FÃ claro!
outubro 2018
claro!
outubro 2018
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DIALETO DE FÃ TEXTO: MATHEUS MORGADO ARTE: LUCAS ALMEIDA
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MEMBROS
A criação de um vocabulário próprio por parte de fandoms foi estimulada pelas novas dinâmicas das redes sociais, que revolucionaram os jeitos de ser um fã. Segundo a professora e pesquisadora Elizabeth de la Taille, da FFLCH-USP, tais expressões “contribuem para um senso de unidade e para uma ‘declaração’ de pertencimento.” Os termos são, na maioria das vezes, importados do inglês e intraduzíveis: “[a tradução] seria possível e perfeitamente correta mas romperia com o ‘contrato identitário’ do grupo”, conclui a pesquisadora.
FANDOM É o grupo de pessoas que se declaram fãs de algo ou alguém. Não necessariamente estão organizados em fã-clubes, simplesmente fazem parte da “cultura” de admiração pelo ídolo/história/objeto. Muitas vezes, têm um nome que os caracterizam e os ligam aos ídolos: por exemplo, o fandom de Harry Potter são os Potterheads, o de Lady Gaga são os Little Monsters...
SHIP SHIP
É derivado do inglês relationship (relacionamento), e é geralmente empregado como verbo que manifesta apoio a um casal que já existe ou o desejo de que duas pessoas iniciem uma relação. Antes, era usado no inglês como substantivo, apenas como forma abreviada de relationship.
OTP Sigla de One True Pairing, ou “um par verdadeiro” em português, é usada para designar o casal perfeito, que mais combina, que é mais “shippável”, seja fictício ou da vida real.
POSER É aquela pessoa que finge ser algo que não é. Não é uma gíria nova, mas foi recentemente resgatada pelo mundo dos fandoms para situações onde um integrante não parece ser tão fã assim. É geralmente utilizada como insulto.
FANFIC É uma abreviação de fanfiction, que por sua vez é a fusão das palavras “fã” e “ficção”. São histórias criadas pelos próprios fãs a partir de pessoas, personagens ou mundos já existentes. Narrativas como Jogos Vorazes e artistas como a ex-boyband One Direction já foram alvos de inúmeras fanfics. Curiosamente, a trilogia 50 Tons de Cinza era originalmente uma fanfic da saga Crepúsculo.
CANON Numa fanfic, acontece se o casal retratado é o mesmo da história original ou da vida real. Por exemplo, se numa fanfic de Harry Potter, o autor/fã retrata Ron e Hermione novamente juntos, temos um canon. Para esta matéria, consultamos Elizabeth Harkot de la Taille, professora e pesquisadora do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP, e o site Urban Dictionary.
setembro 2018 claro!
EU VIM AQUI SÓ PARA TE VER
O “F5” quase quebra, mas garanto o ingresso. A aflição termina para a ansiedade começar. Cada dia é um a menos para o espetáculo e, conforme o tempo passa, maior é o frio na barriga. Minha escolha vem de influência familiar e as lembranças mais distantes que tenho são dali, ainda criança, cercado de gente cantando em uníssono diante do palco. Sempre me encantei com a capacidade dos artistas. Mágicos que tiram da cartola o inimaginável e, quando percebo, eles já fizerem aquilo que jamais suspeitaria. Há aqueles que são máquinas, executam cada movimento com perfeição à custa de treino e trabalho duro. Eu prefiro a criatividade porque meus ídolos encarnam o talento. O dia do show chega e logo cedo meu coração bate mais forte. A presença deles não se limita ao estádio e os símbolos aparecem pelo caminho. Quatro horas antes, já chego e encontro outros fãs vestindo a camisa. Enquanto esperamos a chegada do ônibus da equipe, em meio ao canto e à dança, nos empurramos em busca do melhor ângulo para foto. Entramos no estádio e as memórias invadem minha cabeça, como meu tio sempre vidrado na TV. A trajetória deles reflete a minha história de vida: eles sofrem como sofro e vencem como venço. Como um só corpo, aumentamos o volume do hino. Abriram-se as cortinas, começou o espetáculo. O juiz apita e a bola rola.
TEXTO E FOTO: LÁZARO CAMPOS ARTE: MAYARA PAIXÃO
Colaboraram: Mariana Mandelli e Silvia Pereira, torcedoras da Sociedade Esportiva Palmeiras e Leonardo Sousa, sócio-torcedor do São Paulo Futebol Clube
TEXTO: JULIANA LIMA ARTE: MAYARA PAIXÃO
AG IM TY ET
Quando se pensa em fãs, uma das cenas mais comuns que vêm à mente é a histeria de uma multidão de garotas adolescentes vestindo camisetas do ídolo, chorando e gritando enquanto clamam seu amor incondicional. Vincula-se a ideia de fã a algo juvenil, feminino e exagerado, com suporte do cinema, TV e da mídia como um todo. Os primeiros estudos sobre fandoms eram por um viés patologizante, entendendo o fã como alguém doente, sempre baseando-se em casos extremos, e esse estereótipo permanece no senso comum. Em relação à mulher, o discurso é ainda mais acentuado por causa de um machismo estrutural que desvaloriza a figura feminina, conta Adriana Amaral, doutora em Comunicação Social pela PUCRS e líder do CULTPOP (Grupo de Pesquisa em Cultura Pop, Comunicação e Tecnologias). “Esse estereótipo tem raízes nas primeiras celebridades da música e da literatura pós Revolução Industrial. Contudo, ganha a constituição que conhecemos a partir de fenômenos massivos, como a Beatlemania”, diz a pesquisadora. Carolina Dantas, criadora do documentário e canal do Youtube “Fangirl’s Problems”, pontua que é possível observar os mesmos comportamentos em grupos de fãs dos dois gêneros, mas a masculinidade reprime as manifestações de sentimentos dos homens. Assim, cria-se a ideia de que mulheres são mais descontroladas e há uma falsa sensação de diferença de expressão entre ambos. Os produtos que visam públicos masculinos são mais respeitados e valorizados, enquanto aqueles cujos públicos são femininos são dados como superficiais e sem valor. Os Beatles são um exemplo da diferença no tratamento dado a fãs homens e mulheres. No começo, só com fangirls, eram uma “mania”; quando ganharam fãs homens, viraram a maior banda do século XX.
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TEM JEITO ERRADO DE SER FÃ?
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P
O clichê do fã brasileiro — caloroso, insaciável, devoto incondicional a seus artistas prediletos — tem um fundo de verdade. Afinal, a demanda brasileira por artistas internacionais sempre foi imensa: dos cinco shows com maior público na história, três foram no país. Foi a internet que transformou esse desejo claro! coletivo em uma expressão comum:outubro “Please2018 come 07 to Brazil”, presente há mais de uma década nas caixas de comentários de qualquer vídeo, site ou rede social das bandas estrangeiras. Repetido em massa, o pedido intrigou e divertiu os americanos — os primeiros a usá-lo ironicamente, como meme. Demorou pouco até a internet brasileira reagir e usá-lo com outras conotações. Um uso irônico seria comentar “Please come to Brazil” no vídeo de um artista morto, por exemplo, ou na foto nova de um amigo no Facebook. Em seu uso normal, a expressão tem graça pela insistência extrema e porque, na maioria das vezes, ela não funciona. Mas às vezes dá certo. Pegue o caso de Mariana Neri, uma designer baiana que hoje tem 35 anos. Por
TEXTO: LAURA CASTANHO ARTE: MARCELLA AFFONSO
ME TO B O C E RA S A ZI E L L
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estar em outra cidade, ela perdeu o show do Wilco no Rio de Janeiro em 2005, uma banda americana de folk rock que viria a se tornar a sua favorita. Ela imaginou que eles voltariam logo mais. O tempo passou e nada. Em 2012, Mariana cansou de esperar e começou sua própria campanha para trazê-los de volta ao solo nacional. O resultado foi um blog que reproduzia diariamente a mesma pergunta, em maiúsculas: IS WILCO COMING TO BRAZIL? (O Wilco vem pro Brasil?). Foram mais quatro anos até o desejo se concretizar, em 2016. Nesse meio tempo, a campanha ganhou tração na internet e tons de lobby. Ela pôde viajar ao exterior para assistir ao Wilco sete vezes, e aproveitou cada ocasião para falar pessoalmente com os membros da banda e seu empresário para convencê-los a voltar ao país. Graças a ela, brasileiros pelo mundo todo eram vistos distribuindo cartõezinhos verde-amarelos com a pergunta. “Era uma loucura, um monte de gente me ligando. Parecia meu aniversário”, diz, lembrando o dia em que a volta da banda foi confirmada. O show não foi menos intenso. “Eu achei que fosse morrer na hora. Eu gritava, eu tremia, eu tava muito histérica.” Enquanto Mariana pedia a vinda do Wilco do computador de sua casa, em 2010, cinco amigos cariocas fundavam uma empresa especializada em concretizar as demandas por artistas internacionais: a Queremos!. Inicialmente pensada como um site de financiamento coletivo de shows, a empresa evoluiu para uma “plataforma de pedidos e análise de demanda”, nas palavras de Pedro Seiler, um dos sócios. Na prática, é um site que concentra e intermedia a negociação com empresários de bandas — especialmente as de pequeno e médio porte, como o Wilco, para as quais vir para o Brasil “era quase impossível” antes da internet. Proporcionalmente, elas saem muito mais caras que uma banda grande. Seiler não quis divulgar números, mas garante que produzir shows internacionais compensa. Esse ano, a empresa organizou um festival próprio, bancado por 5500 pagantes mais patrocinadores. Mas em tempos de incerteza política e dólar alto, nem tudo são flores. O produtor descreveu o processo como “uma odisseia” e “uma batalha”. “A gente sofre, né”, comentou Seiler. “Começa a não fazer sentido para certos artistas, até porque eles têm o mundo inteiro. Então quando o Brasil tá ruim, às vezes a Austrália ou o Japão estão bem.” Pode até ser que estejam. Mas “Please come to Australia” não tem a mesma graça.
loucuras por um ídolo
Hotel em dobro
“Quando o One Direction veio para o Brasil em 2014, eu decidi que, além do show em São Paulo, iria no do Rio de Janeiro e tentaria ficar no mesmo hotel deles na cidade. Depois de muuita pesquisa, eu e minhas amigas reservamos o Sofitel, mas um dia antes descobrimos que eles iam ficar no Fasano. Minha mãe correu pra lá e reservou o último quarto disponível. Conseguimos ver o Niall, o Harry, o Liam e o Zayn e valeu muito a pena. Foi tudo no susto, perdi todo o dinheiro do Sofitel, mas se eu pudesse voltar no tempo faria tudo de novo, foi incrível.”
Marcela Bonafé
Duas turnês e oito shows “Nas duas vezes que Fifth Harmony fez turnê pelo Brasil eu fui em todos os shows. Em 2014, fui com uma amiga para as três apresentações e ainda compramos o meet & greet de duas cidades. Em 2016, não compramos meet, mas fomos em cinco shows e conseguimos conhecê-las em aeroportos e hotéis. Elas até reconheciam a gente. Olhando pra trás, eu não me arrependo de nada, foi um dinheiro bem gasto, a experiência de conseguir realizar esse sonho com uma das minhas melhores amigas foi o que fez valer mais a pena.”
Giovanna Parise
Nem cirurgia impede “Eu tinha acabado de fazer uma cirurgia na coluna por conta da minha escoliose grave (tinha quase 50º de curvatura na época), mas tinha jurado pra mim mesma que iria ver a Thalita Rebouças e a Bienal do Rio de Janeiro era minha chance. Moro no interior, então fiz uma viagem de duas horas até lá e depois fiquei 40 minutos em pé na fila para pegar a senha do autógrafo. Consegui conversar com ela e foram os 5 minutos mais incríveis da minha vida.”
Livia Delunardo
TEXTO: BRUNA NOBREGA ARTE: LARISSA FERNANDES FOTOS: ARQUIVO PESSOAL
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Em plena greve
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6ª vez como se fosse a 1ª
“Comprei ingressos pro show do Simple Plan com meses de antecedência, por isso foi uma tristeza quando a semana chegou e estávamos no meio da greve dos caminhoneiros. Meus pais decidiram que não podíamos mais ir, porque não dava para pegar estrada de Montes Claros até Uberlândia, onde seria o show. Fiz o maior drama e acabei convencendo meu pai a comprar passagens de ônibus. Foram quase 10 horas de viagem até lá, mas deu tudo certo e foi um dos melhores shows da minha vida.”
“Eu já tinha visto o Martin Garrix cinco vezes pessoalmente, mas eu sou muito apaixonada e precisava vê-lo de novo. Eu sabia que ele ia embora do Brasil naquele dia, mas não sabia o horário, então fiquei o dia inteiro no aeroporto o esperando. Depois de 11 horas, quando já estava de noite e eu estava super aflita para voltar pra casa, ele chegou. Conversamos, nos abraçamos e tiramos foto. Depois eu chorei que nem uma criança por tudo ter dado certo.”
Isabella Manfrenato
Ana Lívia Fonseca
Escondida dos pais “Sou fã da Dulce Maria desde os 11 anos, mas nunca consegui ir a um show dela ou do Rebelde porque meus pais não queriam ir comigo e não me deixavam ir sozinha. Então, quando ela veio para cá no ano passado eu decidi que iria no show e no meet&greet. Peguei todo o dinheiro que tinha em casa, fui comprar no ponto físico, mas, chegando lá, faltavam 80 reais. O que fiz? Deixei um valor na bilheteria e saí correndo pro caixa eletrônico sacar o restante. Comprei e foi incrível, mas meus pais nunca souberam o quanto eu gastei.”
Pior promessa “Quando eu tinha 15 anos, passei três meses sem abraçar ninguém porque pretendia subir no palco do show do Mcfly e abraçar o Danny. Claro, não abracei o Danny e fui mega zoada por causa da ‘promessa’.”
Carol Costa
Bianca Martins
30 dias na fila “Comprei ingressos para o show de Justin Bieber e, para conseguir assistir à apresentação o mais perto possível, resolvi acampar com uma amiga na fila um mês antes. A gente montou a barraca e todo dia fazia rodízio de quem ficaria ali pra poder tomar banho, comer e estudar. Os dias eram muito legais, mas, apesar disso, foi muito desgastante. No dia do show, nos reunimos às 4h da manhã, passamos o dia no sol forte até às 21h, quando o show começou. Foi a realização de um sonho, besta ou não.”
Isabella Asriel
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UM
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claro! Há quem acampe por dias em fila de shows ou se estapeie para pegar uma palheta de guitarra atirada à multidão. Outros tatuam a imagem dos ídolos nas costas e há quem até os persiga pelas ruas e conheça detalhes de suas vidas que os próprios nem sabem. Talvez você já tenha visto comportamentos assim e até pensado “isso é doentio”. Mas qual é, afinal, o limite entre o saudável e o patológico na maneira de um fã lidar com seu objeto de desejo? Em termos neurológicos, o que se passa no fã é muito parecido com estar apaixonado. Há um aumento do neurotransmissor dopamina no sistema nervoso, causando sensação de bem-estar. Ao mesmo tempo, ocorre uma queda de outro neurotransmissor, a serotonina, o que produz pensamentos obsessivos que estão por trás da idealização em relação ao que se admira, explica Thalita Nobre, professora da Unip e Unisantos e doutora em psicologia clínica pela PUC-SP. REPRO Embora essas reações se deem com todos os apaiDUÇÃO /INSTA GRAM xonados, os de perfil patológico não conseguem sair dessa condição. Em situações assim, o ídolo torna-se um objeto distorcido na cabeça do fã, que lhe atribui características que não correspondem àquela pessoa de fato, afirma Bruno César Afonso, psicólogo clínico pela USP. Quando essa idealização passa a interferir na adaptação de uma pessoa à vida social e às necessidades biológicas, há uma patologia em vista. É o caso de pessoas que deixam de lado suas relações sociais, sua sexualidade e obrigações como trabalho ou estudos para se dedicarem a acompanhar a vida de alguém que admiram. Deve-se ter cuidado para não julgar o afeto alheio, pondera Bruno. Essa distorção é produzida pela estrutura psíquica do indivíduo na tentativa de lidar com um problema que as pessoas não percebem conscientemente, como uma frustração ou uma falta. O que pode, inclusive, ser benéfico. É isso que ocorre em torno do revival de bandas dos anos 90 e 2000, como Rouge e Backstreet Boys, conta o psicólogo. Muita gente “apresentou um comportamento excessivo em relação a essas circunstâncias, deixando de trabalhar pra passar dois dias na fila do show e ficar na frente do palco”. O que este afeto revela é um desejo de volta no tempo. Viver esse retorno “aos bons tempos” por um momento é positivo. Ao fim do show, o presente retorna. Em paralelo à idealização, há a identificação. Todos nós imitamos outros ao longo da vida; alguém que represente um modo de ser, agir e pensar. Isso é parte da construção da personalidade e até mesmo um sinal das necessidades do indivíduo. Mas há uma diferença entre imitar e querer ser a pessoa, pontua Thalita Nobre. O problema surge quando essa distinção se perde. Ao lidar com pacientes em condições assim, Thalita conta que seu trabalho é trazer o sujeito à realidade e desconstruir a idealização que faz de quem se deseja. Para isso, é preciso que o fã olhe para si e descubra suas próprias potencialidades. Quando a imagem do ídolo deixa de ser um esconderijo, o fã pode reencontrar a si mesmo.
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O CO D NDERIJ O
TEXTO E FOTO: RAPHAEL CONCLI ARTE: LARISSA FERNANDES
claro!
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LAST.FM
REPRODUÇÃO/YOUTUBE
REVISTA VIVA
O TEMPO ENTRE FITAS E PAPÉIS
“Eu e minhas amigas comprávamos e fatiávamos as revistas de acordo com o gosto de cada, até porque não tínhamos tanta grana” Victoria Siqueira
TEXTO: RAFAEL PAIVA ARTE: MIRELLA CORDEIRO
Acompanhar a rotina de um músico ou grupo tornou-se uma tarefa fácil em tempos de redes sociais e de um acesso cada vez mais amplo à internet. A situação se contrasta bastante com a da década de 90, uma vez que a maioria dos fãs tinha que recorrer a outros artifícios para levantar informações sobre seus ídolos e demonstrar seus afetos. Um fã assíduo era aquele que continha o nome em listas de reservas de bancas, livrarias e lojas de CDs, que acompanhava as emissoras de rádio para ouvir em primeira mão uma nova canção, com uma fita cassete pronta para a captação, ou a MTV, no intuito de assistir ao lançamento de um clipe. O tamanho do acervo, de fato, era levado em conta. Não à toa todos os esforços eram feitos para conseguir aumentar o número de pastas com elementos dos ídolos. “Eu e minhas amigas comprávamos e fatiávamos as revistas de acordo com o gosto de cada, até porque não tínhamos tanta grana”, relembra a publicitária Victoria Siqueira, 32, admiradora das Spice Girls, dos Backstreet Boys e da cantora Britney Spears.
Algo inimaginável para muitos adolescentes hoje em dia, acostumados desde cedo com câmeras digitais ou smartphones, acontecia em determinados espaços: a venda de imagens. “Comprava fotos nos shows. Eram poucas as pessoas que tinham máquinas fotográficas na época”, relata a vendedora Juliana Manente, 36, fã da dupla Zezé Di Camargo & Luciano. Da junção de inúmeras folhas, repletas de marcas de beijos e palavras amorosas, saía a chamada “carta de metro”, tradicional forma de homenagem do período. Se hoje as relações surgem por meio de fóruns e mensagens instantâneas, o pontapé inicial no final do século passado poderia ocorrer de um modo bem peculiar: através de correspondências. Dessa tradição noventista, surgiu uma amizade cultivada até hoje. Por meio de uma participação em um jornal do ABC, falando sobre o fã clube que havia criado para as Spice Girls, Victoria recebeu de uma outra admiradora uma carta a respeito do gosto parecido. Como bem dizia o girl group: friendship never ends.
GETTY IMAGES
outubro 2018 GARCIA claro! 12 TEXTO: VITOR ARTE: MIRELLA CORDEIRO
FANFICS DE
NDOM
BROCH
CHIOTTI/FA GIULIA PIC
D Y/FAN
OM
REPRESENTATIVIDADE
Nunca imaginei que o Harry Potter poderia se apaixonar pelo Draco Malfoy. Foi um choque! Não me passava pela cabeça nem que relacionamentos gays eram uma opção. Nas fanfics, porém, isso se tornou possível. Eu, como fã de Harry Potter, buscava nelas apenas finais alternativos para os livros. Mas, no fundo, elas permitiam que fãs criativos produzissem histórias de diversos assuntos usando ídolos como personagens. O cantor que nunca veio ao Brasil e aparece aqui. A seleção ganhando a Copa. Uma órfã com cicatriz na testa e que faz magia. Ao encontrar fanfics LGBT, me identifiquei. Antes, nunca havia me sentido representado por casais héteros nas histórias e a falta de referência me causava dor e solidão. Após me reconhecer, descobri que havia pessoas que passavam e sentiam as mesmas coisas que eu. E que, embora eu soubesse que o final feliz não resumia tudo, ser gay não mais se limitava a preconceito, violência e morte, como antes via na TV. Passei a ler ainda mais. Meus novos amigos compartilhavam comigo fanfics sobre aceitação e privilégios dentro do meio LGBT. Nas palavras e com eles, encontrei esperança em meio à depressão. Compreendi que a atração pelo mesmo sexo não era algo bizarro, como eu pensava aos 14, e me descobri sexualmente em plena adolescência. Nas fanfics, a criatividade surgia como meio de burlar o tabu e tive o primeiro contato com o sexo que eu viria a praticar. Com isso, parei de me sentir sujo. Estava pronto. Após isso, foi fácil começar a escrever. Todas as reflexões e lutas internas, feitas à custa de lágrimas, ansiavam por virar palavras e poderiam ajudar outros jovens. Assim como me ajudaram ao contar para a minha família, já que para eles tudo era apenas uma fase. Cheguei a frequentar inclusive psicólogo da igreja. Mas ali, me lembrei dos sentimentos bons de quando lia. Só por isso consegui. Aos poucos, apresentei essas histórias para meus pais. Mamãe mudou; meu pai, não. Ela queria entender como dois rapazes se apaixonavam e como sabiam que eram gays. ”Me tornei mais humana”, ela diz. E não há como negar. Afinal, fanfics não são apenas fugas da realidade. São armas e armaduras, com as quais eu sinto que existo e posso ser feliz. Assim como o Harry e o Draco. *Este texto foi construído a partir do relato de quinze leitores/escritores de fanfics; LGBT ou não. Colaboraram com a matéria: Ailton Gomes: psicólogo clínico na abordagem Gestalt-terapia e idealizador da Tons Psicologia LGBT+ (tonspsicologialgbt.com.br) Renato Kenji de Carvalho Doi: Psicólogo Clínico e pós-graduando em Psicologia Analítica.