claro! Grotesco

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cl ar o!

abr i l2022


claro! ABRIL 2022

E n c a re

o ab i s mo

Se durante o período do Renascimento a arte europeia se voltava às imagens naturais e sublimes da Antiguidade para referência, é também nessa época que grutas inexploradas desde a Roma Antiga introduziram uma estética de deformação da realidade capaz de ampliar os horizontes artísticos do Ocidente. É da palavra gruta, em italiano, que se deriva a morfologia da palavra grotesco, que pode abarcar tanto o surgimento da estética quanto a própria ideia claustrofóbica, úmida e obscura da formação natural de uma gruta. É nessa escuridão que a mente humana inventa os monstros de que tenta fugir. O vocábulo também faz referência a tudo que é visto como ridículo, antinatural, vulgar e digno de escárnio. Dessa diferenciação condescendente, em que a comicidade provém do deboche com o que é classificado como inferior, o grotesco é o que questiona o status quo. É o show de horrores capaz de despertar fascínio e repulsa. Se o belo existe, então também existe o feio. E às vezes algo além do feio. Algo mais cômico, mais repulsivo, mais visceral. Algo grotesco. O claro! grotesco busca suscitar esses sentimentos ao propor uma livre expressão do grotesco. Análises, afirmações e (res)significações a fim de valorizar ou não a existência daquilo que é, por si só, subversivo.

Texto: FILIPE NARCISO E PEDRO FERREIRA Diagramação: ISABELLA MARIN Acompanhe:

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usp.br/claro

Expediente Reitor: Carlos Gilberto Carlotti Junior. Diretora da ECA-USP: Brasilina Passarelli. Chefe do departamento: Luciano Maluly. Professora responsável: Eun Yung Park. Editores de conteúdo: Filipe Narciso e Pedro Ferreira. Editoras de arte: Rebeca Alencar e Iasmin Rodrigues. Editor online: Bruno Miliozi. Diagramadores: Aldrey Olegario, Isabella Marin, Mara Matos, Mateus Dias, Matheus Nascimento, Theo Sales. Repórteres: Ana Paula Alves, Ana Carolina Guerra, Cadu Everton, Luana Machado, Lucas Zacari, Maria Clara Abaurre, Mariana Marques, Pedro Guilherme Costa, Sarah Lídice. Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, prédio 2 - Cidade Universitária, São Paulo, SP, 05508-020. Telefone: (11) 3091-3121. O Claro! é um produzido pelos alunos do quinto semestre do curso de Jornalismo como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso - Suplemento.

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Abominável vestimenta da alma T. Angel é um borrão, uma monstra, esquisita. É assim que se descreve nas redes sociais e ao mostrar suas tatuagens, piercings e implantes. Se o corpo é a vestimenta da alma, como sugeriu o papa Gregório, na Idade Média, não sabe dizer, mas certamente não é abominável. Não mais. Nascida e criada na periferia de Osasco, teve o primeiro contato com modificações corporais ao sair da quebrada. Numa feira na Barra Funda, encantou-se com os corpos tatuados, trans e drag queens, que fugiam tanto da rotina casa-escola-igreja. Fascinada pela ficção científica, descobriu que era possível se aproximar dos corpos inalcançáveis daqueles mundos distantes. Foi aos treze anos, com um piercing na boca, que teve o corpo modificado por escolha própria pela primeira vez. Se desde o nascimento o corpo sofre modificações e ganha marcas sobre as quais não se tem escolha, as tatuagens e piercings são algumas das muitas formas que as pessoas encontram de se apropriar desse corpo e das experiências que vivem através dele. Daniel, da cadeira de seu estúdio de modificação na Grande São Paulo, simplifica que é como cortar o cabelo: as pessoas escolhem e pronto. Segundo pesquisa do Instituto Dalia, na Alemanha, 38% da população mundial tinha tatuagens em 2019 e o Brasil figurava entre os 10 países mais tatuados do mundo.Enquanto grande parte da população escolhe ter o corpo tatuado, uma fatia menor busca, como Angel, modificações mais extremas. Ao longo dos anos como tatuador, piercer e modificador corporal, Daniel Rodrigo ouviu as mais diversas histórias e motivações para as mudanças. Ele brinca que a maca do estúdio é quase como um divã, as pessoas se abrem naquele momento de fragilidade e o papel dele, como profissional, é acolhê-las e apoiá-las, sempre informando e educando os clientes. Os procedimentos, apesar de apresentarem riscos, causam menos complicações do que se imagina, explica o profissional, que estuda e realiza procedimentos há 15 anos. Para Angel, o corpo, assim como a vida, é algo sempre inacabado, passível de mudanças e de compromissos, mas nunca de perenidade. Ao se distanciar daquele corpo que era jaula, por meio das modificações, incluindo a redesignação sexual, Angel precisou ressignificar muitos aspectos de sua vida. O caminho para entender o lugar da família, da religião e das relações, em especial na adolescência, foi árduo. Mas o que não é? Ela olha no espelho e vê um corpo que é casa e acolhimento. Um corpo que passou por tantas mudanças, escolhas que requerem um comprometimento que muitas vezes nos falta como sociedade de relações e quereres líquidos. Angel, que hoje é diretora pedagógica da escola onde estudou quando criança, assim como Daniel, acredita que a informação pode destruir barreiras e preconceitos, por isso busca levar os conhecimentos sobre corpos modificados à comunidade que um dia a viu como algo monstruoso. Colaboraram: Daniel Rodrigo, modificador corporal T. Angel, historiadora e mestranda, idealizadora do FRRRKguys

Texto: MARIA CLARA ABAURRE Foto e ilustração: REBECA ALENCAR E IASMIN RODRIGUES Diagramação: ISABELLA MARIN 3


claro!

É SÓ BRINCADEIRA?

ABRIL 2022 Texto: ANA CAROLINA GUERRA E ANA PAULA ALVES Diagramação: MARA MATOS

O que a Karol Conká e o Olavo de Carvalho têm em comum? Os dois têm memes que dividiram opiniões. Na internet, muitas trends repassam preconceitos, ofensas ou polêmicas. As “piadas” nunca são vistas da mesma forma por todos e muitas vezes são usadas como ferramenta de poder. Mateus Gruda, especialista em psicologia social, fala que tem muito mais por trás de uma piada. Para ele, o humor é uma forma de expressão muito efetiva, que transmite ideias de forma profunda, rápida, e invade várias áreas da sociedade, desde um bate-papo até a política e arte. O pesquisador reforça que, com uma brincadeira, é possível falar a coisa mais séria do mundo, continuar padrões sociais e preconceitos ou revolucionar e trazer novos ideais. O humor também possui uma grande capacidade de união. Com seus códigos, ele forma grupos baseados em uma visão de mundo e sobre o que é engraçado ou não. Ao mesmo tempo, possui um caráter segregatório, pois esses grupos são fechados em si, e muitas vezes usam o humor para ridicularizar ou atacar outros. Na web, os algoritmos fazem com que navegar por assuntos de interesse seja uma experiência mais rápida e, muitas vezes, inconsciente. Ficou mais fácil encontrar conteúdos nas redes sociais que produzem humor de seu agrado, aproximando milhares de pessoas. Esse espaço aparentemente livre para expressar suas opiniões com “brincadeiras” e vê-las aceitas por pessoas com crenças semelhantes cria uma sensação maior de pertencimento.

Por isso, muitos utilizam o humor como forma de extravasar ideias e sentimentos reprimidos. Assim surge o humor politicamente incorreto, que se diz transgressor das normas sociais mas, ao atacar minorias, apenas reafirma um padrão existente e se recusa a mudar junto com a sociedade. Gruda aponta que a atração por esse tipo de humor talvez venha pelo desejo do que é “proibido” e da liberdade de se dizer o que quiser. Essa polêmica tem um alvo certo quando envolve figuras públicas sendo tema de piadas ofensivas. O pesquisador diz que isso se relaciona às múltiplas interpretações do humor: se você odeia a pessoa, é engraçado, se você gosta, é desrespeitoso. Isso varia do contexto de cada caso, mas no geral, figuras públicas são mais propensas por estarem nos holofotes. E com figuras políticas, isso está ligado com um movimento de contraposição ao que elas representam, e o humor, quase incontrolável, é um protesto eficiente. Seja uma cantora e participante de reality como Karol, figura política influente como Olavo, esses mecanismos do humor e das redes vão muito além de uma simples brincadeira. Colaboraram: Mateus Gruda, doutor em psicologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) Bianca Tito, mestra em direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM)

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Um festival, cheio de flores, rituais e uma claridade que se espalha. É possível ouvir passarinhos. A trilha animada dá lugar à tensão. A câmera foca no oráculo Ruben, que causa desconforto no público. Ruben possui uma deficiência que desfigura seu rosto. Mesmo sendo sobre um culto, o filme “Midsommar” (2019) utiliza do Body Horror para gerar o incômodo. Esse subgênero de terror torna mutações e distorções do corpo humano o fator de construção do medo. Iniciado em “Frankenstein” (1931), o tema chegou ao seu auge nos anos 80 pelo diretor David Cronenberg. Seu filme mais conhecido, “A Mosca” (1986), conta a história de um pesquisador que funde seu DNA com o de um inseto, alterando seu corpo. O longa conquistou o Oscar de melhor maquiagem. Como em “Midsommar”, distorções corporais são utilizadas para gerar o horror. Segundo Matheus Henrique do Amaral, mestre em Educação Inclusiva pela Universidade Metodista de Piracicaba, a exploração de corpos com deficiência para o entretenimento remonta aos freakshows, espetáculos circenses que usavam de PcD para criar o espanto e a curiosidade. Essa atração perdurou até meados do século XX. A diferença entre esses produtos culturais é a de que, no terror, a personagem com anomalias físicas é geralmente colocada como vilã. Assim, o enredo costuma opor as vítimas indefesas e os seres anômalos. No ensaio “A doença como metáfora” (1978), a ativista Susan Sontag explica que, em uma história, as características dos personagens são artifícios metafóricos para a forma com que a sociedade os enxerga. “Uma vez que o vínculo se dá sob a metáfora da monstruosidade, é um tanto impossível não criar um paralelo de repulsa, ainda que inconsciente, entre monstruosidade insólita e deficiência física”, explica Marcio Markendorf, professor de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A colocação desse ser como vilanesco, incapaz de ser empático e bom por conta de sua aparência é, também, capacitista. Amaral ressalta que essa é uma tendência não apenas do terror, mas de toda Indústria, que faz da deficiência uma indicação da falta de humanidade. Daniel Gonçalves, primeiro PcD a dirigir um longa no Brasil — “Meu Nome é Daniel” (2019) — explica que não devem, também, ser retratadas como se a vida fosse perfeita, capazes de superar tudo, ou como “coitadinhos”. Gonçalves aponta que um exemplo de antagonista é Isaac, da série “Sex Education” (2019). O personagem possui traços vilanescos desenvolvidos por seu caráter, não por ser cadeirante. Apesar da boa construção de Isaac, a busca pelo incômodo por meio das deficiências físicas dos personagens, assim como em “Midsommar”, ainda é recorrente em Hollywood. Considerado um gênero subversivo, com maior liberdade para temas sociais, o terror continua utilizando da figura humana e seus desvios para gerar bilheteria e desconforto. Colaboraram: Daniel Gonçalves, jornalista e diretor de cinema; Marcio Markendorf, professor e pesquisador do Curso de Cinema da UFSC; Hérick Santos, maquiador de efeitos especiais, diretor independente e dono do canal Carnoficina no Youtube; Matheus Henrique do Amaral, mestre em Educação Inclusiva pela UNIMEP

Texto: LUCAS ZACARI Diagramação: THEO SALES Foto: REBECA ALENCAR

EM CARTAZ: O CORPO HORRIPILANTE 5


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Até que o Meta os se

Texto: PEDRO GUILHERME Arte: IASMIN CARDOSO Diagramação: MATHEUS NASCIMENTO Você está atrasado. Mas não se preocupe: tem servidor e banquinho para todo mundo. Roupa social, só se quiser, alguns convidados estão até de regatinha e chinelo. Os noivos ainda não chegaram, será que caíram no caminho? O estilo do lugar se afasta do gótico ou do barroco, está mais para um projeto de arquitetura experimental. Nesse casamento no metaverso, a igreja é a Meta, e o padre, Zu ckerberg. Infelizmente, o evangelho do padre assustou os noivos, tra zendo algumas inseguran ças do mundo real. É seguro estar aqui? Vamos ter dinhei ro para comprar onosso terreno? E esse casamento, será que dura? A ideia de metaverso já existia, mas foi a partir do anúncio recente da Meta que criou-se um alvoroço sobre o tema. Esse enorme hype acelerou a adesão das empresas a esse novo meio, ao mesmo tempo em que desviou as discussões de privacidade digital. Afinal de contas, vale lembrar que a Meta, antigo Facebook, continua campeã em polêmicas envolvendo a privacidade de dados dos usuários. Flávio Shimabukuro, especialista em segurança da informação, destaca ao claro! que o metaverso a princípio será uma terra de ninguém, já que o Direito chega para regular a partir das experiências positivas e negativas. Enquanto isso,

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a insegurança já pode ser traduzida em números: uma pesquisa de 2021 da NordVPN, empresa fornecedora de Rede Privada Virtual, nos EUA mostrou que 87% dos entrevistados estão preocupados quanto à privacidade caso a Meta consiga concrtizar seu projeto. Além de se preocupar com seus dados, o casal ainda tem que procurar um teto para começar sua nova vida virtual. O que eles não contavam é que certos terrenos no meta já estão sendo comprados por grandes empresas, como Samsung e Carrefour, e vendidos por até US$ 4 milhões! Lidia Zuin, jornalista, professora e futuróloga, explica que, por trás dos espaços avaliados em milhões de dólares, há uma lógica de especulação imobiliária. Ao mesmo tempo sem fronteiras e loteado, o metaverso vive um paradoxo em sua expansão: grandes plataformas desse segmento, como a Decentraland e a The Sandbox, criam uma dinâmica de escassez para poder lucrar, em um espaço virtualmente “infinito”. Como? Lidia usa o exemplo das celebridades: a possibilidade de morar em uma casa próxima ao Leonardo DiCaprio encarece a região, criando uma dinâmica de setores e divisão social do espaço pela renda. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Já o neurocientista e futurista Alvaro Machado Dias traz mais uma dor de cabeça aos recém-casados: o relacionamento. A avatarização do metaverso já mobilizou investimentos milionários


epare de grandes marcas da moda como Adidas e Nike com seu grande potencial de customização. Mas para além das roupas extravagantes, os avatares também são uma chave para se pensar em relacionamentos na plataforma. Alvaro explica que essa ferramenta pode gerar um problema sério: se por um lado ela evita vieses raciais e sexuais, por outro pode causar uma falta de identidade e de originalidade da identidade. Esta despersonalização do usuário é mais grave sobretudo quando o uso de avatares começa cedo na infância, período-chave para o neurodesenvolvimento. Um avatar, que deveria facilitar conexões, acaba distanciando a essência da pessoa em um relacionamento mais real, criando uma barreira. O primeiro casamento no metaverso já ocorreu, resta aguardar o primeiro divórcio. Os noivos cruzam os olhares assustados, ouvindo o padre perguntar se aceitam. O “novo” do metaverso conserva e amplia alguns velhos hábitos, o que em um momento de iluminação, causa um mal-estar ao casal. No final das contas, você vê ambos desaparecendo do altar, noivos em fuga tirando o cabo da internet da tomada. Do fundo da igreja, os convidados perguntam: “mas e a lembrancinha em NFT?”

Colaboraram: Alvaro Machado Dias, neurocientista e futurista; Flávio Shimabukuro, especialista em segurança da informação; Lidia Zuin, jornalista, pesquisadora e futuróloga.

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traria na palavra, num movimento típico que caracteriza o nascimento das variações linguísticas. No caso desses recursos linguísticos específicos, existe até um nome para isso: a esteira do eufemismo, conceito do linguista Stephen Pinker. É quando uma palavra que foi eufemizada para se referir a um tabu acaba sendo “contaminada” por ele e substituída por outra expressão que, por sua vez, sofrerá o mesmo processo e assim sucessivamente, como explica a pesquisadora Elisa Stumpf, que estuda tabus linguísticos. A família que vive isolada da sociedade no longa de Matt Ross, Capitão Fantástico (2016), tem cena que representa a quebra desse movimento: a filha pergunta, em uma viagem de motorhome, o que “estupro” significa. O pai responde, naturalmente e com termos claros, que é quando uma pessoa, usualmente um homem, força uma pessoa, usualmente uma mulher, a ter uma relação sexual. A conversa segue casualmente com mais perguntas da criança sobre o que significaria relação sexual e a razão da penetração. Pode não ser grotesco para essa família dizer o real significado das coisas a uma criança. Assim como pode ser especialmente importante, para um cineasta, mostrar a grotesque de um rei sendo morto enquanto defeca. Os eufemismos acabam sendo, na verdade, recursos para responder a algo simples: o que cada comunidade deseja esconder?

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É, e l a g e m o r r e u ca

Colaboraram: Elisa Stumpf, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Fernanda Amendoeira, doutoranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Heronides Moura, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Karen Sampaio, professora do Departamento de Linguística e Filologia da UFRJ

O mais poderoso lorde de Westeros é morto pelo seu próprio filho com uma flechada no coração, sentado em uma privada, enquanto terminava de cagar. Nesta cena de Game of Thrones, série de 2011 da HBO, a comicidade está naquilo que ela opta por não ocultar: a grotesque humana. “Morrer cagando” pode ser uma expressão que não se deseja dizer — ou mostrar nas telas. E existe um recurso humano para evitá-la: os eufemismos, figuras de linguagem (ou de pensamento, para alguns linguistas) que expressam o indesejável, dessacralizando uma palavra considerada má e substituindo-a por um equivalente “enfraquecido”. A transformação linguística de “meretriz” é um exemplo de uso desse acessório. Do latim meretrix, a palavra era usada originalmente para se referir a mulheres que ganhavam salário e, à época, a prostituição era uma das principais fontes de renda. Eis, então, que “prostitutas” viraram “meretrizes”. A nova expressão viria para cobrir uma lacuna de significado que outras não cumpriam, sendo socialmente útil. E quanto mais replicada — como um telefone sem fio —, mais esse sentido de mais baixo calão se incrus-

Texto: SARAH LÍDICE Arte e Diagramação: ALDREY OLEGARIO

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R u e o g o ional? t n e j o N

Corte em pequenos pedaços o fígado e rins de porco, adicione também tendões, pele e raspas do osso suíno. Misture tudo e junte sal, ácido ascórbico e glutamato monossódico. Adicione na mistura gordura do porco e passe num triturador, após moído, coloque a massa pastosa em um invólucro de colágeno. Pasteurize por alguns minutos e estará pronta a sua salsicha . Alimentos embutidos como linguiça e presunto são produtos que fazem parte do cotidiano de milhares de pessoas, mas mesmo assim seus ingredientes não são tão conhecidos. A ideia de consumir cartilagem, pele e vísceras é vista de forma repulsiva em algumas regiões do Brasil quando apresentadas em pratos regionais como buchada e sarapatel, mas são facilmente vendidos se possuem a aparência e textura modificadas em alimentos ultraprocessados. A indústria alimentícia uniformiza o sabor e a aparência de diferentes alimentos, segundo o chef gastronômico e pesquisador Paulo Machado. O consumo massivo de ultraprocessados distancia o brasileiro de experimentar sabores e texturas de outras regiões. Uma vez que o desenvolvimento da culinária brasileira é diversa, o consumo em massa de produtos saborizados artificialmente limita o contato entre as pessoas à gastronomia de diferentes localidades brasileiras. Não é absurdo estranhar pratos feitos com sangue coagulado, vísceras e animais selvagens, de acordo com a antropóloga Talita Roim. O problema está nas pessoas enxergarem os seus hábitos alimentares como “civilizados” e inferiorizar aquilo que é diferente da sua cultura. Além de contribuírem para a comercialização em massa de industrializados, na visão da antropóloga, algumas produções midiáticas estigmatizam ainda mais alguns tipos de comida. Ao ver olhos de cabra consumidos crus na televisão, como trouxe em 2020 o programa No Limite, por exemplo, o público reforça mais ainda a

rejeição de alimentos tipicamente consumidos em algumas regiões. Por outro lado, Moacir Sobral, professor de gastronomia da UFRJ, acredita que é possível enxergar benefícios em propostas midiáticas, como o Masterchef. Nos últimos anos, programas culinários têm remodelado cada vez mais a abordagem para evidenciar a riqueza da regionalidade gastronômica brasileira. As diferentes perspectivas diante da regionalidade culinária do Brasil são inevitáveis. A experiência humana com a alimentação é subjetiva, e discutir aspectos que tornam uma comida agradável ou repulsiva não aborda valores nutricionais, mas sim como é problemático a visão etnocêntrica diante de uma gastronomia diferente. Principalmente quando esse “diferente” está incluso na sua rotina em forma de ultraprocessado e você nem percebe. Colaboraram: Moacir Sobral, doutorando em Patrimônios Alimentares pela Universidade de Coimbra e professor de gastronomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Paulo Machado, gastrônomo especialista em cozinha francesa pela Institut Paul Bocuse e pesquisador de alimentos Talita Prado Barbosa Roim, professora vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiânia.

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Texto: CADU EVERTON Arte e Diagramação: ALDREY OLEGARIO


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SOBRE OS MONSTROS MAIS BELOS

Isso não é arte. Foi essa frase que Gabriel Grecco escutou de um casal que visitou uma de suas exposições. O comentário não abalou o artista. No dia seguinte, Grecco pintou um quadro no qual um menino negro segurava uma metralhadora. Nele, em letras bem grandes, escreveu: “Isto não é arte, este é o nosso mundo”. O pintor e escultor utiliza a arte como uma forma de criticar as pessoas, a sociedade e, principalmente, a si mesmo. Nas obras, imagem e texto se interligam para gerar no outro sentimetos de desconforto. Embora Greco admita que considera grande parte dos seus quadros e esculturas lindos, seu trabalho artístico foge do que muitas pessoas julgam esteticamente agradavel. Mas isso não é novidade no mundo da arte. Mesmo no período renascentista, conhecido por suas

obras simétricas e realistas, muitos artistas desafiavam o status quo para dar espaços aos mais tenebrosos monstros da mitologia greco-romana. Nas telas e nas esculturas, criaturas disformes e horrendas roubavam o protagonismo de heróis e deuses. O nome dado a esse tipo de expressão artística até hoje faz parte do nosso vocabulário: “arte grotesca”. As características da estética dissidente, que, no século XVI, atraiu centenas de espectadores para contemplar criaturas mórbidas, foi a mesma que encantou Pedro Panta durante a juventude. Aos 17 anos, quando abandonou radicalmente a reprodução de obras de outros artistas e começou a dar seus primeiros passos em busca de uma arte autoral, ele já se interessava mais pelas expressões artísticas disformes e assimétricas. Hoje, professor e artista plástico, é na arte grotesca que Panta encontra suas maiores inspirações para dese-

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nhar, explorando a capacidade humana de se atrair por tudo aquilo que é rejeitado pelo senso comum de beleza. Nos seus desenhos, ele funde corpos, ignora convenções de gênero e cria seres que só podem viver no papel e na sua imaginação. E o grotesco está longe de se restringir às artes plásticas. A atriz e performer Rosi Martins, que incorpora a dicotomia entre o belo e o feio ao entrar em cena, já chegou a ser abordada por uma senhora que, ao vê-la atuando, convenceu-se de que Martins era uma pessoa psiquicamente adoecida. Em uma de suas autodenominadas videoperformances, ela encarna de forma tenebrosa a figura mitológica de Cronos, senhor do tempo cronológico que devora aexistência mortal como uma besta devora sua presa. Ao invocar em si uma das entidades mais temidas da Grécia Antiga, Martins se torna cada vez menos humana, cada vez mais monstro. Inspirada no quadro do pintor grotesco renascentista Goya, a videoperformance articula elementos feios, desconcertantes e trágicos antigos, mas que permanecem vivos no seu fazer artístico. A feiúra na arte não possui objetivos engessados, ela surpreende, provoca, espanta, causa repulsa ou medo. Mas se deparar com essa arte disruptiva possibilita um questionamento ativo do padrão estético vigente. A representação do não belo na arte permite que, ao observar o diferente e o monstruoso, o ser humano se depare e aprecie o seu próprio lado feio e grotesco. Colaboraram: Gabriel Grecco, artista plástico; Pedro Panta, ilustrador e professor de arte; Rosi Martins, artriz e performeressados, ela surpreende, provoca, espanta,

Texto: MARIANA MARQUES Arte: IASMIN RODRIGUES Diagramação: THEO SALES 11


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Queer no topo

No começo dos anos 2000, Valder Bastos, vindo do interior e recém chegado na capital, trabalhava panfletando na noite paulistana. Uma noite, na companhia de amigos, decidiram se ‘montar’. Inicialmente, rejeitou a ideia, que algum tempo depois se tornaria parte essencial de sua identidade. Essa é a história do “nascimento” de Tchaka, apresentadora, atriz, e rainha da Parada LGBTQIA + de São Paulo. Atualmente, a arte queer ganhou novas proporções. A oferta de produções queer na grande mídia foi ampliada não só pelas pressões desse público para uma maior representatividade nas telas, mas também da iniciativa dos estúdios e gravadoras, que identificaram nas representações dessa cultura uma oportunidade de atrair um público antes invisibilizado. Esse aumento, no entanto, é atrelado ao ‘pink money’, ou seja, objetiva a atração do capital da população LGBT e impacta esse meio cultural para torná-lo mais palatável ao telespectador, o que também gera um desvio da arte queer de seu caráter social. A performance drag, por exemplo, se popularizou com o reality show “Ru Paul ‘s Drag Race”. Em sua 14ª temporada, lançada em 2022, o show bateu recorde de audiência no Canal VH1 na estreia, mobilizando 738 mil espectadores. O sucesso do reality, inspirou a criação de séries do gênero no mundo, como o programa ‘Queen Stars’, da HBO Brasil. Na década de 90 e início dos anos 2000, artistas drag perfomavam em casas de show com baixa visibilidade na cena cultural da cidade. Tchaka, prestes a completar 22 anos de carreira, conta que suas primeiras referências foram as artistas que se apresentavam nos clubes locais, o que gerava um sentimento de identificação e resistência dessa comunidade. Hoje, as referências se alteram pela forma como as produções são assimiladas e consumidas. A recepção de realitys drag, por exemplo, parte de uma narrativa dramatizada, o que gera discussões sobre a superficialização dessas identidades para o grande público. A influência comercial reflete no meio artístico criando uma divisão entre as performances e representações queer consideradas mais palatáveis para o público. César Castanha estuda representatividade na comunicação e afirma que a popularização não retira o caráter político e social da arte marginalizada, já que ela seria assimilada a partir da ‘sensibilização’ do espectador, mesmo quando provoca estranhamento, riso ou deslumbre. Assim, ela não pode ser dissociada da análise das identidades representadas. Be Zilberman, que começou a performar desde 2016 como drag queer, associa sua apresentação drag como o exacerbamento de sua identidade. E Tchaka, por exemplo, utiliza suas performances, a partir do humor e da arte, como forma de conectar públicos. A arte queer tem se adaptado para uma maior visibilidade na mídia embora não deixe de estar atrelada à estranheza, excesso e o melodrama que são inerentes ao queer. Porém, seja como performer, produtore de cinema ou pesquisador, a comunidade LGBTQIA+ busca repensar a representatividade do ‘mainstream’ para que exista uma produção voltada para essa população em todos os níveis de desenvolvimento, que celebre as tradições comunitárias e não explore corpos e identidades.

Colaboraram: Be Zilberman, diretore de cinema e produtore Cesar Castanha, especialista em comunicação Christian Gonzatti, doutor em comunicação e diversidade Tchaka, atriz e apresentadora

Arte: IASMIN 12

Texto: LUANA MACHADO RODRIGUES E MATEUS DIAS

Diagramação: MATEUS DIAS


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