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TEXTO: LARISSA VITÓRIA E CAMILA MAZZOTTO DIAGRAMAÇÃO: ANE CRISTINA ILUSTRAÇÃO: JONAS SANTANA
Imagine um bebê de dez ou onze meses dando seus primeiros passos. Ele se levanta timidamente, apoiando-se em seus pais ou em um móvel, talvez, e caminha sem jeito ou rumo definido. Um ou dois passos à frente, grande é a chance de uma queda. O corpo pequeno ainda não sabe como manter-se na trajetória e a gravidade é uma força implacável para seus pés desajeitados. Mas, mesmo depois de ir ao chão, ele se levanta e tenta mais uma vez. E de novo, de novo, de novo. Mira os olhos de seus pais, que o acompanham. “Vem, filho!”. As tentativas cruzam horas, dias. Até que o corpo se acostuma com a sensação do chão firme sob os pés e a gravidade já não o afeta como antes. O menino parece descobrir um dos muitos — e inevitáveis — recomeços. É certo que, em alguns desses, o caminho que leva ao novo parece apresentar mais obstáculos do que outros. Às vezes, chega-se a lugares nunca antes imaginados por aquele que faz a travessia, para o bem ou para o mal. Recomeçar nunca foi garantia de felicidade instantânea. Ou movimento que se cumpre num estalar de dedos. Se tem alguém para quem olhar quando o pé tropeça, ajuda, mas essa é a meia-volta que parece se apresentar desde cedo a todo homem — as dores e os prazeres de refazer o feito, atravessar a indefinição do novo; tentar, enfim, outra vez.
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Expediente: Reitor: Vahan Agopyan. Diretor da ECA-USP: Eduardo Henrique Soares Monteiro. Chefe de Departamento: André Chaves de Melo Silva. Professora responsável: Eun Yung Park. Editoras de Conteúdo: Larissa Vitória e Camila Mazzotto. Editora de Arte: Jasmine Olga. Ilustrador: Jonas Santana. Editora Online: Pietra Carvalho. Diagramadores: Ane Cristina, Anny Oliveira, Daniel Medina, Fernanda Teles, Larissa Santos e Mariangela Castro. Repórteres: André Romani, Barbara Cavalcanti, Beatriz Gatti, Beatriz Gomes, Bruna Caetano, Jade Rezende, Júlia Mayumi, Juliana Brocanelli, Laura Barrio, Laura Raffs, Luciana Cardoso, Maria Paula Andrade, Matheus Souza, Nathalia Gianetti e Rebecca Gompertz. Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, prédio 2 - Cidade Universitária, São Paulo, SP, CEP: 0558-900. Telefone: (11) 3091-4211. O Claro! é produzido pelos alunos do sexto semestre do curso de Jornalismo como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso - Suplemento. Tiragem: 6000 exemplares. Ilustração da Capa: Jasmine Olga.
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alô, mãe? é, eu não passei... “Descobri da pior forma que não fui aprovada. Eu morava ao lado da faculdade, então fui até lá para procurar meu nome nas listas, que ficavam num grande mural do ginásio de esportes. Meu nome não estava lá.” Essa foi a primeira experiência de Érika com o vestibular, em 2008, quando prestou para Jornalismo na Universidade do Estado de Santa Catarina. “Não tinha ideia de como seria minha vida dali pra frente e nem de como falaria pros meus pais”, conta. O sentimento foi o mesmo para Ricardo, que fez dois anos de cursinho antes de se formar, neste ano, em Produção Musical na Anhembi Morumbi: “A decepção dos meus pais era visível em seus olhares e na falta de paciência com as minhas horas de estudo. Acabei com meu psicológico durante esses anos”. Os números, porém, mostram que esse trauma é relativamente comum no nosso modelo educacional. Na USP, por exemplo, cerca de 63% dos alunos aprovados vêm de segundas ou mais tentativas. Encarar esse cenário foi o que ajudou Ana a cursar Arquitetura na USP. Em 2010, quando prestou vestibular pela segunda vez, o baque foi maior: “Foi o pior ano, principalmente porque eu via o esforço da minha família”. No ano seguinte, seus pais não puderam mais pagar o cursinho, o que fez com que ela vendesse ovos de páscoa para continuar estudando. “Eu sabia que seria minha última chance, o que me motivou ainda mais”. Bruno, professor de cursinho há 14 anos, reconhece que, geralmente, os alunos que tentam pela segunda vez mostram uma postura diferente — são mais engajados com a aula e menos brincalhões. “Até por isso acabamos dando uma atenção pessoal maior para eles”. Sobre o conteúdo das aulas, ele mostra uma preocupação em mudar a abordagem de um ano para o outro, pensando também na experiência desses estudantes. Além desse estímulo, todos contaram com um apoio próximo para que continuassem tentando. No caso de Érika, foi a melhor amiga, que também havia sido reprovada. Já para Ricardo e Ana, os ombros vieram de seus pares amorosos à época que, como conta Ana, a segurou todas as vezes em que pensou em desistir. Apesar dos três concordarem que a aprovação veio no momento certo, eles ainda lidam com os efeitos das várias tentativas. Érika, que trocou o Jornalismo por Administração e está formada pela UDESC, resume: “Mexeu muito com minha autoestima. Foram vários anos dedicados a uma sensação de incapacidade generalizada e de estar ficando pra trás”.
TEXTO: JULIANA brocanelli DIAGRAMAÇÃO: ANE CRISTINA FOTO: ANE CRISTINA
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empregar novas ideias Demissão é u sileiros, de acord ma palavra que causa arrepios. hoje, 24,4 milhõ o com dados do IBGE. A princ O desemprego atinge 12,6 mi lh ip es de pessoas e stão nessa mod al saída dessa crise é o trabalh ões de brao informal e, alidade. Mariane Após ser deslig é u m a d e la s. ada da empre semelhantes, m as não consegu sa em que era recepcionista, e iu n la para pagar”. Ma riane encontrou ada. “Comecei a me desespera mandou currículos para vagas u r, porq ma sa tinha mão boa e as vendas come ída doce: trabalhar com a mã ue estava cheia de contas ev ça e afirma que est á feliz. “Faço o ram a crescer; hoje, toca sozin endendo brigadeiros. Ela q ha o negócio, ue gosto, ganho dinheiro e amo meu próprio a confeitaria”. ia o informal. Tan nlh a b a tr o d m alé qua outras opções boratório. A demissão veio lha, ela e ss ra u c ro p fi la em Mas houve qu alhou durante anos em um mpresa. Grávida da segunda tão, se torb e n a iu, e sma é química e tr à outra na me exibilidade de horários. Decid sempre me u i d n fu se a re r fl os e do sua á lhe desse maio einamento com os estagiári ra foi viável e u q o lg a u o busc zia muito tr . A licenciatu a r” “F a . n si ra n o e ss e d fe r ro a nar p iu na faculdade arecia gost u p g u e se n e o u c q la m e a falav esconto que graças a um d nde se graduou. o Ao contrário de M a ri a n e , a profe alunos são muit o desmotivados ssora não gosta muito da nova e is ocu ao trabalho por lhe permitir ficar so desanima”. Apesar disso, ela pação: “os se com a família. H sistemas público oje, depois de te diz grata e privado, Tania r passado pelos dá aulas particu lares. Começar de to escolher a m novo por ordem do destino ne preender, mas a udança. Mas pode ser bom. A m sempre é tão estimulante q trabalhar mesm prendeu muito. “Você tem que doceira Mariane acha difícil em uano não querendo v e se renovar pra encer a si mesma todos os dia s, não cair na mesm ice”.
Texto: Júlia Mayumi Diagramação: Anny Oliveira Ilustração: Jonas Santana
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o fim que vira meio “Todos têm uma dor”. É seguindo esse pensamento que Vicky Bloch, psicóloga pela PUC de São Paulo, entendeu por onde deveria atuar antes mesmo de dedicar-se ao coaching. Pensou especificamente na dor de quem não consegue visualizar um futuro profissional. E engana-se quem pensa que essa dificuldade afeta apenas jovens executivos. A surpresa é que pessoas à beira da aposentadoria vêm a procura de Bloch em busca de aconselhamento sobre o que fazer quando o tempo em empresas acaba, mas a vontade de trabalhar está longe do fim. Colunista de “Carreiras” na BandNews e uma das pioneiras do coaching no Brasil, Vicky trabalha com uma classe de aposentados que está longe de ser a média brasileira. Segundo cálculos do Ieprev (Instituto de Estudos Previdenciários), o máximo que um trabalhador que fez ao menos 80% das suas contribuições por valores iguais ao teto previdenciário ganha é de R$5.525, enquanto sessões com a coach podem passar dos mil reais cada.
Essa dificuldade de desapego é um dos grandes diferenciais do coaching dedicado a aposentados que buscam uma forma de redirecionar seu conhecimento para uma nova atividade, enquanto uma considerável parcela dos executivos busca o coaching como auxílio no desenvolvimento de habilidades.
É o que mostra o levantamento Executive Coaching in Latin America, de 2010, que consultou dados de 182 empresas de 16 países latino-americanos (39 delas brasileiras) e constatou que 84,6% utilizam o coaching executivo como ferramenta para desenvolver a liderança. Um de seus casos, por exemplo, envolve o médico gestor de um respeitado hospital em São Paulo, que, com quase 80 anos, virou coach. Ele já havia participado de projetos de oncologia no auge de seus 77 anos e, sob a orientação de Vicky segue na medicina aconselhando outros médicos. A vivência como diretora de RH no mundo corporativo ajudou a profissional a entender como as dinâmicas profissionais funcionam. “Tenho um cliente que foi primeiro presidente de uma determinada multinacional no Brasil. Depois de um intenso trabalho como executivo, seria um desperdício impedir que ele passe esse conhecimento para outras pessoas”, explica. Para Vicky, o tempo de trabalho dedicado a uma empresa é apenas uma das partes da jornada profissional de uma pessoa. Portanto, o fim de uma função não representa o término da vida profissional e sim um meio para que os planos individuais de cada cliente se concretizem.
I ANT A ALC IR CAV OLIVE RA A RBA NNY TAN : BÁ ÃO: A S SAN TO Ç A A TEX AM JON GR O: DIA RAÇÃ ST ILU
“A ideia de que aposentadoria é colocar os chinelos e parar de trabalhar não existe mais. Todos querem ter uma participação em algo que dê sentido para a vida”, conta com voz firme. Uma parcela dos clientes de Vicky é composta por profissionais que viram suas identidades se misturarem com as de empresas e, quando esse ciclo termina, o recomeço não é tão fácil quanto parece.
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Com a família como prioridade em sua vida, principalmente a sobrinha, que é considerada uma filha para a profissional, Vicky Bloch se mostra uma mulher de causas. “Cada movimento deve ser um passo para um plano maior. Em 20 anos onde eu vou te encontrar?”, finaliza.
as feridas da menina-mãe Quando Giovanna descobriu sua gravidez, aos 17 anos e no sexto mês de gestação, ela cursava o último ano do ensino médio em um colégio particular. A escola permitiu que a aluna estudasse de casa — pela lei nº 6.202/1975, estudantes que engravidam têm o direito à licença-maternidade sem prejuízo do período escolar. Manuella nasceu no fim do ano e sua mãe, depois de alguns meses sem frequentar o colégio, conseguiu se formar. Lêda Cordeiro, diretora e professora de escolas municipais de São Paulo, comenta que esse afastamento das instituições de ensino é muito prejudicial às adolescentes que engravidam, uma vez que elas perdem o aprendizado proporcionado pelo ambiente escolar. No ano seguinte, Giovanna seguiu afastada da sala de aula e, ao invés de ingressar na faculdade como a maioria de seus amigos, a estudante dedicou todo o tempo que possuía à filha. A rotina foi um pouco agoniante, principalmente por ver seus
amigos estudando, trabalhando e conhecendo gente nova. “Quando as pessoas iam embora depois de me visitar, eu percebia que existia uma vida lá fora e eu estava parada, sem fazer nada”, conta. O peso da gravidez indesejada na adolescência foi um pouco minimizado por Giovanna ter engravidado no último ano da escola e contado com o suporte da instituição, da família e do pai da criança — além de uma boa condição financeira. Para Letícia, porém, a situação foi diferente.
Sem apoio familiar e depois de uma gravidez de risco, a jovem teve sua primeira filha aos 16 anos. Hoje, aos 20, já é mãe duas vezes. “Não desejo isso para adolescente nenhuma. Tem que ser muito forte para aguentar as pancadas”. E ela nem sempre foi. De tanto pular de casa em casa, era chamada de cigana pelo pai. Teve depressão durante a primeira gravidez, e com a bebê já em seus braços, chorava noites e noites. Por não ter um lar, por não ter dinheiro, e, às vezes, o que comer. Da escola, o apoio também não veio.
“Você vai ter que vir em todas as aulas, nem que sua filha nasça aqui.” As palavras duras foram proferidas pela diretora da escola estadual em que Letícia estudava quando disse que não aguentaria frequentar as aulas até o fim do ano devido à gravidez de risco. A aluna, então, voltou para sua antiga escola estadual, que aceitou que ela fizesse os trabalhos de casa.
Para Lêda Cordeiro, essa prática não é a ideal. Ela explica que a lei que possibilita às alunas fazerem as atividades escolares em casa por algum tempo não resolve o problema da evasão escolar. Isso porque as alunas costumam deixar os estudos integralmente após o parto por não terem com quem deixar a criança. Essa falta de preparo das escolas para lidar com estudantes grávidas tem consequências severas. Sem uma estrutura de apoio é formada uma geração com baixa escolaridade, inclusive para educar seus filhos, explica Maria do Pilar Lacerda, ex-secretária de Educação Básica do Ministério da Educação e da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte. Por isso, ela defende a criação de planos de ação pelas escolas. No momento, não existem políticas públicas voltadas a jovens que engravidam e têm filhos ainda no período escolar — o foco é sempre em campanhas de prevenção, que muitas vezes são falhas. Para Maria do Pilar, o ideal para ajudar essas adolescentes e possibilitar que elas continuem estudando é criar uma rede de diferentes setores na comunidade para que o bebê tenha um acolhimento enquanto sua mãe frequenta o colégio. “O objetivo da escola tem que ser pensar na formação integral dos alunos e ensiná-los a enfrentar armadilhas e desafios que a vida oferece”. Com um apoio direcionado, o recomeço de jovens que engravidam ainda na escola poderia ser muito diferente. Letícia acredita que aquela fase seria menos dura se tivesse tido algum suporte — e tem certeza que outras meninas ainda sofrem pelos mesmos problemas que ela enfrentou. Hoje, entretanto, ela se considera feliz e finalmente tem um lugar para chamar de lar. O momento de transformação na vida da jovem foi o reencontro com Felipe, um amigo da escola que virou marido e assumiu sua filha. “Quando ele entrou na minha vida, tudo começou a se reconstruir. A minha paz, a minha alegria.” Já para Giovanna, o recomeço se deu quando retornou aos estudos para entrar na faculdade. “Até então, as vitórias eram todas relacionadas a minha filha: quando ela começava a engatinhar, a comer… Mas quando consegui entrar na faculdade e vi que tive uma vitória só minha, foi muito bom.”
TEXTO: JADE REZENDE E BRUNA CAETANO DIAGRAMAÇÃO: FERNANDA TELES Ilustração: JONAS SANTANA
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novas formas: das retas `as ondas
Foi ainda menina, “com nove para dez anos”, que Jaciara teve o primeiro contato com alisamento de cabelo. Hoje, aos 22, ela conta que desde criança sente o incômodo que seus fios causam em outras pessoas. Uma dessas foi sua tia, que pediu permissão à mãe da jovem para usar um produto que ajudaria a “soltar seus cachos”. O resultado, porém, não foi o prometido. Ao lavar o cabelo, Jaciara percebeu que ele já não era como antes: “Tinha alisado completamente. Eu chorei tanto”. Com o novo visual, Jaciara virou “motivo de chacota” na escola. Em busca de aprovação, optou pelo alisamento. Mas o que ela conseguiu após quase dez anos de química foram fios fracos e quebradiço. Diante desse cenário, decidiu encarar a transição capilar. E a mudança foi radical: cortou curto, deixou crescer naturalmente e reconstruiu a relação com seus fios. “Na época do corte, tinha muito medo do que iriam falar. No primeiro mês, eu mal saía de casa por vergonha”, revela Jaciara. Mas o corte não é a única opção para quem deseja assumir as ondas. Almiro Nunes, fundador da Clínica dos Cachos, salão especializado em cabelos cacheados e crespos, diz que a transição pode se dar aos poucos. Para evitar restrições como as vividas por Jaciara, ele sugere o uso de faixas, turbantes ou penteados diferentes. Almiro conta que a maioria das mulheres que chega ao salão querendo deixar a química para trás deseja “conhecer o próprio cabelo”. Assim como Jaciara, as mulheres costumam ser apresentadas ao liso artificial já na infância, então não sabem nem por onde começar a cuidar dos fios naturais, diz o cabeleireiro. Já a psicóloga Ivani Oliveira, que em seu mestrado estudou a transição capilar em mulheres negras, explica que a imposição pelo liso “surge antes mesmo do nascimento, durante a gestação, com manifestações de anti negritude direcionadas ao bebê. As expressões manifestam o desejo de que o cabelo da criança não seja crespo”. “Ensinadas” a admirar e perseguir o liso perfeito, muitas mulheres sentem desconforto com suas ondas. De acordo com dados levantados em 2017 pela multinacional de painéis de consumo Usage Care Panel da Kantar, apenas 4,9% das mulheres brasileiras se sentem satisfeitas com seus cabelos naturais.
Há também outros motivos que levam as mulheres a optar pelo alisamento, como no caso de Denisy Almeida. Africana, a moradora das Ilhas de
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São Tomé e Príncipe começou a alisar os fios aos 11 anos, por entender que seria mais barato manter o liso do que fazer tranças. Almiro destaca que, em alguns casos, essa promessa de praticidade aparece para encobrir o racismo, verdadeiro motivador dessa onda de negação dos crespos e cacheados. Denisy explica que a motivação para mudar veio quando percebeu que “aquele, na realidade, não era mais o meu cabelo de tanta alteração”.
Um novo olhar Depois de um período de predomínio do liso imposto, a tendência parece começar a mudar. Na internet, esse movimento já dá os primeiros sinais. Segundo o Dossiê BrandLab do Google, de 2015 a 2017 a busca por “transição capilar” cresceu 55% na plataforma. A pesquisa aponta também que a busca por cabelos cacheados ultrapassou a procura por lisos pela primeira vez no país. Almiro sente essa mudança no dia a dia de trabalho. Segundo o cabeleireiro, há dez anos o salão apresentava uma média de 10 a 12 clientes novas por mês. Hoje, esse número chega a 600 — desses, 30% chegam em busca da transição capilar. Ele acredita que essa mudança reflete um novo momento da sociedade, marcado pela representatividade: “Em tudo quanto é propaganda, na televisão, nos outdoors, você vê mulheres negras de cabelo crespo, mulheres brancas de cabelo cacheado. Tudo isso influencia”. Em meio a todo esse processo, há um ponto que liga todas as entrevistadas e centenas de relatos colhidos em grupos temáticos nas redes sociais: o resgate da autoestima. A transição capilar costuma aparecer como uma aliada nessa busca pela aceitação e amor próprio. A pesquisadora Ivani observou que após o período transicional o pensamento e a atitude dessas mulheres se transformam: “As mudanças mostram mulheres confiantes que se sentem bonitas e fortes”. Luciana, maranhense que iniciou o alisamento motivada pelo bullying que sofria, conta que, hoje, após ter finalizado a transição, sente que “renasceu”. Ela diz que, se pudesse dar um recado para quem pretende começar ou está passando pela transição, diria: “Não deixem que os outros te desanimem. Cuidar da nossa imagem é importante, mas cuidar do nosso interior é muito mais. Ter uma autoestima boa é transformador”. Denisy Almeida concorda que as mulheres devem se blindar das críticas. “Não liguem. Bonito mesmo será o seu sorriso ao ver que sua transição chegou ao fim. Quando vir que valeu a pena e você não desistiu da sua meta. Eu sou muito mais feliz hoje comigo e com meu cabelo.” TEXTO : BEATRIZ GOMES E lAURA BARRIO diagramação : Larissa santos ilustração: lARISSA sANTOS
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io le nci a dest v rói, mas a vida se i mp a õe
Era final de tarde de uma quarta-feira. Fazia frio, depois de dias de calor intenso. O termômetro do celular marcava 18 graus, mas parecia menos por causa do vento gelado. Combinei de encontrar Denise* em seu prédio. Quando cheguei, ela disse que desceria para me encontrar; não queria me contar sua história em casa, onde seus filhos estavam.
Denise chegou, me cumprimentou e logo acendeu um cigarro. Eu estava um pouco aflita pelo que estava prestes a ouvir. Começou contando que em 2015 iniciou um relacionamento com Carlos e ele acabou se mudando para sua casa. Desde então surgiram os ataques de ciúmes que a proibiam até mesmo de sair sozinha. Depois de onze meses de um inferno, num acesso de raiva, Carlos quebrou a televisão e a ameaçou com um facão. Denise conseguiu chamar a polícia e desde então nunca mais o viu; tem uma medida protetiva contra ele. Mas, se um dia isso acaba, tem que ter um recomeço. Hoje em dia ela conta que às vezes não acredita que isso tenha acontecido em sua vida. Que tenha, muitas vezes, aceitado os abusos calada. Mas ela está longe de ser a única. Só no ano passado, 1,6 milhão de mulheres foram espancadas no Brasil e 42% dos casos aconteceram dentro de casa. Enquanto conversava com Denise, me perguntava o que faz alguns homens se sentirem no direito de tomar a vida de uma mulher como posse. Também me sentia impotente por não poder fazer muita coisa para protegê-las. Enquanto acendia outro cigarro, Denise contou que, mesmo depois de três anos do ocorrido, seus pensamentos ainda a traem. Todo dia é uma luta. “Será que ele vai aparecer?”. E se aparecer, o que fazer? Como consequência, perdeu sua independência e levou tempo até que ela não tivesse mais medo de estar sozinha em casa. Também deixou de sair sozinha na rua, mesmo que São Paulo, onde mora, tenha nove Delegacias da Mulher. Esse não é o caso em 91% das cidades do país, nas quais não existe uma sequer. De vez em quando, Denise também se pega traída pelos sentimentos. Desabafa que até hoje sente culpa por ter trazido essa pessoa para dentro de casa, junto a seus filhos. Também se sente frustrada, porque sabe que ele está solto. Já chegou a sentir até saudade das “partes boas” com Carlos. Imagino que muitas coisas a gente não consiga botar em palavras. Leva tempo para entender. Em todos os relacionamentos que iniciou depois desse período, tinha certeza de que seriam iguais ao com Carlos. Hoje, não consegue receber elogios de ninguém e reforça que não acredita que os mereça. Ela também não consegue se apegar a um homem por muito tempo. Quando a pessoa se mostra interessante, foge por medo. Quanto mais interesse o outro instiga nela, com mais receio ela fica. Mas, aos poucos ela vem retomando a vida. A família e os amigos foram importantes redes de apoio e ela repete diversas vezes que, hoje, sua prioridade são os filhos. Depois de muito perguntar a ela se consegue se imaginar com outra pessoa no futuro, Denise diz que só pensa em ter algo mais sério com alguém quando seus filhos saírem de casa. Não quer trazer outra pessoa com eles morando lá. Certamente, ainda há desconfiança. Ao final do nosso encontro, queria ter abraçado e dito a ela que tudo o que passou não é sua culpa. Às vezes, recomeçar é um processo doloroso. A violência destrói, mas a vida se impõe. *O nome Denise foi alterado. TEXTO: MARIA PAULA ANDRADE diAGRAMAÇÃO: DANIEL MEDINA ilustrAÇÃO: DANIEL MEDINA
Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180
corpo em movimento
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Setembro de 2002. Na casa da pequena Luciane, as brincadeiras eram muitas. Pular corda, jogar queimada, brincar de pega-pega. De repente, com dores e inchaços nas pernas, Luh foi internada. Passaram-se alguns meses até o diagnóstico se confirmar. Completou 12 anos em julho e, em setembro, já não conseguia caminhar sem ajuda. Outubro de 2007. Depois de perder o ônibus para Botucatu, a amiga de Cátia ofereceu uma carona até a cidade onde a menina de 16 anos treinava futebol. Cátia deitou no banco de trás e, pouco tempo depois, o carro da frente freou de repente. A amiga até tentou parar o automóvel para evitar a colisão. Sem sucesso. Outubro de 2014. Era por volta das 6h20 quando Jéssica saiu para o trabalho. Às sextas, o trajeto era feito de moto. Quase chegando, ela foi surpreendida por um senhor distraído com o celular ou o rádio. Ele invadiu a contramão e atingiu Jéssica. Luh tornou-se cadeirante por causa do raquitismo; Cátia teve uma lesão na cervical e ficou tetraplégica; Jéssica sofreu a amputação da perna esquerda após o acidente. De três maneiras distintas, todas tiveram grandes impactos em suas vidas. Recomeçaram. Não foi fácil para a Luh de 12 anos assimilar que estaria presa a uma cadeira-de-rodas. Não queria olhar para ninguém e tinha vergonha de seu corpo. Só começou a se aceitar aos 24, na universidade, onde conheceu outras pessoas cadeirantes. “Pensei ‘elas vivem felizes da vida. Por que vou ficar sofrendo quando tenho que me incluir?’”. O mesmo aconteceu com Cátia. A dor de não poder mais jogar futebol foi pior do que a de não poder mais andar. Somente quando viu uma sorridente criança de 5 anos no mesmo centro de reabilitação, foi que ela processou a informação. Depois de seis anos — e muitas sessões de fisioterapia —, viu, de novo, o esporte mudando sua vida. Começou a jogar tênis-de-mesa em 2013 e em dois anos já estava na 10ª colocação do ranking mundial.
TEXTO: beatriz gatti DIAGRAMAÇÃO: DANIEL MEDINA iLUSTRAÇÃO: DANIEL MEDINA
Luh também se apaixonou por uma raquete: a de badminton. Apesar das dificuldades iniciais, logo ela se viu como profissional. E assim ganhou autonomia e liberdade. Até viajar sozinha, viajou — para competir, inclusive. Jéssica, por outro lado, lidou com a amputação de forma surpreendente. “Queria descobrir o que conseguia fazer, me descobrir”. Menos de um ano após a amputação da perna, ela estava nas piscinas. Em 8 meses de prática, já nadava 3km por dia. Hoje, concilia a faculdade com palestras sobre sua história, treinos de crossfit e Rafa, seu filho com Gabriel. “Agora parece que meus dias têm 48h. Não imaginava que minha vida mudaria tanto para melhor”. O que Luh, Cátia e Jéssica também têm em comum são as expectativas para um futuro próximo. Jéssica está testando uma nova prótese; Cátia quer trazer a medalha de ouro das Paralimpíadas de 2020; e, recém formada em jornalismo, Luh não para por aí. Acabou de fazer o ENEM. “Quem sabe não presto educação física? Nunca mais quero me limitar. Passei muitos anos parada. Já tá bom, né?”
ano novo, vida nova
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Dez. É uma grande reunião que vai daqui ao outro lado do mundo. Entre amigos, famílias e solitários, pensando e sentindo para ver o tempo passar. Um segundo por vez. Nove. Usamos as melhores roupas. Camisa velha é mau presságio. Um aviso para o destino: quero as melhores coisas, visto as melhores roupas. O dentro e o fora sempre conversam. Oito. Vem da herança judaico-cristã nossa maneira de enxergar o tempo em fatias. E a possibilidade de renovação em cada uma. Sete. Na noite maranhense, Carlos vai ao mar para encontrar Iemanjá. Lembra-se da senhora que recolhia a sujeira da praia e tanto se emocionou ao ser abraçada por ele numa noite como essa. Passou a se preocupar mais com quem tem menos. Seis. Liana, em São Paulo, renova os compromissos com a Terra e seus ancestrais indígenas. É uma passagem de ciclo, mas ela sabe que a vida nunca para. Cinco. Ao contrário, Khairul está longe de seu país. Hoje fica triste, não de saudades, mas pela excentricidade da festa brasileira — a música, a bebida, a alegria enfeitada. Para ele é dia de pura e simples devoção. Quatro. Antes os ciclos eram marcados pelas colheitas e as estações. Só mais tarde o calendário ficou importante. A data virou um espetáculo ainda maior com a fotografia, a televisão, a internet. Prepare o celular para os fogos. Três. No interior do Rio Grande do Sul, Raquel não tinha anos novos. Era época de trabalho para quem vivia das lavouras. Ano desses ela se mudou e o mundo mudou junto: foi estudar na cidade. Outras pessoas, outros sonhos, outra Raquel. Dois. Dessa vez vamos mesmo nos tornar pessoas melhores. O novo ano é um incentivo pra acreditarmos que estamos no controle, mesmo que falso, inventado como a passagem dos dias. Aí sim vamos fazer dieta, passar mais tempo com os pais, juntar dinheiro. Um. Marli não faz muitos planos. Na igreja, como de costume, ela agradece pelo ontem e clama pelo amanhã. Nunca se sabe, às vezes o ano chega e algumas pessoas ficam. Foi nessa época que perdeu a mãe. Ainda assim, agradece. Feliz ano novo! De novo. Espero que encontrem as forças necessárias para cumprir as promessas. Como um verso de Drummond para um ano hoje velho: “É dentro de você que o Ano-Novo cochila e espera desde sempre”.
Texto: Matheus Souza Diagramação: Mariangela Castro ILUSTRAÇÃO:: Jonas Santana Colaboradores: Carlos Pimentel, Raquel Kobus Loskar, Liana Utinguassu, Marli Bernardino, Khairul Islam,, Guilherme Howes, da unipampa, e Sara Kislanov PUC Rj...