Claro! Rua

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claro!

/ NOVEMBRO DE 2015


VIAS DE FATO GABRIEL CARVALHO NINA TURIN Como você tem usado a rua? É comum ouvirmos as pessoas dizerem que estão vivendo “mais na rua do que em casa”, por causa da tal “correria do dia a dia”. Será, porém, que o principal uso das vias públicas deve ser a locomoção de um ponto a outro, ida e volta? Aliás, o que significa, de fato, a via ser pública? Durante séculos, as ruas foram usadas para exercer a liberdade de expressão, para encontros de diversas culturas, para o comércio, para o lazer e para a própria locomoção… Mas uma cidade que tem mais de 8 milhões de veículos, vai ter espaço para brincadeiras de rua?

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Nesta edição trataremos de maneira geral sobre as ruas de São Paulo, mas qualquer cidadão das metrópoles brasileiras poderá se identificar com a realidade que retratamos. Foram feitas comparações entre o passado e o presente. Mesmo as pautas mais leves, trazem uma incerteza. Mudança, não necessariamente de volta ao passado, mas de um uso mais democrático de um local que é da população. Por que deixamos de ocupar (ocupar de fato, não só transitar) um espaço que é nosso? Mostramos tanto os motivos para que isso tenha acontecido, abordando o medo de andar nas ruas e a falta de qualidade delas. O que é e o que deveria ser feito para mudar essa realidade? Você vai se surpreender com algumas respostas. Em formatos variados, queremos dar voz aos diferentes personagens que têm essa vivência das ruas e que querem que ela seja um lugar acolhedor, democrático e, de fato, ocupado. E aí, vai perder esse Claro!?

EXPEDIENTE ECA-USP Diretora Margarida Maria Krohling Kunsch Departamento de Jornalismo e Editoração Chefe Dennis Oliveira Redação Professora Responsável Eun Yung Park Editores de conteúdo: Gabriel Carvalho e Nina Turin Diretor online: Vitor Hugo Equipe online: André Spigariol, Hailton Biri, Bruna Eduarda Brito, Daniel Muñoz e João Henrique Furtado Silva Editora de imagem: Marina Yukawa Capa e diretora de arte: Stella Bonici Diagramadores: Amanda Manara, André Meirelles, Bianca Caballero, Jullyanna Salles, Mirella Kamimura e William Nunes Ilustrador: Marcelo Grava Repórteres: Ana Paula Machado, Fernando Magarian, Giovana Feix, João Cesar Diaz, Luís Viviani, Marcela Campos, Murilo Carnelosso, Pâmela Carvalho, Quéfren de Moura, Sérgio Gomes de Oliveira e Vinícius Crevilari Making Of: Mariana Miranda e Victória Pimentel Endereço Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, Bloco A. Cidade Universitária, São Paulo - SP CEP: 05508-900 - Telefone: (11) 3091-4211 O suplemento Claro! é produzido pelos alunos do 6º semestre de graduação de Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso III Tiragem: 8000 exemplares


A BELEZA ESTÁ NAS

RUAS PÂMELA CARVALHO VINÍCIUS CREVILARI

Muitos podem afirmar que as ruas não são um fim, mas meio para se atingir outro tipo de sociedade. Mas qual é o papel das ruas em movimentos político-sociais? Para Lincoln Secco, professor do Departamento de História Contemporânea da FFLCH, as ruas “se enchem por razões combinadas: quando o sistema político perde representatividade, onde há um ‘contágio’ que unifica diferentes demandas locais em manifestações de sentido nacional ou internacional, em que algum evento funciona como estopim”; ou algo “menor”, mas que corrói as condições de vida da população, “como o aumento do preço do pão ou da tarifa de ônibus”.

Mas essa relação entre o “maio de 68” e a tomada das ruas, não foi singular na História. A ocupação política da cidade sempre foi um mecanismo de ação direta para a expressão de descontentamentos e, dependendo da resposta que as autoridades dão a elas, novos caminhos se abrem. Foi o que aconteceu na Rússia, em 1905. Milhares de operários marcharam rumo ao palácio imperial, com o intuito de entregar um abaixo-assinado, no qual reivindicavam, entre outras coisas, a participação de representantes do povo no poder. Em represália, a Guarda do Czar abriu fogo contra a multidão. A resposta à repressão foi rápida: greves e manifestações por todo o país, sob a palavra de ordem “Abaixo o Czar! Todo o poder ao povo russo!”. Um movimento de rua que foi a faísca para um levante popular que se iniciou em 1905 e abriu espaço para a insurreição proletária que viria ocorrer com a Revolução de Outubro, em 1917. Desde 1905 muita coisa mudou, mas a tomada das ruas não perdeu sua importância. Em um mundo no qual as mídias sociais possuem papel determinante na expressão de pensamentos e de ideologias, tomar as ruas ainda é fundamental: “Os meios digitais potencializam e até alteram a conduta das pessoas nas ruas, facilitando a organização, difundindo mais rapidamente informações. Mas a forma de existência política continua concreta. Ainda que todos saiam às ruas para aparecer, é preciso ir às ruas”, aponta Secco.

MARCELO GRAVA

Para o professor, os movimentos de dimensão histórica sempre são fomentados pela circulação de ideias e a comunicação sempre funciona como importante fator de aglutinação do povo em um só espaço. A década de 1960 é um exemplo que demonstra a importância da circulação de ideias para a tomada das ruas. O período foi marcado por contestações em todos os aspectos, o que resultou em protestos da juventude, da classe trabalhadora e de movimentos sociais por todo o mundo. As ocupações das universidades, das fábricas e das ruas se espalharam como uma epidemia — como a que aconteceu no Quartier Latin, quadrilátero de ruas de Paris que serviu de palco para as manifestações da época — e uma nova relação da sociedade com o espaço urbano foi se formando. Essa efervescência da juventude, aliada às contestações sobre o papel da universidade na sociedade, trouxerem à tona a

luta pela igualdade de direitos, a contra-cultura, a contestação dos modelos de ensino e a negação do Capitalismo.


No meu caminho, além do trânsito e de alguns ônibus quebrados, há também cavalos, bois e gado. Isso porque há sítios na região que deslocam seus animais para pastar às margens da represa Billings, que acabam atravessando a estrada, principalmente depois das 10h. Dos trajetos, guardo as boas leituras, as músicas que escutei e conversas com amigos e desconhecidos. Lembro também do gesto de uma senhora, quando tinha 13, 14 anos. Vendo-me dormir, ela deixou que minha cabeça recostasse em seu ombro. Acordei com um susto, eu ri, ambas riram. Gabriely Araujo - Balneário São Francisco

Uma vez eu tava estressada com provas, botei os fones e fui andar pela cidade à noite, passei pelas aguinhas do parque Ibirapuera, passei por uns grafites, foi muito gostoso. Bárbara Villela - Higienópolis

“E quando a porta abrir na próxima estação? Será que vou cair?” Andava em passos curtos pensando que se acontecesse uma emergência eu seria pisoteada fácil, fácil. Finalmente, em 2015, tive coragem de dirigir na Marginal. Nas primeiras vezes eu ia tensa. Os motoqueiros, as buzinas, a dificuldade para mudar de faixa, meu corpo doía de tão tensa que eu ficava. Yria Freitas Tandel - Interlagos

De ônibus até o metrô e de metrô para ao mundo real. Thiago Alves Custódio Jorge - Vila Nova Cachoeirinha

TINHA UM CAMINHO NO MEIO DA ROTINA

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GIOVANA FEIX

Dizem que o metrô vai chegar, até as estações já têm nome e local certo, mas a licitação foi suspensa por polêmicas de preço e nem sei se tem mais previsão. Thaís Vallim - São Bernardo do Campo

Todo mundo que eu vejo de bike pela cidade está sempre com um sorrisinho no rosto e isso deixa a cidade mais leve. Jeanine Padilha - Jardins

Foi no ônibus o lugar onde eu comecei a perceber como existiam pessoas diferentes no mundo. Rebeca Yoshisato - Jardim Bonfiglioli

No início da faculdade, antes da linha amarela, eu levava cerca de 2h30 para chegar até a USP. Totalizando 5 horas diárias e 25 horas semanais. Era como se a cada semana passasse um dia inteiro no transporte público para ir e voltar da faculdade. Thatiana Martins - Vila Nova Cachoeirinha


Por que tão escorregadia, droga? Que tipo de gente compra maçaneta redonda, dessas que se aperta pra abrir, pra girar pro outro lado, machucando as articulações das mãos? As palmas eram já líquidas do suor e sal e a boca era já seca porque vinha da porta aberta um vento infernal de rua. Os pés eram dois que quase se trançavam em queda. O tênis era branco leite e a sola lambia o concreto ainda com todas as ranhuras de confecção. O que sujava seu corpo era o barulho constante de gente. Era gente preta, gente branca, gente de pele descascada do sol que fazia ferver o asfalto. E as gentes gritavam ao telefone que chegariam em cinco minutos e engoliam a pipoca doce que deixava os dedos tingidos de vermelho-sangue, como se pulsassem vida.

primeira marcha das latas do engarrafamento salgavam o ar com a fumaça preta. Olhos na trilha dos pés. E porque é que alguém haveria de gostar disso não sabia. Se expor assim ao incerto sem paredes. O asco vinha pelas narinas. Como é que pode o azedo invadir assim? Como é que pode essa gente cheirar assim? Essa gente que não se recolhe, essa que olha pra frente, nos olhos dos outros e ousa gastar muitas horas da vinte e quatro sob o sol, cheirando azedo. E os disfarces? Cada baunilha que entope narizes nos pescoços azedos. O óleo de gergelim na panela quente cheira a graxa e envolve o fio e o brócoli e a cenoura praquela gente cortar entre os dentes. E depois cospem no chão ou nos buracos que exalam merda.

Olhos na trilha dos pés. E o ruído das vozes era tão horrível que chegava a parecer a sua própria voz multiplicada por mil, como reflexo no espelho.

Olhos na trilha dos pés. A nuca doía, o abdômen tensionado e os ombros presos às orelhas. Só que os braços são sempre livres.

É um burburinho que não existe dentro da lata, no banco de couro, dezoito graus celsius a soprar na cara, o pé viciado no pedal e nova brasil éfe eme às oito da manhã. Às dez, à uma, às quatro e às sete.

O corpo exige essa relação estranha com os objetos do mundo. É lei da física que dois corpos não ocupam o mesmo espaço, mas os braços são pueris e insistem em desafiar a lei. Batem forte e dolorido no que cerca a matéria do corpo.

Mas naquele dia era pé no tênis branco, ainda novo, cheio de ranhuras, que pisa o concreto e o asfalto e até o buraco e também a raiz das copas que sombreiam as calçadas.

“Olha pra frente, imbecil!” E mirou.

“Dá um trocado?”, “Você sabe onde fica a Brigadeiro? Poxa, eu não sou daqui e não consigo achar a rua. Tô procurando emprego. Me indica a direção?”, “Não quer ver nosso cardápio? Fazemos grelhados e”, “E aí! Quanto tempo? Opa, te confundi Desculpa”, “Chip da TIM, só dez reais, olha o chip da TIM!”. Transpirava uma coisa grudenta. Sentia que suava o suficiente pra pele umedecer doce, e a

Olhos nos olhos de Alex. E Mariana, e Otávio, Marcos, Raquel, Clara, Roberto, Ana e dessa gente que não se recolhe, essa que olha pra frente e ousa gastar muitas horas das vinte e quatro sob o sol quente na cabeça. Mirou o concreto derretendo, mirou a gente caminhando, a chuva condensada, a barriga grande do homem, o prédio onde morava, a boca ao celular, a gente matando tempo. E se viu. E ali todos os objetos ocuparam o mesmo espaço, que era o espaço de si, o espaço de tudo.

AGIROFOBIA

s.f. medo de ruas ou cruzamento de ruas

MARCELO GRAVA

MARCELA CAMPOS


Antônia Nascimento, 45, assistente social e coordenadora da Ocupação Hotel Columbia Palace: No fim dos anos 90, houve uma grande leva de ocupações, mas em pouco tempo as ações dos movimentos sociais voltaram a diminuir. Em 2010, diversos grupos se reuniram e passaram a discutir maneiras para chamar a atenção dos governantes sobre o déficit habitacional. Nazaret Brasil, 50, cenógrafa: Eu não participava de nenhum movimento social até 2010, mas as minhas irmãs sempre estiveram envolvidas com grupos ativistas. Num certo dia de outubro, elas me ligaram e disseram que coletivos estavam preparando uma grande ação no centro de São Paulo. Do dia para a noite, deixei Campo Grande (MS) e vim ajudá-las na manifestação.

VOZES DA O

Movimentos sociais mantém cerca de 100 o centro de São Paulo. A Ocupação Hotel Co TEXTO E FOTOS: SÉRGIO RODAS Mildo Ferreira, 33, professor de música: Vim para a ocupação em 2012, com o meu companheiro, mas hoje moro sozinho. Mobiliei todo o meu apartamento com coisas que achei na rua, e gosto de como ele ficou. Mas aqui é uma ocupação bem mais organizada do que a maioria. Antônia: A ocupação é organizada por militantes da Frente de Luta por Moradia, que têm consciência da luta e sabem como atender às necessidades de todos. Cerca de 300 pessoas moram aqui hoje, mas eu não moro mais. A situação é instável. Já recebemos 4 ordens de reintegração de posse, mas estamos conseguindo adiar nossa saída. A nossa esperança é que a Prefeitura compre o imóvel e o destine para fins sociais se o dono quiser vender, mas a gente sabe que isso é difícil. Porém, não podemos desistir. Nazaret: Nós promovemos debates para discutir problemas da cidade e mostrar nossos objetivos para a sociedade. É preciso acreditar na luta.


Marinalva Euclides da Silva, 49, cozinheira: Quando o terreno da ocupação onde eu morava, em Suzano (SP), caiu, fiquei sem ter para onde ir. Nessa época, soube dos planos de ocuparem prédios desabitados no centro, e resolvi me juntar ao grupo. Nazaret: Assim que ocupamos o Hotel Columbia Palace, a Polícia Militar fez um cerco em volta do prédio. Quem saísse seria detido. Assim, ficamos presos em um local abandonado, em condições inóspitas. Antônia: O objetivo era protestar, não queríamos que as pessoas permanecessem no hotel, afinal, aqui não tinha nem água, nem luz, nem esgoto. Porém, quem veio para cá não tinha outra opção. Era ficar aqui ou dormir na rua. Então, aprendemos o básico com técnicos e montamos nossa própria infraestrutura.

OCUPAÇÃO

ocupações, sendo aproximadamente 90 no olumbia Palace é moradia de 79 famílias.

Marinalva: Tudo aqui funciona em sistema de mutirão – o pessoal se junta e faz consertos, lavagens, planta hortas de batata e cenoura. A gente vai se virando. Nazaret: Eu estava insatisfeita em Campo Grande. Não conseguia arranjar trabalho na minha área. Depois que cheguei para ajudar na ocupação, percebi que poderia ficar aqui, ajudando na luta, e ainda trabalhar como cenógrafa. Então, em dezembro de 2010 trouxe a minha família para cá. No começo, minhas filhas ficaram em choque, mas logo se acostumaram. Hoje as duas estudam na USP. Jandira Brasil, 79, aposentada e mãe de Nazaret: Foi difícil. Foi muito, muito difícil. Não é fácil dividir sua casa com várias outras pessoas, especialmente a essa altura da vida. Mas eu me acostumei. Hoje sou a mais velha daqui.


PULA BURACOS Você já deve ter se perguntado se não era melhor seguir caminho pela rua ao invés de andar pela calçada. De árvores, postes, lixeiras e guaritas a buracos, desníveis e degraus, as calçadas de São Paulo parecem oferecer uma prova de obstáculos para desafiar ainda mais o dia a dia do paulistano. Curioso é pensar que, em muitos casos, somos nós mesmos os desafiantes. Com exceção daquelas em vias estruturais e rotas estratégicas denominadas pela Prefeitura, as calçadas são de responsabilidade dos proprietários dos imóveis ou de seus usuários. Isso significa que deveríamos mantê-las adequadas e estáveis, e, para isso, seguir algumas normas, como manter livre uma largura minima de 1,20 m para a circulação de pedestres e admitir inclinação transversal máxima de 3% em relação à rua. Métricas

à parte, o bom senso na escolha do piso que seja antiderrapante, por exemplo - e a priorização de um trajeto reto no lugar de uma rampa que facilite o acesso do carro à garagem já seriam meio caminho andado. Para quem escolhe a rua como rota, é a vez da Prefeitura desafiar os paulistanos com buracos, desníveis, ondulações, tampas de bueiros afundadas e sinalização precária. Para quem passa motorizado, o prejuízo é para o veículo e consequentemente para o bolso, com gastos na manutenção de pneus e amortecedores. Pode levar-se em conta a quantidade de carros circulando, as altas temperaturas e a grande quantidade de chuvas, mas a má qualidade do cimento que é mais barato - é peça chave para que o pavimento se deteriore e que a rua necessite de recapeamento constante.

Em 2013 (último dado atualizado no portal da Prefeitura de São Paulo), o governo diz ter investido R$ 36,6 milhões no recapeamento de cerca de 550 mil metros quadrados de vias, o que corresponde a mais de 1% da receita do município naquele ano e mais de 6% do montante arrecadado com o IPVA do estado paulista. No entanto, esse valor é referente apenas à primeira etapa do plano de 2013, que recapeou um total de 2.342.120,50 metros quadrados de vias na cidade. E isso sem falar nas operações “tapa buraco”, que a Prefeitura diz serem complementares aos serviços de recapeamento. Só em 2015, a média mensal foi de mais de 27 mil buracos tapados. Investimento, material e serviço não faltam. Mas a população segue pulando buracos.

FOTO: MARINA YUKAWA

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ANA PAULA MACHADO


Os artistas de rua têm muitas histórias. Não seria presunção considerar que cada um traz consigo um universo de experiências, recheado de angústias, alegrias e liberdades. Lucas é apenas um desses contadores de histórias. Trata-se de um moreno, alto e que usa dreads. Lucas conta que estudou em Minas Gerais, trabalhou por 6 anos numa empresa de caldeiraria, até que se “libertou disso” e foi viver como artesão de rua. “Quando perdi meu emprego, fui pra rua”, conta, sorrindo um misto de astúcia e modéstia. Lucas tem 51 anos e há quase 25 anos trabalha com artesanato. Produz sua própria arte. Diz que são nômades. “ Vo l t a mos ontem do Rio. Vida boa lá, ninguém trabalha”, diz, gargalhando. Lucas relata que a vida de artista de rua pode ser muito boa. “A gente vai pro meio do mato de vez em quando, ter um contato com a natureza”. Para dormir, procura os lugares mais baratos, mas caso não consiga encontrar, dorme na barraca. “Gosto de filé, mas como ovo de boa”.

é a que mais sofre preconceito. Mas isso é pobreza espiritual, né”. Lucas conta que podemos aprender muito com moradores de rua. “Às vezes vemos alguém todo sujo, mas essa pessoa pode ter um problema mental, ou teve uma grande decepção na vida. Mas se trocar uma ideia, aprende muito. É mais sábio que a gente”, afirma. Lucas demonstra que não é alienado, nem mesmo com relação à nossa legislação. “A polícia era um problema grande, cara. Mas agora está de boa, pois aprenderam a respeitar a gente. Há uma lei federal que protege a gente, desde 2011”. Trata-se do Decreto nº 14.589, de 27 de setembro de 2011, que reconhece os direitos constitucionais de livre-expressão artística em espaços públicos. O artesão conta que também foi parte de um movimento grande. “Um líder pra gente, o Rafael [Lage, fotógrafo e artesão que estuda a reconfiguração do movimento hippie no Brasil], filmou certa vez a polícia pegando as nossas coisas.

Quando questionado sobre por que escolheu o artesanato, Lucas responde que “quando você é criança, fica impressionado, quer fazer mil coisas”. “E meu pai era jardineiro, sempre andava com ferramentas. Aí comecei a fazer artesanato”.

“Aí o padre da Igreja São José, catedral de BH, viu e arrumou duas freiras advogadas que defenderam a gente. Com o filme, corremos atrás de vereadores, agora tá liberado no RJ, MG, ES... Mas antes tomavam todos os nossos bagulhos, perdi os documentos umas 16 vezes.”

Porém, a vida de um artista de rua pode endurecer, principalmente no que diz respeito como os outros os vêem. “A nossa tribo

“Mas é a vida, cara, temos que nos defender. E vamos continuar ocupando o espaço publico do mesmo jeito, hoje e sempre”.

NUNES

FERNANDO MAGARIAN LUÍS VIVIANI

WILLIAM

OS NÔMADES DAS METRÓPOLES


COMIDA FORA DA LEI

OPORTUNIDADE GOURMET

Todo dia, um pouco antes das 17h, paro minha Towner azul escura a poucos metros da saída do metrô. Com os meus cachorros-quentes, salgados e churros recheados espero o povão que se dirige para a fila (cada vez mais enorme) da lotação. É um bairro residencial, o que me possibilita estar quase sempre no mesmo lugar. Do outro lado da calçada também tem quem fica com seus carrinhos vendendo batata-frita, churrasquinho, tem espaço pra todo mundo.

Foi aproveitando essa nova cultura “gourmet” que me arrisquei a abrir um food truck. As pessoas querem um espaço para relaxar à noite, comer algo bom tomando uma cerveja. Infelizmente não é tão fácil conseguir uma licença da prefeitura pra vender na rua, por isso vim para um desses food parks. Aqui ainda somos livres pra vender bebidas alcoólicas, o que na rua é proibido.

Na teoria, eu não podia estar ali. Em 2013 o prefeito Haddad sancionou uma lei que “regulamenta” o comércio de comida na rua. Eu teria que ter um TPU (Termo de Permissão de Uso) para poder deixar minha van parada na rua. São quase 900 desses que prometeram pela cidade toda.

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Até agora não saíram tantos do papel, é muita burocracia. São 13 documentos só pra poder concorrer por um espacinho de rua da cidade. Ela não é pública? Com essa lei, eu não poderia ficar aqui onde estou mesmo com a papelada porque é perto do metrô. Também é proibido ficar perto de estação de trem, escola, restaurante, bar ou qualquer lugar que venda comida, além de pontos de ônibus e táxis, regiões exclusivamente residenciais, e ainda tem mais. Não sobra muito lugar mesmo. Vou embora sempre depois das 20h, mas não fico muito mais, porque o movimento começa a diminuir. Algumas das barraquinhas continuam até bem de noite pra pegar o pessoal que está voltando da faculdade. Se já tive problema com polícia ou fiscalização? Aqui eles quase nunca passam, é um bairro mais tranquilo. Mas tá cheio de casos, inclusive de barraquinhas famosas, que tiveram de sair da rua por não ter o TPU. No nosso caso, ser despejado é exatamente não poder ir pra rua.

ILUSTRAÇÕES: STELLA BONICI

Também participo de feiras gastronômicas e outros eventos que precisam do nosso serviço. As empresas que organizam vários desses eventos chegam a lucrar até R$ 2 milhões por ano. O investimento pra entrar no negócio dos food trucks normalmente varia entre R$ 150 mil e R$ 300 mil. Pra poder lucrar precisa ter um pouco de paciência. Mas a tendência é que o mercado cresça cada vez mais. Aqui no Brasil o conceito de comida de rua vem ficando cada vez mais ligado à comida da moda, o que nem sempre é barata. Mas queremos conseguir popularizar e levar o negócio para cada vez mais gente. Fazer isso no espaço público seria mais fácil, mas é possível fazer em espaços como este e feiras gastronômicas também. Entendo o lado da prefeitura em tentar regular os negócios de comida de rua, mas isso torna tudo muito burocrático. São muito mais pedidos do que vagas para os TPUs oferecidos pelas subprefeituras. A ideia do food truck, de ter um negócio “itinerante”, que possa andar pela cidade, não combina muito com essa proposta de um lugar fixo, como se fosse um prédio no meio da rua que paga IPTU.

MURILO CARNELOSSO


PROPÓSITOS

UM FAROL PARA NENHUM PORTO

ESQUE

Próxima ao encontro do rio Pinheiros e do Tietê, uma torre de 23 metros, conhecida como o “relógio do Jaguaré” esconde histórias e boatos em sua arquitetura.

CIDOS

Com uma silhueta igual a de um farol que encontramos no litoral, o verdadeiro propósito da construção de Henrique Dumont, sobrinho de Santos Dumont, foi, alegadamente, o de criar uma estrutura que sinalizasse às embarcações a localização de um porto fluvial que nunca existiu. Em algumas plantas antigas que tratam do loteamento do bairro onde se encontra o “relógio”, existe uma área reservada a um porto, mas as pistas concretas sobre a torre se esgotam por aí.

Durante a implantação do parque tudo foi retirado ou destruído para dar lugar ao projeto, mas um detalhe se salvou. Ao lado da pista de cooper, escondida pela sombra da copa de uma falsa seringueira, uma única lápide do cemitério desativado ainda marca o local onde o cachorro Pingüim foi enterrado. “Ao nosso fiel amigo Pinguim (5/3/1937 - 5/6/1946) eternas saudades dos seus donos Nina e Nice”.

Z DIA O JOÃ

Poucos sabem que o Parque do “Ibirapuera” do tupi-guarani “árvore podre”, já abrigou em seus 1,5 milhões de m² aldeias indígenas, favelas e até um cemitério para animais.

A avenida mais icônica da cidade, a Avenida Paulista, tem em seu subterrâneo 22 galerias de variados tamanhos. Somando, são 13 mil metros quadrados. As áreas seladas desde 1967, pelo “projeto Nova Paulista” (que nunca foi concluído), são hoje áreas oficialmente públicas. A única forma de conseguir acesso é através de bueiros que ainda tem ligação com o antigo sistema. Explorar esses locais talvez não seja uma boa ideia, uma vez que, segundo a “Associação Paulista Viva” há escassez de oxigênio nas galerias.

MAIS TORRES

AR CES

O SOLO NÃO MOVIDO

CATACUMBAS DA PAULISTA

JOÃO CESAR DIAZ

Ligando o Bom Retiro a Santana, se situa a Ponte das Bandeiras, antiga “Ponte Grande”, que abriga vestígios quase arqueológicos do tempo em que o rio Tietê não era simplesmente um prolongamento do sistema de saneamento. Duas torres precárias marcam o local, com 25 metros de altura e uma irônica bandeira da cidade de São Paulo tremulando em cada. Com o desígnio de serem plataformas para a observação e monitoramento das freqüentes provas de esportes aquáticos que tomavam lugar por aquele trecho de rio, hoje servem de moradia a duas famílias que não encontraram outro lugar para viver.


AS CRIANÇAS E a rua QUÉFREN DE MOURA

Cinco e meia da manhã. Levanta num pulo e, depois de um banho, começa a se aprontar. Amarra a tira da sandália, ainda sonolenta. Por qualquer razão isso lembra sua infância, quando amarrar o tênis era requisito para brincar na rua — garantia de que não tropeçaria ao correr, empinar pipa, jogar taco ou “pular carniça”. Só uma criança desavisada faria isso de cadarços frouxos ou desamarrados! Balança a cabeça e ri sozinha. Não está de saída para brincar, mas para trabalhar.

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Diante do espelho, contorna os lábios com um batom discreto e fita seu rosto adulto. O tempo passou! Enquanto termina de se arrumar, divide com o marido sua nostalgia: “Estava aqui pensando… como era bom brincar na rua, né?” Ele sorri. “Não tinha tanto carro como hoje.” Gargalham ao lembrar das brincadeiras que faziam, como o pique-esconde. No último segundo, sempre tinha alguém que “salvava o mundo” e fazia a mesma criança bater cara outra vez! Costumavam brincar por horas, até cansar, até a camiseta molhar de suor e a pele gelar com o vento! E isso não era problema algum. Que tempo bom! Ela borrifa um perfume doce. Da cozinha, apressa os dorminhocos: “Tá na hora, meninos!” Logo, dois pequenos zumbis descem as escadas se arrastando. Como conseguem caminhar, sentar e até comer de olhos fechados? “Tô com sono, mãe!” Depois do café, todos se despedem e ela voa até o carro. Já sentados no banco de trás, com o cinto afivelado, os pequenos parecem bem mais acordados. “Ei, espertinhos! Nada de celular a essa hora! Quero saber se andam estudando para as provas do fim do mês.” “A gente tá estudando, mãe!” Eles não desgrudam o olhar do joguinho. “Desliguem!” Mais resmungos e reclamações, até que eles se rendem: “Tá bom, mãe...” Ultimamente os filhos dela têm se divertido quase só com a TV, o computador, os smartphones e o video game. No prédio onde

moram há tudo o que as crianças poderiam querer: piscina, playground, quadra poliesportiva e até brinquedoteca. Só que, como a maioria, eles quase não descem para brincar. Os pais não têm muito tempo para levá-los, mesmo sabendo o importante que é fazer amigos, ser criança e se divertir. Mas hoje os tempos são outros. Chegam à porta da escola. Os meninos descem do carro e ela continua seu caminho (não sem antes ganhar beijos, abraços e até mais tarde, mamãe). O dia será longo. Seu celular vibra. Cinco da tarde! Ela nem viu o tempo passar! Solta os cabelos e suspira. Na volta, o tráfego é de chorar. Distraída, olha para o lado e percebe crianças, de pés descalços e rosto sujo, vendendo balas no farol. Ela vê a feição doída de meninas e meninos obrigados a crescer. Pensa na sua infância. A rua, antes tão convidativa, hoje machuca a infância. Uma melancolia invade seu coração. Acelera, mas a tempo de ver um dos garotos chutando sozinho uma garrafa “pet” amassada, driblando uma “zaga” invisível e fazendo um gol de placa entre as árvores da calçada. Luzes piscam na avenida barulhenta. Os carros se movem enquanto a noite vem. Estaciona o carro e entra em casa. Joga a bolsa de canto e vai para a cozinha. Como de costume, a essa hora ela sabatinaria os filhos se fizeram a lição de casa, como foi no karatê, se aprenderam algo novo no inglês, e a aula de guitarra? No entanto, ela faz diferente. Larga tudo e corre até a sala. Agarra os meninos pela barriga, arrancando-os da televisão, e os joga no sofá. Mudança de planos: hoje, depois do jantar, vão brincar de cabra-cega! “Não vale roubar!” O marido se junta ao trio. Entre cócegas, risadas e gritos, os meninos recordam: “Mas, mãe! Nós já tomamos banho! E se ficarmos suados para dormir?” Ela olha para os filhos. São crianças! Então responde com um sorriso matreiro: “Suados? O que tem de mais?”

MARCELO GRAVA


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