Quarentena Parte IV

Page 1

Cadernos Cadernos Cadernos

Quarentena

organizador claudio ferlauto Quarentena Parte IV DIAS DE MUDANÇAS: LEITURAS & MEMÓRIAS

CACHORRO CACHORRO LOUCO LOUCO


Las meninas, Diego Velรกzquez, 1656


Primeiras palavras

NADA EXISTE QUE SE POSSA dar o nome de Arte. Existem somente artistas. Outrora, eram homens que apanhavam um punhado de terra colorida e com ela modelavam toscamente as formas de um bisão na parede de uma caverna; hoje, alguns compram suas tintas e desenham cartazes para tapumes; eles faziam, e fazem muitas outras coisas. Não prejudica ninguém dar o nome de arte a todas essas atividades, desde que se conserve em mente que tal palavra pode significar coisas muito diversas, em tempos e lugares diferentes, e que a Arte com A maiúsculo não existe. Na verdade, Arte com A maiúsculo passou a ser algo como um bicho-papão, como um fetiche. Podemos esmagar um artista dizendo-lhe que o que ele acaba de fazer pode ser excelente a seu modo, só que não é “Arte”. Podemos desconcertar qualquer pessoa que esteja contemplando com deleite uma tela, declarando que aquilo que ela tanto aprecia não é Arte mas uma coisa muito diferente. ¶ NA REALIDADE, não penso que existam quaisquer razões erradas para se gostar de uma estátua ou de uma tela. Alguém pode gostar de certa paisagem porque esta lhe recorda a terra natal ou de um retrato porque lhe lembra um amigo. Nada há de errado nisso.Todos nós, quando vemos um quadro somos fatalmentelevados a recordar mil e uma coisas que influenciam nosso agrado ou desagrado. Na medida em que essas lembranças nos ajudam a fruir do que vemos, não temos porque nos preocupar. Só quando alguma recordação irrelevante nos torna preconceituosos, quando instintivamente voltamos as costas a um quadro magnífico de uma cena alpina porque não gostamos de praticar o alpinismo, é que devemos sondar o nosso íntimo para desvendar as razões para a aversão que estragam um prazer que, de outro modo, poderíamos ter tido. Existem razões erradas para não se gostar de uma obra de arte. Sobre artes e artistas, E.H.Gombrich em A história da arte.1950.


«A arte denota um processo de fazer ou criar. Isso tanto se aplica às belas-artes quanto às artes tecnológicas. A arte envolve moldar a argila, entalhar o mármore, fundir o bronze, aplicar pigmentos, construir edifícios, cantar canções, tocar instrumentos, desempenhar papéis no palco, fazer movimentos rítmicos da dança». Ter uma experiência, John Dewey em Arte como experiência, 1934.

Gamboinha, SC


«A palavra ‘estético’ refere-se […] à experiência como apreciação, percepção deleite. Mais denota o ponto de vista do consumidor do que do produtor. É o gusto, o gosto; e, tal como na culinária, a clara ação habilidosa fica do lado do cozinheiro que prepara os alimentos, enquanto o gosto fica do lado do consumidor». Ter uma experiência, John Dewey em Arte como experiência, 1934.

Corcovado de Ubatuba, SP


«SAI, IO, IN FONDO, ti voglio bene: la tua ingenuità mi commuove, le tue scoperte macchinazioni vitale mi divertono; e poi mi sembra di aver capito che tu, come capita ad alcune siciliani della specie migliore, sei riucito a compiere una sintesi di sensi e di ragione. Meriti dunque che non ti lasci a bocca asciutta, sensa averti spiegato la ragione di alcune mie stranezze, di alcune frasi che ho detto davanti a te e che certo ti saranno sembrate degne di un matto.» Protestai fiaccamente. «Non hocapito molto delle cose detto da Lei; ma ho sempre attribuito l’incomprensionealla inadeguatezza della mia mente, mai a un’aberraz one della sua.» «Lascia stare, Corbera, tanto fa lo stesso. Tutti noi vecchi sembriamo pazzi a voi giovani e invece è spesso il contrario. Per spiegarmi, però, dovrò raccontarti quando ero ‘quel signorino lì’,» e m’indicava la sua fotografia. “Bisogna risalire al 1887, tempo che ti sembrarà preistorico ma che per me non è.» La sirena, Tomasi di Lampedusa, 1957 em I racconti,


PET Why look at animals? John Berger, 2009.

L’espill negre Cerques indolent l’expressió del buit: vesses una gota de tinta xinesa sobre un full de paper blanc; la gota esdevé una illa petita, un espill negre en el qual pots veure la teua pròpia imatge abans que la visió s’allunyi cap a les fondàries. La inspiració i el cadàver Ricard Pinyol, 2011.

EM TEMPOS PASSADOS, em todas as classes sociais, não havia família que não mantivesse algum animal em casa. Na verdade, os animais de estimação tinham funções precisas: cães de guarda, cães de caça, gatos para matar ratos e assim por diante. O hábito de manter algum animal, independentemente de sua utilidade prática, de manter, por causa de seu ser, um ‘pet/animal de estimação’ (no século XVI a palavra era geralmente relacionada ao cordeiro criado com apego pelo homem), é uma inovação moderna e, dadas as dimensões sociais alcançadas pelo fenômeno, único. Faz parte dessa tendência universal e também individual de se recolher no seio da pequena unidade familiar, decorada e mobiliada com lembranças do mundo exterior, que é um traço absolutamente distintivo das sociedades de consumo. ¶ A UNIDADE habitacional do nucleo familiar carece de espaço, terra, outros animais, estações do ano, temperaturas naturais e assim por diante. O animal doméstico é esterilizado ou sexualmente isolado, extremamente limitado em exercício físico, quase completamente privado de contato com outros animais e alimentado com comida artificial. Este é o processo material sobre o qual se baseia a máxima de que os animais domésticos acabam se parecendo com seus donos: eles são criaturas nascidas do estilo de vida de seu dono.


«Fica lá em cima do morro, virando a esquerda, depois do bar», responde o taxista sem muita animação na tarde calorenta de agosto. No bar, que se chama Aguaciara, tem uma placa de sinalização que não pode ser levada a sério pois aponta destinos distantes e desconexos como Ásia e Oceania e para o céu indicando o Sol e a Lua. É uma boa caminhada. E a vista exuberante. Chegando lá compreende que valeu a pena andar aqueles poucos metros na estrada de cascalhos e pó vulcânico. Faz tempos que busca vínculos dos antepassados. Muito tempo atrás o avô do seu bisavô fora ferreiro na Sicilia ou em alguma outra como Mallorca ou Menorca, onde eram conhecidos como Ferragut, um dos ferreiros de algum povoado quente e árido mas não distante do mar. Não há ninguém à vista e ele não ousa gritar e quebrar o silencio da montanha.

Na Sicilia O ferreiro e o pó, Claudio Ferlauto, 2017.

O lugar é uma oficina que parece dos tempos da Idade Média, pensa, muito diferente de sua oficina eletrônica na cidade grande. O chão é de terra batida, bem compactado, cinza escuro, e encobre um piso de rochas vulcânicas. No centro, junto a uma parede de pedras está o fogaréu, de labaredas, chispas e fagulhas, cercado por duas bigornas que apontam para o visitante. Uma delas, na parte sombreada da oficina, na perspectiva de quem chega pela porta da frente, parece um leitão de corpo em forma de caixa de sapato e pés que parecem inspirados em grossas folhas de um limoeiro siciliano, claro. Espera um pouco na esperança que apareça alguém, mas só passa um garoto e o cachorro que lhe segue. Ao ser indagado diz não saber do ferreiro. «Desceu para o povoado», grita o garoto já ladeira abaixo. Caminha um pouco mais, até um ponto onde é possível ver o vale e as igrejas do povoado. Senta em uma pedra, faz uma ‘foto’ com o celular e decide voltar outro dia.


Cadernos Cadernos Cadernos

Quarentena

organizador claudio ferlauto Quarentena Parte IV DIAS DE MUDANÇAS: LEITURAS & MEMÓRIAS

CACHORRO LOUCO


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.