Claro! Corpo

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Claro!

outubro 2016

CORPO


Quando na pensamos liberdade do corpo de s cada um, raramente lembramo ar. uc ch da liberdade que pode ma nifica que Se o meu corpo é meu, isso sig ra me ferir? eu posso cortar minha pele pa Pelos olhos da Posso causar dor a mim mesma? propósito: se você sociedade, tudo depende do seu er, tudo bem. Mas quer entrar na faca para emagrec sociedade repudia. se for para tingir o olho de preto, a ura - mas tocam Nenhuma das práticas é 100% seg ual. Até que ponto diretamente na liberdade individ em seu corpo? você é responsável pelo que faz ao mundo: é Seu corpo é como você se mostra rtir dele que você política, ideologia, cultura. É a pa o. Ele é seu cartão vivencia as experiências do mund ê a ser julgada. de visitas e a primeira parte de voc você a Nesta edição, o Claro! convida s e as passear pelos diferentes corpo avés formas que assumem, seja atr s das experiências e percepçõe ou das dificuldades e preconceitos.

DE QUEM É SEU CORPO ? ANA LUÍSA MORAES E ISADORA VITTI .texto JÉSSICA SOLER .design

EXPEDIENTE ECA-USP Diretora Margarida Maria Krohling Kunsch Departamento de Jornalismo e Editoração Chefe Dennis Oliveira REDAÇÃO Professora Responsável Eun Yung Park Editoras de Conteúdo Ana Luísa Moraes e Isadora Vitti Capa e Diretor de Arte Jeferson Gonçalves Foto Capa Tom Barreto | @phototombarreto | Modelo Luísa Marcondes Editor de Fotografia Daniel Quandt Diretor Online Marcos Nona Redes Sociais Joana Darc Leal Equipe Online Isabelle Almeida e Laura Himmelstein Diagramadores Amanda Oliveira, Breno Leoni Ebeling, Jéssica Soler, Luiza Magalhães, Paula Thiemy, Rafael Ihara Ilustradores Daniel Tubone Simões e Isabel Seta Repórteres Isabella Galante, Gabriela Sarmento, Giovanna Lukesic, Guilherme Caetano, Júlia Moura, Júlio Viana, Nairim Bernardo, Nyle Ferrari, Sofia Mendes, Vinícius Almeida Vídeo Felipe de Barros Marquezini e Tiago Aguiar Making Of Heloísa Iaconis e Marília Fuller Endereço Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, Bloco A. Cidade Universitária, São Paulo - SP CEP: 05508-900 – Telefone (11) 3091-4211 O suplemento Claro! é produzido pelos alunos do 6o semestre de graduação de Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso – Suplemento Tiragem: 8000 exemplares


EM (DES)CONSTRUÇÃO Há dias que você acorda e pensa “quero mudar a cor do meu cabelo”. Em outros você decide colocar silicone. Pode ainda escolher pigmentar os olhos de preto. Tudo bem, esta última pode ser uma opção ousada para a maioria das pessoas, mas é uma das modificações corporais mais extremas e admiradas por quem gosta de body modification. Karine Guimarães começou a modificar o corpo ainda adolescente quando colocou um piercing na sobrancelha. Hoje, ela é tatuadora e tem alargadores, língua bifurcada, implantes subcutâneos na testa e na mão, além dos olhos pigmentados, prática conhecida como eyeball tattoo. “Me vejo de uma forma que gosto muito mais do que antes quando não tinha meus olhos e corpo tatuados”, afirma Karine que vê que as modificações fizeram bem para sua autoestima. Normalmente as pessoas alteram o corpo por questões estéticas. “Como todo mundo sempre tem algo que gosta mais, eu acabei gostando de tatuagem e piercing. Sempre foi algo que me chamou atenção”, conta Alexandre Anami, que entrou nesse universo também profissionalmente, como tatuador. Tanto Karine quanto Anami pesquisaram bem o profissional antes de modificar seus corpos. Tais procedimentos não são realizados por médicos, uma vez que o Conselho Regional de Medicina proíbe qualquer modificação extrema na anatomia do corpo do paciente. No entanto, qual é a diferença entre colocar silicone na mama e na testa? Segundo o cirurgião plástico Rogério Ruiz, glúteo, mama, panturrilha, braços são lugares anatomicamente viáveis. “Eles já existem, estou apenas redefinindo-os e/ou revolumizando-os. Quando eu coloco um implante na testa, começo a distorcer a anatomia daquela parte do corpo”. Outra diferença está no material implantado. A prótese usada na mama é um gel, portanto, líquido, enquanto os implantes são feitos na maioria das vezes com silicone sólidos. Além disso, as cirurgias plásticas são realizadas em centros cirúrgicos 100% esterilizados. Os processos de modificação corporal podem gerar infecções, reações alérgicas e deformidades, mesmo assim Karine e Anami continuam pensando em fazer outras mudanças. De todas as modificações que fez, a única que deixou Karine mais apreensiva foi a pigmentação do olho. Durante o procedimento, há o risco da tinta ser aplicada na íris e na córnea. Além disso, os quatro dias seguintes ao processo são de tensão, na medida em que a tinta pode espalhar por debaixo do olho, o corpo pode rejeitar o material introduzido, entre outras reações. No entanto, ouvir Karine contar com tanta felicidade cada dia que acordava e via que estava tudo bem, que tinha dado tudo certo, faz com que seus olhos, mesmo que inteiramente pretos, brilhem.

GABRIELA SARMENTO .texto JÉSSICA SOLER .design ALEXANDRE ANAMI .ilustração


MENTE SAI, CORPO FICA

NAIRIM BERNARDO .texto LUIZA MAGALHÃES .design DANIEL QUANDT.fotografia Você já teve aquela sensação de que o seu sonho parecia muito real ou mesmo que você estava acordado dentro dele? Pois bem, pode ser que não seja coisa da sua cabeça. Ou melhor, pode ter acontecido algo muito além da sua cabeça. O que alguns pensam ser sonho, outros acreditam que seja projeção astral. Funciona assim: quando dormimos, nossa mente deixa de se manifestar no corpo físico e passa a se manifestar em um plano não material. Caso você esteja inconsciente nesse plano imaterial, irá ter devaneios, fantasias e pensamentos da mente física, ou seja, sonhos. Já se estiver consciente, será como se estivesse acordado no plano material, poderá fazer o que quiser, ir para onde quiser e encontrar pessoas (vivas ou não). As possibilidades são infinitas. Mas se você ainda não conseguiu atingir uma boa consciência e lucidez sobre essas questões, uma experiência astral não muito forte irá te parecer apenas um sonho mais nítido do que outros.

As explicações e usos para esse fenômeno variam. O Instituto Internacional de Projeciologia e Conscienciologia oferece um curso com material didático, carga horária de 50 horas, aulas teóricas e práticas para quem quer investir na autopesquisa e no desenvolvimento pessoal. Mas, segundo Morgana Pereira, bruxa e astróloga, “A projeção astral faz parte do trabalho mágico no que diz respeito a manipulação de energia. Pode ser para o bem ou mal, dependendo de quem e como faz”. Já Roberto Pineda é administrador, tem 64 anos, faz projeções desde bebê e em 2010 criou um blog para esclarecer dúvidas e relatar suas experiências. Para ele, não há nada de espiritual nisso: “As projeções nos proporcionam conhecimento próprio, nos libertando de condicionamentos, formatos, medos e crendices”. Se toda essa viagem te deixou confuso, é hora de acordar. Mas como voltar do astral? Segundo Roberto, “Basta se concentrar no corpo físico. É

normal querer continuar lá, mas ser trazido de volta por algum incômodo físico ou por uma emoção mais forte no ambiente astral”. É raro, mas também podem ocorrer dificuldades no retorno. Caso a pessoa acorde e sua consciência ainda se manifeste parcialmente no corpo material, não conseguirá reativar totalmente o corpo físico, ficando paralisada. O que alguns chamam de “catalepsia projetiva”, a ciência nomeia de “paralisia do sono”. Os sentidos despertam durante o REM - fase mais profunda do sono, em que ocorrem os sonhos - mas os músculos não respondem. A pessoa fica paralisada, não consegue abrir os olhos, mas tem a sensação de ver tudo o que acontece ao redor. Segundo a literatura médica, é normal ter alucinações durante esses episódios. Pesquisas de 2011 da Universidade da Pensilvânia indicam que 8% da população mundial, 28% dos estudantes e 32% dos pacientes psiquiátricos já tiveram pelo menos um episódio de paralisia do sono. Dependendo da explicação que mais convença, a hora de dormir pode ser um momento de descanso ou a plataforma de embarque para uma grande viagem. Em caso de emergência, é recomendável procurar um especialista (seja ele uma bruxa ou um neurocientista).


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GIOVANNA LUKESIC .texto LUIZA MAGALHÃES .design DANIEL QUANDT .fotografia

SUA ÚLCERA PODE ESTAR NA SUA MENTE

Sabe aquele pratão que você comeu na última sexta-feira, cheio de pimenta, acompanhado de uma cerveja? O cigarro depois da refeição, lembra? E os salgadinhos da festa da sua sobrinha no domingo? Eles podem não ser a causa daquela sua úlcera que te atormenta depois de um copo de suco de laranja. Bom, não sozinhas: além daquilo que você come, o que você pensa também tem consequências no seu corpo. Sim, é isso mesmo. Todos os pensamentos negativos que você tem te afetam fisicamente e podem causar doenças como úlceras, colites, taquicardias e até mesmo problemas sexuais. Parece fantasioso? Não é. Muito influenciada por Freud, o criador da psicanálise, a medicina psicossomática é um campo que estuda justamente a ligação entre mente e corpo. Essa área da medicina defende que algumas doenças têm origem nas nossas emoções, explica o psiquiatra Leonard Verea, especializado em medicina psicossomática e hipnose clínica. Toda vez que reclamamos do trânsito, esquecemos o passe do ônibus em casa e nos xingamos por isso, nos irritamos com as horas extras não remuneradas e dormimos pouco, o que nos irrita mais ainda, acumulamos tensão. No piloto automático, não colocamos isso para fora e a hipófise, uma glândula cerebral, secreta na nossa corrente sanguínea hormônios como o cortisol, ligado ao estresse. Segundo a psicoterapeuta Denise Gomes, quando isso acontece com frequência, o sistema imunológico fica debilitado. As doenças psicossomáticas se manifestam principalmente no sistema digestivo. A dor que sentimos é uma resposta da parte inconsciente do cérebro, onde as informações são decodificadas, para a parte consciente, considerada racional. Mas nem tudo está perdido! O outro lado da história também é verdadeiro. Ao levantar de manhã com dor de dente e pensar que esse incômodo irá melhorar ao longo do dia, é bem provável que isso de fato aconteça, afirma o psiquiatra Verea, desde que haja uma motivação para isso. Isso porque os pensamentos positivos estão associados à ideia de realização do indivíduo, explica Regis Cadini, médico especialista em psiconeuroendocrinologia. Não basta apenas querer, é preciso que haja algum objetivo concreto, como, por exemplo, comer uma maçã. O tratamento, entretanto, não é feito só com pensamentos alegres, e os resultados não são imediatos. É um processo de construção em que é necessário realizar uma autocrítica e entender questões íntimas, com o auxílio de técnicas como a hipnose ou a meditação. E então, pronto para ter uma conversa sincera consigo mesmo?




JÚLIA MOURA .texto PAULA THIEMY .design DANIEL QUANDT .fotografia

Patrícia é uma jovem jornalista de 27 anos que, em decorrência de complicações em seu parto, tem paralisia cerebral. Ela não teve sequelas cognitivas, mas seu desenvolvimento físico foi comprometido e a mobilidade reduzida. Após quatro cirurgias, caminha com o auxílio de uma bengala em curtas distâncias planas. Para longos deslocamentos, utiliza cadeira de rodas com o auxílio de outra pessoa. Não há, no entanto, pontos de ônibus perto de sua casa. Para chegar até o mais próximo, há uma ladeira muito íngreme, que ela não consegue vencer sem a ajuda da mãe. As calçadas

SOCIEDADE

INACESSÍVEL

também não a acomodam com seus buracos e desníveis. Diariamente, sua liberdade e independência lhe são roubadas pela falta de acessibilidade. Juliano Araújo, estudante de psicologia de 27 anos, também apresenta o quadro de paralisia cerebral. Por sua lesão no cérebro ter sido mais branda, ele tem mais facilidade de locomoção e independência que a maioria dos demais portadores. Mas isso não o impede de sofrer no dia a dia. “O degrau do ônibus claramente não foi feito por alguém que entenda ou tenha nossas necessidades. Nos bairros é ainda pior, porque não há adaptações como as grandes plataformas. O veículo é muito alto e a calçada muito baixa”. Patrícia e Juliano estão inseridos em espaços que não atendem às normas de acessibilidade. Lei desde 2000, a norma 14022 regulamenta padrões de

adaptação obrigatórios para pessoas com deficiência (PCD) em transportes coletivos. Já a norma 9050, em voga desde 2004, reúne padrões para edificações, espaços e equipamentos urbanos. Elas ditam padrões dimensionais, especificando medidas adequadas para o uso de PCD, mas, muitas vezes, não são respeitadas. Para Renata Lima de Mello, arquiteta que participou da revisão da norma 9050, a legislação é bem sucedida, o problema é a fiscalização. “A própria prefeitura é responsável por adaptar a cidade e cobrar a sua adaptação”. A arquiteta e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Roberta Consentino Kronka Mülfarth, aponta dificuldades dos espaços se adaptarem. “Há as edificações antigas que devem ser adaptadas e as novas que obrigatoriamente são planejadas e construídas para atender as normas vigentes”. Patricia e Juliano são apenas dois dos 45 milhões de brasileiros com deficiência que sofrem com a falta de adequação de obras e projetos. Roberta lembra que, antigamente, era ainda pior. “Não se viam pessoas com deficiência nas ruas, elas ficavam isoladas em casa, era pura ignorância”.


Você entra em uma sala. Em frente à porta, um cartaz. Traçadas nele, linhas simples de comprimentos diferentes. À sua frente, um papel pergunta qual delas é a maior. “A segunda de cima para baixo” é a sua resposta. Está na cara, é óbvio. Mais algumas pessoas entram na sala. “Qual delas é a maior?” pergunta o moço junto à porta. “A terceira”, fala uma das mulheres na sala. Você ri. Claramente ela está errada. “A terceira”, diz outro homem. “A terceira”, afirma, com segurança, o terceiro homem. “A terceira”, “A terceira, “A terceira”. Aquele frio no estômago. Um peso que desce na garganta. Algo está errado. Você não vê o mesmo que os outros. Você está errado. Com certeza errado. Não está vendo direito. Se os outros dizem, está certo. “A terceira” você fala. Esse é um clássico experimento da psicologia social. Segundo o pós-doutorando da Universidade de São Paulo, estudioso da área, Everton de Oliveira Maraldi, todas as vezes em que ele é realizado, a pessoa testada o inicia certa. Entram atores que afirmam algo completamente diferente e, ao final dele, a maior parte dos participantes muda sua resposta, totalmente convencidos de que os outros estavam corretos. “A realidade é uma construção”, ele diz. Em princípio cerebral, neurológica, e depois social. Sua realidade, quem você é, o que você faz, podem ser nada mais que o resultado do que todos os outros ao seu redor vêem e fazem. Foi Gustave Le Bont, importante pesquisador do século XIX e grande influenciador

JÚLIO VIANA .texto PAULA THIEMY .design DANIEL TUBONE .ilustração

do campo da psicologia social, quem escreveu “A Psicologia das Multidões”. O estudo defende o efeito dominador que a massa provoca sob o indivíduo: pense em você perdendo-se em um mar de gente. Um corpo de gigante formado por milhares de outros corpos. O anonimato é certo e com ele cresce uma força, uma sensação de onipotência. Todos estão ao seu lado. Vocês se apertam, todos gritam juntos. Aquela exaltação, antes não sentida, cresce dentro de você. Todos começam a pegar pedras. Você pega também. Eles começam a atirá-las, você as atira também. Eles olham para o céu e gritam “Um OVNI, os extraterrestres estão vindo nos buscar!”. Você vê também. “Um espírito! Ele vem nos salvar”. Você enxerga também. Você crê também. Todas essas situações são não só possíveis, como comuns, afirma Everton Maraldi. Desde OVNIs a manifestações religiosas ou sobrenaturais. Tudo isso pode acontecer fruto de uma mente como a nossa que anseia em corresponder expectativas que o grupo gera e constrói. Existe, então, alguma autonomia? Existe um “eu” só seu? Um “eu” exclusivo delimitado pelo seu corpo? O pesquisador da USP diz que, na verdade, não há resposta para essa questão: “Depende da linha que você segue.” Na psicologia, nada está muito certo. Nada se afirma. Afinal, como ele diz, “o ser humano é um animal social.” Eu sou eu. Você é você. Mas no fundo, talvez sejamos sempre nós. Sem nunca percebermos isso.

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CORPO DE GIGANTE


GUILHERME CAETANO .texto AMANDA OLIVEIRA .design DANIEL TUBONE .ilustração “A Devassa vem sempre aqui com o marido e o amante”, conta a crossdresser Pâmela*, enquanto nos leva para conhecer a casa de swing que frequenta, na zona leste de São Paulo. “O marido gosta de assistir [à esposa transar com o amante]. Ela vai para o quarto e arregaça. Às vezes, até nos atrapalha, porque os meninos vão todos para lá”. Frequentadora assídua da casa, Pâmela descreve o estilo do local. Trata-se de uma espécie de clube liberal para casais que desejam praticar o swing --relacionamento sexual entre dois ou mais casais como forma de entretenimento. Liberal, sim, mas com limites. A casa é composta por vários quartos (particulares ou compartilhados), cômodos escuros e preservativos à vontade. O objetivo é ser convidativo para que os clientes possam se divertir. Uma mesa cheia de comida está sempre servida e há diversos bancos do lado de fora, próximos ao bar em que as bebidas são vendidas, para incentivar o

vendidas, para incentivar o bate-papo. A dona da casa, Vanessa*, conta que gosta quando os casais fazem amizade entre si antes das “brincadeiras”. “Ninguém é obrigado a nada. Eu posso estar sentada ali no canto, assistindo a um casal transar. Se eles não permitirem, ninguém encosta. Fora isso, a gente assiste à distância, para respeitar o momento do casal. Há sempre regras”, afirma Pâmela, enquanto checa as mensagens no Whatsapp e traga seu cigarro. O “não” tem que prevalecer sempre e os casais precisam estar à vontade para demonstrar sua vontade. É comum, segundo Pâmela, que o homem ou a mulher peça a permissão ou a opinião do outro para dar qualquer passo. A crossdresser diz que a pergunta mais frequente é “você quer, amor?”. O público desse tipo de ambiente não é, no entanto, sempre tão resolvido. O consenso entre eles é que o casal precisa trabalhar muito bem essa ideia antes de experimentá-la. Não raramente há desacordo e até

consenso entre eles é que o casal precisa trabalhar bem a ideia antes de experimentá-la. Não raramente há desacordo e arrependimento por conta de um ciúme imprevisto. Há pessoas que extrapolam os limites. “Às vezes temos que dar uma podada em alguém. Eu sempre repito: a casa é liberal, desde que seja de comum acordo”, diz Vanessa. “Não é ‘gozou e vai embora’. Não precisa ter romance, mas não pode tratar ninguém como depósito de esperma”. Questionadas sobre a palavra que melhor define o swing, ambas foram consensuais: respeito. O perfil dos frequentadores é múltiplo. “Aqui vem gente de todo o tipo, do ‘mamando’ ao ‘caducando’. Apareceu, a gente brinca. E não discriminamos, pois a pessoa não pode se sentir isolada, excluída”, afirma Pâmela. Ter cabeça aberta e saber que “não é não”. Sem isso, repete ela, não rola nada. *Os nomes originais foram modificados


O ESPELHO E OS OLHARES

ter mais menino que pede isso, não deve? Mas eu queria tanto, juro que vou ser uma menina boa”. Um dia meu nome de registro deixou de me contemplar. E aí veio a primeira vez que depilei meu corpo e o impacto que senti ao vê-lo no espelho, me vi feminina. Depois, a descoberta das pílulas anticoncepcionais, do bloqueador de testosterona, os seios começando a se desenhar, doídos, marcando a blusa, e eu tendo que escondê-los com faixa enquanto me faltava a coragem para me assumir. Nesse período de mudanças, cada uma era comemorada, só que o desejo de me ver outra por inteiro fazia com que nada fosse o bastante. Decidi colocar um vestido e pintar as unhas. Ao mesmo tempo, era difícil me olhar no espelho nua. O medo de o que pensariam, a insegurança por sentir que meu corpo não estava nem lá nem cá, a transição tardia. Demorou meses para eu parar com a peruca e me sentir bem dessa forma. Mais de um ano para eu ficar sem maquiagem e me achar bonita, tanto quanto nos meus primeiros dias de superprodução. As pessoas me veriam com bons e maus olhos, porém, dessa vez estariam olhando para quem eu sou de verdade. É muito forte me olhar no espelho e ver: cintura, seios e pênis; e ainda assim gostar do meu corpo, ainda assim ver uma mulher. Por Sarah, Helena, Amara

ISABELLA GALANTE .texto AMANDA OLIVEIRA .design

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A partir do fim da adolescência, fui me informando para saber dar um nome àquilo que eu era. Eu ainda me negava fortemente e, nos momentos que me permitia me assumir como algo fora do padrão, logo cortava a ideia. “O mundo, minha família não vão aceitar, eu precisaria ter uma estabilidade social, financeira e psicológica muito grande para ir à frente. Quem sabe daqui a algumas décadas?”. Fui construindo minha confiança e segurança. À medida que crescia a compreensão de que na vida que me fizeram viver havia uma necessidade de encarnar uma personagem, junto vinha o desejo de me livrar de tudo que impedia que o outro me lesse como eu ia me entendendo. Então, me lembrei da criança que pedia todas as noites: “Deus, me faz ser menina, por favor. Sei que deve

Claro!

Os primeiros casos de estranhamento em relação ao meu corpo foram logo que comecei a vida social, ao entrar na pré-escola. Eu não sabia o que estava acontecendo, porque sentia que não pertencia, por algum motivo, aos padrões que me foram apresentados; alternativas não entravam em questão. As pessoas riem, contrariam, estranham, enquanto você está simplesmente existindo. De qualquer maneira, eu precisava me descobrir, me desvencilhar do que “deveria ser” e dos preconceitos internalizados. Era preciso que eu me desse outra opção. Todo esse processo, que parece tão natural e leve, é uma agressividade psicológica tremenda. Eu me sentia sozinha. A angústia aumentava. E eu sempre achei que merecia menos. Menos amor.


VIOLAÇÕES NYLE FERRARI .texto RAFAEL IHARA .design DANIEL QUANDT .fotografia

Fecha as pernas! Isso é jeito de menina sentar? Para de comer, é por isso que tiram sarro de você na escola. Esse peitinho tá chamando muita atenção, bota um sutiã. Bom dia, princesa. Fiu-fiu. Que rabo, hein. Vai com essa roupa pro trabalho? Trinta e cinco anos na cara, escolhe outro corte de cabelo. Ih, mau humor e esse calor todo é culpa da menopausa. Olha essa foto, você era tão linda novinha. Já pensou em fazer uma plástica? Poderia ter tido filho, mas daqui uns anos vai morrer sozinha, coitada. A gente põe uma roupa bonita e passa maquiagem ou vela de qualquer jeito?


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