tem que sair com o encarregado, o mestre de obras. Se elas saírem com outros trabalhadores do canteiro, elas são mal faladas. Elas não podem se relacionar com ninguém. E se elas forem brigar pelos direitos delas, elas são castigadas. Não podem se envolver com o movimento sindical, é muito difícil angariar mulheres para a luta. Mediadora: Que horror, Márcia. É inacreditável que ainda passemos por

ANA CAROLINA LEONARDI

isso. Para finalizar as falas, chamamos a Sílvia, membra da executiva nacional do Movimento das Mulheres em Luta. Sílvia: É muito grande a opressão que as mulheres sofrem no trabalho e essas pautas precisam ser incorporadas às reinvindicações dos sindicatos e às lutas por melhores condições de trabalho no geral. A segregação do trabalho por gênero faz com que as mulheres que decidem optar por transgredir essa norma sejam vistas como incapazes de desenvolver a atividade profissional e acuadas dentro do próprio emprego. Para fazer com que as mulheres se sintam fortalecidas inclusive pra lutar contra a exploração, é preciso que isso seja combatido nas organizações de trabalhadores e convença os homens da classe que isso é uma imposição da ideologia machista. Wana: Mas quando começamos a nos mobilizar, nós mobilizamos também as outras. Eu trabalho como motorista e já recebi o testemunho de muitas mulheres que tomaram coragem para tirar habilitação e até procurar esse emprego depois de me verem dirigindo ônibus. Não podemos perder as esperanças. Mediadora: Agradecemos a presença de todas e todos e até o próximo debate.


THAÍS MATOS

ANA CAROLINA LEONARDI

Luiz Alberto tem 48 anos, é casado e pai de duas filhas. Morador do Tatuapé e torcedor fanático do Palmeiras, Luizão - como é chamado pelos amigos - adora assistir aos jogos do seu time, principalmente quando acompanhado de uma boa cerveja e petiscos gordurosos. “Aos finais de semana tá liberado!”, ele diz - e está certíssimo. Se perguntarem a ele sobre seu trabalho, porém, Luizão provavelmente ficará em silêncio por alguns segundos, e responderá com um olhar conformado: “Trabalho? Bom, eu tinha um, mas não tenho mais”. É… Agora, ele é parte dos 6,8 milhões de brasileiros atualmente desempregados - ou “desocupados, mas economicamente ativos”, como o IBGE prefere chamá-los. Depois de quase 20 anos trabalhando na área de vendas e merchandising de uma grande empresa, Luizão foi mandado embora e está sem trabalhar há dois meses. Se ele já esperava? “Esperava, porque o ano passado foi muito ruim. Mas a gente fica torcendo pra que não, né?”. É, Luizão, a situação do país não é nada confortável: assim como sua empresa teve que demiti-lo para cortar gastos, outras organizações têm tomado a mesma iniciativa - e a taxa de desemprego no Brasil (6,8%) já é a maior desde maio de 2013. As perspectivas para o futuro não são otimistas, e o país ainda deve sofrer com o aumento do desemprego pelos próximos três anos, como prevê a Organização Internacional do Trabalho (OIT) em seu informe anual. Os dados são decepcionantes, mesmo. Essas altas taxas de desemprego podem ser explicadas a partir de uma combinação de fatores: além da alta dependência do bom desempenho de suas commodities no mercado internacional,

Bola pra frente! Anaís Motta

o Brasil optou por crescer economicamente nos últimos anos com base no incentivo ao consumo e na expansão do crédito, o que não é sustentável ou eficaz a longo prazo. O cenário é ruim, mas não eterno não é, Luizão? “Tudo vai melhorar. De tempos em tempos, temos momentos bons e ruins. Esse ano vai ser muito ruim, com certeza, mas dá pra se arrumar, sabe?”. Claro que dá! Mas se o novo emprego não vier? “Eu penso em comprar alguma franquiazinha no comércio, porque depender do seguro desemprego é furada!”. Ainda bem que você sabe, Luizão. Além de finito, o auxílio fornecido pelo seguro desemprego é mínimo, e a burocracia para solicitá-lo é enorme. A partir das novas regras, que começaram a valer em março deste ano, quem quiser fazer sua primeira solicitação do seguro deve ter trabalhado por, pelo menos, um ano e meio na empresa que o dispensou. Isso prejudica principalmente os trabalhadores mais jovens, que costumam ficar menos tempo no mesmo emprego. “Mesmo assim, a gente vai fazendo o que pode”. Isso aí, Luizão! “Reduzi bastante o consumo de coisas desne-

cessárias e tô procurando economizar energia, porque tá custando os olhos da cara!”, diz ele com os olhos arregalados, como se realmente fosse arrancá-los e trocá-los por uma lâmpada acesa. “Desesperado não estou. Preocupado? Sim, a situação do país não é das melhores, mas vou seguindo. Já retomei o contato com pessoas importantes, atualizei meu currículo e até participei de alguns processos seletivos. Agora é torcer. Se não der certo, vou partir pra aquela história de comércio que falei. É importante ter plano B, né? Mas vai dar tudo certo”. Claro que vai, Luizão - e, com sorte, não só para você, mas também para outros milhões de desempregados do país. Somos brasileiros, e brasileiros nunca desistem - mesmo que as perspectivas não sejam nada positivas. “Bem que tudo podia dar certo pro Verdão também, hein? Na Copa do Brasil, no Brasileirão...”. Calma lá, Luizão. Talvez você esteja pedindo demais.


Eu não quero ir Júlia Pellizon

“Eu ficava falando para mim: ‘Eu não quero ir, eu não quero ir, eu não quero ir’. Aquilo ia crescendo dentro do peito, dando uma angústia. Eu respirava e não enchia o peito”. Apenas a lembrança faz com que Rita Beatriz Boranga se emocione ao retornar àquele período. Com 25 anos na carreira de magistério, ela trabalhou, de fato, durante 21 anos. Por quatro deles, afastou-se das salas de aula pelo pavor que sentia ao entrar em contato com o ambiente de trabalho. Professora de Química de uma escola estadual no bairro da Mooca, na Zona Leste de São Paulo, Rita Beatriz sofria de uma série de sintomas. Tontura, transpiração excessiva e até diarreia eram as manifestações físicas, porém, psicologicamente, sentia-se ainda pior. Entre 2005 e 2006, ela descobriu a causa: era o próprio trabalho. A professora desenvolveu uma doença do trabalho, quadro em que o paciente adoece por condições múltiplas presentes no meio de ofício e é geralmente marcado por depressão

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e ansiedade. No caso de Rita, os porquês do estado de estresse e humor deprimido se explicavam pela pressão e recente relacionamento conturbado com colegas e alunos, diferente do ambiente tranquilo dos anos anteriores. “Eu tinha certeza de que era por causa do trabalho. Perseguição da direção, coordenação e de alguns professores era intensa. Fora que a sala de aula não é fácil. O aluno não respeita, não tem interesse, é indisciplinado. Junta tudo em um pacote só”, explica a professora. Rita custou para admitir a necessidade de apoio profissional. “De primeiro momento, eu não quis procurar. Achei que não fosse importante, porém chegou um ponto em que eu não entrava na escola e vi que precisava de ajuda”, conta. Como no caso dela, a demora para a busca de assistência é comum em pacientes que convivem com tais problemas. Isso porque reconhecer a presença de uma doença psicológica desenvolvida por causa do trabalho carrega um estigma social, de acordo o médico especialista em Medicina do Trabalho, João Silves-


tre. “O que chamamos de nexo causal, isto é, a relação entre a doença e a exposição a um ambiente de trabalho com problemas, deveria ser discutido com mais frequência, visto que a pessoa passa muitas horas da sua vida trabalhando”. O ponto decisivo para enfrentar o estigma veio em mais um dos dias difíceis e angustiantes de Rita. “Eu passei tão mal que eu não conseguia dirigir. Eu tinha medo, pegava o carro e parecia que tudo estava vindo em cima de mim”. Foi quando ela foi atrás do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador, uma unidade do Sistema Único de Saúde. Assim que chegou, foi atendida pelo serviço de enfermagem e depois por uma psicóloga. “Nunca vou me esquecer do que ela disse: ‘Rita, você está em um grau de estresse tão grande que você vai continuar aqui até você melhorar e a gente conseguir um encaminhamento para um médico particular ou no Servidor Público. Do jeito que você está, não tem condições de trabalho’”, relata a professora. Até 2020, a Organização Mundial da Saúde prevê que os quadros mentais sejam a principal causa de afastamento do trabalhador. Durante

os quatro anos em que esteve longe do ofício na escola estadual, Rita frequentou especialistas como psiquiatras e psicólogos. Nos primeiros meses com o tratamento corriqueiro para depressão, adaptou-se às doses de fluoxetina, antidepressivo receitado para a professora. Os momentos especialmente críticos exigiam porções maiores do medicamento. “Às vezes eu parecia um zumbi, porque era uma quantidade cavalar. Praticamente não tinha reação. A Rita estava escondida atrás do remédio”. Já se passaram dez anos desde o início da doença. Rita Beatriz retornou à escola estadual que teve de abandonar, como professora readaptada desde o dia 4 de maio de 2011. Atualmente, por escolha própria, trabalha na Sala de Leitura do colégio. Mesmo com a volta à atividade, ela analisa: “Sarei? Não, não sarei. Eu não sei se tem cura, não”. Em conjunto com a psicóloga que frequenta, nas sessões às sextas­feiras, a professora encontra o caminho em exercícios diários para lidar com os medos. “Voltei firme, forte, mas não curada. Eu ainda tenho dores de estômago, estresse e sofro. Tenho aqueles sintomas, só que hoje encaro e respondo de outra forma”.

Empregado? Desce! Thiago Neves

claro! | maio 2015 11

No dia 27 de abril se comemora o Dia da Empregada Doméstica, uma dessas datas na que a minoria recebe uma pequena parcela do respeito - e reconhecimento - que lhe é negada nos outros dias do ano. Em comemoração a esse dia, uma empresa de produtos de limpeza publicou uma campanha publicitária bastante despretensiosa, na qual uma mulher negra, vestida com um uniforme de doméstica, sorri ante uma cozinha limpa. A fotografia não choca; o que incomoda é a enorme quantidade de coisas não ditas. Profissões como empregadas domésticas, ainda muito presentes no Brasil, trazem consigo uma série de heranças. Durante o processo cultural deste ofício, estabeleceu-se uma relação de subserviência, do estabelecimento de uma hierarquia, manifestada por comandos, desencadeando em uma obrigatoriedade de respeito unilateral, no caso, do empregado em relação ao empregador. Há exceções, evidente. Mas seria desonesto negar o quão poderosa soa a palavra patrão no Brasil. Dentro do cotidiano, no qual o sujeito tem contato com informações constantemente, é sabido que ainda há no mundo episódios nos quais grandes empresas são denunciadas pelo uso de trabalho escravo análogo, como o aconteceu com a rede de fast-fashion espanhola Zara, em 2011. A repercussão do ocorrido alcançou os grandes meios de comunicação, felizmente, desencadeando em críticas à grife, ameaças de boicote e maior fiscalização na linha produtiva da Zara. Instituições especializadas no combate ao trabalho escravo alertam que a prática é muito mais disseminada do que se imagina, ou seja, a exploração institucionalizada do trabalhador é muito mais comum do que parece. Não se trata de uma avaliação sobre as consequências de uma relação de subserviência, na qual o trabalhador é imerso em um ambiente inóspido e absolutamente degradante. Entretanto é indispensável propor o debate sobre as origens dessa noção que permite que o dono dos meios de produção se sinta no direito de minimizar a humanidade do empregado. Seja nas confecções em São Paulo nas quais diversos imigrantes bolivianos são submetidos a jornadas exaustivas, ou em prédios nos quais as empregadas domésticas devem subir no elevador de serviço, junto com animais e cargas, ou seja, com tudo aquilo que não pode frequentar o espaço social. Por trás dos desapercebidos atos está um processo cultural perverso, que age no comportamento cotidiano, refletido numa permissividade vil que, por sua vez, estabelece-se de maneira sólida como uma indignação seletiva, onde discute-se, exclusivamente, os sintomas da doença. A causa, portanto, permanece intacta. A indignação é justificada ante o caso Zara, por exemplo; no entanto, não há a menor problematização sobre os abusos comportamentais em profissões cotidianas. O desrespeito ao indivíduo ocorre em atividades corriqueiras, e aparentemente inofensivas. Como a realidade do porteiro, que deve estar sempre alerta, sendo impedido de deixar seu posto sob a ameaça de alguém chegar e não admitir esperar que o empregado vá ao banheiro. Ou quando domésticas são proibidas de comer certo tipo de alimento disponível na casa onde trabalham. Afinal, quem não frequenta o elevador social, também não deve poder experimentar da sobremesa, ou ir ao banheiro quando tem vontade. O que incomoda, na histórica - e atual - composição social é unicamente aquilo que não atinge os privilégios de quem não deve obediência, de quem domina. Problematizar a desumanização de quem é mais pobre tem como reflexo a notória necessidade de se rediscutir o quão cômoda é a nossa vida, e o quão fácil é se indignar apenas com o que nos é conveniente.


A morte é um negócio sério ANA CAROLINA LEONARDI

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claro! | maio 2015

Rafael Bahia Sua visão embaça. A imagem de sua família aos pés da maca é substituída pela escuridão. A sensação de medo ante o desconhecido toma conta. Tudo o que você enxerga é uma trêmula luz ao longe. Aos poucos, você não percebe mais seu corpo, não ouve mais o choro dos que te amam, não sente o cheiro do vaso de rosas na cabeceira. Você morreu… Ei, mas será que dá para virar o rosto só um pouquinho para a direita, porque esse lado não te favorece?! A morte se tornou um negócio lucrativo. Funerais antes feitos em casa, com flores recolhidas pela criançada do bairro, tornaram-se incumbência de agências funerárias, floriculturas, cemitérios e crematórios. Isso sem contar os coveiros, guardas de cemitério, operadores de fornalhas e as famigeradas carpideiras. Essa indústria mórbida, como qualquer outra, cresceu e hoje conta com serviços requintados, propaganda, concorrência e todas as jogadas de marketing a que tem direito. Atualmente, o falecimento de um ente querido se tornou um evento a ser organizado por buffets especializa-

dos e preços pela hora da morte (com o perdão do trocadilho). A tradição de dar um ar mais festivo às cucuias é presente em muitas culturas. O Día de Los Muertos mexicano é muito mais animado que o nosso Finados; a cultura japonesa também é mais receptiva em relação à morte. No interior da China, o Ministério da Cultura tem feito esforços para reprimir a presença de strippers nos velórios. Sim, é isso mesmo. Já na cultura geral brasileira, a morte sempre foi um tabu: o telefonema no meio da madrugada, o gato que subiu no telhado… Mas essa postura de temor já está mais para lá do que pra cá. O que tem gradualmente acontecido no Brasil é uma mudança de comportamento em relação à morte, e isso se reflete no surgimento de casas como a Funeral Home, localizada próxima à suntuosa avenida Paulista. “A ideia era fazer velórios estilo americanos, ou que remetessem ao tempo em que se velava o corpo em casa”, diz Márcia Regina Pinto, gerente da empresa. “A família entra em contato e nós fazemos toda parte de assessoria: pegamos a declaração de óbito, levamos books com fotos de ur-

nas e flores etc. A família, então, pode ser dispensada e nós acompanhamos a remoção do corpo até o local do velório, fazemos troca de roupas, higienização, maquiagem, ornamentação com flores, ou seja, tudo.” Depois de sete dias úteis (e sete palmos abaixo da terra), toda a documentação de cartório é entregada na residência da família. No entanto, há serviços mais emblemáticos que explicitam essa nova maneira de encarar a morte: se solicitado, o evento pode contar até com lembrancinha. “No caso de retrospectiva em vídeo, temos televisores e DVD em todas as salas”, garante Márcia. Para a gerente, a grande vantagem que alavancou esse business é a praticidade: “A família não precisa se preocupar com nada, só em estar presente.” De fato, no momento de uma dor tão intensa, há muito mais com o que se preocupar do que toda a burocracia e planejamento. Aqueles que podem arcar com as despesas, preferem pagar não só pelo necessário, mas também pelo sofisticado. Afinal, se um dia todos nós vamos abotoar o paletó, por que ele não pode ser um Armani?


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