claro! Meio

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O meio do caminho sempre esteve ali. No presente, no centro, na passagem. Até que, um dia, no meio do caminho tinha uma pedra. E foi só então que o poeta se viu. Teria ele notado o meio se não houvesse pedra? Lançado entre o início e o final do ano, o suplemento claro! dá largada a mais uma edição. Dessa vez, com o intuito de direcionar o olhar do leitor àquilo que não é início e nem finda. É meio. O que sente o ser humano quando está na metade da vida? O filho do meio é sempre a ovelha negra da família? Seria possível criar um arquétipo do

IN CÔ MO DO

brasileiro médio? Quanto ele ganha? Por que temos tanto medo de ser mediano? Todo mundo não é assim? Sob a roupagem de presente ou passagem, convidamos agora o leitor a esquecer as inquietações futuras e pousar os olhos sobre as doze páginas que compõem esta nova edição — cuja maior preocupação é servir de pedra.

Texto: Mariangela Castro e Matheus Oliveira Arte: Daniel Medina Diagramação: Bruna Arimathea

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Expediente: Reitor: Vahan Agopyan, Diretor da ECA-USP: Eduardo Henrique Soares Monteiro, Chefe de Departamento: André Chaves de Melo Silva, Professora Responsável: Eun Yung Park. Editores de Conteúdo: Mariangela Castro e Matheus Oliveira. Editora de Arte: Larissa Santos. Ilustrador: Daniel Medina. Editora Online: Fernanda Teles. Diagramadores: André Romani, Bruna Arimathea, Larissa Vitória, Júlia Mayumi, Nathalia Giannetti e Jade Rezende. Repórteres: Anny Oliveira, Ane Cristina Melo, Beatriz Gomes, Camila Mazzotto, Giovanna Jarandilha, Jonas Santana, Júlia Vieira, Laura Barrio, Laura Raffs, Maria Paula Andrade e Rebecca Gompertz. Revisores: Beatriz Gatti e Matheus Souza. Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, prédio 2 - Cidade Universitária, São Paulo, SP, CEP: 0558-900. Telefone: (11) 3091-4211. O claro! é produzido pelos alunos do sexto semestre do curso de Jornalismo como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso - Suplemento. Tiragem: 6000 exemplares. Foto de Capa: Larissa Santos.


claro! setembro 2019 03

E PEDRO ALI NO MEIO Texto: Rebecca Gompertz Arte: Daniel Medina Diagramação: Bruna Arimathea

Quando Pedrinho nasceu foi uma festa: Lucas ganhou uma companhia. Seus pais, com mais bagagem, se sentiam mais confiantes. Todo o enxoval de Lucas estava guardadinho, só esperando a vinda de um segundo filho. Nada de correria, como da primeira vez. Crescendo, Pedrinho percebeu que o mais velho podia escolher suas camisetas e a cor da bicicleta nova, enquanto ele recebia o que não cabia mais no irmão. Sua mãe explicou que, como primogênito, Lucas às vezes teria algumas vantagens. Mas também não seria mais o bebê da família, como era Pedrinho. Foi aí que nasceu Aninha e os problemas se multiplicaram. Ela roubava a atenção, tinha seu próprio quarto, roupas e brinquedos, enquanto ele ficava largado no meio.

Só quando estava prestes a se tornar pai pela terceira vez, decidiu levar esse sentimento para a terapia. Relembrou a adolescência rebelde, sempre escutando o sermão: por que não era responsável como Lucas, ou focado nos estudos como Aninha? Depois dessa fase, deixou de tentar chamar a atenção dos pais e se provou, sim, muito responsável e estudioso. Pagou a faculdade fazendo bicos e foi o primeiro entre os três a morar sozinho. Será que teria essa independência se fosse criado de outro jeito? Entre as quatro paredes do consultório, enxergou pela primeira vez as dificuldades do irmão em lidar com as expectativas dos pais e como a irmã não consegue tomar grandes decisões sozinha. Percebeu também como seus próprios filhos tinham uma dinâmica diferente. A criação cuidadosa refletia na forma como interagiam entre si, sem mágoa. Entre perdas e ganhos, Pedro finalmente sentiu estar no centro da própria vida.

Colaboraram: Anamaria Jannuzzi, Carol Cruz, Juliana Moreira, Jullyane Silva, Juliana Macedo, Juliana Alonso, Thais Gomes, Marcelle Polido, Giovanna Soares, Dra. Verônica Cezar Ferreira (Associação Paulista de Terapia Familiar)


04 SETEMBRO 2019 claro!

entre

RENÚNCIA E RECOMEÇO Texto: Camila Mazzotto Arte: Daniel Medina Foto André Romani Diagramação: André Romani Em 2009, ela sentia-se feito peixe fora d’água. Havia desaprendido a se vestir, olhar-se no espelho ou conversar com essa gente que anda apressada pelas ruas. À época, aos 25 anos, abria mão do hábito marrom franciscano, símbolo de uma vida de cuidado aos pobres iniciada aos quase 18, quando então tornou-se Irmã Betânia do Cordeiro de Deus, consagrada da Toca de Assis. Depois de oito anos, voltava a ser Denise. Entrar e sair da fraternidade católica brasileira foram decisões conscientes – até desejosas: “a vida religiosa era o meu paraíso na terra!” – e numa coisa era como se ainda fosse a mesma: tinha de lidar com a dúvida, o medo de desistir no meio do caminho. Denise passou pelo que chama de “um lento processo de discernimento”, uma espécie de “noite escura” que marcou sua saída e os primeiros meses longe da comunidade. E lembra não ter sido fácil: “Voltar

para casa seria doloroso e encarar a rotina da vida comum me assustava muito”. Ela conta ter se refugiado na oração; feito terapia, tomado antidepressivos. Diante de recomeço que não se faz na pressa, ela, depois de quase uma década, olha hoje no espelho e se vê – quase que surpresa: estudante de Direito, cantora católica, esposa, mãe. “Retomar o caminho me custou, mais uma vez, renunciar para recomeçar”. Entre a desistência e o recomeço, Denise não deixou de escutar, porém, que ato reservado aos “fortes” é o de insistir. Desistir, por outro lado, seria a marca dos “fracos”. A popularidade dessa ideia, para a psicóloga Luciana Szymanski, é fruto de um contexto social onde se espera do outro uma certa “performance existencial”, que não admite desistências porque mede a “rentabilidade” das pessoas. Mas pessoas, a também professora da PUC-SP reforça, não cabem dentro dos ditados generalizantes, construídos tão longe dos bastidores de cada um. “A gente é isso: a gente é possibilidades”, diz.

Colaboraram: Bruna Yumi, costureira; e Douglas Livramento, advogado


claro!claro! SETEMBRO 2019 05 5

NÃO SOU TODO MUNDO Texto: Laura Barrio Arte: Daniel Medina Foto: André Romani Diagramação: André Romani O termo “mediano” trata do que é comum, normal, que está entre extremos. Dá conta de definir a maior parte das pessoas. Ainda assim, a palavra ganhou uma conotação tal que costuma ser recebida como uma ofensa. Maria Alice Lustosa, psicóloga pesquisadora na área da antropologia médica, conta que o medo de estar na média remonta ao início da existência humana: “Em épocas de escassez de alimento só sobreviviam os mais fortes e espertos. O psiquismo humano, então, passou a considerar isso uma meta a ser alcançada”. Ainda que não exclusivamente, a sociedade ocidental contemporânea exalta a conquista de forma especial, aponta o psiquiatra Amilton dos Santos Junior, que pesquisa a identidade e os valores em jovens. “Desde cedo somos levados a valorizar o que sai da média. Os pais ostentam: ‘minha filha é a melhor dançarina!’”, exemplifica. No decorrer da vida, redes sociais e meios de comunicação seguem introjetando esses valores. “A publicidade atua vendendo a ideia de que você precisa ser e ter mais”, diz Junior. O médico lembra que culturas como a escandinava e a canadense valorizam o bem-estar comum. Já em países como Estados Unidos e Brasil, a lógica “vencedores x perdedores” prevalece. Ele relaciona essas diferenças ao nível de igualdade social em cada nação. Junior conta que para pessoas em culturas competitivas o mais importante é se destacar dos demais: “Tem quem prefere sair do Canadá para viver com uma qualidade de vida inferior nos EUA, desde que esteja melhor que a maioria. No Canadá, muitos estão no mesmo patamar”. Frente à mediocridade, a reação de cada um varia. Maria Alice explica: “Se minha cultura me treina para ser o primeiro e eu me exijo tal façanha, chegar em segundo será frustrante. Se me treina a ser colaborativo, a satisfação de chegar junto aTexto: muitos trará contentamento”. Laura Barrio

Arte: Daniel Medina Foto: André Romani

Colaborou: Denise Diniz, psicóloga da Unifesp


Texto: Bruna Caetano Arte: Júlia Mayumi Foto: Bruna Caetano Diagramação: Júlia Mayumi

DE DOZE EM 12

06 SETEMBRO 2019 claro!


As duas metades do dia se contrastam quando observamos como a cidade de São Paulo se comporta. No mesmo espaço, o alívio sutil do horário de almoço dá lugar à descontração sem pressa da noite. O arroz e feijão são substituídos por petiscos e cerveja gelada. Músculos tensionados dão lugar a posturas relaxadas e gravatas sem nó. Quando termina a noite, o sinal verde na faixa de pedestres da avenida mais movimentada da cidade já não é sinônimo de pressa, e nem de tentativas de ultrapassar os desavisados que caminham devagar. A quantidade de pessoas nas ruas é maior que o número de carros. Essas mudanças ditam o que é a São Paulo das zero e das doze horas. Sempre em transformação, a mudança gradual vai do silêncio ao barulho, do quente ao frio, da luz do sol à da lua, do vazio ao cheio e ao vazio e ao cheio de novo. É gradual, mas não linear. A cada metade do dia, a cidade se reconfigura. Lado a lado, as duas constroem cenários distintos no mesmo lugar.


08 setembro 2019 claro!

A M U E S S CLA O Ã T NÃO IA MÉD

, fi l hos o r t a u i de q ma g ra nde a p , s 4 a no a l ho, em u sta sên ior 4 , s i a tra b Mor a na l i tica ndo o o é n n e u ã d r h d ia, B s da ma n o Pau lo, on a 1h30 pra em ia. a Todo r ho acad de Sã noite pass 7 a e t s m m s à u e ado e o em ona o Dura nte a ã u chega z ç d a a a l r d u sc sa s g s. Fez empre de ser v iço de fazer mu úbl icas, pó d iolog ia. p a au ico. da áre rcia is, a lém relações o em fono a e no Méx o a d em in ”. N a i lutas m for mado em mestra na A rgent d é e é e m t morou por “class nge a class Br u no públ ica e á j e a e s n ha e lo ndrad gestão de na Espa entendemo o é nem d a de 10% a A a l u a ã a id rc q ue aria P iel Medina rasi l n penas ce sti lo de v e fac u ld o M B : o é o t n n x Te te: Da sa Vitória Br u no sse ter mo pu lação. A lém do e a renda q u r A A po to, e : Laris r ma e um o d o or ia. f ã g e ç e a , t a enta n d iár ia da o , a n am na c e 90,00) nto e Br u Diagr i nter m enca i xa m l ha nte ao d os (R$ 4.9 mpor ta me o e e im O co sti nçã . i a 15% s r ístico, sem lár ios m í n t d n a o c m o te bém o sa e de u de consu m c m d n a ca rac i a t c d i o s s s o assa su m a nece u m pad rã e passa r a a u ltrap la r de con r t s . mo u s de a is r istas u t pa r tic i ferenciado i xas atravé tas ma rci s pelo lu d a sa r socia l ses ma is b o pratica r ex plorados ado: ape a m rc as o erc m ce e das cl l izado – co da não tã lo m ê t e e p d d in ia e, da espec m loca is a uisita q ua ntidad eu pad rão s, q e r e s e s ses ba i xa . a rcela ssiva em í fér ias p a p a s o e to É u m uito ex pr spon ível n ue as cla omen m i m q d do so o a to m pe renda estável do de nã e t a a i d de ém om % de 35 o é ma is a a econ ssi m ta m b or madores e m ia a or ia dos f decisões d lsion d u é consu p m m i e i tão a ma el nas ca d isputa p o a ã o q u sse não p t s u se e e tól i A cla é aq ui q u tico – v ide ma ior ia ca e ateus. A A al ( pol í cos for te é c u ltur do pa ís) e i mos a nos. e ag nósti m d m bé o lt oje, opi n iã nça nos ú g n i ficativo iv idua is ta pa r te. “H e d si az na nd gover mero nq uistas i ue Br u no f n ha roti na ”. ú n m q o er m i ida si mples z com u ção das c s 15% em a f r i za desse é conseg u e ter u ma v o da va lor i i r á s a fessor o gi n d o i a n r i p v m n e i e e go no eta d ida r dos m ociólo s m , a t a a l h cu o Sa min lazer, Ricard e mp é r s d o n Unica ,A r a e d trei n p r s o In ss o e e prof sora d s o e g f o o l r ó ep oci omista ante, s c n l o a c v e a , do C hasz Macha iana In l o i u J v á : m ,eS orara do Sul e d Colab n a Gr o Rio PUC d


Texto: Beatriz Gomes Arte: Daniel Medina Diagramação: Larissa Vitória

População residente por cor ou raça (%)

claro! setembro 2019 09

Rendimento per capita ano a ano

QUEM É A MÉDIA? Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui 208 milhões de habitantes. Entre os critérios de análise está a classe econômica. Uma das principais classes, com citações recorrentes, é a classe média. No entanto, será que ela reflete o brasileiro médio? A resposta é não.

Pessoas com 25 anos de idade ou mais, segundo o nível de instrução escolar (%)

Colaborou: Marcelo Neri, diretor do FGV Social Fonte dos dados: IBGE

* Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua

Saneamento Básico Domícilios com rede de esgoto ou fossa ligada à rede


10 setembro 2019 claro!

DE REPENTE 40 A meia idade é um processo subjetivo e difícil de se explicar. Para alguns, ela é causa de ansiedade e se instala como se tivesse hora marcada para chegar. ˜Eu falo para uma amiga minha que quando eu fiz 40 anos, acordei no dia seguinte e já não enxergava como antes”, brinca a psicanalista Elizabeth Mori. Além da mudança de dígito, eventos como divórcio, redirecionamento da carreira, filhos que saem do lar e falecimento dos pais tendem a acontecer nessa época da vida. Esses episódios podem causar a crise da meia idade, que quando ocorre é procedida por grandes mudanças, explica a psicóloga Suzane Guedes, especialista em Desenvolvimento Humano. Para as mulheres, há uma forte mudança biológica causada pela menopausa. Mas elas também sofrem por pressões sociais. A gerente Cláudia Alves por vezes esquece que chegou aos 45, mas o seu corpo a lembra constantemente que os anos estão passando. Apesar disso, Claudia se chateia quando a chamam de velha: “não me sinto assim”, desabafa. Assumir e aceitar a nova condição física pode ser um problema. Para os homens, é diferente. Al-

guns, como Célio de Oliveira, de 45 anos, nem notaram a chegada dos 40, diferentemente do que relata Elizabeth Mori. No entanto, apesar da questão biológica não afetar tanto o sexo masculino, o aspecto social é um fator importante para o surgimento da crise. Isso ocorre porque por muito tempo os homens estiveram ligados ao poder. Porém, conforme vão envelhecendo, muitas empresas acabam contratando pessoas mais jovens em seu lugar. A perda da posição que anteriormente ocupavam coloca em xeque a visão de poder masculina. Esse é um dos episódios que pode resultar em grandes transformações na vida de uma pessoa. Por isso, para a psicologia, a meia idade é vista como um momento positivo. Em meio a tantas mudanças, é um momento no qual a pessoa é convocada a repensar a vida. Para a manicure Sandra Regina, foi exatamente isso. Aos 40 anos, decidiu que ainda era tempo de recomeçar e pediu divórcio de um casamento conturbado. “Hoje eu vivo intensamente o presente”, relata.

Texto: Julia Vieira Arte: Daniel Medina Foto: Daniel Medina e Nathalia Giannetti Diagramação: Nathalia Giannetti


claro! setembro 2019 11 Texto: Laura Raffs Arte: Daniel Medina Foto: Daniel Medina Diagramação: Nathalia Giannetti

PILOTO AUTOMÁTICO

Entregar-se ao presente é uma tarefa difícil. Na Escola Soto Zen do Budismo, a valorização de todas as ações do cotidiano é fundamento essencial. O simples ato de escutar, sem julgamentos ou intenções, é viver o presente. “É uma prática constante, um exercício de 24 horas, para estar presente no momento em sua totalidade”, esclarece a Monja Zentchu, da Comunidade Zen Budista Zendo Brasil. Mas a preocupação com o passado e futuro pode ser tão recorrente que afeta o cotidiano e a saúde mental das pessoas, podendo causar transtornos de ansiedade e até levar à depressão, explica Flavia Pitella, psicóloga e fundadora do projeto social “Terapia Pra Tds”. Com 34 anos, Sarita Ribeiro está focada no presente e com a certeza de suas ações, mas, para isso, policia constantemente seus pensamentos. Flavia diz ser necessário deixar os pensamentos fluírem sem impedimentos pela mente: “só permitindo que surjam e aprendendo

a lidar com o seu ‘vai e vem’ é o que nos propicia nos concentrar no aqui e agora”. A psicóloga reitera que não existe um manual a ser seguido para viver o presente. É um trabalho diário. A Monja Zentchu também fala sobre o esforço indispensável e a necessidade de assumir cada papel no momento correto: “Quando você está na rua é um pedestre, no seu trabalho é um funcionário. É preciso se concentrar em viver a ação correta no momento correto”. Segundo Flavia, viver o agora é estar em constante contato com a realidade de nossa existência. “É mais que necessário haver uma reconstrução, o reencontro com o EU de cada um”, afirma. É também sobre isso que a meditação zen budista trata: o autoconhecimento; estar em contato com quem somos. Perceber a transitoriedade da vida e, como aconselha Flavia Pitella, “se deixar ser livre o suficiente para viver o momento presente na sua integralidade, diversidade e profundidade até sua finitude”.


12 SETEMBRO 2019 claro!

Texto: Giovanna Jarandilha Arte: Daniel Medina Diagramação: Jade Rezende

T R O P E Ç O

O poeta segue às voltas com suas inquietações. Por trás dos grossos óculos, Drummond ausenta-se em espessos devaneios. Não vê, e tropeça. No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho. O encontro — “insignificante em si”, como o autor colocaria depois — escusa sua intenção na simplicidade dos versos, que abriga uma intrincada sátira do vivido. Procurar pelo significado da pedra, porém, mais suscita dúvidas que oferece soluções. “Inevitável” é como procura uma universitária conceituá-la. Descontinuação natural, a pedra é obstáculo com o qual deve-se “aprender a lidar”. O mesmo ocorre a um vendedor de livros, que divaga em carregado sotaque português sobre a necessidade de sobrepô-la para “seguir caminhando”. Sentado na calçada, por outro lado, um entregador ri: “não tenho nenhuma pedra no caminho não”.

Assimétrica também foi a crítica de 1928, ano em que o poema estampou a revista Antropofagia. Um dito “escândalo” sucedeu a publicação, que se autoafirmava modernista em um meio avesso à prosaica poética do acaso. A nova estética “promovia a linguagem coloquial ao status de registro literário”, explica José Carlos de Azeredo, professor da UERJ, em desacordo com as

soluções rebuscadas de estilo que o movimento anterior, parnasiano, requisitava. A pedra seria retomada em outros poemas, como Confidência do Itabirano, no qual se diz “triste, orgulhoso: de ferro”. Drummond se vê contaminado pela natureza de sua cidade, Itabira — de maneira que -ita é tupi para “pedra”, aponta Claudete Daflon, professora de Literatura Brasileira na UFF. “Ele se vê também dotado da consistência do minério”, o que faz

deste “o obstáculo a ser vencido, mas que não se vence. É aquilo que o constitui, e por isso é insuperável”. Corpo estranho e essencial, o tropeço do poeta é um encontro consigo mesmo. Impossibilitado de evitar o meio, ele anda manco.


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