Claro! Cores

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EDITORIAL

NÃO VAI TER CORES

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Claro USP @ClaroUSP @ClaroUSP Claro USP Claro! USP

O leitor resolveu abrir o caderno - gratidão - e deu-se com o seguinte: jardim secreto, vazado, descolorido. Uma São Paulo que nem é a cinza selva de pedra, mas rabiscos de civilização sob um céu branco todo nuvem. O leitor pode se sentir traído: vocês não me prometeram cores? E então pode não durar até a página colorida - sim, ela existe - pular para página 9, passar pelas criativas cores de esmalte e acabar, cansado, numa briga de bandeiras políticas. O leitor pode apenas ficar na capa, lembrar daquela tia de artes do primário e sair rabiscando as páginas com sua antiga coleção de giz de cera. Sinta-se à vontade. Aliás, quando foi a última vez que você coloriu algo?

Pois assumimos, leitor, que somos preto e branco: a verba é curta. O jeito foi partir para imagens mentais construídas a partir do texto e explorar os recursos gráficos. E assim cada um enxerga a cor que quiser - sem polêmicas em torno do azul/preto/dourado/branco do vestido, sem certo ou errado. Afinal, se o sol fosse um tiquinho mais vermelho, então ficaria tudo novo: dentes azulados, olhos naturalmente roxos e a cor dos oceanos da Terra fariam de nós um grande Planeta Sangue em órbita. Somos apenas projeto, leitor. E jornal não é isso? Palavras diárias tentando, rindo, errando, querendo ser a realidade. Fazer, do preto e branco, todas as cores. Um lindo, camaleônico David Bowie. Vamos?

Texto: Barbara Monfrinato e Guilherme Fernandes Arte: Bruno Vaiano Diagramação: Giovanna Chencci

EXPEDIENTE ECA-USP Diretora Margarida Maria Krohling Kunsch Departamento de Jornalismo e Editoração Chefe Dennis Oliveira Redação Professora Responsável Eun Yung Park Editores de conteúdo: Guilherme Fernandes e Barbara Monfrinato Diretora online: Matheus Sacramento Redes Sociais: Igor Truz Equipe online: Letícia Paiva e Matheus Pimentel Editora de fotografia: Fernanda Guillen Capa e diretor de arte: Leandro Bernardo Diagramadores: Cesar Isoldi, Giovanna Chencci, Isabela Augusto, Lana Othani, Leonardo Dáglio e Paula Lepinski Ilustradores: Bruno Vaiano e Vitoria Batistoti Repórteres: Beatriz Quesada , Carolina Oliveira , Guilherme Eler, Jessica Bernardo, Juliana Meres, Leonardo Milano, Paula Mesquita, Roberta Vassalo, Thiago Castro e Vinicius Andrade Vídeo: Dimítria Coutinho e Juliana Fontoura Making Of: Gabriel Marques e Giovana Belini Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, Bloco A. Cidade Universitária, São Paulo - SP CEP: 05508-900 - Telefone: (11) 3091-4211 O suplemento Claro! é produzido pelos alunos do 5o semestre de graduação de Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso - Suplemento Tiragem: 8000 exemplares


T R Ê S

VERDE - A tonalidade de limão f luorescente na roupa dos entregadores de jornal salta aos olhos de quem passa pelo cruzamento na zona oeste da cidade. No canteiro central, os exemplares do Metro acabaram, e Alexandre, 17 anos, olhos esmeralda e bigode começando a despontar, se diverte na correria do abre-entrega-fecha-volta do seu primeiro ofício. A cor chocante do uniforme o intimida a entrar no Mc Donald’s ao lado para usar o banheiro. Imagina todo mundo olhando? Alexandre amarela e confessa: de limão ele não entra.

Siga, atenção, biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!

!!! !

!!!!!!!!!!

Paulo, dono de uma banca vizinha ao local, se recorda. O asfalto, preto, foi tomado pelo vinho do sangue. Há três anos Edson resolveu deitar no meio fio. Um carro - cinza talvez - perdeu o controle da direção e passou por cima do morador de rua. “Todo mundo conhecia o Edson. O irmão dele sempre vinha aqui de BMW perguntar por ele”. Avermelhou. E os carros também pararam - dessa vez não pelo sinal do semáforo.

maio/2016

Texto: Jessica Bernardo

VERDE - Os ônibus alaranjados e azuis rasgam a avenida embranquecida pelo sol. Negros andam, ruivos e morenos conversam, loiros dirigem. Quantos vermelhos, amarelos e verdes o semáforo já não mostrou? Siga, atenção, pare.

claro!

AMARELO - Zé Domingos chega áureo, radiante. O “Zé dos Panos”, como é conhecido, já foi f lanelinha, passou rodinho, vendeu limão e doce, mas hoje se concentra apenas nos panos de prato brancos com bordas coloridas. Três por dez reais. “Sabe quanto tá cada um no mercado? Sete!”. Mas “esse ano tá embaçado”. Dois mil e cinzas. O pernambucano veste um avental amarelado como o farol para conquistar a confiança dos motoristas: “Eu que lancei o avental aqui”. O acessório é para mostrar que os comerciantes são “trabalhador”. Abre, alerta, fecha.

VERMELHO - Sinal vermelho. Entram em cena dois vendedores de Pixulecos, um vendedor de balas, três ou quatro adolescentes que limpam para-brisas, alguns artistas de rua e Cilene. Seis anos de farol, com vermelho na roupa e no batom, Cilene se destaca pela experiência na entrega do Destak - outra publicação gratuita. Ainda não foi alvo de xingamentos pela cor do uniforme. Que sorte! Em época de obsessão auri-verde, até o rubro do trânsito corre risco. Ao lado dela, os bonecos preto e branco das manifestações fazem sucesso. Isso se a telinha nas mãos dos condutores não desviar a atenção primeiro: “Depois que lançou o zap zap, cê é doido”, resume bem Zé. Quase ninguém lembra de abrir o vidro.

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T E M P O S

O vermelho do semáforo avisa aos automóveis: parem. O vendedor de amendoins começa o discurso e quase se camuf la entre um escapamento e um para-choque. Só o branco da embalagem chama a atenção. 3,2,1, verde. A calçada é o ponto de espera. Segue, atenção, pare. Segue, atenção... Olha o Pixuleco! Tem carregador pro seu celular! Aceita um jornal?


BANQUETE PARA AS UNHAS TEXTO Carol Oliveira FOTO Fernanda Guillen

ARTE Vitória Batistoti DIAGRAMAÇÃO Cesar Isoldi

Geleia de pitanga, risoto de mandioquinha, manjar de tapioca. Não, esse não é o menu de um restaurante com comida típica brasileira. São só esmaltes de uma coleção – chamada, é claro, “Gastronomia”. Tem ainda o suflê de goiaba, que é da corzinha da fruta. Já o marshmallow de alfazema é um roxinho que não lembra nem o marshmallow, nem a alfazema. Dizer se é claro, escuro ou médio é pouco pra descrever a quantidade de cores e tons no mundo dos esmaltes. O branquinho não é só branco. É renda. Top pop. Noivinha. Ou batida de coco – ih, olha a comida de novo. Tá um dia meio amargo. Let’s roll down the window. Deixa o ar entrar. Abre alas pro cinza passar, nem sempre é ruim. A cada ano, novas coleções. As empresas fazem

reuniões e pesquisas entre clientes e blogueiras para decidir cores e nomes, que devem sempre conversar com o assunto da linha. Escolha o tema: comida, viagens, amor, futebol, a benção das famosas. E as brasileiras gostam mesmo de colorir as unhas. Uma pesquisa de 2013 da Euromonitor mostra que já somos o segundo mercado de esmaltes do mundo, só atrás dos Estados Unidos. Ô Meu Santo Antônio... Leo mandou flores. Se é beijo roubado? Zaz! Deixa beijar – mas só se a mina quiser, claro. “É quase um vício”, diz a blogueira Nah Melo. Aos 27 anos, ela é dona de uma página no Facebook onde mostra suas unhas, pintadas até dez vezes por dia. A pernambucana se apaixonou pela arte de “esmaltar” quando ainda era pequena. Hoje, sua co-

beijo roubado

meio amargo

cochilo na rede

leção é feita de produtos que recebe das marcas, e já passa de mil cores. Ainda que longe de trocar de cor dez vezes ao dia, as unhas da estudante Gabriella Alves, 19, também ganham vida com o conteúdo das dezenas de vidrinhos que ela guarda organizadamente em seu quarto. “Os esmaltes são importantes porque ajudam a transmitir nosso humor. Sempre que uso vermelho é porque quero arrasar. O rosa é tipo “ei, estou toda romântica”. O nude é como se eu dissesse “tô de boa hoje”’, diz. A Gabi chama de pintar. A Nah, de esmaltar. No dicionário, a palavra significa ‘dar realce a; abrilhantar, ilustrar’. “Já é quase um acessório”, diz a blogueira. Oxi, que preguicinha. Acho que pede um cochilo na rede. Quase uma siesta de Milão. Ciao Milão.

batida de coco suf lê de goiaba

*Em negrito, nomes reais de esmalte


ALERTA! COMIDA VERMELHA TEXTO Beatriz Quesada FOTO Fernanda Guillen ARTE Bruno Vaiano DIAGRAMAÇÃO Cesar Isoldi

maio/2016

vulnerável a ter uma reação ao escarlate artificial, tanto através de alimentos como de produtos para a pele. A descoberta veio quando ela ainda era muito nova, e itens comuns da infância – como danoninho rosa e mertiolate de cor escura e avermelhada – passaram a causar coceira no braços, nas pernas, no peito. Já adulta, lida com a falta do corante de forma quase automática. Um batom nude no lugar do magenta que inf lama o lábio, e a maquiagem não perde nada com isso. Paula também encontrou um jeito de conviver com a alergia. Anos de experiência com vermelho artificial fizeram com que soubesse seus limites – sempre com a precaução de carregar seu antialérgico. “Sofri bastante sendo criança e tendo que saber o que comia”, conta. “Mas evitar os corantes acabou me levando para um lado mais natural, mais saudável”.

claro!

conduzir os chamados “testes de provocação”, uma tentativa de reproduzir os efeitos para verificar se de fato o corante é a causa da alergia. Depois disso, o que se deve fazer é evitar o contato com esses produtos artificiais. Tarefa complexa numa sociedade com tantos alimentos industrializados, e ainda mais difícil para uma criança. No caso de Paula, essa correlação aconteceu em casa mesmo: ao lado da mãe experimentava e anotava o que poderia ou não fazer mal. Quando pequena, se lembra bem de não poder comer pipoca doce e ter que manter um corte “joãozinho” por conta das feridas no couro cabeludo causadas pela alergia ao corante vermelho. Já para Lívia Mersson, 22, o difícil era evitar os doces sabor morango: “Sabe bicho de pé? O doce rosinha? Acho lindo e nunca pude comer”. A radialista conta que a resistência baixa contribui para deixá-la mais

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Molho de tomate, sorvete de morango, hot dog – “Eu amava cachorro-quente”. Poucas coisas fazem tanta falta para Paula de Lira quanto este último. Há 15 anos ela evita produtos com corante vermelho: passou a ter inf lamações na pele ainda criança, sempre que comia um produto colorido artificialmente. Hoje, aos 25 anos, a salsicha não causa mais reações na pele da assessora de imprensa, mas fecha a garganta – não pode comer de jeito nenhum. A alergia a corantes é rara e difícil de ser identificada, afirma a médica e diretora da Associação Brasileira de Alergia e Imunopatogia (ASBAI), Ana Paula Braga. Como reações a determinados alimentos são mais comuns, o pigmento é deixado de lado como possível origem das inf lamações. Cabe ao médico estabelecer a correlação entre os sintomas e a alimentação do paciente, para depois




COR

X TEXTO Leonardo Milano

João Mauro Senise é jornalista, mas atualmente trabalha com ativismo e mobilização política no Rio de Janeiro. No dia 13 de março deste ano, foi à manifestação pelo impeachment da presidente Dilma porque acredita que o ciclo do PT no poder deve se encerrar imediatamente. Vestiu-se de verde e amarelo, como a grande maioria que o acompanhou no protesto. “O pessoal de vermelho está na rua defendendo a Dilma, não o Brasil”, afirma. Assim como João Mauro, Marcos Hermanson Pomar, residente da capital paulista, saiu às ruas no dia 13 para se manifestar politicamente. Mas, diferente de João, vestiu o vermelho. “Quando eu visto o vermelho, me integro a uma coletividade que simboliza uma série de pautas históricas da esquerda.” Segundo o estudante de jornalismo – que foi a todas as manifestações contra o impeachment da presidente Dilma neste ano – mais do que defendendendo o governo, está “lutando pela democracia”. João e Marcos representam muito bem o atual contexto político do Brasil. De um lado, os defensores da manutenção da presidente Dilma. Do outro, os que querem o impeachment. Diferentemente do que ocorreu no movimento das Diretas Já! ou do impeachment de Fernando Collor de Mello, a sociedade está dividida. E, no meio do escarcéu político que se tornou o país, os manifestantes encontraram sua identidade através de três cores. Enquanto o vermelho se tornou símbolo dos defensores do governo, o

ROC

DIAGRAMAÇÃO Lana Ohtani verde e o amarelo – as cores da bandeira nacional – tornaram-se as referências dos que querem erradicar o PT do poder. Pouca gente sabe dizer, ao certo, qual será o resultado desse embate, e de que forma os grupos irão se comportar agora que a presidente foi afastada do cargo. Luciano Guimarães, especialista na relação da semiótica das cores com a cultura e professor da ECA-USP, afirma que a utilização das cores nacionais normalmente surge num contexto de retomada do nacionalismo por parte de um determinado movimento. A mobilização pró-impeachment é um exemplo dessa retomada, já que busca construir uma narrativa baseada na ideia de “salvar o país da ameaça petista”. O professor também coloca que a aparente unidade que se dá em torno de ambos os lados é ilusória. “Há todo um conjunto de bandeiras agrupadas que estão usando a mesma cor, o que dá uma ideia de unidade”. As cores, dessa maneira, atuam como aglutinadores. No meio do fogo cruzado, até a tradicional amarelinha da seleção brasileira de futebol, que já trouxe tantas alegrias para o povo brasileiro, está ameaçada. Afinal, sair de amarelo na rua, para alguns, tornou-se sinônimo de apoiar o impeachment de Dilma. Para Luciano, grande parte da mídia tem contribuído para consolidar essa narrativa dualista que contaminou o cenário político nacional , e essa “redução extrema é operada pelas cores”, como nas capas e fotografias. Resta esperar por mais cores na política brasileira.


maio/2016

*A pesquisa da socióloga canadense Lorna Roth sobre os cartões da Kodak foi divulgada na revista Zum #10, do IMS

claro!

com a aparência de seus produtos no anúncio e exigiram a adaptação aos tons de marrom.* Em seu trabalho Polvo, a artista Adriana Varejão produziu tintas que correspondem à descrição de 33 tons de pele dentre os 136 apontados pela população brasileira em resposta à pergunta “qual a sua cor de pele?” no censo do IBGE de 1976. Alguns dos tons foram “morena-jambo”, “café com leite” e “puxa pra branco”. O trabalho, que pretende repensar a percepção da cor de pele no Brasil, foi organizado com a antropóloga Lilia Schwarcz e resultou em uma exposição em que o rosto da artista aparecia pintado com as tintas produzidas. Segundo Lilia, “as cores são sempre colocadas numa relação social com outros indivíduos, por isso há indivíduos que vão se definir ‘quase negros’, ‘indo pra negro’ ou ‘quase brancos’. São uma série de posições indefinidas, que mostram como existe uma negociação no Brasil em relação à cor”. Lilia adianta que Adriana Varejão pretende realizar uma nova exposição, mas agora com a produção de bases de maquiagem.

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“A sua cor não vai mais ter não, mas prova essa em bastão”, a atendente do Boticário ofereceu o produto. Ana passou em seu rosto, mas o tom ainda não era o mesmo. “Mas tá claro, né?”, a cliente observa. “Não, depois que você passa o pozinho, fica tudo certo. Você passa pó, né?”. Ana desistiu e foi tentar no quiosque da Maybelline, no andar de baixo do shopping. Apesar de ter maior variedade de tons escuros, mais uma vez a vendedora tentou empurrar bases mais claras do que a pele negra da estudante de 19 anos. Certa vez, encontrou o tom ideal, 11 K iluminada, da marca Quem Disse Berenice, lembra. “Perguntei o nome da cor para guardar, e o vendedor falou que sairia de linha”. Não só as maquiagens foram desenvolvidas com a ideia de que a cor de pele é uma só: a pele branca. O lápis de cor “cor de pele”, por exemplo, que todo mundo usou na escola, na verdade é um tom salmão; o esmalte nude, é da cor bege; e assim vai. Até as décadas de 60 e 70, os processos fotográficos também não favoreciam os negros. Os cartões de calibragem das impressões de imagens se baseavam na pele clara e não distinguiam nuances mais escuras. Isso só mudou quando fabricantes de chocolate se incomodaram

MORENA-JAMBO

PUXA PRA BRANCO

TEXTO Roberta Vassallo DIAGRAMAÇÃO Lana Ohtani FOTO Fernanda Guillen


A COR DO CÉU é TEXTO Thiago Castro DIAGRAMAÇÃO Isabela Augusto ARTE Vitória Batistoti

— Filha, qual é a cor daquele seu brinquedo ali na cadeira? — Azul! — Disse a menina, pintando seus desenhos debruçada na mesa da varanda. — Olhá pra cima.. Qual a cor do céu? — Hmmmm. Eu acho que é... Branco? Eu não sei... O pai virou-se para o cunhado sentado ao seu lado, na cadeira de balanço da varanda, e perguntou: — Entendeu agora porque os gregos não reconheciam o azul? — E o que isso tem a ver? Ela é só uma criança. A Grécia é linda, cheia de mar, céu azul, e você quer me convencer que eles simplesmente não

viam o azul? Além do mais, ela soube dizer a cor do brinquedo dela! — Não é que eles não viam o azul. Eles viam, só não notavam. Não tinham necessidade de usá-lo. O céu não é um objeto, não é uma coisa, sabe? Então não precisa dar uma cor. Nem o mar. E tem pouca coisa na natureza que é azul. Eles enxergavam sim, só que não tinham um nome pra ele. Não reconheciam. — Sei… — comentou o cunhado, mexendo no celular. — Pensa que tem tudo a ver com necessidade e contexto. A gente primeiro começou a perceber o preto e o branco, para diferenciar o claro do escuro… FILHA, TOMA CUIDADO COM ESSA TESOURA, VAI SE MACHUCAR! Mas então, voltando ao assunto: depois veio o vermelho, por causa do sangue. As outras cores chegaram depois. — Isso tá um pouco confuso… Eu li uma

vez que se não existe uma palavra para descrever alguma coisa, então esse algo não existe. É tipo isso? — Mais ou menos. Essa é só uma das teorias, tem gente que não concorda. Mas vamos aqui aceitá-la. Por exemplo, se você não precisa do azul, então não precisa nomeá-lo. Se ele não tem nome que o diferencia das outras cores, então não existe. Você já ouviu falar que os esquimós têm várias palavras diferentes para os tons da neve? — Ei, isso eu li que é boato! — Pode ser. Mas já serve pra dar o exemplo. Se eles têm várias palavras para o branco da neve é porque eles vivem no meio dela! Eles precisam diferenciá-la. Se um deles pisar em um tipo de neve fofa, por exemplo, pode afundar e se machucar. A gente vê tudo branco porque pra gente é tudo a mesma coisa. — Tá, sabe-tudo, mas e o azul? — Rebateu

o homem sarcasticamente — Por que a gente vê o azul hoje? — Ué, porque a civilização mudou e progrediu. Fomos conseguindo criar novos pigmentos, novos objetos, e assim novas palavras surgiram para nomear cada cor. Fez-se silêncio na varanda. O cunhado olhava o céu, contemplativo, quando a menina veio correndo para o colo do pai: — Papai, olha aqui o meu desenho! — Ela pintou a árvore de rosa! — Disse

o cunhado — Será que ela enxerga as árvores assim? — Filha, de que cor é a árvore? — Verde! — E por que você pintou ela de rosa? — Porque eu quis. Eu gosto de rosa.


A depressão é cinza TEXTO Paula Mesquita DIAGRAMAÇÃO Isabela Augusto ARTE Barbara Monfrinato “Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome Cores de Almodóvar Cores de Frida Kahlo Cores”

claro! maio/2016

este, talvez, ainda mais perigoso do que a mordaça. Com o alívio que o não sentir representa, um alento para corpo e mente exauridos dos longos períodos de sofrimento intenso, vem junto o desapego que impulsiona uma rota de fuga pela janela do sexto andar. Mas não, a questão nunca foi essa. Cair de cabeça na imensidão disforme não resolverá, não me fará voltar a ver o arco-íris de que tanto sinto falta, e eu sempre soube disso. O que fará, então? Basta querer? Porque eu quero ver. Eu quero ver, quero ver muito! Por favor, alguém me dê algumas canetinhas, uma caixa de lápis, vou criar o meu colorido. Se me arrumarem tintas e um pincel, quem sabe posso me tornar, eu mesma, minha própria Frida Kahlo. Sem arrogância, sem pretensões de ser uma grande artista... Apenas suficientemente satisfatória para pintar alguma vida no quadro da minha existência. Para que finalmente os raios de sol voltem a beijar minha pele e colorir meu caminho daquele amarelo brilhante da infância. Ou então de rosa, verde, azul, sem preciosismos; se precisar, também pode ser aos pouquinhos. Mas vê se não demora, tá bom, arco-íris? Porque já estou há tempo demais debaixo dessa chuva.

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A doçura da música de Adriana Calcanhotto me cativa desde criança, quando a ouvia tocar no rádio do carro de minha mãe. Na época, nem fazia ideia de quem seriam Frida Kahlo ou Almodóvar; sabia apenas que tinham nomes engraçados, e que, como eu, deveriam gostar das cores. O amarelo, minha preferida desde os doze anos, me remetia ao calor, vida, otimismo. E eu sempre me considerei uma pessoa otimista. Entusiasmada com o caminho que via à frente para a minha vida, amarelo reluzente como o sol. De repente, tudo era cinza. Não foi gradual a minha transição para a vida incolor; fui simplesmente tomada de assalto. O azul do céu do interior, que brilhava sobre minha cabeça todas as manhãs quando ia para a escola, cinza. O vermelho vivo do meu batom favorito, cinza. As árvores, outrora tão verdes, cor nenhuma. Nada. Tudo chumbo, concreto, opaco. Me tornei uma grande massa cinzenta por dentro – e por fora, como todos ao meu redor pareciam fazer questão de apontar. “Como você emagreceu tanto?” “Que cara de cansada!” “Por que eu não te vejo mais?” Por que não me vê mais? Não sei, mas nem eu me vejo mais; talvez esse seja justamente o problema. Uma névoa terrível

embaça todos os espelhos e impede que a vista alcance até a mim mesma. E de que importa? O cinza por todos os lados sufoca como uma prisão, da qual não parecia haver escapatória. Cinza é a cor da mordaça que me sufoca; é, também, a cor do tédio –


ANTES DA ÚLTIMA BADALADA DIAGRAMAÇÃO Leonardo Dáglio FOTOS Juliana Meres e Vinícius Andrade


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