claro! musical | Abril 2019

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claro!

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Texto: André Martins e Pedro Vittorio Arte: Letícia Vieira Diagramação: Bruno Menezes

Imagine que você está no metrô. Vagão cheio, sem lugar para sentar, apinhado de gente. Agora olhe ao seu redor: quantas pessoas estão de fone? Dessas, quantas será que estão ouvindo música?

A bem da verdade, o transporte público representa apenas uma pequena parcela da presença da música em nossas vidas. Este editorial, por exemplo, foi escrito ao som de uma playlist.

Sem escapatória, estamos cercados por ela, nas suas mais variadas formas e representatividades. Nada mais justo do que a música como reflexo da sociedade. Sua identidade é caracterizada por perrengues, alívios, beleza, alegrias…

Carregada de sentimento, ela atua também como instrumento. Através dela, luta-se contra pobreza, preconceito, exclusão social. Suas letras ilustram batalhas travadas pelos mais diversos grupos, muitas vezes buscando um lugar sob os holofotes — e dedicando sua vida a isso.

Já pode parar de imaginar. Um álbum eclético, pensado para esta edição, te aguarda. Aproveite as faixas... quer dizer, páginas seguintes do claro! musical.

Expediente: Reitor: Vahan Agopyan. Diretor da ECA-USP: Eduardo Henrique Soares Monteiro. Chefe de Departamento: André Chaves de Melo Silva. Professora responsável: Eun Yung Park. Editores de conteúdo: André Martins e Pedro Vittorio. Editora de arte: Maria Carolina Soares. Editora de imagem: Letícia Vieira. Editora online: Ana Cipriano. Diagramadores: Bruno Carbinatto, Bruno Menezes, Gabriel Bastos, Gabriela Teixeira, Maria Clara Rossini e Thais Navarro. Repórteres: Amanda Péchy, Bruno Nossig, Gabriela Bonin, Giovana Christ, Giovanna Costanti, Giovanna Simonetti, Henrique Votto, Juliana Santos e Sabrina Brito. Repórteres online: Bruna Diseró e Guilherme Weffort. Repórteres de vídeo: Laura Molinari e Wender Starlles. Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, prédio 2 - Cidade Universitária, São Paulo, SP. CEP: 0558-900. Telefone: (11) 30914211. O claro! é produzido pelos alunos do quinto semestre do curso de Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso - Suplemento. Tiragem: 6000 exemplares.


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Por favor, troque de rádio Texto: Bruno Nossig Foto: Bruno Menezes Diagramação: Bruno Menezes

Toda viagem de Uber começa igual: “Você pode abrir o porta-malas, por favor?” Enquanto guardo o violoncelo, antecipo a pergunta iminente. Entro no carro, coloco o cinto e ouço: “Você toca?”. “Sim, sou violoncelista.” “Entendi. Vamos ver... Você vai para o Theatro Municipal?” “Sim, é isso mesmo.” Enquanto o carro começa a tomar o destino das ruas de São Paulo, o ambiente fica em silêncio. “Opa, você poderia colocar na Rádio Cultura?” Ele muda a estação. Já são 7h40, próximo do Diário da Manhã, mas ainda será possível apreciar um pouco do clássico. No fundo, ainda baixo, se escuta Franz Schubert. A melodia talvez combinasse mais com as pequenas ruas de Viena, mas, inesperadamente, cria uma certa harmonia com o acinzentado de São Paulo. O cinza também combina de forma melancólica com meu humor. Sinto um certo cansaço do dia anterior e isso me impede de ter uma conversa mais longa. A rotina de acordar cedo, retornar só à noite para casa e limpar o instrumento no pouco tempo livre antes de dormir é exigente. Enquanto o carro vira para a Major Sertório, escuto: “Que compositor é esse?” “É Franz Schubert, compositor austríaco. Você está gostando?” “Sim. Agora de manhã bate aquele sono, mas a melodia é legal. Acalma, né? Você costuma a tocar as músicas dele?” “Em alguns concertos sim, mas não em todos”.

Texto: Bruno Nossig Arte: Bruno Menezes Diagramação: Bruno Menezes certos, Óperas. A orquestra está sempre presente.” A música clássica tem se difundido e se modernizado. Cada vez mais vemos cantores sendo pendurado em cordas, uma atração do circo que veio parar na Ópera. Peças misturam o clássico com o popular e o Jazz. Tudo parte de estratégias para atrair espectadores. Depois das peças, quando falo com o público, é normal conhecer pessoas que foram ao Theatro pela primeira vez. Quando percebo, já estamos cortando na Ramos De Azevedo. Com pressa, aviso o motorista. “Pode encostar aqui mesmo.” Saio do carro. E, como de costume, olho para cima e vejo a lateral do Theatro. Pego meu instrumento. Enquanto subo as escadas, olho para trás e vejo que o carro segue preso no trânsito, ainda perto da minha vista. A conversa foi curta, mas o interesse foi levantado. Perguntas e questionamentos. Mesmo que tenha sido só uma música. Ainda assim, não consigo parar de me perguntar: será que ele trocou de rádio? Colaboraram: Marcelo Barbosa, flautista do Theatro Municipal, Cláudia Arcos, cantora do Theatro Municipal, Desireé Brissac, estudante de Piano em Artes da Unesp e Nitai Candra, estudante de Fagote da ECA-USP

A verdade é que compensa.

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“Vocês têm se apresentado muito?” “Sim, no Municipal fazemos algumas apresentações. Peças, con-

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O investimento do governo é pequeno e são poucos eventos. Com isso, falta trabalho. Os cortes governamentais aumentam o pessimismo e é difícil avaliar no que tudo vai dar.

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Tocar é o que me move e lembro disso todo dia antes de entrar no Theatro. Em uma profissão rodeada por informalismo, me tornar um dos 109 instrumentistas do Municipal parece uma benção. Muitos amigos ainda lutam por um emprego constante.


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NÃO PODE PARAR O sertanejo não acabou Universitário é mais um nome Ele só se modernizou Se adaptou ao novo homem

Texto: Giovana Christ Arte: Letícia Vieira Diagramação: Gabriel Bastos

O Bucolismo continua Com a saudade do interior Mas mesmo o mais urbano da patota Se rendeu à cultura do chapéu e bota

Mais acesso à informação, Aos centros urbanos e à graduação O sertanejo acompanhou tudo isso Sem abrir mão do povão

Henrique & Juliano se formou e cresceu Estão famosos como Jorge e Mateus Todo mundo conhece Marília Mendonça E o feminejo chegou como outra mudança

Com redes sociais e festas nas letras A música soube se atualizar Não à toa, já existe há nove décadas E não tão breve irá acabar

A sofrência não pode parar Terminou? Bora beber no bar Do rompimento à superação O sertanejo sempre dá uma mão

A sofrência não pode parar Terminou? Bora beber no bar Do rompimento à superação O sertanejo sempre dá uma mão

Novos projetos educacionais Trouxeram a classe C para as federais Jovens de todos os estratos sociais O sertanejo juntou aos demais Colaborou: Brian Requena, mestre em sociologia pela FFLCH - USP

Fonte: Ibope, Google Trends e YouTube

A SOFRÊNCIA


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uM relato DE MUITOS São quase 200 milhões de usuários ativos no Spotify. Talvez por isso, subir minha primeira música na plataforma gerou reações positivas em minhas redes sociais. “Agora você começou de verdade”, disse um amigo. Eu, que já estava no YouTube e no Soundcloud há tempos, fui legitimado como artista pela força de uma plataforma de streaming. Faço música por hobby, enquanto ainda não vivo dela. No início, não fazia ideia do processo para subir músicas nas plataformas. Um pouco de pesquisa e conversas com outros artistas independentes me esclareceram o procedimento. Foi preciso encontrar uma distribuidora, o primeiro passo para validar a produção musical. Também chamada de agregadora digital, é quem gerencia as músicas dentro do streaming. A ponte entre o artista e a plataforma. Fui logo atrás da mais famosa no Brasil e subi os arquivos para uma avaliação do conteúdo. Negado. Minha música foi acusada de plágio e, por isso, a agregadora não a colocaria nas plataformas. Lembrei, então, que tinha usado uma fala de três segundos retirada de um filme da década de 20. Como conseguiram identificar aquilo? Comecei a descobrir as minúcias do mercado no qual estava entrando. Os funcionários da distribuidora foram unânimes: “plágio é crime e as plataformas levam a sério as preocupações com o conteúdo”. Teimoso como sou, busquei outra agregadora. Encontrei uma, espanhola, que aceitou minha música, mesmo com o trecho do filme. Pronto. Spotify, Deezer, Apple Music, Tidal. Eu estava em todos. Tenho conhecidos que passaram por situações semelhantes. Uma amiga tentou subir uma faixa, mas teve o pedido recusado porque sua imagem de capa não continha o nome da música — algo obrigatório nas plataformas. Outro colega, que toca rock experimental, foi negado por ter músicas que têm um nível de ruído não aceito pelo streaming. Para estar nas plataformas, tivemos uma pequena pedra no caminho. Apesar disso, o mercado é convidativo a artistas independentes. Se sua música está nas plataformas, o lucro se divide com as distribuidoras ou pode ser todo seu. Mas é importante entender algo a que, no início, resisti: o streaming é um mercado como qualquer outro. É preciso se adequar às padronizações. Divulgar produções próprias tem um preço. Nem gigantes da música têm plena liberdade artística. No fim das contas, a maioria dos artistas quer o mesmo: viver da música e se divertir no processo. Afinal, nós queremos reconhecimento mas fazemos porque gostamos. Enquanto busco espaço no mercado, continuo os estudos na universidade, já que a música ainda não paga minhas contas.

Colaboraram: DJ Brisalicia, Cesar Neto, baixista da banda “Flerte Flamingo”, Victor Kroner, produtor musical

Texto: Gabriela Bonin Arte: Gabriel Bastos Diagramação: Gabriel Bastos

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Texto: Giovanna Simonetti e Henrique Votto Arte: Letícia Vieira Diagramação: Gabriela Teixeira

“Aserehe ra de re / De hebe tu de hebere seibiunouba mahabi / An de bugui an de buididipi”. Reconhece? A música “Ragatanga” – e seu refrão “chiclete” – figurou no topo das mais ouvidas nas rádios em 2002 e alavancou o sucesso absoluto e repentino da banda Rouge nacionalmente. Hoje, pode ser que você esteja mais familiarizado com uma canção que exclama: “Ô sol, vê se não esquece e me ilumina / Preciso de você aqui”. “O Sol”, 15 anos mais nova, é o single de maior destaque de Vitor Kley, e estourou tanto que está bem próxima de chegar à marca das 100 milhões de reproduções no Spotify. Mas por que “O Sol” e “Ragatanga” se tornaram um sucesso, e milhares de outras não? Rouge e Vitor Kley concretizaram aquilo que é a obsessão de centenas de artistas: produzir hits. Pode-se dizer que um hit é aquela música que toca bastante nas rádios. Ou que tem números expressivos nas redes sociais e nas plataformas de streaming. Que domina as paradas musicais, charts como os da Billboard, uma das revistas mais influentes da indústria fonográfica — ou mesmo tudo isso junto. Porém, para Marcos Lauro, ex-editor da Billboard Brasil, o critério decisivo é o retorno popular: “No fundo, o que vale mesmo é a repercussão, o que está na boca do povo”.

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No entanto, há outra forma de contar essa história. Vitor Kley poderia estar ainda entre os anônimos se não fosse descoberto pela Midas Music em 2015 – ou você já ouviu falar de “Caminhos do Hawaii”, faixa lançada pelo artista seis anos antes? O mercado fonográfico é movido a cifras milionárias e os hits são potencializados por ações promocionais, shows, clipes, aparições na televisão e, principalmente, presença no rádio. Luciana Andrade, ex-integrante do Rouge, viveu essa realidade na pele e explica: “Um artista acontece porque tem uma grande assessoria, um grande plano de marketing, um grande investimento”. Mas ela garante que nada acontece se você não tiver uma música grandiosa na manga.

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Em meio a tantos termômetros, uma sentença é verdadeira: “Usar fórmulas e ter sucesso não são sinônimos”, aponta Marcos. A mesma receita que leva um artista ao pico pode manter outros milhares no anonimato. Quando “O Sol” saiu da gravadora Midas Music para penetrar nos ouvidos dos brasileiros, ela poderia ter o breve e ingrato destino de tantas outras faixas – e a linha para estourar, às vezes, é muito tênue. “A ‘mágica’ ali foi a letra. Quando o Vitor mostrou, a gente percebeu que tinha potencial”, relata Fernando Prado, produtor que acompanhou a gravação do single. No final das contas, como diz a letra, “Quem ficar, ficou / quem foi vai, vai, vai”.


EMENTOS

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Certos aspectos podem aumentar as chances de uma canção bombar. Uma das formas mais certeiras de fazer sucesso, segundo Fernando, é quando uma faixa se transforma em trilha sonora de momentos do dia a dia: a música para a balada, para dirigir, ficar entre amigos. Gabriel Camargo, membro da gravadora Starge, acrescenta que é mais fácil estourar com temas que estão em alta e que geram uma “identificação massiva” – amor e relacionamentos são alguns dos mais clássicos. Por outro lado, segundo um estudo coordenado pela pesquisadora Kelly Jakubowski, da Universidade de Durham, na Inglaterra, músicas otimistas e animadas têm mais chances de ficarem presas em nossas mentes. Parece o caso dos nossos Aserehes e Ô sóis. Pelo lado mais técnico, melodias simples e notas repetidas são mais propensas a estourar, explica Gabriel. O comprimento também influencia: as músicas estão cada vez mais curtas e diretas. Marcos explica que, nos anos 80 e 90, havia uma preocupação maior com a estrutura tradicional da música: introdução, primeira e segunda estrofe e assim por diante. A partir dos anos 2000, muitos dos hits já começam pelo refrão – em “Ragatanga”, ele dá as caras antes dos 40 segundos. Com a internet e suas infinitas ofertas, a tendência é que isso se acentue. “Hoje, se a música não te pega nos primeiros segundos, você muda, porque sabe que existe mais um monte”, revela Luciana. No fundo, o surgimento de um hit é resultado de uma combinação entre a expressão do artista, estratégias de mercado e — por que não? — o acaso. Quem não possui recursos para um plano de marketing depende do caminho mais longo: o boca a boca orgânico. Não é impossível. As redes e seus artistas virais estão aí para provar. Mas são tantas ofertas que, como lembra Luciana, “você precisa trabalhar mais para ser visto”. E se for visto e ecoar pelas rádios do país, fazendo com que os ouvintes repitam ao vento refrões sem sentido algum, é sinal que deu certo: um hit foi criado.


Fotos: Reprodução Legendas: G1, Folha de SP e Correio Braziliense

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Quebrada Queer, grupo de rap da periferia de São Paulo, é formado por cinco homens e uma mulher abertamente homossexuais. Suas letras contam com referências e alusões a temas LGBT+ e à resistência das minorias

Texto: Sabrina Brito Arte: Letícia Vieira e Maria Clara Rossini Diagramação: Maria Clara Rossini

Todos homens e nenhum assumidamente LGBT. Esse é o perfil dos cinco artistas e cinco grupos mais ouvidos do Spotify em 2018, segundo a própria plataforma. A dominância masculina e hétero no mundo da música não é difícil de notar. Contudo, a indústria musical tem, aos poucos, reconhecido a importância das minorias. Em 2019, por exemplo, as vitórias de artistas femininas nos Grammys refletiram de forma inédita a presença de mulheres no meio: 31 cantoras levaram o troféu para casa, número 82% maior do que em 2018. Segundo Eliana da Silva, doutora em música pela USP e cofundadora de um grupo de estudo que foca em mulheres no universo da música, a maior ocupação de espaços por esses grupos minoritários está ligada a uma valorização recente de sua contribuição musical. Um caso interessante é o do Quebrada Queer, grupo de rap da periferia paulista composto por seis homossexuais. Segundo Murillo Zyess, um dos integrantes, a importância do seu trabalho está no empoderamento do público LGBT. “As pessoas nos dizem que, depois de nos ouvir, se sentem mais fortes e conseguem enfrentar seus medos. Representá-las me emociona e motiva a continuar”, conta. “Não é mais só nosso sonho, é como uma missão.”

Mas o processo de mudança será longo. Murillo conta que não é raro receber mensagens homofóbicas que tentam desmotivá-lo, dizendo que o rap é música “de macho”. A discriminação, no entanto, já era esperada. “Sabíamos que íamos ter críticas e que haveria haters, já que o público é majoritariamente masculino. Tivemos que nos impôr duas vezes mais”, relata. O preconceito também pode ser um enorme desafio no meio da música. “Já fui barrada por segurança em show onde ia tocar”, relembra Desirée Marantes, fundadora da gravadora Hérnia de Discos, que só lida com projetos de mulheres. O funcionário, explica, não acreditou que a apresentação seria feita por uma mulher, e confundiu Desirée com uma fã. Marcos Lauro, ex-editor do site da Billboard Brasil, ratifica a complexidade do cenário. “Mulheres e LGBT enfrentam mais dificuldades”, diz. Todavia, ele acredita que essas vozes têm crescido, ainda que timidamente, e que a situação está mudando. Lauro aponta, ainda, que a música é como um espelho da sociedade: quando os preconceitos de uma se dissipam, a outra é proporcionalmente afetada. O empenho das minorias é outro fator que entra na equação. Desirée opina que mulheres têm buscado apoio mútuo e desenvolvido iniciativas que ajudam na formação e capacitação umas das outras, o que tem feito a diferença. Com a diversificação dos artistas que chegam a nós, o público representado por eles fica à vontade para ouvir suas músicas, ir aos seus shows, sentir-se vivos nesse novo mundo musical. “E, para quem não faz parte desses nichos, é importante saber que há cantores que levantam essas bandeiras e por quem eles podem se interessar”, conclui Marcos. “Essas pessoas vieram para ficar”, reitera Eliana da Silva. “E a sociedade ganha com isso porque se torna tolerante, aprende com o diferente.”


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para fica r Ana Cañas, cujas músicas frequentemente tangem temas feministas e políticos, participou, em abril, de um encontro para debater a participação da mulher na música brasileira organizado pela União Brasileira de Compositores

Classificação geral

Dados de 2018 / Fonte: Forbes

Gloria Groove se tornou a drag mais ouvida do Spotify no final de março, quando ultrapassou Pabllo Vittar. Groove conta com mais de 3 milhões de ouvintes mensais

Liniker, cantora transexual engajada nas causas negra e LGBT+, se apresentou no Lollapalooza dos últimos dois anos com shows cheios de falas militantes Dados de 2018 / Fonte: Forbes


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ENTRE BAILES, BALAS E BLUES Texto: Amanda Péchy e Juliana Santos Arte: Letícia Vieira Diagramação: Bruno Carbinatto

Os saxofones são instrumentos transpositores — ou seja, a nota escrita no papel é diferente da que ouvimos. Julio Theodoro de Souza, de certa forma, era como seu instrumento. Ao escutá-lo tocar, ninguém imaginaria o que estava por trás desse jazzman. Nosso saxofonista nasceu órfão: a mãe morreu no parto e o pai desapareceu. Foi criado pelos avós, ex-escravos que moravam nas terras de seu antigo senhor. Quando faleceram, ficou só, e a solução para sobreviver foi a música. Hoje, quase um século mais tarde, Filiph Neo, neto de Julio, conta ser ele sua principal referência. “É fundamental entender o sofrimento de meus ancestrais”, afirma Neo. O cantor de R&B (rhythm and blues, gênero desenvolvido a partir do blues e gospel) se construiu a partir de histórias do avô: para ele, músi ca é legado, e a ascensão de artistas negros no Brasil desperta a identidade “para além do navio negreiro”. Como diz, “não tem como mudar o rumo de uma história sem conhecê-la”.

Também transpositora, a história escrita difere da real, principalmente no que diz respeito ao espólio afrodescendente. “É inferiorizado tudo aquilo que vem do negro”, declara Talíz de Oliveira, também artista de R&B. Quando começou a cantar na igreja durante a infância, na periferia de Brasília, ela já sabia que não se encaixava no padrão aceito. Apesar de achar que o aumento da visibilidade de artistas negros abre portas para outros, afirma que a representatividade é muito pequena. Quem nasceu nos anos 80, por exemplo, vivenciou o que Daniela Gomes, pesquisadora de black music da Universidade do Texas, chama de “geração Xuxa” – quando só havia corpos brancos na mídia, e alguém com sua melanina nunca seria paquita. “Ver negros em posição de destaque é novo”, conta. Isto explica como pessoas negras, num país onde são mais de cem milhões, tiveram de buscar referências no estrangeiro. A maior inspiração de Talíz, por exemplo, é Lauryn Hill (célebre rapper estadunidense, dona de oito prêmios Grammy e 19 indicações). Importada, a black music ajudou a moldar a música negra brasileira, que ganha traços próprios. Somada ao crescimento da cultura hip-hop, aumento do poder aquisitivo da população e evolução da internet, novas vozes ganharam espaço. “Hoje temos uma geração de artistas que entende o papel da mídia como fundamental para propagar sua arte”, conta Daniela.


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Com maior exposição, as modalidades da black music vão além da população negra para ser consumida pelo restante do Brasil — incluindo brancos da elite. Só que visibilidade não garante ascensão. “Nós produzimos, mas não somos donos do dinheiro”, lembra a pesquisadora. “O racismo é uma estrutura de poder, também presente na cultura.” Nessa estrutura, pessoas negras encontram na música uma forma de resistir. Para Daniela, arte é resistência, cultura é resistência, e ser negro é resistência.

83 tiros do Exército calam o samba de Evaldo Rosa Em 7 de abril, militares cariocas alvejaram o carro do músico negro Evaldo Rosa dos Santos, tocador de cavaquinho no grupo Remelexo da Cor. Ele estava com o sogro, esposa e filho, e faleceu no local.

“Fui criado para entender que não deveria confiar na polícia”, Neo conta. Cada pessoa com quem falamos descreveu uma corrida diária, em que se alternam a luta pela visibilidade e o esforço para ser despercebido — por fardados nas ruas, racistas, o próprio sistema. Ainda que vozes negras toquem cada vez mais nossos ouvidos, são seus corpos que lotam prisões e necrotérios. Enquanto o funk “Vamos Pra Gaiola” toca no Lollapalooza, o criador do famoso Baile carioca que inspirou a canção, Rennan da Penha, está preso por suposta associação com traficantes. Pela realidade que vive em Brasília, Talíz confessa achar que o racismo ainda persistirá por muitos anos – frente a isso, ela não pretende desistir. “A verdade é que funcionamos quando está doendo. Quando machuca, a gente se mexe”. “Temos que lutar em outras esferas para mudar esta estrutura”, alerta Daniela Gomes. “Se não, vamos continuar cantando, e um dia, saindo de um show, alguém como o Emicida poderá ser preso porque ‘Ah, não reconheci. Era só um preto’”.

Colaborou: Lay Moretti, rapper e estilista de Osasco

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Quando finda o carnaval, o Anhembi fica lotado de carros alegóricos debaixo de sol e chuva. A maioria será reutilizada por escolas menores. As fantasias viram recordações para quem passou pela avenida. Quase nada fica intacto até o próximo carnaval. O samba enredo é exceção. Como trilha sonora do desfile, é a conexão entre os componentes na avenida e o público. São seus versos que dão vida e emoção às histórias narradas pelas alas. Juntos, os compositores Flávio Augusto e Luiz Henrique Oliveira levaram a história de Oxum para o Anhembi no desfile Imperador do Ipiranga. Apesar da chuva que ameaçou as apresentações, um público fiel cantou animado o samba enredo, em uma relação íntima com os versos: “Ipiranga é raiz, força para vencer. Laroye, Laroye. O rei do mundo, tua história vou contar. Ê Mojubá, ê Mojubá”.

Aficionados por samba, a paixão pelas escolas veio das famílias. Flávio compõe desde 2006, e Luiz foi da bateria para a composição há dois anos. De suas experiências, eles sabem que todo samba que hoje em dia é antológico, saiu da avenida assim. “O samba enredo é 70% do desfile. A harmonia, a bateria, a evolução, todos esses quesitos dependem dele. Se o componente não cantar, não se divertir, a escola perde nota”, explica Luiz. O samba nasce com a sinopse, entregue pelo carnavalesco aos compositores depois que o tema do desfile é decidido. No caso da Império, o refrão veio à cabeça assim que leram a sinopse. Construíram coletivamente, testando formas e rimas. Até um grupo de WhatsApp foi criado para ajudar. “É muito pessoal, uns se dão bem com a melodia, outros com a letra”, explica Flávio. “Sempre buscamos poetizar ao máximo o que vem na sinopse, para ficar gostoso de ouvir”, completa o colega. O samba enredo pode ser encomendado pela escola ou decidido em disputas entre autores, onde fica clara a sua mercantilização. Não à toa, hoje as disputas são cada vez mais caras. Os custos vão da gravação à torcida. Apesar dessa tendência, Luiz reitera que o carnaval nasceu mesmo para traduzir questões sociais para a linguagem popular. De origem negra e periférica, é visto pelos compositores como forma de resistência.

Flávio conta que nas comunidades onde existem escolas, os sambas despertam consciências. “Carnaval é quebrar paradigmas, atacar mesmo, botar o dedo na ferida”, diz. Depois da escolha, o samba vai parar na boca do público mais fiel. Aquele frequentador dos barracões, que decora verso por verso nos ensaios, como se a arquibancada também fosse objeto do júri. E mesmo que a Imperador não tenha saído do grupo de acesso neste ano, para os compositores o que vale mesmo é ver suas palavras na boca da povo, encerrando com seus versos o desfile: “Respeite o som do meu tambor. São cinquenta anos de história. Comunidade a cantar. Vem festejar”.

OS A D O M DA A V E N I Texto: Giovanna Costanti Arte: Letícia Vieira e Thais Navarro Diagramação: Thais Navarro


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