claro! Alcoólico

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Cardápio do dia Para começar Indicamos um gole de álcool dos nossos antepassados com os sabores do hidromel e da cerveja medieval. Se preferir um vinho, nossa sugestão é um dos deuses, ou melhor de Baco ou Dionísio, a escolha é sua. Também temos o vinho contemporâneo degustado pelos nossos sommeliers que criaram a harmonização deste claro! Alcoólico. A carta de drinks passa do clássico ao rústico, do popular ao sofisticado para todos os gostos. São drinks, cachaças e muita mão na massa, ou melhor, no copo, durante as descobertas.* Petiscos da casa Para o ápice da noite - ou da leitura - sugerimos que vivencie uma noite de happy hour. O som da tampinha abrindo e do álcool descendo. O riso mais fácil e a memória enevoada. Nas garrafas cheias as comemorações de um início ou de um sucesso. No chorinho, a leveza e umas pernas moles. Saideira A garrafa final tem gostinho de Brasil acompanhada de um shot de questionamentos. Depois de umas horas bebendo umas, o caneco que enche tão rápido e a pilha de garrafas de escanteio fazem os olhos marejados não perceberem seu significado intrínseco e comercial. O último gole é de cachaça. A boa e velha com carinha regional, sabor doce e que desce causando incêndio. No dia seguinte te desafiamos a contar o que aconteceu. O corpo lembra que não é copo e lhe resta uns apagões e uma boa dose de antiácidos. E claro, algumas promessas vazias de falsos abstêmios.

TEXTO: BRUNA ARIMATHEA E LARISSA SANTOS DIAGRAMAÇÃO: MARIA PAULA ANDRADE ILUSTRAÇÃO: JÚLIA VIEIRA FOTO: MARIA PAULA ANDRADE

*Ps: Para os que não bebem, tem bebida sem álcool e consciência. Pode chegar também.

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Expediente: Reitor: Vahan Agopyan, Diretor da ECA-USP: Eduardo Henrique Soares Monteiro, Chefe de Departamento: André Chaves de Melo Silva, Professora Responsável: Eun Yung Park. Editoras de Conteúdo: Bruna Arimathea e Larissa Santos. Editora de Arte: Giovanna Jarandilha. Ilustradora: Júlia Vieira. Editor Online: Jonas Santana. Diagramadores: Beatriz Gatti, Beatriz Gomes, Bruna Caetano, Laura Raffs, Luciana Cardoso, Maria Paula Andrade. Repórteres: André Romani, Ane Cristina, Anny Oliveira, Camila Mazzotto, Daniel Medina, Jade Rezende, Jasmine Olga, Júlia Mayumi, Juliana Brocanell, Laura Barrio, Larissa Vitória, Mariangela Castro, Matheus Oliveira, Matheus Souza, Mel Pinheiro, Nathalia Giannetti, Pietra Carvalho, Rebecca Gompertz. Revisora: Barbara Cavalcanti. Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, prédio 2 - Cidade Universitária, São Paulo, SP, CEP: 0558-900. Telefone: (11) 30914211. O claro! é produzido pelos alunos do sexto semestre do curso de Jornalismo como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso - Suplemento. Tiragem: 6000 exemplares. Foto de Capa: Giovanna Jarandilha


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Entre liturgia e pileque TEXTO: ANE CRISTINA DIAGRAMAÇÃO: MARIA PAULA ANDRADE ILUSTRAÇÃO: JÚLIA VIEIRA

Onde encontrar bebida alcoólica? Além da óbvia resposta “no mercado”, a probabilidade de se deparar com um copo de cerveja em uma festa de casamento, aniversário ou qualquer ocasião festiva, é alta. É muito fácil, também, perceber o consumo de álcool em rituais religiosos: o vinho, na comunhão católica; a cachaça, ofertada a entidades em religiões africanas. Esse costume não é de hoje. Faz tempo que somos chegados a “beber água que passarinho não bebe”. “O consumo de álcool remonta há mais de 10 mil anos. Ainda nômade, o homem coletava mel. Em contato com a água e fermentado, forma hidromel, bebida pouco conhecida hoje”, explica Waldemar Venturini, autor do livro Bebidas alcoólicas: ciência e tecnologia. Apesar de dar origem ao consumo de bebidas alcoólicas, o hidromel perdeu espaço para o vinho, apreciado até hoje em todo o planeta. É difícil prever sua origem exata, mas sabe-se que a bebida existe há aproximadamente 5 mil anos, quando o homem já havia se tornado sedentário e podia, assim, cultivar uvas, geralmente em clima mediterrâneo, como na Grécia. Aliás, na Grécia Antiga já acontecia um ritual com a bebida. Lá, havia o Culto a Dionísio, Deus do vinho, onde os envolvidos buscavam um estado de transe. Nós também temos nossa história com o consumo de álcool. No Brasil indígena, as bebidas alcoólicas eram usadas apenas em festas, como explica Cauê Dal Colletto, pesquisador sobre substâncias psicoativas de povos indígenas. Nesses eventos, as mulheres eram responsáveis por preparar as bebidas e “guiar” a comemoração. “Toda festa é um ritual”, lembra Cauê. De certa forma, o consumo de álcool hoje continua acontecendo em cerimônias. “A gente não percebe porque naturalizamos nossas práticas. Mas quanto mais ‘natural’ e rotineira uma prática, mais cultural e ritual ela é. Consumir álcool em aniversários e happy hours se enquadra nisso também”, afirma o pesquisador.


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Esteja avisado: o “não, obrigada” não vai se transformar em um sim, não importa o quanto você insista. Sim, eles também se embriagam na diversão, só que com 0% de álcool. Alguns podem usar a palavra “careta”, mas o termo correto para se referir a uma pessoa que não consome álcool é “abstêmio”. E pode parecer que não, mas eles correspondem à maioria da população. Segundo levantamento feito pela Unifesp em 2013, a porcentagem de abstêmios no Brasil é de 52%. Peter Alexandrakis faz parte dessa estatística há pelo menos 30 anos. Aos 57, ele conta que aboliu o álcool por conta de sua enxaqueca. No entanto, o que o manteve firme na decisão foi não apenas a saúde, como também sua nova percepção em relação ao álcool. “Amigos que bebiam muito acabaram se afastando de mim, e eu vi que o que nos unia era a bebida. Não era a companhia”. Tal como percebeu Peter, o álcool como elo de socialização está no imaginário popular. Isso cria certa pressão para que as pessoas, especialmente as mais jovens, bebam. Foi essa pressão que fez com que o estudante Lucas Moraes, de 19 anos, experimentasse pela primeira vez aos 16. Ele não gostou, mas continuou pelo efeito

do álcool, que o deixava mais “soltinho”. Não durou muito tempo. Depois de passar por algumas situações ruins com o álcool, Lucas deixou de gostar do efeito. Então, no ano passado, decidiu parar de beber. Pensando na pressão que capturou Lucas e tantos outros jovens, Isabela Collares, especialista em Educomunicação, criou o projeto Antes da Saideira, que busca debater o uso e as consequências do álcool. Nas palavras dela, para “equilibrar a balança entre incentivos e informação”. Desde 2017, o projeto atua por meio de palestras em escolas e também por meio de vídeos divulgados nas plataformas digitais, como o Youtube. “Só posso ser livre para tomar minhas decisões quando sei dos prejuízos e dos possíveis benefícios. A liberdade está muito relacionada ao processo de informação”, explica Isabela.

Por tudo isso, manter-se firme como abstêmio é um desafio. Não é difícil para Peter, com seus anos de experiência. Mas para Lucas, ainda é tentador. Para permanecer sóbrio, ele tem evitado até mesmo ir a festas. “Não quero me sentir pressionado a fazer algo que eu não quero NÃ O só para pertencer”.

B EB O

NÃ O

ESTOU

N D E O V I V TEXTO: ANNY OLIVEIRA DIAGRAMAÇÃO: BRUNA CAETANO ILUSTRAÇÃO: JÚLIA VIEIRA


“Eu queria ter essa vida, é só ficar bebendo vinho!”, é um equívoco que Fernanda Barbosa já escutou algumas vezes sobre a sua profissão. A fala tem sabor de vinho ácido, chega a ser azedo de ouvir. Os que repetem não conhecem o processo de inclinar a taça e observar um belo vinho tinto encorpado — o que Fernanda, sommelier, faz com precisão durante as aulas que ministra. Ela ainda é capaz de identificar diferentes tonalidades do vinho, que vêm de substâncias das cascas das uvas, e seu aroma.

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O sommelier também consegue sentir a leveza de um vinho branco refrescante e harmonizá-lo com uma boa salada num dia quente. E a taça fica ainda mais leve depois de horas de estudo sobre cada tipo de uva, região de plantio e história da vitivinicultura — alguns dos assuntos estudados nos cursos profissionalizantes de sommelier. Depois de passar por uma formação que pode durar de dois a oito meses e pagar cerca de quatro mil reais — gole um tanto amargo da profissão, regulamentada por lei em 2011 no Brasil — o sommelier pode trabalhar em adegas, importadoras, consultoras, restaurantes, e assim vai. Seja onde for, o profissional será o técnico em bebida, o conhecedor de aromas, cores e sabores de onde trabalha. Ser sommelier é poder potencializar a experiência das pessoas quando se trata de vinhos — e bebidas no geral. É escolher a melhor garrafa para uma refeição especial, ou só para mais um almoço no começo da semana. Às vezes vinho seco, às vezes doce. E o melhor: poder, ele mesmo, desfrutar do aroma frutado de um vinho rosé em plena segunda-feira.

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eco ao s o do c e

COLABORAÇÃO: Vitor Fernandes, Debora Alkimim e a Associação Brasileira de Sommeliers - SP

TEXTO: JADE REZENDE DIAGRAMAÇÃO: BRUNA CAETANO ILUSTRAÇÃO: JÚLIA VIEIRA


6 As mesas apoiam copos que se esvaziam de bebida na mesma proporção que o local se enche de risadas. Pessoas reunidas em torno de garrafas que vibram no ritmo das histórias cotidianas. A embriaguez é a barca da pausa na rotina, e o álcool é o rio.

O ambiente é descontraído. Aos poucos, a bebida começa a se espalhar pelo corpo e o hormônio da felicidade, a serotonina, que regula o humor e prazer, é estimulado. Todos as outras mesas parecem relaxadas e alegres, como se não tivessem mais quaisquer preocupações.

Depois de uma longa semana, não tem nada melhor do que se reunir com os amigos para conversar e beber. No entanto, por mais que o combinado seja dividir a conta do bar - e a quantidade de bebida igualmente, cada um terminará a noite de um jeito. Seus organismos funcionam de formas distintas, uma vez que todos os pequenos detalhes, como altura, massa muscular, costume de beber e quantidade de hidratação, influenciam em como o álcool será absorvido.

No entanto, quanto mais o tempo passa e mais álcool é ingerido, mais o cérebro vai reduzindo suas funções. Com isso, a euforia dá lugar a piscadas longas e uma agitação repentina. Enquanto alguns olham para baixo, melancólicos, outros esbravejam sem qualquer motivo. Não há mais controle emocional e todos aqueles sentimentos escondidos vêm à tona. Aquela amiga que, às pressas, saiu do trabalho e não pode gastar muito com as porções é a primeira a

MAIOR CONCENTRAÇÃO DE ÁLCOOL NO SANGUE = MAIORES PREJUÍZOS A COGNIÇÃO

ÁLCOOL POSSUI EFEITO DIURÉTICO E PROVOCA DESIDRATAÇÃO

sentir os efeitos da bebida. lita a difusão do álcool pelo outros ainda estão dando r ela já está quase a beira de

Se os efeitos da bebida pa do o humor, ainda estaria t as latas de cerveja vão se e des cognitivas são reduzida fazer sentido, os interlocuto nólogos cruzados.

Mais tarde, todos ririam da se lembrar dela. Não é inco de blackout alcoólico, no q responsável por armazenar riamente prejudicado.

Facetas

da em

ÁLCOOL IRRITA A MUCOSA INTESTINAL E AUMENTA A PRODUÇÃO DE ÁCIDOS DIGESTIVOS

COLABORARAM: Alexandre Pedro (psicanalista), Andressa Heimbecher, endocrinologista da SBEM-SP e Alessandra Diehl, vice presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas


claro!

. Seu estômago vazio facio corpo. Assim quando os risada daquela piada boba, e lágrimas.

arassem por aí, só atacantudo bem. Mas, conforme esvaziando, as capacidaas. Logo as falas param de ores passam a fazer mo-

conversa - se pudessem omum que alguém sofra qual a parte do cérebro r a memória fica tempora-

As filas para o banheiro também aumentam. Cada gole de álcool incentiva um pouco mais a liberação da urina. No caminho para o toalete, é fácil notar pessoas cambaleando em direção a uma das portas - que talvez seja a saída - ou em busca de outra dose. E nem adianta pedir a alguém por direções; com a fala arrastada, a chance da pergunta ser compreendida ou de se obter uma resposta coerente é mínima. A essa altura da madrugada, a comunicação entre os neurônios já não é mais a mesma e o envio de impulsos nervosos do cérebro para outras partes do corpo está bastante prejudicado. No dia seguinte Acordar depois de uma bebedeira é sempre um desafio. A caminhada até o banheiro é lenta. O corpo

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precisa eliminar o álcool; já se pode esperar que todos os drinks da noite vão embora - por cima ou por baixo. Outros parceiros de uma ressaca daquelas são o mal estar e a boca seca, cortesia da desidratação. Com as reservas de energia esgotadas para assimilar a bebida, vem a sensação de fraqueza. Já as náuseas são resultado da irritação no intestino e do estímulo para maior produção dos ácidos digestivos, ambos provocados pelo excesso de álcool. A ressaca é o jeito que o organismo se recupera das agressões sofridas pelo sistema nervoso. Mas esse é o efeito físico de beber além da conta: o efeito emocional pode ser resumido em uma decisão que dura até o próximo convite ao bar - “nunca mais eu vou beber”. GRAMAS DE ÁLCOOL/100ML DE SANGUE

mbriaguez

INCONSCIÊNCIA, PARADA RESPIRATÓRIA E RISCO DE MORTE 0.30- 0.39g/ml

CONSCIÊNCIA REDUZIDA A ESTÍMULOS EXTERNOS, PREJUÍZO DOS SENTIDOS E DA COORDENAÇÃO MOTORA 0.10 - 0.15g/ml

REFLEXOS MAIS LENTOS, PREJUÍZO DA COORDENAÇÃO MOTORA E AUMENTO DA SENSAÇÃO DE ANSIEDADE E TRISTEZA 0.01 - 0.05g/ml

0.40 + g/ml LETARGIA E PERDA DA CONSCIÊNCIA (DESMAIO)

0.16 - 0.29g/ml

PROBLEMAS DE EQUILÍBRIO E MOVIMENTO, ALTERAÇÕES NAS FUNÇÕES VISUAIS, FALA ARRASTADA E VÔMITO

0.06 - 0.10g/ml AUMENTO DO RITMO RESPIRATÓRIO E DOS BATIMENTOS CARDÍACOS, EUFORIA E RELAXAMENTO

Fonte: Centro de Informação sobre Saúde e Álcool

TEXTO: JÚLIA MAYUMI E NATHALIA GIANNETTI DIAGRAMAÇÃO: LAURA RAFFS MONTAGEM: JÚLIA VIEIRA FOTO: JÚLIA MAYUMI


8 Cinco mil e seiscentos é o número de piscinas olímpicas que poderiam ser completamente enchidas com o volume de cerveja que é consumido anualmente no Brasil. Em média, são 14 bilhões de litros, o que rendeu, em 2017, 107 bilhões de reais ao mercado cervejeiro, de acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Cerveja. Para Andréia Santana, paulista de classe média que começou a beber de forma compulsiva aos 40 anos, a naturalização que envolve o consumo de álcool fez com que ela demorasse a perceber sua dependência. “Eu comecei a consumir bebidas alcoólicas todas as noites, mas bebia de maneira funcional, tinha minha rotina. Para mim, o alcoólatra era o cara que estava embaixo da ponte, mas na verdade eu era alcoólica e não sabia”. Há um ano e meio livre do álcool, Andréia faz tratamento no alcoólicos anônimos e é enfática quando questionada se a naturalização do consumo a ajudou a se viciar: “é sempre o primeiro passo”, diz. A tal banalização do consumo de bebidas é embasada por números. No ano passado, um levantamento feito pelo Kantar Worldpanel revelou que a cerveja está presente em 63% dos lares brasileiros e seu consumo representa uma fatia de 1,6% do PIB. Os números astronô-

micos, no entanto, servem apenas para garantir o lucro de grandes indústrias. Segundo a OMS, só em 2014 o Brasil perdeu 7,3% do PIB com problemas decorrentes do uso de álcool, como em gastos pelo sistema único de saúde. Para o psicólogo Esperdião Ferreira, especializado no tratamento de dependentes químicos, a aceitação social do consumo e os interesses por trás da indústria do álcool inviabilizam a solução do problema. “Nós temos várias teorias bonitas para o tratamento de alcoólicos, mas isso só vai resolver efetivamente o problema de meia dúzia de pessoas, porque as fabricantes continuam lucrando”, comenta, citando também o peso que a publicidade têm em normalizar o consumo de álcool no imaginário coletivo. É uma balança desigual na qual o estado perde muito dinheiro para remediar os problemas decorrentes do consumo de álcool enquanto pouquíssimos poderosos brindam seus lucros astronômicos. Tanto Andréia quanto Esperidiã enxergam a facilidade de acesso às marcas de bebidas como o primeiro passo que pode levar ao alcoolismo. Para o psicólogo, um dos fatores que inviabiliza o maior controle do álcool é o peso político que as grandes indústrias possuem. “O capital é maior que qualquer boa vontade de política pública”, finaliza.

o d s e p d o n i d r e b rosos O TEXTO: MATHEUS OLIVEIRA DIAGRAMAÇÃO: BEATRIZ GOMES ILUSTRAÇÃO: JÚLIA VIEIRA FOTO: BEATRIZ GOMES


Memórias

claro! | outubro 2019

do

Esque ci

O controle sobre o próprio corpo é um direito facilmente revogável aos seres humanos. Naturalmente, nós produzimos hormônios que subvertem o livre arbítrio, mas, por vezes, substâncias artificiais também podem roubar nossos sentidos.

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mento

O consumo excessivo de álcool apagou as memórias de Paulo T.*, 24 anos. Reunido com amigos em uma festa junina, uma mistura de bebidas típicas o fez perder o equilíbrio. Das horas que seguiram, a memória não manteve nada. Já o corpo de Paulo teve força suficiente para dirigir seu carro. Quando saiu do transe, ele estava ao lado do veículo capotado e de alguns policiais, que o levaram para a delegacia. A ciência explica que a ingestão de álcool pode desligar temporariamente o hipocampo, a área do cérebro responsável pela consolidação de memórias a longo prazo. Segundo o Prof. Dr Aaron White, conselheiro do Instituto Nacional sobre Abuso de Álcool e Alcoolismo dos Estados Unidos (NIAAA), existem dois tipos de blecautes alcoólicos: os fragmentários e os en bloc. No primeiro, a pessoa afetada mantém “ilhas de memória” com espaços de esquecimento. Já nos casos en bloc, o nível de intoxicação interrompe a conexão dos neurônios com os sinais das células do corpo. Alguém nesse estado acaba perdendo a capacidade de resposta conhecida como Potenciação de Longa Duração (LTP). A LTP permite que as informações captadas nas sinapses se fixem na nossa mente por muito tempo. Com o bloqueio do contato com o hipocampo, a memória resultante se perde completamente. Esse foi o caso de Daniel B*, 18 anos. Após alcançar a maioridade, ele decidiu experimentar o cardápio de bebidas a sua disposição. Soube pelos amigos de conversas emotivas movidas a álcool. O estômago vazio e a pressa ao beber, dicas de White para evitar a amnésia alcoólica, foram ignorados por Daniel, anulando sua tolerância aguda. Giovana C*, 44 anos, também sentiu esse revés. Em uma formatura, ela passou vários minutos parada em frente a um espelho na porta do banheiro. O motivo? Estava esperando a mulher do reflexo se mover. Sua guia até a cabine foi uma sobrinha, narradora da confusão horas depois, quando a tia tentava juntar os pedaços de memória que faltavam. White diz que nessas situações é possível recuperar lembranças. Já na amnésia en bloc, as memórias não chegaram a ser formadas e, portanto, não podem ser reavidas. Para quem vive o apagão completo, resta se adaptar às dúvidas eternas de uma mente sem lembranças. *Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados.

TEXTO: PIETRA CARVALHO DIAGRAMAÇÃO: BEATRIZ GOMES ILUSTRAÇÃO: JÚLIA VIEIRA FOTO: BEATRIZ GOMES


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NA CRISE, O BRASILEIRO BEBE TEXTO: ANDRÉ ROMANI DIAGRAMAÇÃO: LUCIANA CARDOSO ILUSTRAÇÕES: JÚLIA VIEIRA

‘’Não pense em crise, trabalhe” disse Michel Temer após assumir a presidência — o Brasil estava há onze meses em recessão — ignorando o fato do brasileiro ser dedicado e destinado ao fardo. O que talvez não soubesse, é que o recuo econômico revelaria outra vocação nacional: a bebida. Enquanto o PIB anual do país caiu, em média, 1,3% entre 2014 e 2017, o setor de bebidas, dependente do mercado doméstico, expandiu em produção de vinhos, cervejas e destilados. “O Brasil exporta muito pouco em bebidas alcoólicas”, diz Rodrigo Lanari, da consultoria de vinhos ArtWine. Para ele, fatores como o complexo sistema tributário e os problemas de infraestrutura, que dificultam o escoamento, afetam o desenvolvimento do país em um mercado tão competitivo. O feito de se manter de pé em meio à crise ocorreu, em grande parte, graças à cerveja — bebida mais consumida do país. Mesmo com a atividade econômica fraca, o país ganhou mais de 90 novas empresas no setor apenas no primeiro semestre de 2017. Paulo Petroni, diretor da Associação Brasileira da Indústria da Cerveja, credita o desempenho ao hábito de consumo. “Está deixando de comprar em bares e comprando no supermercado.” Essa receita também vale para o comércio de vinhos, que ainda foi beneficiado pelo aumento no volume de compras online. Na categoria que une o produto aos espumantes, o crescimento da vendas nos meios digitais foi de 230% de 2015 a 2018, segundo dados do Instituto Brasileiro de Vinho (Ibravin). “Por causa do formato, esses canais costumam levar muito mais informação e diversidade para o consumidor do que o presencial”, diz Diego Bertolini, gerente de promoção da entidade. Segundo ele, outro fator que justifica um mercado aquecido, mesmo em período de crise, é a relação da bebida com a cultura fit e saudável, que está em alta. Além disso, há clara preferência do brasileiro pelo “vinho de mesa”. De acordo com Lanari, a modalidade representa 80% da produção do país. O produto é mais barato, pois é feito de uvas mais simples do que o “fino”. Não é preciso, no entanto, ser sommelier para distinguí-los. A diferença costuma estar explicitada no RG da bebida: o rótulo. Destaca-se ainda a alta de popularidade dos espumantes (que passa por uma fermentação a mais do que os vinhos tradicionais). As vendas cresceram 17%


claro! FONTE: INSTITUTO BRASILEIRO DA CACHAÇA

em 2018 ante o ano anterior, de acordo com a Ibravin. A indústria, que usufrui da vocação geográfica do país —com solo e clima favoráveis—, recebeu investimentos, profissionalizou-se e atraiu o consumidor. “O consumo per capita anual cresce a 4% (foram 147 mL evvm 2018)”, diz Felipe Galtaroça, da consultoria Ideal. O resultado, segundo ele, transformou o calendário de comercialização do produto. “Hoje, o espumante não é apenas uma bebidas de festas e datas comemorativas”, afirma ele, que acrescenta mais um ingrediente ao sucesso do artigo. “É doce, o que é do gosto do brasileiro.” Enquanto ‘novas bebidas’ crescem no mercado doméstico, a cachaça, tradicional ingrediente da caipirinha, estagnou — ainda assim bom resultado para a recessão. Para Carlos Eduardo Dudri, dono da cachaçaria Ipê, o mercado, que tem os estados de São Paulo e Pernambuco como maiores produtores e consumidores, ficou inflado e não teve demanda suficiente para expandir. “Há dez anos atrás todo mundo queria produzir cachaça, semelhante ao que ocorre com a cerveja artesanal hoje.” A falta de público é também resultado de uma mudança geracional. “Os jovens não se interessam mais. Com a crise, experimentam apenas as cachaças de baixa qualidade e acabam não se tornando consumidores fiéis”, acrescenta.

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Pra gringo ver

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Todo estrangeiro de passagem pelo Brasil parece sempre ter duas coisas em comum. O desejo por praia e uma boa cachaça. Tem certas coisas que são assim mesmo. Ultrapassam fronteiras e conquistam uma legião de fãs. “Caipirinha” parece até palavra obrigatória para garantir o visto brasileiro. Paulista de nascimento, a mistura de limão, gelo, açúcar e cachaça já ganhou até ares de Rússia e Japão. A famosa cachaça não é mole não. Se aventura pelo país e ganha cores e sabores únicos por onde passa. Nenhum alambique e nenhuma garrafa é igual a outra. No frio da serra gaúcha, ela atende por outro nome. A Canha seduz pelo seu poder de fogo e disputa lugar com os vinhos na hora de aquecer as noites geladas. E ela não chega só: frutas como o butiá, figo, uva e ervas como o funcho também entram na mistura. Mas nem só de gargantas que se rasgam ao toque vive a cachaça. Nas terras secas do cerrado ela desce mole, mole pela garganta. A mistura, carinhosamente apelidada de Leite de Onça, leva leite de coco, leite condensado, açúcar e (claro!) cachaça e é servida há muito tempo no Centro-Oeste brasileiro. Ela parece soberana, mas há quem conteste a majestade da cachaça como a bebida tipicamente brasileira. No Nordeste, a Tiquira tem um argumento forte para clamar o trono: a cana-de-açúcar só chegou ao Brasil com os portugueses. Aguardente de mandioca, às vezes de coloração azulada, a bebida indígena é cercada por lendas e tradições. Mas é provável que você não encontre a Tiquira em qualquer prateleira por aí. O método tradicional de produção, normalmente feito em fundos de quintal, dificulta o processo de regulamentação dos produtores, limitando a comercialização da bebida. Sua prima nortista, a Cachaça de Jambu, teve mais sorte em ganhar adeptos pelo país. A sensação de dormência, fruto dos efeitos anestésicos da folha do jambu, conquista muito mais admiradores que o seu forte sabor.

TEXTO: JASMINE OLGA DIAGRAMAÇÃO: BEATRIZ GATTI ILUSTRAÇÕES: JÚLIA VIEIRA

Aos gringos de passagem, guardem mais essas palavras no vocabulário. E uma última dica: tem quem diga que beijar a pessoa amada depois de uma ou duas doses de Jambu é coisa de outro mundo.

COLABORAÇÃO: Mairê Ferraz, José Paulo (Cooperativa agroindustrial Tiquira Guaribas), Ivaldo Delfino (sócio da Canha Brasil Cachaçaria Ltda), Fátima Silva e Maíra Moraes


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