Claro! - São Paulo 40º

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endorfina paulistana

Um dos atores do produto jornalístico é o público. E é em seus interesses e demandas que devemos pensar ao escrever.

Nessa edição do Claro! busca mos trazer um viés um pouco diferente de algo que nós todos temos em comum: São Paulo. Fa lar sobre essa cidade é conversar um pouquinho com todos os lei tores. Mas mais do que a cidade em si, falamos sobre o sentimen to de viver aqui e as experiências que todo paulistano passa.

São Paulo é uma versão bra sileira da cidade que nunca dorme. A agitação, a pressa e a efervescência tão características da cidade causam uma espécie de vício em quem vive aqui. O estresse vira uma dependência. Você descobre que está bem adaptado a cidade quando viaja e a abstinência te incomoda.

Quem vive aqui está sempre buscando mais e mais rápido, até nos momentos de lazer. São Paulo é extremos, é limite, é 40º.

Porém, quão grande seria o erro se o Claro! fosse apenas lúdico. Como então encontrar identifi cação com aqueles que enfren tam tantas dificuldades nessa cidade? Não dá pra passar sem falar o preço que essas mesmas oportunidades cobram. Portan to, há que se pensar no que é relevante, no que é atual, no que

de fato tem algum impacto na vida do paulistano. Para repre sentar isso, então, buscamos temas atuais e abordagens dife rentes daquilo que todo mundo sabe que pode encontrar aqui.

Para além de pensar no conte údo, devemos nos preocupar com a forma. O formato, as imagens, as ilustrações, a dia gramação e a escolha de palavras têm como objetivo transmitir ao leitor o sentimento total do tema. A experiência para além da informação, esse sen timento que começa com uma repulsa, passa por uma acei tação e no fim vira até amor.

A dor e o prazer de viver em São Paulo é o que nos guia nessa edição. São Paulo pro voca em seus moradores um efeito estranho. É aquela coisa de “só eu posso falar mal… e eu falo mesmo”. Sabemos que essa agitação, essa pressa, essa efervescência pode acabar nos matando, mas sem ela a gente não tem adrenalina e a vida na cidade não tem graça.

Por isso, essa edição do Cla ro! é um convite. Entre pelas referências históricas de São Paulo. Esbarre nas contradições dessa cidade que alaga e falta água. Fique pra ver o preço do

progresso, mas desfrute das redefinições de espaço que só acontecem aqui. Aí então mer gulhe na diversidade que essa cidade tem e na história das pes soas que ajudam a contar a pró pria história paulistana. Depois venha sentir adrenalina, pres são, medo. Venha ver o quanto essa atmosfera transforma para o bem e para o mal. Encerre sua viagem tentando entender a complexidade da situação e voltando ao seu lugar de per sonagem absolutamente indis pensável no meio da multidão.

Seja bem-vindo a São Paulo e volte sempre.

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Na terra da garoa

VIDAS

Maria Alice Gregory EXPEDIENTE ECA-USP Diretora Margarida Maria Krohling Kunsch Departamento de Jornalismo e Editoração Chefe Dennis Oliveira Redação Professora Responsável Eun Yung Park Editores de conteúdo: Breno França e Sara Baptista. Equipe online: Gabriel Lellis, Dimitrius Pulvirenti, Ana Helena Rodrigues e Pedro Passos. Editora de imagem: Thaís Freitas. Diagramadores: Fabíola Costa, Gabriela Romão, Thiago Quadros e Júlia Pellizon. Ilustradores: Victoria Salemi, Arthur Aleixo e Maria Alice Gregory. Repórteres: Anaís Motta, Otávio Nadaleto, Thiago Neves, Ana Carolina Leonardi, Ana Carla Bermúdez, Thaís Matos, João Paulo Freire, Bruna Larotonda, Maria Alice Gregory e Ana Luisa Abdalla. Endereço Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, Bloco A. Cidade Universitária, São Paulo - SP CEP: 05508-900 - Telefone: (11) Claro! de graduação de Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso III Tiragem: exemplares
SECAS
claro! | abril 2015 3
3091-4211 O suplemento
é produzido pelos alunos do 5º semestre
8000

Por enquanto, acho que eu escapei. Mas talvez seja só por en quanto mesmo. Quando aqueles moços chegaram aqui, com seus capacetes de segurança sobre as cabeças e uma vontade incontro lável de seguir com a moderni zação e o avanço - sempre tão necessários -, pensei que seria o meu fim. Eu, que fui semeada, nutrida, cresci e floresci neste famoso quarteirão da rua Augusta entre a Caio Prado e a Marquês de Paranaguá, mas que nunca fui notada de verdade. Passei aqui minha infância e adolescência, me tornei um grande e maduro pé de jacarandá com galhos vistosos que alguma criança volta e meia gostava de escalar. Se servi de brinquedo, de abrigo para sabiás ou se fui apenas um enfeite, pare ce que nada mais disso importa. Hoje estou cercada, abandonada, ameaçada. Sou mesmo é um obs táculo, um verdadeiro pedaço de pau no meio do caminho.

O estado de São Paulo já foi só floresta, ocupado por uma variedade imensa de plantas e animais. Mas, com o tempo, os mais de 17 milhões de hectares de Mata Atlântica originais daqui se transformaram em menos de dois. E, apesar de fazer parte de um dos últimos respiros des sa vegetação, sigo ao relento. Construir torres luxuosas bem no coração da capital, para alguns, é muito mais vantajoso. Me utilizar como moeda de troca então, é coisa corriqueira. “Constrói uma torre a menos ali, diz que vai dei xar 60% da área pra uso público”, negociam entre eles. Ah, mas se dinheiro nascesse em árvores, a situação seria bem diferente...

Bom, eu também fui inocente por chegar a imaginar que poderia ser de outro jeito. Até houve um tempo em que éramos só nós, cedros-rosa, embaúbas, figueiras, jeribás e pitangueiras. Mas foi a

tinha uma árvore no meio do caminho

civilização chegar que a chacina começou. Demos lugar às casas, que depois foram substituídas pelos prédios, e a coisa foi fican do tão absurda que até mesmo os prédios deram lugar a novos e mais modernos edifícios - e a shoppings, e a supermercados, e a condomínios de luxo, e a ainda mais shoppings, até chegar ao incrível número de existirem, hoje, 53 deles distribuídos pela capital. E eu cada vez mais cercada por olhares vindos de

cima, cada vez mais encurralada. Mas, como de costume, jamais observada.

Chega a ser irônico eu estar, ago ra, dentro de um terreno cercado por tapumes de madeira. Madeira que pode ser de uma irmã minha que estava no quarteirão de baixo há uma semana ou até mesmo das senhoras cinquentenárias que foram cortadas do Vale do Anhan gabaú há mais ou menos um mês, na calada da noite.

Um dia desses ouvi um pessoal conversando aqui perto dizendo que São Paulo tem 111 parques e áreas verdes. A princípio, pensei que fosse um número razoável. Mas a questão é que, ao mesmo tempo, a cidade tem mais de 410 hotéis, 6 mil academias de ginástica e 20 mil bares. É como se o cenário fosse o de um grande cemitério, onde os prédios são, na verdade, enormes mausoléus. E eu, ali no meio, sinto que sou a próxima detenta na fila do corre

dor da morte. Não é fácil sobre viver quando estamos cercadas: se estamos fortes, o progresso nos atropela; se estamos fracas, somos ameaças. Encontramos de tudo, menos misericórdia. A me trópole nos engole e não descansa nem mesmo quando o assunto é destruição.

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O Cinza do Elevado, a vida no calçadão

Quando era criança ia muito ao Rio de Janeiro. Detestava ir à praia, meus pais também, mas a gente ficava horas sentado em um daqueles bancos de pedra, de cos tas para o mar, vendo as pessoas passarem. Achava o máximo fazer isso aos domingos, o calçadão de Ipanema se expandia, uma das pistas da Vieira Souto era – e ainda é – tomada por bicicletas, cachorros, pessoas andando de patins, gente correndo e brin cando com os filhos, tinha muita coisa pra eu ficar admirando.

Quando fiz 18 anos saí de Belo Horizonte, e dessa vez não iria para o Rio, mas pra São Paulo. Nos primeiros meses vivi em um hotel logo abaixo do Minhocão. Naque la altura, o que me incomodava sobre o Elevado Presidente Artur da Costa e Silva não era a brutali dade da construção, mas quem ela homenageia.

Depois de um tempo fui aprender que a obra foi iniciada em 1969, por Paulo Maluf, quando Costa e Silva era Presidente.

Em conversas, o Elevado foi sempre alvo de críticas ferozes, justificadas, é verdade, mas em poucos momentos ouvi qualquer elogio à aventura arquitetônica de Maluf. Na verdade, nem sei se é possível se falar em arquitetura ao descrever o Minhocão, a via elevada é uma obra de engenharia bruta, que nada resolve o proble ma do trânsito, além de exercer um incontestável impacto na paisagem urbana da cidade.

Até que escutei uma história de que a via fica fechada para carros entre 21h30 e 6h30. Ah, e aos domingos também - igual a Vieira Souto. Um dia ouvi alguém falan do que, aos domingos, quando o Minhocão fica inacessível aos veí

culos, um grupo de pessoas faz do entulho arquitetônico uma praia. Aparentemente, levam cadeiras de sol, sunga, frescobol, até churras co. Me interessei.

Fui em um domingo nublado, quando cheguei à Praça Roose velt, admiti a possibilidade de não conseguir comprovar a tal história. Olhando da ponta, achei linda a cena das pessoas entrando no elevado, em um ritmo líquido, viscoso, devagar. As formas eram diversas: cachorros, bicicletas, carrinhos com crianças, pessoas se exercitando, uma grande ma nifestação de vida. A obra, a cada metro que aquele fluxo avançava, evidenciava mais sua dureza, cada vez mais cinza, a cada passo mais deslocada naquele cenário.

Os edifícios que margeiam o Minhocão são mais antigos que a homenagem a Costa e Silva, portanto, quem passa por ali con seguiria ver toda a privacidade de um morador. Por causa desse desplanejamento, as janelas voltadas para o Elevado são todas vedadas ou foscas. Elas sugerem um silêncio incômodo, de uma cidade que se fecha.

No entanto, ao me voltar para quem passeava, percebi que havia muito a ser visto, muitas hitó rias, gente que sai de casa todos os domingos pra levar o filho para passear, ou o cara que apro veita para se exercitar. Em um dos edifícios, um grupo de teatro apresentava um espetáculo para quem passeava ali que talvez nem

precisasse existir. Apesar de não fazer sol, não sentir em nenhum momento o cheiro de protetor solar, nem ver ninguém de sunga, as pessoas estavam lá.

Acho que mudei pra São Paulo justamente por saber que aqui não tem praia, mas, surpreen dentemente, encontrei na cidade o que tinha de favorito no Rio, a possibilidade de observar as pessoas no calçadão. O Minhocão – que talvez até vire parque – não tem a praia ao lado, tem muitas histórias, de alguns erros e de uma contradição barulhenta e cinza. Talvez sinta saudade dos bancos cariocas, mas confesso que ainda quero ver as pessoas que tomam sol no Calçadão Presi dente Artur da Costa e Silva.

thiago neves claro! | abril 2015 5

A atmosfera do horário de pico é, em grande parte, sonora. Motores roncam e geram energia mesmo que os carros não avan cem um centímetro. As buzinas também são frequentadoras eventuais do cenário. Parecem ex pressar o descontentamento dos motoristas impotentes, mas não se destinam a ninguém específi co. Entre carros congestionados, não há culpados, só vítimas.

A sinfonia do tráfego passa des percebida pelos ouvidos, que se acostumam rápido. Mas o corpo reage, alerta, como em uma cena de guerra. Um som, porém, se destaca, um grito que aflora da massa monótona. A sirene ver melha desperta os olhos na cons telação de faróis acesos. Exclama perigo e exige passagem em meio à cena intensa e imóvel.

A visão da Estrela da Vida, símbolo da emergência médica, muitas vezes gera aflição, mas não movimento. Para o pedestre que vê o resgate ao longe, talvez paire uma onda de estranhamen to, ao ver estático o veículo da qual depende o ritmo da vida de outra pessoa.

A posição do motorista à frente da ambulância é menos passi va, mas nem por isso menos angustiante. “Pouca margem de manobra” deixa de ser metáfora.

Há ainda a incerteza do que é permitido e o que é contra a lei para abrir caminho ao resgate.

a hora de

Dentro da viatura, o tempo passa de trás para frente. A ocorrência marca o início da chamada Hora de Ouro. Receber o tratamento definitivo na primeira hora depois de um acidente traz maiores chances de sobrevida. O desafio é acomodar a chegada no local, o atendimento e o transporte ao hospital nesse tempo. A recom pensa é um melhor prognóstico. E o antagonista constante é o trânsito.

Há 15 anos, esse turbilhão é rotina para Gisele Rossi. Ela é enfermeira da tropa de elite do atendimento médico a desastres, o Grupo de Resgate e Atenção às Urgências e Emergências. No quartel da Casa Verde, trabalha lado a lado com os bombeiros: eles tripulam a Unidade de Resgate e os enfermeiros e médicos, a Uni dade de Suporte Avançado (USA).

O tormento de Gisele nas viaturas travadas é o rádio, que anuncia a gravidade de casos que ela é capaz de socorrer, mas não consegue alcançar. O Mar Vermelho de car ros se abrindo perante o resgate é uma raridade.

“O trânsito é sempre um vilão no resgate”, ela afirma. Mas é difícil apontar um caso específi co que traz indignação contra o problema. Não é que o assunto

não tenha importância: mas quando se mata um leão por dia, já se sabe o tamanho e a força do animal. O que importa é a forma de combatê-lo.

A praticidade toma o lugar da emoção na luta contra o conges tionamento. A questão não é o quanto se sofre com o problema, e sim as estratégias para com batê-lo. Como um ferreiro que trabalha a marteladas, o trânsito paulistano molda o serviço de resgate à sua maneira. Adequou as USAs à sua imagem: há 6 anos, as ambulâncias foram trocadas por viaturas rápidas. Menores, se deslocam com mais fluidez. Não transportam o paciente – depois de atendê-lo e encaminhá-lo ao hospital, se dirigem à próxima vítima, para fazer valer mais uma Hora de Ouro.

Se a vivência diária da pressão e da pressa amortecem a percepção da intensidade do trabalho, nem por isso a adrenalina do serviço é ignorada. Faz parte, até, de um “quê” sedutor da tarefa. “Na Mar ginal Tietê, você pega um carro. A 100 km/hora. Na contramão. Nunca vai haver uma sensação dessa em outro trabalho. A gente vai para as cabeças. Pegar veia, entubar os pacientes, fazer uma pequena cirurgia. Isso no chão, na rua”, Gisele relata.

O descontrole das emoções é o grande inimigo da precisão do ofício. Com a experiência, a concentração supera as outras reações para garantir o sucesso da tarefa. Se soa como se o aten dimento fosse feito em piloto automático, nada mais ilusório. As consequências de traba lhar entre o limite da vida e a morte são só adiadas. O impacto emocional vem à tona depois. O equipamento fica no quartel, mas algumas histórias voltam para casa, invadem o pensamen to. “Falam que somos frios. Não é frieza. Talvez seja uma carga de maturidade e de controle que permite fazer o que é preciso. Depois você até desaba. Mas naquele momento, alguém tem que fazer, e somos nós”.

Mesmo que as marcas do dia anterior não tenham ainda desbotado, o dia seguinte chega atropelando com suas novas demandas. E em mais uma manhã que começa no quartel, a atmosfera, como no horário de pico, também é sonora. É a expectativa do soar do alarme e do chamado do rádio. É a sirene que rasga o silêncio. São Paulo chama, e ela não é das cidades mais pacientes.

ouro

Ana Carolina Leonardi

Temos que pegar!

Thaís Matos

Saio do trabalho às 17h, depois de um dia de muito can saço e encheção de saco, metas, espiadas no Facebook, quem é o líder do BBB, mais metas e mais encheção de saco. Voltar pra casa é tudo que eu mais quero na vida. Mas eu e outros 4 milhões de pessoas que usam o metrô de São Paulo diariamente ainda temos um último desafio: enfrentar a superlotação.

Nesse horário o número de pes soas parece ainda maior. Chego na estação, procuro meu Bilhete Único na bagunça da minha bolsa e não demora muito pra se for mar uma fila atrás de mim. Três pessoas batendo o pé, olhando impacientes, murmurando algu ma coisa. Me apresso.

– Vai logo, vai logo. Pega esse bilhete. Acorda!

Finalmente passo pela catraca. Mal consigo andar do outro lado.

Com paciência vou progredindo na fila até chegar à escada rolan te. Aaaai! Sou empurrada por um apressadinho e me desequilibro. Esbarro em outras pessoas e já vou me desculpando. Desço um lance de escadas e a multidão só aumenta. Impressão minha ou está mais quente aqui dentro? Sou empurrada mais três, quatro

vezes. À próxima pessoa que tenta furar a fila já dou uma cotovelada.

– Aqui não, queridinho!

Ele balbucia algumas coisas en quanto me olha de cara feia.

– Eu tô atrasado.

– Atrasado pra chegar em casa? Respeita a fila – eu grito.

– É! Respeita a fila. – Tá todo mundo com pressa. – Olha a moça. Tenha mais cuidado. - Ai, como as pessoas são mal-edu cadas aqui, né? – Todo dia tem um filho da puta querendo levar vantagem. – O governo tem que dar o exemplo. – Também, com a inflação do jeito que tá…

Pokemon, eu escolho você!

Depois de alguns lances de escada e muita gente folgada, não existe mais paciência, muito menos gentileza. Conforme as pessoas vão se distanciando da superfície parece que também vão perdendo a noção da realidade e a trans formação começa. Apagam-se as luzes da sanidade e salve-se (ou sente-se) quem puder.

A área próxima às portas é reservada...

Ninguém escuta mais nada. É gente correndo, empurrando, amassando. Conforme vamos nos aproximando da plataforma, o desespero aumenta e os Poke mons vão ganhando mais pode res. Dois corpos ocuparem o mes mo espaço é claramente possível para eles. Seus rostos franzidos, fechados, são rostos de quem vai pra guerra. Sai da minha frente que eu quero passar.

E passa. Quando o primeiro metrô passa a transformação já está completa. Os Pokemons as sumem diversas formas. Saltam, voam, atropelam os semelhan tes. Claramente não cabe mais ninguém. Todo mundo já está espremido sendo obrigado a ficar com a cara na axila de fulano, ou com o braço encostando nas partes de beltrano. Para entrar no vagão, vale tudo. Ele gruda no cabelo da coleguinha e fica aboletado ali. Miga, nós vamos conseguir juntas! – ele pensa.

Alguns enfiam metade do corpo, ficando com um braço e uma per na pra fora. Como se os minutos extras que o trem fica parado na estação até a porta se fechar fossem magicamente abrir um espaço e fazê-lo caber ali. E o pior é que por alguma super habilida de o danado se enfia.

Dentro do vagão encontram-se diversas espécies. Tem sempre um Charizard soltando fogo. Ele fala alto. Reclama do calor, do fedor, das pessoas encostando. Sempre há também um Squirtle: carregando sob o casco duas bol sas, três mochilas, sete sacolas. Batendo na cara de todo mundo enquanto corre – sempre cor rendo – pra pegar aquele metrô. E tem que ser aquele. Não pode ser um igualzinho que passa três minutos depois. Outros insistem em parar bem na porta. Já fica ali garantindo a descida daqui a 14 estações, e se você falar alguma coisa, ele solta raios e trovões.

Próxima estação Paraíso No meio da pancadaria entre diversas espécies e evoluções dos Pokemons, entra uma grávi da. Humana!, apita o sinal da cabeça dos bichinhos. Logo eles abrem espaço, se apertam daqui, empurram dali, escorraçam o Bulbassauro sentado pra dar lugar à mestra. Parece que só ela é realmente capaz de acalmar os ânimos. Talvez porque quando a vejam se sintam humanos tam bém. Existe amor em SP?

Agradecemos a colaboração

THAÍS MATOS
claro! | abril 2015 9

Arcos e flechas

Rafael Hayashi prende os cabelos longos, compridos e negros em um coque por trás da cabeça. Com as têmporas raspadas e os olhos puxados como seu sobrenome sugere, ele parece mesmo um samurai. Ao menos é assim que brinca Enivo, ele também com os longuíssimos dreadlocks atados à nuca. Mas, por mais marcan tes que sejam, não foram essas as feições que estiveram sob os holofotes midiáticos poucos meses atrás.

Os dois artistas estão por trás de uma das obras que estam pam os vãos dos Arcos do Jânio, ali na avenida 23 de Maio. As famigeradas feições são aquelas de um grafite ilustrando o que era para ser um homem negro, mas acabou interpretado como um retrato do ex-líder venezue lano Hugo Chávez. Os grandes veículos de imprensa logo se apressaram a contatar Hayashi para a a fatídica pergunta: era ou não era?

“Foi sem querer querendo”, ri Enivo. “A gente juntou cinco artistas para fazer uma coisa

legal, que não tivesse marca -d’água de nenhum de nós. Aí pegamos uma de várias ima gens do Rafa e fomos lá numa madrugada.” Mas, no plano ar tístico, ser ou não ser é questão subjetiva. E o grafite é arte.

A afirmação parece descabida em tempos onde essa vertente da arte urbana aparece na novela das oito e em propagandas da Coca-Cola, mas pintar muros da cidade em público gera um retor no imediato da audiência. “A cada cinco minutos alguém passa e fala alguma coisa, muitos elogios, mas também muitas críticas”, diz Enivo, que nem sempre pede autorização para grafitar e, por isso, já teve seus incidentes com a polícia.

Rafael prefere fazer da peri feria sua tela, e pede licença para pintar. Mas reconhece: “A essência do grafite é ser ilegal, é a contravenção mesmo”. A es tética é apenas um lado de uma arte com potenciais múltiplos: o protesto social, a ocupação do espaço urbano. Isso, é claro, enfrenta resistência do poder público, com seus policiais e

inexoráveis pincéis, como na história em que a prefeitura removeu, por engano, dese nhos enormes na própria 23 de Maio. E essa resitência se estende à população em geral.

Um episódio, que diz muito sobre a desaprovação do público, foi este protagonizado por Enivo e Rafael, quando sua obra ama nheceu rabiscada com o incon fundível desenho de um pênis. Cada grafite apagado, porém, é o surgimento de uma nova tela para ser preenchida.

“A partir do momento em que termino a arte, ela não é minha: é da rua”, fala Enivo. “Mas aqueles rabiscos foram uma manifestação ridícula de um bando de fascistinha. Aquilo não é pixação; pixação é outra coisa. O prefeito Haddad me ligou para conversar. Disse: ‘Se foi mesmo a intenção, assumam. Vocês têm meu apoio.’” Mas o desenho do homem, com todas as interpretações e opiniões que fomentou, já virava personagem principal de um debate ao qual não pertencia. “O que ficou claro é que estávamos sendo usados

em um jogo político bem mais amplo que aquele grafite”, Rafael acrescenta. “Fomos os bodes expiatórios.”

Os artistas sabiam que aque le seria um ponto de muita visibilidade. “Mas o local era fechado com grades, era sujo, abandonado, tinha gente que se abrigava lá.” Quando os dese nhos surgiram, de repente, o valor histórico do monumento reapareceu e os Arcos se torna ram intocáveis. Se a vida imita a arte, a obra de Enivo e Rafael trouxe consigo uma profusão de concepções, ideias, de reflexões, de protestos, ideais políticos… O grafite, no entanto, ainda se mostra para quem vem da Zona Leste e pega a alça de acesso à 23. Agora, porém, com os olhos vendados e a boca calada.

Coletivo Vie La En Close 10 claro! | abril 2015

Polícia! Para quem precisa

Aconteceu numa segunda -feira. Era início de madrugada e o tempo estava quente, típico de verão na capital paulista. O céu, iluminado por uma grande e reluzente lua cheia. As ruas já não estavam mais apinhadas de pessoas, apressadas com seus compromissos para lá e para cá. Uma música soava distante, carros e luzes passavam por mim esporadicamente. Uma farmácia aberta, um boteco com uns pou cos bêbados virando sua última dose antes de ir para casa. Tudo calmo, tranquilo. A cidade inteira dorme para então despertar e renascer no dia seguinte.

Gosto de sair à noite: é um dos poucos momentos que se conse gue ficar sozinho, em paz. Sem trânsito, sem pressa, sem fila. Sem gente estressada que só espera pelo fim de mais um dia. Nesta segunda, minha mãe alertou:

– Não saia hoje, meu filho. Estou com um mau pressentimento. Por favor, fique. Essa cidade está cada dia mais perigosa.

Não entendi o aviso. Tantas vezes que fiz exatamente a mes ma coisa, que andei pelas ruas adormecidas dessa cidade que nunca dorme. Por que hoje seria diferente?

Acontece que, como dizem, as mãe sempre têm razão. E a minha, para o meu azar, estava certa também. Eu deveria ter escutado, mas há coisas que simplesmente acreditamos que

nunca vai acontecer com a gente. Ouvimos histórias – no cabelei reiro, na fila do supermercado, no ônibus, nos noticiários – um caso do primo do vizinho do amigo de um amigo meu. Um homem morto à queima-roupa, outro ferido, outro humilhado. Mas isso tudo parece algo tão improvável. Pensamos: “que falta de sorte esse garoto teve. Se não estivesse no lugar errado na hora errada... Coitado”. Há também aqueles comentários mais cruéis e egoístas: “Bom, antes ele do que eu...”. A questão é que nunca estamos preparados para o pior.

Tudo começou quando perce bi uns caras se aproximando de mim. Eu estava andando normalmente, calmo. Apertei o passo, não queria arriscar. Afinal, a rua já estava completamente deserta e silenciosa. A sombra das árvores na calçada e os sacos de lixo amontoados na sarjeta, com insetos dando as caras vez ou outra, tornavam a cena toda ainda mais sombria. Só queria sair logo dali, encontrar um lugar seguro. De repente, os homens me alcançaram. Tentei ficar calmo, não havia motivos para me fazerem mal. Rapidamen te, fui cercado por eles. Fiquei encurralado. Começaram a me dar ordens. Gritaram comigo. Me jogaram no chão. Quando percebi, já estava apanhando. Não demo rou cinco minutos, eu estava num carro, sendo levado para algum lugar desconhecido. O que queriam de mim? Por que eu? Invisível, ninguém viu o que aconteceu. Não

havia ninguém para ver.

Me avisaram para não reagir. Me avisaram que eles poderiam me machucar. Esses caras são capazes de fazer qual quer coisa para conseguir o que querem. Torturar. Ameaçar. Subju gar. Matar. Me avisaram para ter cuidado, para tentar não chamar atenção. Me avisaram sobre a im potência diante do acontecimen to. “Por que o senhor bateu em mim? Por que está fazendo isso? O que eu fiz?” – essas perguntas enchiam a minha cabeça.

Estou com frio. Estou com medo. Perdido. Esquecido. Quem irá me salvar? Para quem posso gritar por socorro? “Misericórdia!”. Peço para pouparem minha vida. O que querem de mim? O que está acontecendo? Não há resposta.

Machucado, amarrado, eles me levaram. “Para onde? Por quê?” –nada. Continuo ouvindo ordens. Eles pensam que podem fazer o que bem entenderem.

– Fique quieto, você é nosso ago ra. Você sabe muito bem por que está aqui – dizia um. – Você sabe o que nós queremos. Agora seja bonzinho e coopere, senão... Você já sabe. Não brinque com a nossa paciência – falou o outro.

Entre 2009 e 2013, a polícia de São Paulo foi considerada a segunda mais letal do Brasil.

No ano passado, a violência poli cial foi a maior dos últimos 11 anos. Foram ao todo 343 mortes registradas na capital paulista.

Uma em cada cinco mortes em São Paulo foi cometida por policiais em 2014.

Em 2015, 117 pessoas foram mortas pela polícia em todo o estado de São Paulo. Das mortes por milita res e civis, 73,5% foram na capital e Grande SP.

212 policiais militares mata ram 110 pessoas e 11 policiais civis mataram sete pessoas em São Paulo nos dois primeiros meses deste ano.

Segundo o ouvidor das polícias, Julio Cesar Neves, “95% das mortes deste ano (2015) serão arquivadas e, se algum policial agiu contra a lei, ele não será punido”.

Bruna Larotonda
claro! | abril 2015 11

virado à paulista

ana luisa abdalla

São Paulo desconhece a calmaria.

Na terra da garoa a vida segue entre museus, bares e feiras. Entre músicas e cheiros. E, claro, muita fila.

Sombra e água fresca só depois de pegar algum ônibus cheio e um certo trânsito. Talvez tenha que andar um pouco também.

Sua exposição favorita está aqui. A banda que você mais gosta com certeza vai dar as caras também. O programa que era só uma exposição; vira peça, show e bar. A cidade vai correndo e você vai junto, tentando não ficar pra trás.

São Paulo não para nunca, e é justamente nessa adrenalina toda que você encontra a graça.

A noite vira dia, o dia passa e a cidade nunca dorme - ainda bem.

Não é fácil amar São Paulo, mas é irresistível.

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