Claro! Silêncio

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s i l ĂŞ n c i o claro! junho 2019


O claro! COMEU SUA Texto Amanda Péchy e Bruno Menezes Foto: Wender Starlles Diagramação: Wender Starlles

Quietude é coisa rara no nosso mundo superestimulante. Já ficamos tão acostumados com o barulho, que nem percebemos a sinfonia de buzinas, ou aquele avião voando mais baixo. Tão acostumados que, quando temos um pouco de silêncio, acabamos nem percebendo. Só pensamos sobre ele nos momentos em que mais precisamos de paz, mas é impossível silenciar o mundo. Contudo, já pensou estar em silêncio absoluto? Num primeiro momento, parece um sinônimo de calmaria, tranquilidade. E pode até ser. Só que não suportamos ficar muito tempo em silêncio. Um dos métodos de tortura usados pelo exército dos Estados Unidos, chamado de tortura wranca, usa essa abstenção sensorial e isolamento.

LÍNGUA? Multifacetado, ele provoca sensações de medo, angústia, tranquilidade e paz. Exatamente por vivermos em um mundo que nos assalta os ouvidos, a ausência de sons causa estranhamento. O som pode machucar e danificar sistema auditivo, mas o silêncio absoluto é insuportável. Estamos sempre em busca da paz que vem atrelada à ausência de som, mas não gostamos da solidão de uma sala sem vozes, nem de caminhar sem um fone tocando podcasts. Nesta edição do claro!, convidamos você a pensar sobre onde está o silêncio em sua vida. Pegue a edição, ouça o farfalhar das páginas, e a quietude que vem entre cada uma delas. Siga e Participe:

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Expediente: Reitor: Vahan Agopyan, Diretor da ECA-USP, Eduardo Henrique Soares Monteiro, Chefe de Departamento: André Chaves de Melo Silva, Professora Responsável: Eun Yung Park. Editores de Conteúdo: Amanda Péchy e Bruno Menezes. Editora de Arte: Maria Carolina Soares. Ilustradora: Thaís Navarro. Editora Online: Letícia Tanaka. Diagramadores: André Martins, Juliana Santos, Henrique Votto, Laura Molinari, Pedro Vittorio e Wender Starlles. Repórteres: Ana Cipriano, Bruno Carbinatto, Gabriel Bastos, Gabriela Bonin, Gabriela Teixeira, Giovana Christ, Giovanna Costanti, Giovanna Simonetti, Letícia Vieira e Sabrina Brito. Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, prédio 2 - Cidade Universitária, São Paulo, SP, CEP: 0558-900. Telefone: (11) 3091-4211. O claro! é produzido pelos alunos do quinto semestre do curso de Jornalismo como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso - Suplemento. Tiragem: 6000 exemplares. Foto de Capa: Maria Carolina Soares. Projeto: Ricardo Abreu em CasaCor 2019.


claro!

Junho 2019 3 Texto: Giovanna Simonetti Foto: Laura Molinari Diagramação: Wender Starlles

M U E N I G A IM E T N E I B . M O A S O I C N E L I S

Vá lá. Feche os olhos e pense no silêncio. O máximo de silêncio possível. Pronto? Quais sensações vieram à mente? Tranquilidade, medo, desconforto? Uma das principais sensações associadas ao silêncio é o relaxamento. Dentre várias opções para lidar com estresses, a busca por quietude é quase inconsciente e se manifesta de diferentes formas – como um simples fechar de portas, o colocar de fones de ouvido e até viagens pela natureza, retiros e exercícios de meditação. Na própria meditação, o silêncio é elemento fundamental. Não o exterior, como estamos acostumados a pensar. Sim, um ambiente silencioso ajuda. Mas importante mesmo é o silêncio interior, diz André Fukunaga, professor de meditação. Segundo ele, o silêncio da mente é essencial para usufruir dos benefícios da atividade (entre eles tranquilidade, foco e autoconhecimento). A praticante de meditação Stella Garcia conta que silêncio foi fator ativo para o melhor entendimento de suas emoções. Mas o processo não foi exatamente quieto: ao atingir o silêncio, os próprios pensamentos foram amplificados. “O mais difícil foi ouvir tudo o que penso e ver como somos barulhentos”, relata. A bancária Carolina Beolchi teve uma experiência similar em sua viagem pela Floresta Amazônica. Por 15 dias, ela se isolou na selva, sem celular nem energia. “O que eu imaginava ser silencioso, se mostrou mais barulhento do que uma metrópole”, afirma. Sem distrações, tudo era ouvido com mais intensidade. Mas a busca por quietude pode também ser assustadora. “O silêncio pode te colocar em contato com coisas que você talvez nem queira”, revela Carolina. Ao mesmo tempo que nos conhecemos, podemos enfrentar traumas, angústias e sentimentos indesejados. E então chegamos a face oposta ao relaxamento. O silêncio pode carregar uma aura do desconhecido, do estranho. Seu uso no cinema é um ótimo exemplo. O que precede o susto em um filme de terror? Todos nós já ficamos aflitos com cenas em que só é possível ouvir passos, a porta se abrindo ou janelas batendo. Ou quando alguém anda por uma rua deserta – o que é angustiante mesmo na vida real. É a ausência de sons que ajuda a criar a atmosfera de tensão. Mas não é apenas sobre medo. A principal sensação dessa face é o incômodo. Nossos ouvidos são naturalmente adaptados a procurar sons, e a falta deles causa uma ruptura. É como um personagem no cinema que dá um grito sem voz. Ou uma explosão sem barulho. Causa estranheza. Talvez não seja tão ruim não poder viver em silêncio absoluto... Colaboraram: Nathália Janovik, psiquiatra, Marco Dutra, cineasta, e Eduardo Santos Mendes, professor do curso de audiovisual da ECA-USP.


E D U T E I U Q A D S E Z O V AS

Sabe quando você precisa de um consolo e a melhor forma de consegui-lo é de forma silenciosa? Ou então, quando não falar nada numa discussão parece a melhor opção? Pois é, por mais que a gente não perceba, estamos falando a todo momento sem verbalizar nada. Nossos gestos, olhares e linguagem corporal por si só, dizem muito por nós. Ainda assim, sem falar muito, somos compreendidos. Isso porque, “um gesto – realmente – vale mais que mil palavras”. Nos anos 60, Albert Mehrabian pesquisou sobre isso. O professor de Psicologia da Universidade da Califórnia em Los Angeles apontou que 55% da comunicação fica por conta das expressões faciais, quando se trata dos nossos sentimentos e atitudes uns com os outros. Seguindo essa ideia, outros 38% seriam da tonalidade da voz, enquanto apenas 7% diriam respeito às palavras. Hoje em dia, a ciência entende que é o conjunto de tudo isso que nos permite interagir socialmente. Mas o peso dessa comunicação não-verbal fica evidente numa paquera, como exemQuando há um clima de romance, os olhares insinuantes plifica Sérgio Kodato, professor de Psicologia e gestos discretos são bastante relevantes. Ou seja, só um Social na Faculdade de Filosofia, Ciolhar ou um sorriso podem ser a escolha certa para conquistar ências e Letras de Ribeirão alguém, ao invés de palavras, que podem acabar causando um Preto da USP. belo de um mico. Até mesmo quando estamos na presença de um médico, o nosso corpo fala. A professora Rosa Maria Mesquita da EEFE-USP observou em seus estudos que além dos exames e diagnósticos, um profissional da saúde também conta com a linguagem corporal de um paciente para saber se ele está doente ou não. Nem pensamos nisso, mas até ao caminhar passamos uma mensagem aos outros. Rosa constatou também que pacientes podem mostrar seu estado emocional através dos passos. E isso ficou bastante claro ao analisar pacientes com estado grave de depressão, que demonstram grande tensão em seus movimentos. Indo além, há quem diga que só nos comunicamos a partir do momento que observamos o rosto de alguém, como explica Deodato Rafael. O jornalista e pesquisador da comunicação comentou uma teoria de que a comunicação só começa quando duas pessoas estão cara-a-cara. Assim, o silêncio, uma expressão facial e aspectos que não verbalizamos seriam bem mais importantes nas nossas relações, por apontar como uma pessoa recebe essa interação. Essa é uma das vertentes de estudo do filósofo francês Emmanuel Lévinas, mencionado por Deodato. Seja através do que o nosso rosto mostra, da forma como reagimos ao mundo e nos portamos diante da vida, ou mesmo ao escolher não expressar o que pensamos, dá pra imaginar que ainda vamos dizer muito, sem pronunciar quase nada. Mas, como defende Sérgio Kodato, “A ausência da palavra, a não resposta, a mudez, tudo se constitui em gesto e mensagem singular, no contexto da comunicação”. Texto: Gabriel Bastos Arte: Thais Navarro Diagramação: Henrique Votto

Colaborou: Deodato Rafael, pesquisador do FiloCom, Núcleo de Estudos Filosóficos da Comunicação, da ECA, - USP.


E D A H O I L C O N B LÊ I S

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“Nasci ouvindo normalmente. Um dia, poucas semanas antes de completar 10 anos de idade, acordei surda”. Imagine, de um dia para o outro, a vida deixar de ter som. A experiência angustiante foi vivida pela comunicadora Lakshmi Lobato: uma surdez súbita lhe impôs uma bolha de silêncio por mais de duas décadas. Na época, Lak não imaginava que, em sua vida adulta, poderia voltar a conversar no telefone e dar entrevistas, como esta. Foi mais de uma década se comunicando apenas por meio da leitura labial. A condição fez com que desenvolvesse um sotaque em sua fala, que se torna mais enfático por conta do tom de voz trêmulo e, por vezes, alto. Esse sotaque é característica dos surdos oralizados. “Você acabou de chegar em São Paulo?”, ouviu uma vez de um taxista. Com paciência, respondeu que morava lá há bastante tempo. Conversa vai, conversa vem, ele tornou a perguntar de onde ela era. “A minha voz é resultado de mais de 20 anos sem qualquer feedback auditivo. Sou surda”, respondeu. Como sempre, a reação foi de espanto. Uma surda que não se comunica por libras e que escuta. Durante muito tempo, o som foi uma saudade constante. A surdez súbita foi diagnosticada como provável sequela tardia de caxumba. Para os médicos, era um diagnóstico irreversível de surdez profunda. Em 2009, porém, aconteceu o reencontro. Nunca utilizou aparelhos auditivos, pois sua surdez é muito grave e lhe falta audição residual que possa amplificar o som. Foi quando Lak conheceu o implante coclear. A tecnologia capta o som ambiente e o conduz até a parte do ouvido que não funciona – no seu caso, a cóclea. De lá, o som vai para o cérebro e é interpretado, como acontece com todos os não-surdos. “Achei maravilhoso poder ouvir, mesmo com um pouco de distorção”, relembra. “Foi a melhor escolha da minha vida. Uma pena que eu tenha demorado tanto para conseguir fazer. O implante coclear só começou a ser divulgado no começo dos anos 2000. Antes disso, pouca gente sabia que existia.” Após a cirurgia, Lak já conseguia ouvir sons ambientes e diferenciá-los, mas o resultado ainda não era perfeito. Três anos depois, voltou às salas cirúrgicas. Dessa vez, saiu de lá emocionada. Podia ouvir músicas, conversar com as pessoas, falar ao telefone. Para Lak, sensações “tão maravilhosas quanto ganhar na loteria”. Havia um mundo inteiro de sons para redescobrir, a vida inteira pela frente para matar a saudade. “Sempre fui uma pessoa extremamente auditiva. O som me inspira, me motiva, me dá prazer. É o que nos conecta com o mundo ao redor, o que forma nossa senso de comunidade. E eu sentia falta disso”, relembra. O amor pela comunicação fez com que, mesmo com a surdez, se formasse em publicidade, aprendesse francês e fosse até Madrid estudar a língua espanhola. “Minha vontade de me comunicar era muito maior do que qualquer obstáculo imposto pela surdez”, conta. O fim da bolha de silêncio, por mais feliz que fosse, também lhe trouxe sensações conflitantes. Olhar para trás e relembrar seus anos sem barulhos, sons, músicas, vozes, lhe causa muita tristeza. “Penso em todos os momentos que eu poderia ter ouvido e não foi possível”, relembra. A dor da experiência quando criança e, depois, a felicidade em recuperar a audição fizeram com que Lak sentisse a necessidade de compartilhar sua história com mais pessoas. Criou um blog dedicado aos deficientes auditivos e surdos oralizados, lançou um livro, o “Desculpe, não ouvi”, em que relata sua história, e ministra palestras pelo país afora. Texto: Giovanna Costanti Arte: Thais Navarro Foto: Henrique Votto Diagramação: Henrique Votto


CÁLICE OU SOFRA AS CONS Silêncio. Para muitos, calmaria. Para outros, inferno. Silêncio imposto tem nome: censura. Calar-se diante um poder maior contra a sua vontade. Seja o Estado, uma empresa privada ou um conceito tão abstrato como “moral”: os censores estão aí, tentando criar um silêncio artificial que guarda, bem lá no fundo, gritos de protesto e liberdade.

RECEITA DE BOLO DE LARANJA Quando, em 1968, plena ditadura civil-militar, decretou-se o Ato Institucional 5, as redações receberam censores ligados ao regime, que garantiam que nenhuma matéria crítica ou considerada subversiva fosse publicada. Os jornalistas foram fadados ao silêncio e a receitas de bolo — comumente publicadas para tapar os buracos dos textos censurados. A ditadura acabou. A censura não. Embora vivamos em uma democracia liberal, ela está longe de ser perfeita — como mostra a edição de 2018 do medidor de democracia da revista The Economist, que coloca o Brasil na posição 51. O resultado disso nos rankings de liberdade de imprensa é avassalador: na classificação de 2019 da Repórteres sem Fronteiras, estamos na posição 102, atrás de Serra Leoa, na África, um dos países mais pobres e com menores índices de desenvolvimento humano do mundo. A censura hoje não é institucionalizada, mas acontece por mecanismos dos sistemas político e judiciário fracos e pelo controle do mercado no qual a profissão se insere, muitas vezes praticando a censura interna. Por outro lado, perseguições políticas específicas podem levar a censuras mais bárbaras, como violência e até assassinato de jornalistas, ainda comuns em todo o Brasil. Colaborou: Ana Regina Rêgo, jornalista, professora e Presidenta da Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia-ALCAR.

SILENCIAMENTO DIVINO Por ter sido colonizado por povos cristãos, o Brasil tem um histórico de censura e intolerâncias à outras religiões. As manifestações afro brasileiras são as mais afetadas. Conforme dados do Ministério dos Direitos Humanos, entre janeiro de 2015 e o primeiro semestre de 2017, foi constatada uma denúncia de intolerância religiosa contra religiões afro brasileiras a cada 15 horas. O último IBGE, de 2010, mostrou que seguidores do animismo afro-brasileiro são minoria, com 0,3% da população, o que os torna mais vulneráveis. Enquanto isso, 64,6% dos brasileiros declaram-se católicos; 22,2% protestantes; 8,0% irreligiosos; 2,0% espíritas e 0,7% testemunhas de Jeová. Dados da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro mostram que mais de 70% das ofensas, abusos e atos violentos registrados entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matrizes africanas Não é difícil achar casos recentes ao procurar na internet por agressões de intolerância religiosa. No final de março deste ano, uma Mãe de Santo Yalorixá, Mãe Rosa de Oyá, foi atacada em frente a sua casa por um grupo gritando “Satanás irá cair” e outros insultos à sua religião.

Texto: Bruno Carbinatto e Giovana Christ Arte: Thais Navarro Foto: Pedro Vittorio Diagramação: Pedro Vittorio


NSEQUÊNCIAS

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FOTO: PEDRO VITTORIO

SILENCIADAS O silenciamento das mulheres em uma lógica que as deslegitima pode ser enxergado como censura. Dentro da Universidade, a realidade não é diferente. “É qualquer comportamento que a impeça de falar, estabelecer uma lógica ou raciocínio, se posicionar ou ocupar um espaço pelo simples fato dela ser mulher”, explicam Letícia de Souza e Victória Ribeiro, do escritório da USP Mulheres, que desde 2016 faz ações voltadas para o empoderamento dentro da universidade. Professores que tendem a deixar mais homens falarem em suas aulas as estão silenciando. Orientadores que recusam projetos relacionados à questão de desigualdade entre gêneros por não reconhecerem a importância do tema, estão censurando quem quer debater o assunto. “Situações semelhantes acontecem dentro das esferas dos docentes e funcionários, em reuniões departamentais, de colegiados ou mesmo no convívio cotidiano de trabalho”, continua o USP Mulheres. Mesmo sendo uma violência subnotificada e, por vezes, invisível, a mulher é silenciada dentro de sua vida profissional e pessoal. Colaborou: Letícia de Souza e Victória Ribeiro, do escritório da USP Mulheres.

CONTRA A MORAL E OS BONS COSTUMES Se, por um lado, jornalistas são perseguidos por suas informações, artistas são criticados por suas mensagens. Com a recente ascensão de um pensamento conservador no país, diversas manifestações artísticas passaram a ser alvo de críticas, boicote e silenciamento. Embora muito diferentes entre si, esses eventos carregam algumas características em comum. “Na maioria dos casos, as questões políticas se sobressaem às estéticas. São poucos os casos em que o movimento de censura está interessado na parte material da arte”, explica Fellipe Eloy Teixeira Albuquerque, pesquisador do tema. Embora sob ataque, as artes têm recursos de resistência à censura talvez mais claros e eficientes do que o jornalismo. A transgressão é uma delas. Com ironia, os artistas podem desafiar a onda conservadora em um campo intelectual. “Isso já vem sendo feito, mas se percebemos que a força do censor se intensifica, precisamos reagir a altura”, intensifica Fellipe. Foi o caso da repercutida exposição Queermuseu, de 2017. Acusada de apologia à pedofilia e zoofilia por movimentos conservadores, foi alvo de protestos massivos, o que levou ao Santander Cultural de Porto Alegre, expositor, a cancelar o evento. Driblando a censura, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, centro cultural da América Latina, conseguiu trazer a exposição para a capital carioca via financiamento coletivo, no ano seguinte. Mais recentemente, o livro Meninos sem Pátria, do autor Luiz Puntel, foi censurado por uma escola particular no Rio, após protestos de pais, que afirmavam que a obra, ambientada na ditadura civil-militar, faria apologia ao comunismo. Colaborarou: Fellipe Eloy Teixeira Albuquerque, mestre em História da Arte pela Unifesp.


Assim que um desastre ou acidente vira notícia, surgem cientistas e leigos afirmando que, se prestássemos mais de atenção em como os animais se comportam, milhares de vidas poderiam ser salvas. Segundo esses relatos e estudos, eles têm sentidos mais aguçados e percebem quando algo não está certo e, por isso, evacuam o local onde estão ou passam a se comportar de maneira estranha, ficando acanhados e em silêncio e emitindo sinais de alerta. A verdade é que essa concepção é bem mais complicada. André Frazão, do instituto de Biologia da USP (IB-USP) estuda fisiologia sensorial e diz que, de um ponto de vista evolutivo, é pouco plausível dizer que os animais têm uma adaptação comportamental para evitar tragédias. Por esse motivo, difícil, pois depodemos considerar que os animais, na verdade, se deslocam ou evacuam um local por se sentirem desconfortáveis. pende do ambiente Juliana Mendes é aluna do IB e estuda a comunicação entre cães e pessoas no Instituto de Psicologia da em que vivem e com USP (IP-USP). Usar animais como alerta quando estão se comportando de maneira anormal é quem convivem. Para animais selvagens, por exemplo, o silêncio é um sinal de não ameaça. E, talvez por isso, Ignácia Belén não tenha notado nenhum sinal do forte terremoto que atingiu o Chile, em 2010. Nessa época, a chilena tinha 13 anos e foi o primeiro terremoto que vivenciou. Ela vive em Santiago, nas montanhas, de onde consegue ver toda a cidade. O terremoto começou à corpo estava noite e, da janela de sua casa, conseguia ver a cidade toda chacoalhando, luzes explodindo e o chão se movendo com muita força. Ela não conseguia se mexer por conta do movimento da casa, mas também pela surpresa. Ela sentia tudo, menos o silêncio, porexperiencianque para Ignácia “nós sentimos o silêncio, quando algo atinge o nosso corpo e naquela do um terremoto e situação o meu eu precisava reagir àquilo.” Mas, se o silêncio parece não ser indicativo de grandes desastres, ele poderia anunciar algo menor? As experiências de Anselmo Carlos mostram que sim. Ele já passou por muitos momentos ruins e, em grande parte deles, o silêncio estava lá. O curioso é que ele nunca tinha percebido isso, até parar para pensar sobre. Quando tinha nove anos, machucou a mão esquerda em uma máquina que faz caldo de cana no restaurante do pai. Antes do incidente, ele se lembra que o som da movimentada rua onde era localizado o restaurante parecia estar longe e abafado e, enquanto sua mão estava presa na máquina, ele simplesmente não ouvia nada. Assim que conseguiu se livrar, todos os sons repentinamente voltaram. Um pouco mais tarde, com seus 13 anos, errou um movimento na ginástica olímpica e caiu de pescoço no chão e o mesmo aconteceu: durante o movimento não ouvia vozes, barulhos externos, nada. Assim que recobrou os sentidos, os sons voltaram.

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Há três anos, quando morava na Alemanha, acordou uma manhã e sentiu necessidade de olhar o celular, o que nunca acontecia. Enquanto passava os olhos na mensagens, o som ambiente foi ficando cada vez mais longe e enquanto lia a notícia sobre o falecimento da avó os sons sumiram. Assim que terminou de ler a mensagem, o som do canto dos pássaros, o barulho dos carros e as conversas ao longe entravam no apartamento nitidamente.

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O silêncio pode ou não ser um indicativo, como um sinal de segurança ou alerta. Mas, para saber como interpretar isso, nós precisamos, primeiro, percebê-lo.

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Texto: Ana Cipriano Arte: Thais Navarro Diagramação: André Martins


claro!

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Ficar em silêncio, para alguns, tornou-se um luxo. Poucas pessoas podem desfrutar de ambientes quietos na correria do dia a dia. Chega a ser difícil imaginar que algumas profissões têm como pano de fundo o silêncio. Museólogos, artistas visuais e escritores, por exemplo. No entanto, uma biblioteca, ambiente conhecido por praticamente não ter barulho algum, contraria o silêncio e a monotonia esperados na rotina de quem lá trabalha. Marina Macambyra é bibliotecária há 37 anos. De segunda a sexta, pela manhã, ela pega um ônibus em direção à Universidade de São Paulo, onde se formou em biblioteconomia e trabalha desde então. Escolheu o curso porque “não sabia muito o que fazer da vida”, mas gostava muito de ler. Até hoje, a leitura é um de seus maiores hobbies: “Não consigo terminar um livro sem ter o próximo esperando”. Em uma biblioteca universitária, alunos entram e saem, abrem armários, derrubam coisas, fazem perguntas. Não à toa, Marina afirma: “Pode não parecer, mas a biblioteca é um lugar animado”. O próprio jeito de se vestir da bibliotecária já quebra alguns estereótipos: nada de cabelo preso e roupas sérias, Marina usa brincos grandes e coloridos e o cabelo curto acinzentado contrasta com o blazer rosa pink. “Para mim, seria impossível trabalhar no silêncio absoluto”, conta a bibliotecária. “Minha atividade fa-

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vorita é a interação com as pessoas.” Parece paradoxal trabalhar em um local teoricamente silencioso e buscar conversas, mas é justamente o contato com o público que a deixa feliz. Apesar de não serem locais absolutamente silenciosos, bibliotecas continuam com o barulho controlado. Acostumada com essa rotina pouco ruidosa, Marina fica incomodada quando precisa ir ao centro da cidade ou à Avenida Paulista, por exemplo. O barulho dos carros e buzinas acaba sendo ensurdecedor para quem vive a calmaria dentro dos muros da universidade. Alguém que trabalha em uma biblioteca não necessariamente realiza atividades agitadas nas horas vagas para compensar. Marina ama filmes e, sempre que consegue, passa seu tempo livre nas salas de cinema de São Paulo. Também escreve textos em seus dois blogs e é colaboradora em um site de bibliotecários. Atividades com pouco barulho, o que faz parecer que a tranquilidade de sua profissão se estende para o restante de sua vida. A fala de Marina é calma, quase lenta, mas vem carregada de informações e histórias. Ela também sabe fazer barulho: quando algo incomoda, relata suas indignações em textos em seu Facebook ou blog. Seu jeito transmite o equilíbrio necessário entre o silêncio e o barulho. Como uma biblioteca.

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ESTAMOS EM UMA BIBLIOTECA


PARA OUVIR A NÓS MESMOS,

PRECISAMOS NOS CALAR

Texto: Gabriela Teixeira Arte: Thais Navarro Foto: Laura Molinari Diagramação: Laura Molinari

Qual o máximo de tempo que você, de modo consciente e voluntário, já passou em silêncio? E por quanto tempo acha que conseguiria ficar sem falar nada? A depender da pessoa, a resposta para a segunda pergunta pode variar entre dias e décadas. Porventura, a vida toda. Mas o que leva alguém a abdicar por escolha própria da fala? Para Varno, a decisão veio da vontade de tentar uma nova experiência em sua vivência meditativa. Denominando a si mesmo como “um discípulo do Universo”, ele pratica meditação há 40 anos, por crer que ela “amplia minha percepção de mundo e potencializa minha conexão com a energia cósmica”. Em 2008, porém, ele sentiu a necessidade de participar de algo mais intenso que as atividades fluídas de rotina. Foi quando se inscreveu para a Vipassana. Com mais de 2500 anos de existência, essa técnica de meditação indiana é uma das modalidades mais rigorosas da prática. São 10 dias de retiro, todos com dez horas dedicadas a arte de meditar, intercaladas com pausas para descansos, refeições e uma palestra também diária. Aos participantes, é vetado manter qualquer tipo de contato físico, visual e, acima de tudo, verbal. Varno não viu problemas em cumprir o voto de silêncio. “Eu me propus a

participar deste movimento e, se fizesse isso [quebrar o voto], perderia a oportunidade do aprendizado”. Tanto aprendeu que, hoje em dia, faz o que chama de “jejum de palavras” em intervalos de até seis meses, por, no máximo, três dias. Inerente à religiões como hinduísmo e budismo, o silêncio – também chamado de mauna – é considerado o melhor caminho para alcançar o autoconhecimento. “O primeiro passo para enxergar a verdade é fazer silêncio – exterior e interior – e deixar a mente serena, imóvel. Isso permitirá ver de modo mais claro a natureza da mente, o que levará a insights que eventualmente culminarão em uma libertação”, explica o

Ajahn (mentor, em tailandês) Mudito, diretor espiritual da Sociedade Budista do Brasil. Além de servir para aprofundar a prática de meditação, como no caso de Varno, o voto pode auxiliar na percepção e resolução de problemas. “Qualquer pessoa pode fazer um voto. A questão é o quanto ele será útil. Não é um passe de mágica, mas algo que deve ser feito com objetivo de desenvolver alguma coisa boa”, continua Mudito. Segundo ele, é preciso ter um propósito prático e claro em mente antes de iniciar o voto e jamais fazê-lo por vaidade, exibicionismo ou como forma de fugir de aborrecimentos. Ao contrário, serve justamente para “tampar as válvulas de escape” que usamos para evitar encarar nossos problemas e permitir a sondagem do que nos faz sofrer. Assim, sua duração e intensidade estão ligadas às circunstâncias pessoais de quem o realiza. E sequer é preciso participar de um retiro para realizar o voto. Por 5 dias, a youtuber Fernanda Vasil passou pela experiência em casa, na tentativa de se conectar mais com seu eu interior. E acredita que funcionou: “Percebi minha mente mais clara. Como se antes ela estivesse cheia de nuvens e no fim em um dia de céu azul”.


RUÍDO AMBIENTE

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“Boa tarde, pessoal! Desculpa estar atrapalhando o silêncio da viagem de vocês...” O que o moço das balinhas refrescantes de menta chama de silêncio não é bem silêncio.

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O motor do ônibus produz um barulho consider e o guincho estriiiidente do freio se tornou especialmente irritante assim que me dei conta dele. Somado a isso, tem o bip do cartão passando, o som do sinal para descer e o casal da frente dis-cu-tin-do-tu-do, desde uma unha quebrada, até o carro que foi para o conserto. É engraçado conversarem como se estivessem sozinhos mesmo em um ônibus lotado. Talvez, todo o ruído e a forma com que fingimos não olhar uns para os outros resultem em uma sensação de privacidade, uma impressão de que não estamos sendo ouvidos pela pessoa em pé, a poucos centímetros de nós. Curioso também é pensar que em outros lugares conversamos como se trocássemos segredos de Estado. Mais cedo, passei em uma farmácia. Não percebia quase nenhum ruído, enquanto procurava por um desodorante. Mas, mesmo no silêncio, era impossível entender o que pediam ao atendente, logo atrás da prateleira. Me intriga esse costume de segredar palavras sem motivo. Por que diminuir o tom de voz ao pedir uma aspirina? Nem em ambientes que demandam silêncio, somos assim tão quietos. Levantei a cabeça. Tentei ler os lábios da mulher. Sua boca mal se movia. Cida, tiva ou seria mida? Na livraria, logo ao lado da farmácia, muitas pessoas também falavam aos sussurros. Deu até para o senhor da poltrona cinza cair no sono com um exemplar do romance russo “A Briga dos Dois Ivans” em uma mão e sua caneta Bic na outra. Ainda assim, conseguia perceber o burburinho geral, as conversas distantes e alguns sons que se destacavam. “Héric, olha pra mim, Héric. Faz assim: xiiis!” Ninguém fazia questão de ser discreto. Todos pareciam ter orgulho de ocupar aquele espaço colorido e aconchegante, com ar de erudição. A galera nos puffs estava um tom abaixo de uma conversa de bar. O cara de blusa preta, no segundo mezanino, se empolgou ao encontrar um livro e eu podia escutá-lo como se estivesse ali do meu lado, no primeiro piso. A máquina de ler códigos de barra soltava um bip sutil. Eram vários estímulos sonoros, mas nada insuportável. Bem diferente do ônibus, onde, agora, só consigo prestar atenção nesse cara, colado em mim, que tosse e resmunga sem parar. E a cobradora ainda dá trela: “Quando eu estava assim, nem gengibre e nem canela deram jeito, viu? Só...” Nimesulida! É claro!


MA IS Q U M EM A L A

PA

LAVRA

Colaboraram: Carlos Calil, professor especialista em audiovisual brasileiro Bill Shaffer, ex-diretor de TV da emissora americana PBS Shirley Hughes, cofundadora do Toronto Silent Film Festival

S

F

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Homens perseguindo uns aos outros em cavalos, tiros para todos os lados, piadas que fazem o público gargalhar. Quem assistia a uma dessas cenas em uma sala de cinema até o final da década de 1920 não escutava fala alguma. Até então, filmes mudos eram os únicos disponíveis mundialmente ao público. Esse tipo de arte forneceu aos espectadores uma fonte de entretenimento que divertia e informava sem usar sons — ou pelo menos é o que nos dizem. A verdade é que o cinema nunca foi, de fato, mudo. Nas salas, orquestras tocavam ao vivo para complementar a narrativa mostrada na tela. Alguns países foram mais longe: no Japão, pessoas conhecidas como benshi eram contratadas para narrar o filme para a plateia. Dessa forma, o público não escolhia a sessão por causa da história a que assistiria, e sim de acordo com a agenda de seu benshi preferido. A tecnologia necessária para sincronizar a voz dos atores com a imagem não demorou a ser inventada, concluída ainda nos anos 1890. Contudo, foi preciso algum tempo para que as plateias se acostumassem com a ideia de filmes falados. Foi só em 1927 que o primeiro filme falado foi apresentado ao público. Assistir a um longa-metragem mudo e a um falado são experiências completamente distintas. Conforme conta Shirley Hughes, diferentes partes da mente são utilizadas quando se vê cada um. “O cérebro está mais engajado quando assiste a um longa mudo. Sem o diálogo para entregar as informações, o cérebro precisa preencher o vazio”, relata. Afinal, quem vê a famosa cena do massacre de civis pelo Exército em “Encouraçado Potemkin” (1925), cheia de tensão e violência, entende como o silêncio pode propiciar momentos importantes de suspense. Talvez, se os sons de marcha dos soldados e os tiros disparados tivessem sido acompanhados por sons, grande parte da aflição produzida pela cena seria dissipada. Segundo Bill Shaffer, para se apreciar filmes sem som, é necessário ter em mente o real objetivo do cinema: narrar uma história de forma visual por meio da cinematografia e da perfomance dos intérpretes. Deve-se lembrar, portanto, que a fala é — ou deveria ser — secundária na sétima arte. Se engana quem pensa que o cinema mudo teve fim no século XX. Em 2012, o filme francês “O Artista”, mudo e produzido em preto e branco, levou o prêmio de Melhor Filme do Oscar. O longa evoca uma nostalgia que muito agradou ao público e especialistas. Para Hughes, “talvez os membros da indústria tenham reaprendido que diálogo é desnecessário para contar uma história.” De qualquer modo, com o aumento significativo na população mundial durante o último século e com a popularização do cinema, há mais pessoas assistindo a filmes mudos hoje do que desde o final de sua era. Essa forma de entretenimento é rica no século XXI, pois propicia ao espectador um momento raro: alguns minutos de (relativo) silêncio, sem os já saturados efeitos especiais fantásticos que os estúdios costumam incluir em suas produções. Seja por excentricidade ou por curiosidade, o fato é que público contemporâneo tem recuperado cada vez mais interesse nos filmes silenciosos. “As plateias voltam porque elas gostam do que veem”, afirma Shirley Hughes.

Texto: Sabrina Brito Arte: Juliana Santos Diagramação: Juliana Santos


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