Inventário Digital Culto aos Caboclos na Bahia - Registro e Salvaguarda

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INVENTÁRIO DIGITAL CULTO AOS CABOCLOS NA BAHIA REGISTRO E SALVAGUARDA


Instituto Tribos Jovens Amelia Morelli Rodrigues Diretora Executiva Maria Conceição Souza dos Santos Costa Presidente do Conselho Deliberativo Centro de Caboclo Sultão das Matas Doné Maria Conceição Souza dos Santos Costa Terreiro Ilê Omorodé Axé Orixá N’lá Babalorixá Augusto César da Silva Lacerda Terreiro Mokambo Onzó Nguzo Za Nkisi Dandalunda Ye Tempo Taata Anselmo José da Gama Santos Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra Mãe Juvani Nery Viana Jovelino

INVENTÁRIO DIGITAL: CULTO AOS CABOCLOS NA BAHIA REGISTRO E SALVAGUARDA

Salvador/BA 2015


Instituto Tribos Jovens Amelia Morelli Rodrigues Diretora Executiva Maria Conceição Souza dos Santos Costa Presidente do Conselho Deliberativo Centro de Caboclo Sultão das Matas Doné Maria Conceição Souza dos Santos Costa Terreiro Ilê Omorodé Axé Orixá N’lá Babalorixá Augusto César da Silva Lacerda Terreiro Mokambo Onzó Nguzo Za Nkisi Dandalunda Ye Tempo Taata Anselmo José da Gama Santos Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra Mãe Juvani Nery Viana Jovelino

INVENTÁRIO DIGITAL: CULTO AOS CABOCLOS NA BAHIA REGISTRO E SALVAGUARDA

Culto aos Caboclos. Inventário Digital: Culto aos Caboclos na Bahia - Registro e Salvaguarda: Centro de Caboclo Sultão das Matas/ Terreiro Ilê Omorodé Axé Orixá N’la/ Terreiro Mokambo Onzó Nguzo Za Nkisi Dandalunda Ye Tempo/ Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra/ Instituto Tribos Jovens (ITJ) 2015.

Salvador/BA 2015


FICHA TÉCNICA Realização da Pesquisa: Centro de Caboclo Sultão das Matas Instituto Tribos Jovens - Entidade Executora do Projeto Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra Terreiro Ilê Omorodé Axé Orixá N’lá Terreiro Mokambo Onzó Nguzo Za Nkisi Dandalunda Ye Tempo Equipe de Sustentação: Anselmo José da Gama Santos - Mestre em Educação e Mestre Detentor do Conhecimento Augusto César da Silva Lacerda - Artista Plástico e Mestre Detentor do Conhecimento Iane Rodrigues Petrovich Gouveia - Mestra em Desenvolvimento e Gestão Social, Pesquisadora e Responsável Técnica pelo Projeto Josenete Cardeal Santos – Graduanda em Serviço Social e Coordenadora de Projeto Juvani Nery Viana Jovelino - Educadora e Mestra Detentora do Conhecimento Ludmila Bastos Santos – Publicitária Maria Conceição Souza dos Santos Costa - Educadora e Mestra Detentora do Conhecimento Vanda Machado - Doutora em Educação e Coordenadora da Pesquisa. Sistematização e Organização de texto: Antônio Cosme Lima da Silva - Mestre em História Regional e Local e Pesquisador; Iane Rodrigues Petrovich Gouveia; Josenete Cardeal Santos; Ludmila Bastos Santos – Publicitária; Vanda Machado. Produção Textual: Vanda Machado Participações: Antônio Cosme Lima da Silva e Iane Rodrigues Petrovich Gouveia


Autoria Coletiva: Todas as pessoas que participaram desta pesquisa são consideradas sujeitos participantes e co-autores. Fotografia/Filmagem/Edição de Vídeos: Fausto Junior Montagem/Diagramação: Ludmila Bastos Revisão Final: Anselmo José da Gama Santos Antônio Cosme Lima da Silva Augusto César da Silva Lacerda Iane Rodrigues Petrovich Gouveia Iuri Clauton Paixão dos Santos Josenete Cardeal Santos Ludmila Bastos Santos Juvani Nery Viana Jovelino Maria Conceição Souza dos Santos Costa Rizomar Bispo Rocha Vanda Machado Yanna Oliveira Marques Conceição Culto aos Caboclos. Inventário Digital: Culto aos Caboclos na Bahia - Registro e Salvaguarda: Centro de Caboclo Sultão das Matas/Terreiro Ilê Omorodé Axé Orixá N’la/ Terreiro Mokambo Onzó Nguzo Za Nkisi Dandalunda Ye Tempo/ Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra/ Instituto Tribos Jovens (ITJ) 2015. 144 pp. 1. Salvaguarda 2. Culto 3. Registro 4. Candomblé de Caboclo


AGRADECIMENTOS Agradecemos aos regentes das casas que nos amparam nessa caminhada com generosidade, orientação, força e proteção, Caboclo Andaraí, Caboclo Não Tem Pena, Caboclo Pena Dourada e Caboclo Sultão das Matas. Agradecemos ainda a todos os caboclos que se fizeram presentes neste trabalho. Nossa gratidão ao Professor Ubiratan Castro que contribuiu para o desenho das primeiras ideias deste projeto. Agradecemos também a todas as pessoas que participaram deste imensurável trabalho de pesquisa e pelo resultado extraordinário deste documentário histórico sobre o culto aos caboclos.


“Ao nos aproximar de outro povo, de outra cultura e outra religião, nosso primeiro dever é tirar os sapatos pois, o lugar do qual estamos nos aproximando é sagrado. Caso contrário podemos nos descobrir pisando no sonho de outras pessoas. Mais sério ainda: Podemos esquecer que Deus lá estava antes que chegássemos.”

Texto extraído do Torá


SOBRE O INSTITUTO TRIBOS JOVENS Durante seus 20 anos de existência, o Instituto Tribos Jovens – ITJ firmou importantes alianças e parcerias, garantindo o apoio de diversos setores da sociedade para o cumprimento de sua missão de “promover a convivência intercultural pacífica, democrática e cidadã entre comunidades e/ou grupos sociais para o desenvolvimento humano sustentável”. O ITJ é uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, instituída formalmente em 2001, que tem como valores o respeito à diversidade; a transparência como conduta; a democracia como prática; a solidariedade na adesão às causas de transformação social; a fidelidade aos compromissos assumidos; a confiança no que faz; a igualdade como extensão de todos os direitos e deveres e a paz como convivência pacífica entre todas as “tribos”. O inventário Culto aos Caboclos na Bahia, Registro e Salvaguarda é um marco da atuação do ITJ nas linhas de ações afirmativas da identidade e valorização da diversidade cultural; pesquisa e preservação de patrimônio imaterial, das tradições culturais; práticas museais e educação étnico-racial.


SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO .............................................................................11 1.1 De Nóbrega a contemporaneidade............................................14 2. NOSSOS MESTRES VIVENCIANDO O CULTO AO CABOCLO.......17 3. TERREIRO: LUGAR ONDE TUDO É SAGRADO.............................19 3.1 Centro de Caboclo Sultão das Matas.........................................21 3.1.1 Caboclos do Centro de Caboclo Sultão das Matas...................22 3.1.2 Uma festa para todas as pessoas.............................................25 3.1.3 As folhas e a cura na celebração do Caboclo Sete Serra.........26 3.1.4 Quem é o Caboclo Tupinambá?................................................30 3.1.5 A historiografia do Centro de Caboclo Sultão das Matas, por Antônio Cosme Lima da Silva ......................................................32 3.1.6 Cantigas de caboclo.................................................................37 3.2 Terreiro Ilê Omorodé Axé Orixá N’lá, por Iane Rodrigues Petrovich Gouveia............................................................................40 3.2.1 O Caboclo Andaraí – entre as pedras preciosas, esmeralda e a conexão com a Índia....................................................................46 3.2.2 Cantigas de caboclo.................................................................49 3.3 Terreiro Mokambo Onzó Nguzo Za Nkisi Dandalunda Ye Tempo................................................................................................53 3.3.1 A África é o começo de tudo....................................................57 3.3.2 Cantigas de caboclo.................................................................61 3.4 Terreiro 21 Aldeia Mar e Terra...................................................64 3.4.1 Cura no Kaonge........................................................................67 3.4.2 Cantigas de caboclo.................................................................72 4. METODOLOGIA............................................................................76 4.1 Marco teórico metodológico.......................................................79 4.2 Processo de construção coletiva – trajetória percorrida.............83 4.2.1 Encontro da equipe de sustentação...........................................83


4.2.2 Encontro nos terreiros................................................................88 4.2.3 As oficinas nos terreiros.............................................................88 4.2.4 Rodas de conversas..................................................................90 5. REGISTRO PARA SALVAGUARDA DO CULTO AOS CABOCLOS NA BAHIA........................................................................................91 5.1 Cantigas, entoadas e percussão.................................................92 5.2 Casa de caboclo: lugar de cuidado e acolhimento.....................94 5.3 Comidas, bebidas e rituais.........................................................97 5.4 O candomblé de caboclo e seus símbolos.................................99 6. A CURA......................................................................................101 6.1 As folhas..................................................................................102 6.2 A água......................................................................................104 6.3 O fumo, o fogo e a fumaça......................................................105 6.4 A esteira...................................................................................106 6.5 A cabana..................................................................................108 6.6 Jurema: segredo sagrado que reúne, cura e traz alegria no ritual do caboclo.............................................................................110 6.7 Pedras e lagedos .....................................................................113 7. REZAS, LOUVAÇÕES E BÊNÇÃOS..............................................115 8. CAB0CLO FALOU ESTÁ FALADO................................................121 9. O CABOCLO DITA AS ORDENS NO TERREIRO..........................123 10. A PRESENÇA DAS CRIANÇAS..................................................125 11. CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................130 12. REFERÊNCIAS...........................................................................138 13. ANEXOS...................................................................................141


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1 INTRODUÇÃO O registro do culto ao caboclo é o foco. Na verdade, não sairá deste papel um produto acabado. A diversidade no culto produz diferenças bem marcadas e encontros criativos. Os detalhes são sutis e funcionam como escamas de um mesmo peixe, entretanto os caboclos se reconhecem na profundeza de suas identidades. Eles se reconhecem se comunicam e se ajudam mutuamente. “Tem coisa que é Caboclo Sultão das Matas que resolve, outras que é Caboclo Gentileiro, Caboclo Marujo e assim por diante. Um pode ajudar o outro. Assim como na vida da gente. É assim que tem de ser na vida da gente” diz Doné Conceição. Percebe-se, desse modo, a norma essencial dos terreiros na prática da ajuda e solidariedade. Ao longo deste registro, estamos falando de nossa memória indígena e de aspectos da história da formação do povo brasileiro, memória do culto aos caboclos como patrimônio imaterial afro brasileiro onde o índio, além de ser o dono das terras do Brasil como território, é também o dono do mato e da imensa floresta, lugar de sua pertença pela convivência secular. Com a colonização, vieram os africanos escravizados oriundos, inicialmente, dos antigos reinos do Congo onde suas divindades eram chamadas nikisi. Aqui plantaram a sua religião de origem, recriando o culto que garantiu a re-união de pessoas, recompondo a cultura através do que se chama família de santo cuja base ancestral comum garantiu os laços de parentesco para a proteção e continuidade de uma cultura milenar agora recriada na diáspora compulsória. Atualmente, seus descendentes cultuam o candomblé Angola. As divindades vodun e orixá foram trazidas no século XVIII até o princípio do século XIX. Já no período da ilegalidade, chegaram do Golfo de Benin, atual Benin e Nigéria e da Costa da Mina, atual Ghana e Togo. Seus descendentes jêje cultuam o vodun e o nagô e ketu cultuam o orixá. O índio juntou a sua sabedoria a sabedoria dos africanos, compartilhando os conhecimentos das folhas e da natureza, propiciando aproximação de duas etnias formadoras do povo 11


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brasileiro. Estamos falando de nossos caboclos, cultuados entre as entidades religiosas de matriz africana, especialmente no candomblé. Nesta pesquisa, falamos do candomblé de caboclo como importante depositário da nossa cultura ancestral. Na verdade, esta é uma prática que inclui desde sempre manifestações diversas, adotando uma postura positiva de preservação das filosofias, das tradições, dos saberes, dos costumes, dos valores e ensinamentos da cultura negra, indígena e branca. Na Bahia, por exemplo, o caboclo é o índio que viveu desde o Tempo anterior à chegada do homem branco. O índio conheceu a religião católica, seus santos e suas rezas. Esta é uma marca importante deste registro do culto ao caboclo, mais marcadamente no Centro de Caboclo Sultão das Matas e no Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra. As reuniões são impregnadas de uma memória jesuítica onde as rezas aos santos católicos têm uma importância singular. Falamos do índio que viveu, defendeu e, por vezes, morreu por seu país. Este é o personagem principal do chamado candomblé de caboclo, que, com o Tempo, agregou outros tipos sociais, sobretudo os mestiços marujos e os boiadeiros do sertão. O caboclo, entidade venerada no contexto religioso afro-brasileiro, é reconhecido relevando-se os seus feitos ancestrais que contribuem para a formação cultural, social e tradicional das comunidades em que estão inseridos bem como no aspecto cultural brasileiro de forma geral. O culto aos caboclos, ao longo do Tempo, foi incorporado na dinâmica dos seguimentos das religiões de matriz africana. Sendo reverenciados como primeiros ancestrais das terras brasileiras, os indígenas carregam características peculiares com exemplos de sabedoria, irreverência e vivacidade. Entendemos que, no decorrer do Tempo, algumas características deste culto foram transformadas, adaptadas e até mesmo abdicadas, 12


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seja pelo desaparecimento de casas primordiais de importantíssimas referências nestes cultos ou pela insuficiência de resguardo e difusão da memória do culto às entidades. Estas tradições estão presentes em cultos dentro dos terreiros das religiões de matriz africana, nas diversas nações seja Angola, Caboclo, Jejê e Ketu. Desonerados da obrigação de cultuar qualquer pureza, a presença efetiva da cultura cabocla se mostra no cotidiano e no imaginário das populações baianas que perpassam os contos, as lendas, os mitos, as cantigas, os dizeres ou provérbios, na história e nos formatos de organização social e religiosa nos terreiros. Os terreiros e as casas de culto aos caboclos constituem-se como legítimos guardiões de uma visão de mundo que consegue ajuntar e potencializar outras relações, incluindo negros, brancos e indígenas, reunindo valores civilizatórios com suas histórias e culturas diversas. Este contexto evidencia que, embora existam muitas diferenças externas na sociedade brasileira, podemos admitir que temos uma origem comum que é afro-brasileira.

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1.2 De Nóbrega a contemporaneidade “O ritual, a cantoria, a maneira de se expressar, as cores, os artesanatos, essas maravilhas permaneceram. Então, quem pensou que o índio desapareceria no ano 2000 se enganou, ele não desapareceu, estamos nos organizando cada vez mais.” (Marcos Terena, org. PINTO & BELINE, 2009) Ainda hoje é costume pensar o indígena conforme ideias implantadas pelas antigas aulas e livros de história, onde esses brasileiros são tratados como cidadãos de segunda categoria. Aulas e livros didáticos continuam planejados sob a ótica dos valores europeus. Isto fere a nossa ancestralidade. Esta é uma relação delicada e complexa para definição de quem somos nós como povo brasileiro. Seria preciso atingir a raiz desde problema e responder as imprecisões que povoam o drama da nossa identidade. De que modo podemos transpor esse imaginário? Ou melhor, como descolonizar os conceitos construídos em torno das diversas comunidades indígenas que ainda nos restam? Como elaborar um projeto de educação considerando os indígenas como produtores da sua própria história? Como educar crianças brasileiras considerando a aceitação das diferenças culturais conforme preconiza a Lei 11. 645 de 10 de março de 2008. Esta é uma longa caminhada. Para tanto, se faz necessária uma predisposição para a compreensão não preconceituosa da alma indígena, acolhendo tudo que ela pode representar neste momento quando declinam os valores ditos modernos. Importante seria trabalhar para inserir em nossa consciência de hoje, o respeito pela alteridade como uma lógica que nos leva a reconhecer outros valores, outra ética, que a educação ainda desconhece; uma percepção, uma sensibilidade, um jeito de ser humano que ignoramos. Este conhecimento nos daria a totalidade da nossa história e da alma brasileira de onde brotaria outra qualidade de vida. 14


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É prática nas escolas celebrar dia do índio abordando o pensamento indígena deslocando essa população para a margem da sociedade brasileira como personagem exótico. Em que pesem os esforços dos próprios indígenas, ainda não é possível reconhecer e aceitar essa população sem, obrigatoriamente, cair no imaginário do discurso que os inferioriza na sua força, inteligência e organização para a vida. Os jesuítas não faziam por menos questionando a alma indígena. As cartas de Manoel da Nóbrega afirmavam, peremptoriamente, que os índios não tinham conhecimento da divindade ou vida espiritual. Esta seria a prova da bestialidade, o que criava uma necessidade imponderável de conversão. Na verdade, os jesuítas se consideravam anjos ou emissários de Deus. Do seu ponto de vista, não eram eles que agiam, mas Deus através deles. A ideia é que teriam vindo para o Brasil para transformar seres subumanos em algo melhor. A pedagogia jesuítica dizia à criança índia: “Esqueça quem você é, quem são seus pais e de onde você veio. Isso tudo não vale nada. Abandone sua identidade, queira e fique igual a mim”. Os meninos aprendiam português, catecismo, trabalho manual e passaram a morar em casas alinhadas ao longo de avenidas. Construíam mobílias e órgãos, imprimiam catecismos, cantavam na missa em latim e teciam batinas para os padres. Mas um dia abandonaram tudo e voltaram para o mato. Foi a salvação. A imagem negativa do homem primitivo assegurava ao colonizador a sua suposta superioridade. Desse modo, era camuflada a preocupação em expandir seu controle material no mundo, numa porta aberta no interior do cristianismo. O Brasil não conhece esses seus filhos. O genocídio ainda os ameaça. É o povo mais ameaçado do mundo. Na verdade, suas terras continuam sendo tomadas, parques nacionais com seus muros imaginários restringem a sua mobilidade cidadã. De vez em quando, alguém aproveita e escreve uma tese acadêmica. O conhecimento indígena foi inferiorizado propositadamente. Sua espiritualidade se tornou maldita porque não correspondia aos princípios cristãos.

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Sua cosmovisão foi subalternizada e classificada como estúpida e mentirosa. É fato que o que aconteceu no Brasil está longe de ser uma comunhão de almas. O conquistador não reconhecia um valor mínimo nas qualidades humanas nos índios subjugados.

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NOSSOS MESTRES VIVENCIANDO O CULTO AOS CABOCLOS

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2 NOSSOS MESTRES VIVENCIANDO O CULTO AOS CABOCLOS “O caboclo Sultão das Matas nasceu da luz do horizonte, das matas e surgiu das fontes e dos gritos dos ancestrais, como força do Pai Maior”. Doné Conceição Centro de Caboclo Sultão das Matas - 2013

“A força do caboclo evidencia o espírito de independência e autonomia do brasileiro, seus códigos são próprios e sua lei é única.” Babalorixá Augusto César Terreiro Ilê Omorodé Axé Orixá N’lá - 2013

“É necessário ressignificar a presença indígena dando visibilidade positiva a essas tradições que são milenares.” Taata Anselmo Terreiro Mokambo Onzó Nguzo Za Nkisi Dandalunda Ye Tempo - 2013

“Todos os seres humanos que vieram com origem de resistência dos caboclos e orixás, devem respeitá-la, pois é a sua raiz” Mãe Juvani Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra - 2013

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TERREIRO: LUGAR ONDE TUDO É SAGRADO

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3 TERREIRO: LUGAR ONDE TUDO É SAGRADO Um terreiro de candomblé é lugar de pisar devagarinho. É lugar de caminhar delicadamente para não machucar o solo que é sagrado e que nos sustenta. É mergulhar na fé e no coração do outro. O que se busca como lugar de amparo e conhecimento só pode ser encontrado pelo desvelamento que vem sem a marcação mecânica do relógio que organiza a nossa vida material. A relação de verdade é com o invisível, o que não exclui o que se vê abraça e toca. “Neste caso, o visível não é o contraditório do visível. O visível possui, ele próprio, a membrana do invisível. As pessoas também são parte do sagrado. A entrada para uma religião de matriz africana não se constitui apenas numa passagem para uma vida religiosa. Esta é uma iniciação que brota da convivência com a comunidade numa gestação coletiva sem fim”. (Machado, 2013, P.114)

Nas casas de caboclo fica patente o compromisso da solidariedade que contribui para manutenção da vida física e espiritual de todas as pessoas que chegam à casa mesmo que seja esporadicamente. O sagrado se manifesta vagarosamente... Em cada dia acontece o que tem que acontecer. É lugar de contentar-se com que os olhos alcançam, porque tudo é sagrado. Aprender a conviver, aprender as rezas e aprender a comer e a dormir coletivamente em suas esteiras. Isto é aprender a conviver com o que é sagrado e celebrar a nossa ancestralidade.

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CENTRO DE CABOCLO SULTÃO DAS MATAS

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3.1 Centro de Caboclo Sultão das Matas 3.1.1 Caboclos do Centro de Caboclo Sultão das Matas No dia em que apresentamos este trabalho, no Centro de Caboclo Sultão das Matas, filhas e filhos da casa também se expressaram sobre o acontecimento. Já finalizando as falas, uma senhora negra, magra e bastante simpática começa a falar emocionada, quase chorando. No silêncio absoluto do barracão ouvia-se uma sentida declaração de amor aos caboclos da casa e agradecimentos especiais à Doné Conceição sobre quem afirmou muitas vezes: “A senhora é minha mãe. Só uma mãe pode fazer o que a senhora faz por mim”. Em meio à declaração, duas lágrimas silenciosas não pouparam a fortaleza da filha do Caboclo Sultão das Matas. O choro calado envolveu aos presentes e nos faz refletir sobre que lugar é este que, na sua simplicidade e até na fragilidade de suas paredes, pode inspirar tanta confiança, paz e alegria de viver? Que lugar é este capaz de acolher tanto pessoas consideradas bem estruturadas como aqueles que estão buscando o equilíbrio para suas vidas?

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No caminho para este registro, cada casa que nos deu sustentação, tem o seu jeito de ser e de cuidar da sua comunidade. No Centro de Caboclo Sultão das Matas, a entidade das matas, está sempre presente na casa através da Doné Conceição, seja acolhendo, curando as pessoas, principalmente os mais necessitados. O Caboclo Sultão das Matas não está sozinho na sua aldeia de atendimento às pessoas que necessitam de sua presença. Em conjunto com outros caboclos da casa, trabalham tranquilizando e ajudando a todos que se acham desamparados, sejam enfermos, atribulados, sem perspectiva na vida, sem ânimo, pessoas que conservam o ódio ou vacilam na fé. Ouvimos de um jovem senhor esta declaração: “Eu estou feliz e estou aqui porque esta casa me devolveu a fé”. Na companhia de Caboclo Sultão das Matas estão o Caboclo Gentileiro, Caboclo Tupinambá, Caboclo Boiadeiro, Caboclo Sete Serra, Caboclo Águia Negra, Caboclo Juremeira, Caboclo Flecheiro, Caboclo Pena Branca, Caboclo Erú, Caboclo Gentil de Guiné, Caboclo Oxossí Caçador, Caboclo Marujo, Caboclo Rei de Congo, Caboclo Raio do Sol, Caboclo Penacho Branco, Cabocla Jurema, Cabocla Itapera, Cabocla Iracema e outros caboclos e guias de luz. A natureza é a principal fonte de cura para o caboclo. Quando conversamos com a Doné Conceição sobre a cura e os caboclos, ela nos disse que para o caboclo a cura está na mata, nas folhas e em outros elementos encontrados no mato. Ela ainda afirma que é o próprio caboclo que abre o caminho e os olhos da pessoa, que pede a sua ajuda para encontrar os remédios da mata. Além das folhas, sementes e raízes de árvores e plantas sagradas, o Caboclo Sultão das Matas tem o dom da magia da palavra para o aconselhamento, que fortalece a pessoa para enfrentar a vida como ela é, livrando das enfermidades do corpo e das energias que desequilibram os seres humanos.

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Impressiona o cuidado com a saúde física e psicológica e a união da família. Juntamente com Caboclo Sultão das Matas, temos muitos outros caboclos que atuam nesta aldeia. Os filhos e as pessoas que conhecem e frequentam este lugar chamado de Aldeia Santa, Kijeme ou Hunkpame, têm o privilégio de ouvir e conhecer os ensinamentos que são passados por eles em suas respectivas reuniões ou manifestações inesperadas. Vale apena lembrar que, sempre que há necessidade de cura na casa, os caboclos se apresentam e começam a trabalhar rezando, cantando, defumando, incensando, ajudando todos os irmãos que necessitam do cuidado e do equilíbrio espiritual. As pessoas que buscam Centro de Caboclo Sultão das Matas são assistidas nas suas necessidades. Cada caboclo tem a sua função e busca com que os seus filhos ajudem uns aos outros e tenham atenção para os que precisam mais. A ajuda tem que ser concreta. O caboclo aponta uma necessidade e todos se cotizam para resolver ou ajudar a resolver um problema.

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3.1.2 Uma festa para todas as pessoas A celebração do dia 1º de maio, no Centro de Caboclo Sultão das Matas, começa bem cedinho. O Caboclo Gentileiro coordena com bastante antecedência para que neste dia seja servido um belo café da manhã. É o café da caridade, organizado com a solidariedade de todas as pessoas da casa. Desde cedo, há um grande movimento para o café, incluindo samba de pandeiro e viola. É uma verdadeira festa de inclusão! Durante as reuniões, a organização e as incumbências são distribuídas por ele mesmo. As reuniões preparatórias acontecem durante a quaresma, sempre aos sábados e encerram pouco antes da Sexta-Feira Santa. Cada um segura a sua missão, e vão formando grupos, para desenvolver a festa amparando os convidados que são os mais diversos. Alguns grupos são responsáveis para ir buscar os convidados em casa e na rua, se este for o seu lugar. Os convidados chegam, tomam banho, vestem roupas novas, põem calçados e são levados para a mesa. Para a festa do Dia do Trabalhador são convidados cadeirantes, crianças com síndrome de Down, gente idosa de rua, crianças com idade entre meses a 12 anos, deficientes visuais, mulheres grávidas, casais de adolescentes, ex-presidiários, enfim pessoas que necessitam de carinho e atenção. A festa se inicia e o caboclo faz a sua louvação, saudando todas as pessoas presentes, lembrando-se dos ausentes. Reza, canta, samba, fala mostrando o que é fazer caridade com alegria. Diz a todos que quando as pessoas se dedicam têm como ajudar o próximo. É só querer, porque qualquer um tem como oferecer alguma coisa ao outro. Fala de Jandiara Graça Costa - Mãe Pequena do Centro de Caboclo Sultão das Matas. Clique aqui para assistir ao vídeo.

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Assim é a festa do Caboclo Gentileiro. Todas as pessoas se encantam pela magia de como o caboclo conduz o acontecimento e pela introdução da viola que, ritmada com o pandeiro e outros instrumentos, dá a alegria e o tom das cantigas. Todos são convidados a tomar o belo café e da manhã para depois cair no samba. E com muita satisfação o Caboclo Gentileiro é reverenciado, cantando como ele gosta: “Violeiro bom em tom maior, violeiro bom em tom maior, é no som dessa viola aê”...

3.1.3 As folhas e a cura na celebração do Caboclo Sete Serra O Caboclo Sete Serra vem da região do serrado, trazendo para esta aldeia os ensinamentos e as curas através das folhas sagradas. Sua festa acontece no Centro de Caboclo Sultão das Matas no dia 1º de Novembro. Este é um dia muito esperado por todos. O caboclo não trabalha sozinho. Ele escolhe uma pessoa da casa que vai lhe ajudar na organização da sua mesa de trabalho e do que será oferecido a todos os presentes. A escolha é feita de um ano para o outro. A missão para preparar a mesa exige conhecimentos de todos os elementos usados em seu trabalho de cura. A mesa, tem sobre ela todos os elementos selecionados pelo caboclo curador. Quando Ananias se refere ao manguezal do Kaonge, ele fala do supermercado de Deus e nós pedimos licença para nos referir a esta ação como lugar da cura pela farmácia do caboclo, mas temos consciência de que é muito mais do que estamos falando. É muito mais do que podemos compreender. Na verdade, é tudo tão simples e grandioso que não temos a palavra certa para falar da generosidade do Caboclo Sete Serras e do seu cuidado com as pessoas. Segundo as informações recebidas pela Equede da casa Josenete,

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filha do Centro de Caboclo Sultão das Matas, estes são alguns dos elementos de cura utilizados nesse dia: - Folhas verdes e folhas secas para os chás, rapés, emplastos, xarope caseiro, fusões e banho que descarregam as energias que atribulam o corpo. Fomos informados que algumas doenças são curadas pelo caboclo como; hemorragias, cólica menstrual, infecção intestinal, sinusite e outras doenças do Tempo . - Diversos remédios são feitos com sebo de carneiro, banha de galinha, banha de cobra, óleos que são preparados para dores nas pernas, câimbra, circulação sanguínea, dores reumáticas, lesões, torções e inflamações em geral. - As garrafadas vão para as doenças do útero, brônquios, pulmão e outros órgãos. Também são usados os entrecascos de árvores sagradas, pena de aves, a pedra do ramo, é a pedra cozida no lugar onde cai o raio que é preciso saber identificar, além dos defumadores. - Durante todo tempo de sua reunião, o caboclo ensina o que for solicitado para a cura das doenças, doenças infecciosas e outras enfermidades como canseira, asma, dores reumáticas, pneumonia, bronquite, coceira, catapora, caxumba, erisipela, fogo selvagem, infecção intestinal, inflamação nos olhos, trombose, limpeza de corpo e outros. A cantiga do Caboclo Sete Serra criada por Doné Conceição: Eu vou embora vou passar por uma ponte, (bis) Eu não preciso quem vá me atravessar, Tenho Jesus, José e Maria na minha guia para me acompanhar Sobe serra desce serra ê.. Sou Sete Serra moro na Aldeia ariá

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Fala de Doné Conceição Centro de Caboclo Sultão das Matas. Clique aqui para assistir ao vídeo.

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3.1.4 Quem é o Caboclo Tupinambá? O Caboclo Tupinambá trabalha dentro da doutrina do regente da casa, o Caboclo Sultão das Matas. Este o acompanha sempre nas curas do corpo, do coração e da mente dos filhos ou simpatizantes. O Caboclo Tupinambá é um encantado que vem das matas. Trabalha e vivencia a natureza. Cada última quinta feira do mês, o caboclo está trabalhando, cuidando de quem precisa ser cuidado. Ele é um caboclo que trabalha muito o respeito, o compromisso com a verdade, a humildade, o amor ao próximo e a generosidade com os seus filhos e filhas e principalmente as crianças e os jovens. Para os filhos e adeptos do Caboclo Tupinambá, a cura do corpo acontece com jurema e o mel. É assim que ele cura as dores do corpo e também abre a aura do ser humano, trazendo amor, paz e calma, retirando o rancor e o ódio. Rancor e ódio são as principais causas das doenças físicas. Para dar início as suas sessões, todos os seus filhos têm que, primeiramente, tomar o banho de folhas sagradas; em seguida, passar no corpo a fumaça de purificação, o incenso ou defumador. Em seguida, bebe-se a água fonte de vida. Esta é uma água que fica dentro de um pote de barro que é entregue por um filho escolhido por ele.

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Depois de todo esse ritual, é que se dá início aos trabalhos de cura. A melancia é um extraordinário elemento no ritual do Caboclo Tupinambá e possui importante significado diante da comunidade. Como parte do ritual, dois filhos são escolhidos e devem lançar a melancia ao chão para que seja quebrada com a força da terra. Partida a melancia, as crianças são as primeiras a se servir. Em seguida os mais velhos, logo depois todos os filhos e filhas da casa. É um momento de cura quando todos podem se aproximar indistintamente e comer da fruta sagrada. Quando alguém não pode comer a fruta, ele manda passar no corpo, fazer banhos com a casca, com o caroço ou ainda fazer chá, xarope ou tomar o suco da melancia que é um calmante. Essa fruta tem uma relação importante com o Caboclo Tupinambá, porque ele preserva tanto a força e energia da terra como a união das pessoas representada pela grande quantidade de sementes da fruta. O caboclo ensina que quanto mais a melancia enrama, mais vai se espalhando a força vital que vem da terra e nos traz grandes benefícios. Neste dia a Jurema é preparada pelo seu filho Casutéomi, um dia antes da sessão onde são apresentados os animais que são cuidados no canzuá: pássaros, coelhos, preá, galinhas e papagaio. Também é ensinado o dever de fazer a caridade ao próximo; com isso, ele faz com que aconteçam reuniões durante a quaresma e que se reúnam para arrecadar alimentos para cestas básicas, que serão encaminhadas para outras comunidades carentes. Dessa forma, ele nos ensina a agradecer e a valorizar o que recebemos da vida. Assim, Jandiara G. da Costa Santos, Mãe Pequena do terreiro, diz que “Tupinambá é um caboclo que fortifica e ilumina seus filhos através da terra, das folhas, da água, do vento, do sol, da lua, da chuva e dos animais”.

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3.1.5 A historiografia do Centro de Caboclo Sultão das Matas, por Antônio Cosme Lima da Silva O Centro de Caboclo Sultão das Matas está localizado em São Gonçalo do Retiro, no bairro do Cabula. Sobre a história do bairro, comenta-se que o Cabula surgiu após a destruição do Quilombo do Orobó, no início do século XIX, e que os primeiros habitantes da região foram os quilombolas que se refugiaram nas matas do Cabula, fugindo de perseguições. Ainda sobre o Cabula, estudos apontam que a palavra deriva de Kubula, na língua Kikongo significa sacudir, limpar, purificar ou de Kabula, uma prática religiosa afro-católica originária da região CongoAngola, trazida para o Brasil ainda no século XVI por povos de origem banto e que, incorporada às práticas religiosas dos índios do Brasil, deram origem à umbanda e ao candomblé de caboclo. Este registro não tem o objetivo de entrar nesse debate histórico. Contudo, todas as indagações e mistérios relacionados ao bairro do Cabula podem nos ajudar a compreender o porquê de o Caboclo Sultão das Matas ter migrado da histórica cidade de Cachoeira para, nessas bandas do Cabula, erguer sua morada. Sobre a história do Centro de Caboclo Sultão das Matas, Doné Maria Conceição Souza dos Santos Costa, Doné Conceição, uma cachoeirense de 65 anos e líder espiritual do terreiro, como também denomina a sua casa religiosa, diz que o Centro de Caboclo Sultão das Matas existe desde o ano de 1966. Segundo Doné Conceição, as primeiras reuniões aconteciam, desde aqueles anos, na casa de sua mãe biológica, Doné Natividade Souza Borges dos Santos (também conhecida como Doné Trindade), uma filha do Terreiro Zoogodo Gbogun Male Cejá Houndé, também conhecido como Roça do Ventura. Depois de Cachoeira o Centro migrou para a cidade de Santo Antônio de Jesus, onde permaneceu por 16 anos 32


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para, em seguida, se estabelecer em Salvador desde 1986. Sobre o início das atividades do Centro e a sua relação com o Caboclo Sultão das Matas, Doné Conceição narra esse processo de uma forma tão intensa, que para o observador não iniciado nas religiões de matrizes afro-indígenas, fica difícil compreender se a líder espiritual narra fatos da sua vida ou da divindade que a acompanha. Depois de reafirmar que desde os 09 anos já recebia Oxossí, Janaina e o Caboclo Gentileiro, Doné Conceição narra como começou a receber o Caboclo Sultão das Matas: “Com 16 anos, também comecei a receber seu Sultão das Matas e Ele chegou dizendo que queria trabalhar. Sultão das Matas trabalhou na casa de Maria de São Pedro até eu completar 21 anos, quando um dia, junto com Oxóssi, seu Sultão disse que queria trabalhar na sua própria casa”. O Centro de Caboclo Sultão das Matas está estabelecido há 27 anos em um pequeno, mas acolhedor espaço localizado no bairro do Cabula. Certamente é por essa espiritualidade e pela força dessas entidades que o Centro de Caboclo Sultão das Matas recebe pessoas de diferentes partes do mundo em busca de cura, assunto que abordaremos mais adiante. Sabemos que esses espaços religiosos são lugares de celebração e culto, mas também de moradia, de troca e preservação de saberes, além de local onde são desenvolvidas atividades em benefício das populações que vivem em seu entorno. É por isso que é comum a vizinhança deixar suas crianças, como diz Doné Conceição “as flores do jardim de Seu Sultão” aos cuidados das pessoas que fazem e vivenciam o cotidiano do Centro de Caboclo Sultão das Matas. Conversando com Doné Conceição, percebe-se que é realmente o Cabula o local que, definitivamente, Caboclo Sultão das Matas escolheu para erguer sua morada. Pelo menos as palavras proferidas por Doné Conceição nos permitem chegar a essa

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conclusão: Em outro momento, Doné Conceição fala do seu caminho de religiosa, mas no fim chega à conclusão de que é no Cabula, na casa que fez para Caboclo Sultão das Matas, como gosta de se referir aos caboclos; na casa que também abriga o Caboclo Gentileiro e o Caboclo Ramo Verde que ela afirma ter se encontrado. Este importante relato de Doné Conceição nos possibilita fazer algumas considerações. Uma delas é compreender o universo plural dos cultos aos caboclos. Se for verdade que a umbanda deriva da junção da espiritualidade dos povos indígenas brasileiros, das religiões de matrizes africanas e pelo menos da matriz luso-europeia, não podemos ver com estranhamento a incorporação dessas matrizes/elementos no culto aos caboclos. Nessa perspectiva, a Centro de Caboclo Sultão das Matas é morada de todos. Outra consideração a fazer é que, embora o Centro de Caboclo Sultão das Matas reconheça a sua herança jejê, lá há espaço para as heranças de Angola, de Ketu e do panteão católico. A esse respeito, Doné Conceição justifica a presença de elementos africanos nas casas de caboclo de forma muito simples. Diz ela:

“Olha, gente, essa conversa é igual àquela que se fazia antigamente de que na casa em que se cultuava orixá não podia cultuar o caboclo. Pode sim. Então, por que na casa de caboclo não pode receber o orixá? Por que não? A minha casa é de caboclo, mas meus filhos todos têm orixá. Tem o orixá, mas é o caboclo que está na frente. É o caboclo que fica na frente. Outra coisa, casa de caboclo tem padrinho e madrinha. E o que é padrinho e madrinha na nossa vida? Pai e mãe. O que é Ogã e Equede? Pai e mãe”. (Doné Conceição, 2014)

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Quando estudamos as culturas de matrizes africanas e ameríndias, notamos que as pessoas que vivenciam essas culturas, geralmente, não costumam separar a vida religiosa da vida civil. A religião e a vida cotidiana são a mesma coisa. Além disso, sabemos que o fenômeno da mestiçagem, do hibridismo, do encontro de culturas é um fenômeno universal. Logo, quando o assunto é religiosidade não devemos ver com estranhamento essa fusão, tendo em vista envolver a concepção de vida das pessoas e a leitura que cada uma faz do mundo. É difícil compreendermos a incorporação de elementos africanos ao culto ao caboclo com o olhar da racionalidade e coerência. Nessa perspectiva, cada casa procederá a partir das suas heranças e da compreensão que cada líder espiritual tem desse processo. Enfim, Mãe Juvani, do Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra, é da opinião de que “se a gente quiser separar, a gente não vai entender”. Nas rodas de conversa que realizamos nos terreiros participantes desse projeto, além das questões até aqui tratadas, refletimos sobre um tempo em que os caboclos eram tratados e vistos como entidades menores nos candomblés da Bahia. Num tempo quando as pessoas, às vezes, negavam ou omitiam a presença dos caboclos em suas vidas ou nos seus respectivos terreiros. A partir dos relatos que constam desse inventário, sobretudo das narrativas de Doné Conceição, percebemos que essa realidade vem se alterando. Atualmente, sabemos que na maioria das casas de candomblés da Bahia, sobretudo nas casas de matriz CongoAngola, normalmente reserva-se no calendário festivo uma data para homenagear os caboclos. Embora o culto aos caboclos tenha convivido com todo preconceito existente na sociedade, existem casas que se dedicam totalmente a Eles, como é o caso do Centro de Caboclo Sultão das Matas.

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3.1.6 Cantigas de caboclo

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Sultão das Matas Sou eu Sultão das Matas, Caboclo decidido Na ponta da espada, Sou eu Sultão das Matas Rei das Matas Sultão das Matas é um rei, que nas matas mora 2x Abençoa seus filhos meu pai, que tanto te adora 2x Sultão Menino Raiou o dia, raiou o sol 2x Sultão das matas é menino e ele é maior Sultão das Matas é menino vencedor de guerra Sultão das matas já esta na terra. Folhas caídas das árvores As folhas que caem das arvores, são folhas que vem nos alertar 2x Deus vos salve seu Sultão das Matas meu pai, dentro dessa Aldeia ariá 2x As folhas que vem das matas, as folhas que vem das matas, são folhas que vem pra nos curar Deus vos salve seu Sultão das Matas meu pai, dentro dessa Aldeia ariá 2x Sultão das Matas é um curador 2x Sultão das Matas ele veio curar Sultão das Matas ele é um bom pai, que na Aldeia sempre vem abençoar Eh,eh,eh, eh, eh ah, Seu Sultão das Matas dono da Aldeia ariá 3x Ele é um curador 2x E a seus filhos ele veio curar Oh Deus vos salve essa Lua nova, Sultão das Matas na aldeia ariá. Xetruá!

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Canto de Doné Conceição - Cântigas do Centro de Caboclo Sultão das Matas. Clique aqui para assistir ao vídeo.

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TERREIRO ILÊ OMORODÉ AXÉ ORIXÁ N’LÁ

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3.2 Terreiro Ilê Omorodé Axé Orixá N’lá, por Iane Rodrigues Petrovich Gouveia A história do Terreiro Ilê Omorodé Axé Orixá N´lá começa com a chegada do Caboclo Andaraí após três anos de feitura de santo de Augusto César da Silva Lacerda, filho de “Seu” Claudionor e Dona Augusta. Na sua criação, além de ter sido cuidado por Mãe Binha, Petrô e Yeda lhe acolheram também como filhos e deram Iane para ele batizar. Em 1974, quando iniciou-se na religião dos orixás, ganhou mais uma mãe, Mãe Menininha do Gantóis. O Caboclo Andaraí chegou na vida de Augusto César para transformar seu plano de vida – “fazer um ateliê para ser pintor”. Não lhe faltava talento, o brilhante artista plástico conta: “O caboclo invadiu a minha vida”. (AUGUSTO CESAR, 2014). Segundo Augusto Cesar, o primeiro sinal que o “caboclo já estava dentro de casa”, acordou a todos que dormiam com uma batida na porta; depois outro susto não deixou ninguém dormir, forte barulho no telhado, parecia que alguém estava jogando milho na cobertura de eternite. Não havia ninguém do lado de fora da casa nem um grão sequer de milho. A compreensão do fenômeno do encantado foi decifrada através do Caboclo Gentileiro que se manifestou em D. Lourdes de Oxalá e orientou oferecer algumas coisas no mato. Dia 19 de abril, dia do Índio, começaram os preparativos para que no dia 21 fosse feita a oferenda. O dendezeiro foi o lugar escolhido para arriá-la, e a aparição de uma cobra foi à última recordação do médium antes de acordar do transe em local do terreiro que foi anunciado pelo Caboclo Andaraí onde seria construído o seu Barracão. Antes de ir embora, fez mais duas recomendações, sobre elementos rituais da sua primeira obrigação de um ano – “comida, festa, atabaque e foguete”; e que contasse tudo a sua mãe de santo. Dando início a sua trajetória de Babalorixá, Augusto César, o filho

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de Logun Edé, conversou com Mãe Cleuza do Gantóis, seu terreiro de origem; ela não se mostrou surpresa, já sabia do que ele gostava, como o milho branco, pois para fazer o santo, antes, o caboclo foi reverenciado, um “agrado”. Segue daí um processo de aprendizagem de obediência, valor que se apresentou em diversas histórias de vida de pais, mães e filhos participantes das rodas de conversa. As ordens que não foram seguidas geraram consequências, depois da vergonha de ter que tomar emprestado atabaque, o susto do barracão ser derrubado. Assim, a lição foi aprendida. O Caboclo Andaraí era o dono do barracão, a primeira festa do calendário do terreiro é a dele, dia 21 de abril, antes das Águas de Oxalá. Alguns filhos do Ilê Omorodé Axé Orixá N’lá reconhecem, com muita clareza, a importância e o lugar do caboclo, como ouvimos Iya, da Piedade “Caboclo Andaraí aqui pra mim é tudo. Nessa casa nunca entrou um Iaô sem o conhecimento do Caboclo Andaraí. Essa casa é dele e vai continuar sendo dele. E nós só temos a agradecer”, diz Iya.

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Outras lições, ao longo das gerações, também vêm sendo aprendidas pelos filhos, como o caso contado por Jorginho, filho de Pai Augusto, que foi advertido pelo Caboclo Andaraí para não pular o muro da escola. Ao desobedecer, passou por uma situação de perigo, aprendeu com muito medo e depois pediu desculpas pela sua desobediência. A sua fé no caboclo cresce a cada dia! Ouvimos do Babalorixá Augusto César que “Tudo que ele pensava era uma coisa e tudo que foi determinado para ele foi outra”. A presença do caboclo na vida dele e do terreiro além de obediência e disciplina, trouxe também muita felicidade e amparo. Ouvimos algumas falas que nos tocaram: “(...) ao caboclo eu empresto meu corpo, porque foi ele quem se apossou, não fui eu quem pediu.”. “(...) nas horas impossíveis, que eu penso não ter saída, é ele que chega para me valer”...”(...) em todas as situações que eu não sabia o que fazer, teve sempre a presença dele”. O caboclo sempre está presente em todas as horas e nunca abandona aqueles que lhe pedem ajuda nas horas de agonia. Odesse define o Caboclo Andaraí como “luz que 24 horas fica nos iluminando, seguindo a humildade e o respeito ao direito que cada precise nessa casa e em qualquer candomblé do mundo.” Esta bela história de vida pode ser sintetizada na fala da Iyá L’axé Maria de Nazaré:

“Sou filha do Ilê Omorodê Axé Orixá N’Lá. Certa vez, em casa nos deparamos com o Caboclo Andaraí sem saber como lidar. Ele chegou inesperadamente e fomos aprendendo, cultivando, e vemos hoje o quanto foi importante a todos, ajudou na constituição do terreiro, como sobre os aspectos importantes da dimensão da caridade. Passamos a considerar Andaraí com muita importância. Tínhamos medo de como o terreiro do Gantóis iria encarar isso, por não 45


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ter essa tradição. Hoje em dia, alguns filhos procuram o Caboclo Andaraí, quando precisam fazem questão de ajudar, pedir e consultar. Reconhecemos a importância de que o caboclo abriu portas até para que eles possam reverenciar. Eles também precisam desse caboclo e dessa credibilidade. Estamos aqui também para aprender. É uma oportunidade muito boa estar aqui. E o caboclo tem muita importância em nossa formação cultural.” (Iyá L’axé Maria de Nazaré, 2014) Fala de Maria de Nazaré - Iyá Laxé do Terreiro Ilê Omorodé Axé Orixá N’lá. Clique aqui para assistir ao vídeo.

3.2.1 O Caboclo Andaraí – entre pedras preciosas, esmeralda, e a conexão com a Índia Na sua linhagem, o Caboclo Andaraí é acompanhado por Sultão das Matas e Boiadeiro, herança da família consanguínea. A Cabocla Jupira, do Amazonas, também está do seu lado com a missão de cultivar o amor, mas é muito cismada. Andaraí gosta de ter um cacho de dendê junto dele, mas não come dendê. Segundo a Iyá L’axé Maria de Nazaré Lacerda, a veste dele é uma bombacha branca com um tecido de algodão, sempre de algodão e um ojá branco sem brilho nenhum, roupas muito simples. Tudo dele é branco, azeite doce, milho branco; ele se veste de branco e pede que as pessoas que estejam próximas se vistam de branco. Seu lugar é nas grutas, no lajedo. Este nome Andaraí, é também o nome de uma cidade da Chapada Diamantina, que significa gruta de morcego, região de garimpo, de pedras preciosas. Ele traz na sua indumentária uma pedra de esmeralda na testa amarrada em um torso, junto com uma pena

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branca. Importante ressaltar a sua ligação com a Índia ficando a desvendar um mistério desta relação e da existência de um meridiano que liga Andaraí a Índia, o que pode ser explicado pelo que se sabe sobre o estreito de Bering. Para o professor e Ogã do Terreiro Cobre, Antônio Cosme: A gente aprende que a denominação índio, utilizada no Brasil foi por conta de que, quando os Portugueses chegaram ao Brasil terem imaginado que estavam nas “índias ocidentais”. Mas existe uma outra versão para essa denominação. Ou seja, que os ancestrais dos índios das Américas tenham migrado da Ásia, pelo Estreito de Bering, no final da idade do gelo, há cerca de 12 mil anos. Então é provável que os portugueses tenham se enganado em virtude da aparência dos povos que aqui encontraram. Hoje, estudos apontam a existência de uma descendência comum entre os índios americanos e povos asiáticos. Observem como os nosso índios são parecidos com os orientais. Os indianos, chineses, coreanos e japoneses parecem muito com os povos indígenas das Américas. Temos estudos que comprovam isso. O Caboclo Andaraí se sente muito feliz no meio de pessoas reunidas em torno dele. Na última quarta-feira do mês, ele chega e fica contente por encontrar alguém para conversar, pra ajudar, mesmo que seja apenas uma só pessoa. A sua cabana foi feita atendendo o seu pedido de “morar no Pau-Brasil, num lugar onde as pessoas passassem e perguntassem: o que é isso aqui?” Expressa a sua identidade ao se firmar:

“Tem pessoas que dizem que pessoas de determinado orixá não tem caboclo. Tem sim. Todo mundo tem caboclo por que quando a gente chegou aqui eles já estavam aqui. Eles é que são os donos. Então quando chegamos aqui já encontramos eles, os donos da terra. Todo mundo tem caboclo seja de que santo for. Que chegue ou que não chegue, mas todo mundo tem caboclo.”(BABALORIXÁ , AUGUSTO,2014) 47


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Afirma o Babalorixá Augusto César, e reforça seu pensamento:

“Nós estamos aqui com um projeto com os caboclos e quem sabe o quanto isso pode gerar e se multiplicar. Vamos ter um pensamento sério sobre esse assunto, do nosso índio, da nossa herança indígena de tudo que o índio já passou de dificuldade, e como eu disse e volto a dizer: esses são os donos do Brasil. É diferente por que o orixá é homeopático, espera... vá faça isso, espere sete dias e o caboclo não é assim vá pá, pá. E vou lhe dizer terreiro que não tem caboclo não vai pra lugar nenhum”. Fala de Augusto César - Babalorixá do Terreiro Ilê Omorodé Axé Orixá N’lá. Clique aqui para assistir ao vídeo.

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3.2.2 Cantigas de caboclo

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Abre-te Ô Abre-te, campo formoso Ô Abre-te, campo formoso Cheio de tanta alegria Oh cheio de tanta alegria São sete anos, são sete noites São sete noite, são sete anos, são sete noites, Que eu andava nessa jurema, que eu andava nessa jurema São sete noite, são sete anos, são sete noites, Que eu andava nessa jurema, que eu andava nessa jurema É um Lê lê lê, é um lá lá lá É um Lê lê lê, é um lá lá lá É um lê lê lê, é um lá lá lá É um lê de lelê, é um lá de lalá Xetruá! Pedrinha miudinha de aruanda Pedrinha miudinha de Aruanda êh Lajedo, tão grande, tão grande de Aruanda êh Pedrinha miudinha de Aruanda êh Lajedo tão grande, tão grande de Aruanda êh Pedrinha de um lado, pedrinha do outro Pedrinha de Aruanda Pedrinha miudinha de Aruanda êh Lajedo tão grande, tão grande de Aruanda êh Tava me chamando Eh, tava me chamando, me chamando eh Eh, tava me chamando, me chamando ah Eu andei pela mata inteira Procurando de quem me chamou Boa noite meu senhor Sou Andaraí e aqui estou

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Bandolê Bandolê, olê, olé, olê Bandolê, olê, olá Bandoleia caboclo Bandolê, olê, olá Maré encheu maré vazou Maré já encheu Maré já vazou De longe bem longe eu avistei Irará Da minha casinha coberta de sapé Meu arco, minha flecha, minha cabaça de mé Oh Irará, irara, irará Oh ira Irará, irará , Irará Xetruá Marrumbaxetro Andaraí é o rei que nas matas mora Andaraí é o rei que nas matas mora Venha ver seus filhos meu Pai, que tanto te adora Venha ver seus filhos meu Pai, que tanto te adora Andaraí é o rei que nas matas mora Venha ver seus filhos meu Pai, que tanto te adora Venha ver seus filhos meu Pai, que tanto te adora Mata virgem Eh mata, eh mata virgem Eh Mata, mata arriá Eu venho lá do garimpo Eu sou Caboclo, não sou Orixá Eh mata, eh mata virgem Eh Mata, mata arriá Eu venho lá na garupa Eu sou Caboclo, não sou Orixá

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La naquela serra Lá naquela serra, oh serra, oh serra Lá naquela mata, oh mata, oh mata Tava me chamando Eh, tava me chamando, me chamando eh Eh, tava me chamando, me chamando ah Eu andei pela mata inteira Procurando de quem me chamou Boa noite meu senhor Sou Andaraí e aqui estou Um abraço dado de bom coração Um abraço dado de bom coração É mesmo que uma benção, uma benção, uma benção Um abraço dado de bom coração É mesmo que uma benção, uma benção, uma benção

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TERREIRO MOKAMBO ONZÓ NGUZO ZA NKISI DANDANLUNDA YE TEMPO

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3.3 Terreiro Mokambo Onzó Nguzo Za Nkisi Dandalunda Ye Tempo Ao chegar no Terreiro Mokambo, somos recebidos pelo Nkisi Tempo, árvore sagrada, assentada majestosamente ao lado direito da entrada da casa, carregada de nguzo, sua energia vital que anima a comunidade. Descendo a escadaria que dá acesso à Casa, a sensação é que estamos sendo abraçados pelo espaço que se abre parcimoniosamente até nos integrar completamente na riqueza banto, herança ancestral do lugar. E quando chegamos ao final da escada, há uma delicadeza no ar que se transmite em acolhimento tanto no barracão de festas, como na cozinha, lugar de servir as mais gostosas iguarias, ou no pátio onde normalmente são colocadas mesas e cadeiras, as pessoas são acolhidas e servidas com extrema amabilidade de todo pessoal da casa.

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Memorial Kisimbiê - Terreiro Mokambo Onzó Nguzo Nkisi Dandalunda Ye Tempo

Na mesma direção, está localizado o Memorial Kisimbie – Águas do Saber que, além da biblioteca e do acervo digital, possui imagens e mapas que contam a história do terreiro a partir do continente africano. Mapas, fotografias, inscrições, objetos rituais, além da exposição da roupa de Dandalunda e duas roupas do Caboclo Pena Dourada enriquecem com informações que emocionam os seus visitantes, gente da terra ou oriundos dos diversos estados brasileiros e estrangeiros. O Memorial Kisimbie – Águas do Saber, nome dado em homenagem a uma divindade da água doce da tradição africana Banto Kisimbie. O Terreiro Mokambo registra, também, sua história na obra Terreiro Mokambo: Espaço de Aprendizagem e Memória do Legado Banto no Brasil de autoria de Taata Anselmo. A obra é fruto do seu trabalho acadêmico que retrata, de forma culta, as suas vivências transformadas em dissertação de mestrado da Universidade Estadual da Bahia sem perder a simplicidade de uma casa de

santo.

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Comprometido com princípios e valores na educação, Taata Anselmo oferece um rico acervo para visitação, e disponibiliza também um excelente material para pesquisa a pesquisadores e estudantes no que diz respeito à história do povo banto, atendendo às necessidades das Leis10.639/03 e 11.645/08 que incluem a história e cultura do índio, o nosso ancestral caboclo. Taata Anselmo – Minatojy, filho de Dandalunda e Tempo – é acompanhado pelo encantado Pena Dourada e tem a sua origem numa histórica linhagem do povo de santo. Iniciado pelas mãos de Mãe Mirinha do Portão, é, por consequência, neto de Joãozinho da Goméia, filho de nkisi Motalambô e Bambulusema, que viveu acompanhado e protegido pelo seu encantado, o Pedra Preta. Pedimos licença a Taata Anselmo para reproduzir, neste texto, a preciosa oração a Mameto Dandalunda que, em um ato de fé, deixa fluir o sentido precípuo que rege a vida do kota maior no terreiro com seus filhos, sua casa, e com a sociedade:

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“Kiwá Nkisi Dandalunda sublime Rainha, belo Nkisi, venha a mim caminhando na lua cheia trazendo em suas mãos, oh! Mãe querida, os lírios do amor e da paz. Torne-me doce, sedutor e suave como és, minha senhora adorada Mameto Dandalunda, proteja-me hoje e sempre, meu fiel Nkisi, faça com que o amor seja uma constante em minha vida. Dê-me a possibilidade e a sabedoria de amar a tudo que existe. Proteja-me sempre contra as mandingas e feitiçarias. Dê a mim o néctar de sua doçura, mãe do ouro, da beleza e do amor, senhora da mais pura energia (nguzo) valha-me hoje e sempre. Minha adorada mãe, senhora em sua suave ternura, cubra seus filhos com seu belo manto de divina doçura, luz e força, trazendo para nós paz, saúde, felicidade harmonia e muito amor. Kiuwá minha doce Mameto Dandalunda, sua bênção.

Kiuwá Nkisi Dandalunda Kisimby Kia Maza! 3.3.1 A África é o começo de tudo O Terreiro Mokambo é um terreiro de tradição banto. Trata-se de povos que ocupam uma grande parte do centro-sul da África, que hoje é formado por países como Camarões, Angola, República Popular do Congo, Zâmbia, Uganda, Quênia, Moçambique, África do Sul entre outros. Os bantos que aqui chegaram, escravizados a princípio, passaram também por um processo de catequização e aculturação no qual deveriam aceitar a fé cristã como única e verdadeira. Clovis Moura nos relata em verbete no Dicionário da Escravidão Negra no Brasil que: “Quando um escravo entrava na sala da família para acender as velas, deveria saudar seus senhores erguendo a mão direita e dizendo Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo a bênção. Deixar de pronunciar tal saudação era considerada atitude desrespeitosa merecedora de açoites.” (MOURA, 2004) A saudação era individual e incluía até as crianças. Na sexta feira santa, a benção era de joelhos e também servia para o perdão dos pecados. Eram muitas as

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obrigações rituais impostas pelo catolicismo compulsório. Entretanto, não adiantou muito, porque os africanos logo começaram a desenvolver formas de cultuarem suas próprias divindades. Sem que os colonizadores soubessem, então escolhiam um lugar escondido para celebrar os seus nkisi. De lá até agora, muita coisa aconteceu. Com o tempo e com a influência de outros povos africanos, foram adotados lugares fixos para as celebrações. Aí, aconteceu o nascimento dos terreiros de candomblé, responsáveis pela preservação das línguas, das culturas e pela religiosidade que acolheu o culto ao caboclo. Na África, o culto tanto aos orixás, como nkisi ou vodun era restrito ao núcleo familiar de parentesco consanguíneo, mas com a vinda para o Brasil e a mistura dos escravizados passou a ser uma tradição de família espiritual. O que predominou foi o culto ao ancestral, dando origem ao candomblé que reúne a família de santo que vai muito além da família biológica. Aqui, estamos vivenciando um momento de encontro e encantos com os caboclos protetores deste lugar. No terreiro Mokambo, voltamos a imaginar o sujeito que entra em um navio negreiro absolutamente só. Desgarrado de sua família, de sua terra, de seu lugar, passa dias e dias sobre o oceano em condições que já não precisamos descrever. Perde o seu nome ancestral na entrada do navio e é batizado em nome de um Deus desconhecido. É o início do inferno da escravidão. É justamente nesta adversidade que o escravizado deixa aflorar o sentimento malungo, sentimento de irmão e companheiro na vida e no mesmo desventura. Mesmo remotamente, ser malungo é a perspectiva de continuar a viver a base da sociedade africana que é a família extensa. Uma família em que uma aldeia toda pode ser considerada filha de um pai e de uma mãe que não são seus pais biológicos, ou onde uma pessoa pode ter quatro ou cinco pais e muitas mães que, naturalmente, não são seus pais biológicos. Ou o mais 58


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importante ainda, quando uma aldeia inteira deve ter a responsabilidade de educar cada criança da comunidade ou seja o que seria prática cultural no continente africano se organiza, no Brasil, como religião capaz de agregar, acolher, proteger e defender pessoas fazendo com que o escravizado pudesse sentir a segurança de outra vez pertencer a um grupo de acolhimento e proteção mútua. Daí quando a família ancestral se reconhece através de seus nkisi, orixá, vodun ou com seus encantados e caboclos, e quando se aceitam nas suas similaridades, só resta cantar como cantam os filhos do Terreiro Mokambo. Fala de Taata Anselmo - Taata do Terreiro Mokambo Onzó Nguzo Za Nkisi Dandalunda Ye Tempo. Clique aqui para assistir ao vídeo.

Fala de Luciana Melo - Filha do Terreiro Mokambo Onzó Nguzo Za Nkisi Dandalunda Ye Tempo. Clique aqui para assistir ao vídeo.

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3.3.2 Cantigas de caboclo

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Pena Dourada é o rei Pena Dourada é um rei, Que no alto mora, Oh venha ver seus filhos, Que tanto adora.

Xetruá marrubaxetro! Na Jurema Lá na Jurema 2x Debaixo do pé de Ingá 2x Aonde o luar clareia os caminhos Pra Pena Dourada passar Passáro formoso O pavão é pássaro bonito 2x Com sua pena dourada Aquela que é mais formosa Lá na aldeia onde os caboclos moram Você gostou de mim Você gostou de mim Gostei sim Senhor Você olhou pra mim Olhei sim Senhor Então dê cá um abraço 2x Eu dou sim Senhor Tindo lelê Tindo lelê aê kaisa Tindo lelê ele é sangue real Eu sou filho Eu sou neto da Jurema Tindo lelê aê kaisa

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Roda de Cântigas no Terreiro Mokambo Onzó Nguzo Za Nkisi Dandalunda Ye Tempo. Clique aqui para assistir ao vídeo.

Fala de Taata Fernando - Taata de Dandalunda do Terreiro Mokambo Onzó Nguzo Za Nkisi Dandalunda Ye Tempo. Clique aqui para assistir ao vídeo.

Taata Fernando

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TERREIRO 21 ALDEIA DE MAR E TERRA

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3.4 Terreiro 21 Aldeia Mar e Terra Ao entrar no Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra, deixamos os sapatos do lado de fora. Foi bom sentir os pés descalços no massapé. O contato com esta terra nos dá o sentido de respeito e pertença ao lugar onde se deu inicio às riquezas do Brasil com o suor e o sangue dos nossos ancestrais indígenas e negros no eito da monocultura da cana-de-açúcar. Hoje, a comunidade que se organiza em torno da matriarca Juvani Nery Viana Jovelino e a força dos caboclos, cultiva, nessa mesma terra, sua autonomia econômica e cultural, incluindo a solidariedade e sustentabilidade em suas produções agrícolas e diversas atividades locais como forma de resgate da memória material e imaterial de seus antepassados.

Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra

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No ano de 2000 fomos apresentada à professora Juvani Viana. Chamava atenção de todos, a professora do lugar como participante ativa do projeto da Faculdade de Educação da UFBA em São Tiago de Iguape. O grupo coordenado pelo professor Felipe Serpa, reunia graduandos, mestrandos e doutorandos. Educar as crianças da sua comunidade, sempre foi o grande sonho de Mãe Juvani. Ela ajuntou os irmãos biológicos e gente da terra para construir um salão para ensinar às crianças onde hoje é Escola Cosme e Damião. Na falta de cadeiras, ela nos conta: “Eu já ensinei em banco de pé de coco. Mandava derrubar os pés de coqueiro que morriam, mandava serrar e fazia bancos para osmeninos sentarem, por que eu não queria nenhum fora do colégio. Mesmo assim não havia uma quantidade suficiente. Na entrada para a sala, ela mesma nos conta com alegria que as crianças queriam entrar todas de uma só vez para encontrar um lugar e sentar”. Podemos imaginar a cena da correria das crianças. Mãe Juvani ou a professora Juvani ainda nos conta “Quando eu soube que o colégio tinha direito à merenda, eu comecei a buscar por isso. Hoje, eu é quem faço a merenda no meu colégio, faço tudo porque eu quero que tenha aula.”

Escola Cosme e Damião - Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra 66


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É uma honra ter conhecido a professora Juvani em Santiago do Iguape através do professor Felipe Serpa que registrou sua experiência de mestra e líder do quilombo Kaonge no livro Expressões de Sabedoria – Educação, Vida e Saberes, onde foram entrevistadas Mãe Stella de Oxossí e Mãe Juvani Viana por Nelson Preto e Felipe Serpa. A mãe do quilombo termina a entrevista dizendo “Obrigada. Eu digo às minhas filhas que a gente tem que ensinar por amor. Tudo que a gente faz na vida tem que ser com amor: lavar nossa roupa, fazer nossa comida, sentar pra preparar um plano de aula, tudo por amor! Se você não tem amor, até para comer a comida não é desejável”. Finalmente ela nos afirma orgulhosamente “Ser professor é gostar do outro”. Toda atividade no terreiro tem um propósito que vai além do próprio acontecimento. Como diz Ananias, no Kaonge não se faz festa por fazer. A Festa da Ostra ou o caruru de Vungi, que acontece no dia 27 de setembro de cada ano, recebe professores, alunos, pesquisadores, gente de movimentos sociais, pequenos produtores, chefes de cozinha e amigos da comunidade que apreciam a gastronomia do lugar. O que, no início, seria para estimular parcerias comerciais para escoamento da produção se tornou um evento ecogastronômico, promovendo a organização produtiva, os saberes locais em suas atividades de maricultura, ostreicultura, apicultura, ervas medicinais da mata atlântica, além do beneficiamento ainda artesanal da farinha de mandioca, do azeite de dendê ainda feito no pilão. Essas são ações do CECVI, Centro de Educação e Cultura do Vale do Iguape, atuando pelo fortalecimento do modo de vida quilombola do Iguape.

3.4.1 Cura no Kaonge Ananias é o irmão de Mãe Juvani. Jovem com uma força extraordinária, ele pode ser encontrado liderando a sua gente, cantando e dançando nas apresentações do grupo de

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dança, palestrando para gente que chega de todo lugar. Com a mesma desenvoltura Ananias vem ou lutando pelas políticas públicas, contribuindo para manter forte e visível a sua comunidade. No momento que tomou a palavra, resolveu retomar um momento das falas que cuidava das curas. Lembrou das curas a partir do carvão e da cinza. Lembrou da cura da papeira com a cinza do fogo de lenha, das árvores da mata:

“Então a cura era feita com isso, pegava o carvão fazia uma papa com a cinza passava na papeira e a gente ficava bom com aquele remédio. Colocava limão também. Uma outra coisa era o carvão que cura também. A gente já bebeu muita água de carvão. Bebemos água de carvão ou jogamos a brasa dentro da água, já tomamos água assim. Era nossa forma de purificar a água. Pra nós aqui e essa cura vem também dos caboclos, dos orixás, aliás, toda cura vem deles, porque todos remédios são feitos com ervas medicinais e as ervas medicinais são deles, são frutos das mata. Dentro dessas comunidades quilombolas, antigamente, ninguém sabia o que era remédio. De onde veio o remédio? Ninguém sabia o que era isso, o remédio. Todo mundo sabia que tinha o nosso remédio das ervas. Esses remédios industrializados a gente não sabia. Remédio de farmácia a gente não sabia. A farmácia era essa, era isso aqui. Eram as ervas que a gente tem aqui ao redor das casas de todos os quilombos. Porque foi isso que manteve a gente vivo, porque dificilmente as pessoas aqui vão no médico, mesmo hoje. Quando vão ao médico, não é por qualquer besteira. A gente vive dentro das ervas, dento da verdadeira medicina. Nossas ervas são levadas e roubadas para os laboratórios. Tem

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gente ganhando muito dinheiro. São essas mesmas ervas que vão pros laboratórios, pras indústrias, pra fazer os remédios, são essas mesmas ervas. A gente aqui dá um nome e ensina. Eles pegam aqui tudo, aprende e já transforma tudo, dá outro nome e pronto. Aqui as mulheres vão parindo sem médico e sem enfermeira. Quantas pessoas nasceram aqui no hospital? As pessoas presentes começaram a falar, então tudo indica que isso é uma realidade porque ninguém morreu, ninguém morreu ta todo mundo vivo, sadio e vivo, deferente do que acontece em muitos hospitais.” (Ananias, 2014) A experiência de Ananias tem continuidade em entrevista que acompanha este registro. Ele fala de sua experiência como líder comunitário na luta por políticas públicas para melhoria de vida de sua gente. A comunidade do quilombo Kaonge reúne na sua vida cotidiana fé, festa, alegria, criatividade e muito trabalho que cria sustentabilidade e satisfação para toda gente que se alegra aos pés dos caboclos.

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Fala de Luclécia - Filha do Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra. Clique aqui para assistir ao vídeo.

Fala de Ananias Viana - Filho do Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra. Clique aqui para assistir a primeira parte do vídeo.

Fala de Ananias Viana - Filho do Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra. Clique aqui para assistir a segunda parte do vídeo.

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3.4.2 Cantigas de caboclo

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Tava na aruanda Tava na aruanda da macumba, Como vai como passou meu povo, Deus que lhe dê boa noite meu povo, Boa noite lhe dê Deus camarado meu. Como passou na aruanda do pai Xangô Como vai como esta a passar na aruanda da mãe Iemanjá. Abre-te campo formoso Abre-te campo formoso, 2x Cheio de tanta alegria, Oh cheio de tanta alegria, Estou pedindo ao pai Xangô, A mãe Iemanjá os Deuses da alegria, O pai Xangô, a mãe Iemanjá, os Deuses da alegria Boca da Mata Aê, aê aê boca da mata, Deixa meus caboclos passar boca da mata, Deixa os caboclos passar boca da mata, Deixa eles trabalhar boca da mata. Folha Ajunta folha por folha, tatamirô Ajunta galho por galho, tatamirô Sou filho de uma aldeia, tatamirô E essa aldeia nos protege, tatamirô

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METODOLOGIA

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4 METODOLOGIA O trabalho de etnopesquisa situa a história, a memória, a tradição, histórias de vida, experiências religiosas, vivências e conhecimentos preservados pelo candomblé de caboclo nas suas comunidades. A pesquisa foi sendo desenvolvida a partir da criação de uma equipe de sustentação, multidisciplinar do projeto, integrada por pais e mães de santo, pesquisadores, mestres, doutores em educação, em história e em gestão social, coordenação do projeto e parceiros. A proposta de trabalho de campo desta pesquisa consistiu em um processo de convivência intercultural com os quatro terreiros envolvidos, privilegiando a palavra dos mestres, pais e mães de santo, detentores dos saberes e fazeres relativos ao patrimônio imaterial contidos nas celebrações e rituais, fundamentos, lendas, mitos, danças e gestos, sotaques, cantigas e entoadas e símbolos. Incluem-se também, conhecimentos tradicionais e práticas curativas, privilegiando princípios e valores das relações do povo indígena com o cuidado com a natureza, as pessoas, a família e com as comunidades. Foram registradas as experiências religiosas das comunidades selecionadas, particularmente as suas definições sobre o que vem a ser o candomblé de caboclo; como a casa surgiu naquele local; como os líderes espirituais (mestres e mestras detentores do conhecimento) foram conduzidos a esses postos ou cargos, enfim, produziremos um inventário em formato digital que reflita os sentidos atribuídos pelos membros da comunidade em questão, através de depoimentos orais, rodas de conversas, entrevistas e demais informações que possam servir como fonte durante a coleta de dados. Todo o processo desde a elaboração do pré-projeto até as rodas de conversa para a partilha dos resultados da pesquisa, 77


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a elaboração do projeto de pesquisa foi feita de modo participativo, a partir da equipe de sustentação, com validação das comunidades dos terreiros envolvidos. Foram realizados 05 (cinco) encontros. Primeiro com mestres, reunidos em um só momento os pais e mães de santo e demais integrantes da equipe. O segundo momento ocorreu em cada um dos terreiros, como estratégia de encontro, vivência, partilha, integração e aprofundamento dos conteúdos, destacando a história da casa e as histórias de vida de cada pai e mãe e sua relação com o caboclo regente – Sultão das Matas, Pena Dourada, Andaraí e Caboclo Não Tem Pena. No terceiro momento, nos chamou atenção o elo de confiança que se formou entre as pessoas, vivenciando princípios de harmonia e solidariedade. As casas se abriram sem restrições e novamente deu-se sentido à singularidade de cada uma delas, bem como a união para uma grande e intensa viagem de um navio guerreiro. Todo o planejamento e roteiro pré-estabelecidos foram suplantados por uma força maior da espiritualidade através da roda que nos põe em condições de igualdade. Ao final de cada oficina, se fez presente uma ou mais entidades que foi reverenciada pelos presentes ao Tempo que nos saudou com abraços e cantigas de proteção. Embora tenhamos um projeto com passos pré-estabelecidos, o desenvolvimento das atividades ocorreram em momentos de espontaneidade onde quando foi respeitado o fluxo natural do lugar. O tempo e os afazeres dos terreiros não correspondem ao mesmo movimento do tempo cronológico. Entendemos também que o modelo de relatório tradicional não se aplica às vivências agregadoras e afetivas que experimentamos nas casas de culto aos caboclos. . Tão pouco os padrões que são feitos os levantamentos de patrimônio imaterial brasileiro nos moldes do livro do Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, ainda que se tentasse dividir o levantamento de campo em três vertentes, não sendo possível seguir a categorização típica 78


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área de antropologia, por exemplo, pois houve uma interação de conteúdos abordados: - Aspectos da história da formação do povo brasileiro, memória do culto aos caboclos como patrimônio imaterial afro-brasileiro. - Formas de expressão e manifestações, celebrações e rituais, danças, cantigas e entoadas. - Conhecimentos tradicionais, privilegiando princípios e valores de relação do povo indígena, de cuidado com a natureza, com as pessoas, com a família e com as comunidades e sua influência no culto ao caboclo. 4.1 Marco teórico metodológico A presente pesquisa se assenta em estudos e aspectos de instrumentos jurídicos, direcionados à proteção, à preservação e à salvaguarda do patrimônio cultural imaterial brasileiro. No plano internacional, em 2003, a 32ª sessão da Conferência Geral da UNESCO aprovou a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, no qual alerta para a “[...] necessidade de conscientização, especialmente entre as novas gerações, da importância do patrimônio cultural imaterial e de sua salvaguarda”. O documento define como salvaguarda [...] as medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão – essencialmente por meio da educação formal e não formal – e revitalização deste patrimônio comum em seus diversos aspectos” a fim de promovê-los e salvaguardá-los. No Brasil já existe, pelo menos desde 1920 e, em particular, desde a constituição de 1934 o debate sobe a necessidade de preservação do Patrimônio Nacional. Atualmente, a legislação brasileira é farta a esse respeito e dentre os seus vários instrumentos podemos citar os artigos 215 e 216 da Constituição

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Federal de 1988; o decreto 3.551/2000 que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, que constituem patrimônio cultural brasileiro e também criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial; o Decreto 5.753/2006 que ratificou a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, adotada em Paris em 2003; dentre outras leis, decretos e políticas estaduais e federais que visam a promoção do Patrimônio material e imaterial brasileiro. No que se refere especificamente à preservação do Patrimônio Imaterial, em 1947 foi criado o Centro Nacional do Folclore e Cultura Popular – CNFCP, quando medidas efetivas foram tomadas para proteção do patrimônio cultural imaterial brasileiro. Quanto ao Decreto n° 3.551, que mencionamos acima, o seu artigo 1º, Inciso II, instituiu a criação do “Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social”; ainda no ano de 2000, foi elaborado o Inventário Nacional de Referências Culturais - INRC, o qual estabelece a metodologia voltada para a identificação e produção de conhecimento sobre bens culturais com vistas a subsidiar a formulação de políticas de preservação do PCI brasileiro. O projeto Culto aos Caboclos na Bahia – Registro e Salvaguarda insere-se numa perspectiva de formulação, preservação, promoção e salvaguarda do PCI, especialmente no que se refere ao registro produzido pela própria comunidade que preserva as suas _____________ 1- Artigo 2º, parágrafo 3º da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. UNESCO, Paris, 17/10/2003. Disponível em http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo. do?id=515. Acesso em 15/01/2014. 2- Artigo 2º, parágrafo 3º da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. UNESCO, Paris, 17/10/2003. Disponível em http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo. do?id=515. Acesso em 15/01/2014. 80


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Insere-se também na “preocupação de que os atos de significação patrimoniais não chegassem às gerações futuras. Gerações que cada vez mais envolvidas com computadores e aparatos televisivos dedicam menos atenção e interesse às experiências diretas de criação de seus pais e avós”. (Borges; Leal, 2012, p.3). A proposta desta pesquisa partiu da atenção em fortalecer a memória dos caboclos cultuados nas comunidades religiosas de matriz africana. Neste caso, também o candomblé funciona como importante depositário da cultura do caboclo, adotando uma postura positiva de preservação do pensamento indígena, seu jeito de ser, as tradições, saberes, costumes e dos valores ancestrais. Para tanto, o trabalho de etnopesquisa situa também a história, experiência, vivências e informações preservadas pelo candomblé de caboclo nas suas comunidades. Desta feita, foram registradas as experiências das comunidades selecionadas, particularmente as suas opiniões sobre o que vem a ser o candomblé de caboclo; como a comunidade surgiu naquele local; como os líderes espirituais (mestres e mestras detentores do conhecimento) foram conduzidos a esses postos ou cargos, enfim, foi produzido um inventário que reflite os sentidos atribuídos pelos membros da comunidade em questão, através de depoimentos orais, rodas de conversas, entrevista e demais informações que possam servir como fonte durante a coleta de dados. A Pesquisa sobre a Memória dos Cultos aos Caboclos aconteceu a partir do trabalho conjunto entre o Instituto Tribos Jovens, o Centro de Caboclo Sultão das Matas, o Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra, o Terreiro Ilê Omorodé Axé Orixá N’lá, e Onzó Nguzo Nkisi Dandalunda Ye Tempo - Terreiro Mokambo. Desde o início, a elaboração do projeto aconteceu de modo

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participativo, a partir da equipe de sustentação, com validação das comunidades dos Terreiros envolvidos. Serão realizados 05 (cincos) encontros, primeiro com Mestres, reunindo em um só momento os pais e mães de santo e demais integrantes da equipe. O segundo momento ocorreu em cada terreiro, como estratégia de validação do anteprojeto, sensibilização das quatro comunidades e definição de cronograma de trabalho. A pesquisa sobre a qual tratamos neste projeto não é pioneira, no entanto é sabido por nossa comunidade que há um número insuficiente de registros/documentos relativos à perpetuação da memória dos caboclos em bibliografias que já tratam a temática. As principais referências de pesquisas anteriores partem das obras O dono da terra: o caboclo nos candomblés da Bahia (Jocélio Teles) e Encontro de Nações de Candomblé Centro de Estudos Afro Orientais (CEAO), a tratar sobre as formas das práticas de cultos aos caboclos. Outra obra orientadora para o trabalho foi Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos (Ecléa Bosi), já que entendemos que a memória está implícita nos mais velhos, fonte de toda tradição. O trabalho foi desenvolvido a partir da criação de uma equipe de sustentação, multidisciplinar do Projeto, formada pelos pais e mães de santo, pesquisadores doutores em educação e história, antropólogo, coordenação do projeto e parceiros. A proposta de trabalho de campo desta pesquisa propiciou um processo de convivência intercultural com os quatro terreiros envolvidos, privilegiando os mestres, pais e mães de santo, detentores dos saberes e fazeres relativos ao patrimônio imaterial contidos nas lendas, mitos, fundamentos, sotaques, cantigas, símbolos, conhecimentos e práticas curativas.

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4.2 Processo de construção coletiva - trajetória percorrida 4.2.1 Encontro da equipe de sustentação O encontro da equipe de Sustentação previu e efetivou o alinhamento da equipe e discussão do Projeto, com a participação de pais e mães de santo, pesquisadores e coordenação. Foi dado início ao trabalho de campo da pesquisa. O primeiro encontro foi realizado no dia 30/08/2013 no Centro de Caboclo Sultão das Matas, com 22 participantes, sendo marcado pela expectativa da apresentação do projeto e de reunião de toda a equipe de sustentação. O dia estava chuvoso. Esperamos um pouco para o início da nossa atividade. Descalçamos nossos pés e nos juntamos aos convidados e filhos que chegaram com alguma antecedência. Os filhos da casa, prestimosamente, já estavam à nossa espera. Uma mesa coberta no meio do barracão com alguns objetos rituais indicava um lugar de oração para os filhos. Para nós, com uma breve genuflexão, nos apresentamos às entidades que acreditamos contar com o apoio para o trabalho que nos propusemos. O primeiro a chegar foi Taata Anselmo, que foi recebido e saudado por Doné Conceição. Com o mesmo jeito afetuoso, foram recebidos a Mãe Juvani, Lucrécia, Rosângela, Solange e Francisco. Finalmente o pai Augusto César acompanhado de sua irmã biológica Maria de Nazaré e outros filhos de santo. Todos acomodados, logo um cheiro de incenso chamou a nossa atenção, quando Doné Conceição surgiu cantando e purificando o ambiente e as pessoas. Toda assistência saudou a sua presença cantando com ela: “Vamos trabalhar caboclo. Vamos trabalhar guerreiro.” O momento foi de acolhimento. Nós nos olhamos e nos reconhecemos como família de santo. A palavra de cada um dos nossos mestres se fez fácil, acolhedora e simples como é o jeito de ser do caboclo.

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Equipe de sustentação 84


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Fizemos anotações e fotos devidamente autorizadas. Foi tanta riqueza de informação, que solicitamos autorização também para gravar. Daí por diante, gravamos tudo, exceto em momentos da presença de entidades e encantados. Após uma breve introdução e apresentação do projeto, os nossos mestres do saber iniciaram as suas apresentações e depoimentos que serão aqui sintetizadas. O Pai Augusto César declarou sua origem ketu e filho do Gantóis. Na sua fala, lamentou que muitos estudiosos e até estrangeiros já pesquisaram e escreveram sobre a religiões de origem africana, entretanto sobre o culto aos caboclos e seus rituais não há registros significativos; mas nem por isso podem ser esquecidos. O ritual de caboclo juntou-se aos cultos negros africanos e tomou forma de candomblé de caboclo. Saberes e sabedorias se encontraram e progrediram para a religião que hoje é a melhor motivação para a sua vida. Declara ainda: “O caboclo invadiu minha casa e minha vida. Eu estou muito feliz em estar aqui.” A cada participação, podíamos reconhecer aspectos da força, a fé, o trabalho e muita solidariedade. A Equede Maria de Nazaré, na sua fala emocionada, declara que a comunidade do Ilê Omorodé Axé Orixá N’lá, quando recebeu o Caboclo Andaraí, não sabia o que fazer nem como cuidar. A própria entidade ensinou e foi orientando para o que deveria ser feito. A Mãe Juvani apresentou-se, demonstrando entusiasmo e dizendo: “nunca participei de uma reunião como esta”. Disse ainda que encontros assim fortalecem a religião e dão continuidade ao processo de união entre negros, indígenas e brancos pobres como foi iniciado na edificação dos quilombos que deram início ao processo de liberdade do povo negro escravizado no Brasil. Diz ainda que “se tudo isto tivesse começado a mais tempo teria ajudado muita gente a pensar que o mundo não pode se manter

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com tantas separações”. Entendemos que a sua vida religiosa se organiza na relação com a sua família, sua comunidade onde é professora e uma bem marcada função social que vai do acolhimento a pessoas até a luta por políticas públicas para o quilombo Kaonge. A sua apresentação ainda foi marcada pelo desejo de esclarecimento como instrumento de evolução e crescimento espiritual. Taata Anselmo, do Terreiro Mokambo, iniciou sua fala declarando também a sua origem de candomblé de Angola. Ele nos relata sobre aspectos da história do povo banto e das diferenças entre os terreiros e seus rituais por isso a necessidade de tolerância e respeito entre os diversos rituais de candomblé. Outra questão abordada diz respeito ao caboclo como dono da terra, com uma cultura própria no que diz respeito ao amor a natureza e suas relações de cuidados com a família, mais especialmente com as crianças e com os mais velhos.

Encontros da equipe de sustentação 86


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Doné Conceição, matriarca da casa foi a última a se apresentar, contando que nasceu em Cachoeira onde teve sinais para sua vida religiosa aos 05 anos. Hoje, senhora de uma força espiritual surpreendente, rememora que trabalhou nas mais diversas atividades, sentindo toda espécie de dificuldades que aumentaram depois que a sua mãe abandonou a religião. Durante a sua fala, afirmou que o caboclo e a natureza lhe deram tudo. Conforme diz Doné Conceição, “O caboclo me deu as folhas. Eu me alimentei com folhas de tomate, azeite e toucinho. Quando meu pai cortou a perna, teve como remédio banana de São Tomé e cinza de charuto. A cura com ervas, frutas e outros elementos da natureza vieram através dos caboclos”. Doné Conceição trabalhou no convento e aprendeu todo tipo de trabalho e serviços domésticos. Teve uma juventude regada a trabalho, rezas e visões. Não foi fácil ser o que é hoje. Chegou a hora em que ela teria que fazer o juramento a Nossa Senhora. Obediente às circunstâncias vividas naquele momento, ela aceitou participar da cerimônia. Ficou atuada durante as rezas que antecediam a hora do juramento solene e foi um dia muito difícil. Mais uma vez, ela foi protegida pelos caboclos que a levaram até a casa da mãe de santo onde tudo foi resolvido e começou, de verdade, a sua vida religiosa. Terminando a sua fala, eis que salta para o mundo visível o Caboclo Sultão das Matas. Xetruá! Ele canta, cumprimenta cada um dos presentes, dançando com boniteza, elegância e passos largos. Sua presença traz uma alegria que transforma o rosto das pessoas. O ritual envolve todos os presentes que acompanham cantando com palmas, acompanhando todos os movimentos da entidade. Ele canta e fala chamando a atenção das pessoas para assuntos do cotidiano, para saúde para o cuidado consigo e com o outro. Taata Anselmo tirou muitas cantigas, que foram respondidas pelos filhos e amigos da casa. Extraordinário, como o culto ao caboclo se organiza por si mesmo! 87


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Daí em diante foi só seguir aos comandos da entidade. O encontro foi finalizado com uma cantiga de despedida. “Eu já vou me embora para minha aldeia...” Em seguida, foi oferecida uma mesa de frutas que saboreamos, celebrando o novo grupo que foi crescendo em número e amizade construída, verdadeiramente, ao pé do caboclo. 4.2.2 Encontros nos terreiros Foi realizado um encontro com a Equipe de Sustentação para compartilhamento do projeto, que contou com a presença de vinte e duas pessoas, e quatro encontros nos terreiros, envolvendo cento e dezoito pessoas, totalizando cento e quarenta pessoas envolvidas. Estas atividades tiveram o objetivo de compartilhar o projeto e dar continuidade ao trabalho de campo de pesquisa, conforme planilha abaixo:

4.2.3 As oficinas nos terreiros As oficinas “Culto Aos Caboclos - História, Memória, Tradição e Conhecimentos” aconteceram entre 01 de agosto a 30 de setembro de 2014 e teve como objetivo principal o diálogo com a comunidade para registro do Patrimônio Cultural Imaterial AfroBrasileiro - PCI e da importância identitária dos Cultos aos

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Caboclos na Bahia. O público participante foi composto de pessoas da comunidade de terreiros, estudantes, educadores, gestores e pesquisadores. Foram realizadas, com a participação de mestres de cada terreiro, rodas de conversa, onde todas as pessoas se encontram na condição de potencialmente iguais para contribuir na partilha de conteúdos trabalhados. A esta altura, demos início ao diálogo com as comunidades para registro do culto ao caboclo de cada casa. Estamos trabalhando na construção de uma parte do Patrimônio Cultural Imaterial Afro Brasileiro e da importância identitária dos Cultos aos Caboclos na Bahia. Um belo material foi transcrito e trabalhado para escrita deste inventário. Podemos afirmar que estamos diante do que nos propomos como história, memória tradição e conhecimentos práticos e rituais. Para as oficinas, os terreiros novamente se abriram com toda generosidade. Foram convidados filhos da casa, estudantes, educadores, gestores e pesquisadores. Com a participação efetiva dos mestres, trabalhamos com a metodologia das rodas de conversa. A principal característica deste modo de dialogar está no fato de que todas as pessoas são potencialmente iguais para contribuir na partilha das experiências coletivas e pessoais que serão transformadas em conteúdos sistematizados. Nas manifestações dos caboclos, celebra-se o encontro, o afeto, a alegria nas danças e nas cantigas e entoadas. As cantigas são versos simples, muitas vezes improvisados na hora e dizem respeito ao trabalho, cura, saúde, condição de pertença, encontros, força, coragem e muitos aspectos de cuidados que detalharemos no relatório final em formato de inventário virtual. A comida servida foi de acordo com a ambiência e com uma harmonia de dar gosto. Na verdade, o processo da oficina teve início desde a compra dos alimentos de acordo com o

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acontecimento determinado por cada casa. É importante dizer que não há homogeneidade entre as casas. Não é tudo igual. Assim, cada casa foi tratada particularmente. O que acontece é que na essência existem mais coincidências do que diferenças entre as casas e seus cultos, sua intenção e prática ritual.

4.2.4 Rodas de conversa

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REGISTRO PARA SALVAGUARDA DO CULTO AOS CABOCLOS NA BAHIA

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5 REGISTRO PARA SALVAGUARDA DO CULTO AOS CABOCLOS NA BAHIA Em um dia de muita atividade na casa, Doné Conceição me recebeu pacientemente para uma conversa que abriria caminhos importantes para melhor compreensão do que estamos construindo. Isto significa que cada vez mais estamos visualizando novos aspectos do culto, coisa que parecia tão simples de ser tratada ao longo da elaboração do projeto. Eu tinha muitas dúvidas. Iniciamos a nossa prosa com a indagação: O que é o culto ao caboclo? Para Doné Conceição, é coisa de todo dia. Todo dia é dia de celebração. Todo dia é dia de cuidar das pessoas. Todo dia é dia de caboclo. Celebramos o caboclo quando olhamos o sol ao amanhecer, quando entramos nas matas ou nos rios ou no mar, quando rezamos e fazemos nossos pedidos ao vento ou ao mar. Na verdade, a celebração ou a festa do caboclo como obrigação, com data marcada, tem início dias antes e às vezes bem distantes do lugar de festas. A festa começa no coração de cada um que, mesmo distante, ama e confia no caboclo e a casa onde nasceu seu encantado. Tudo que acontece antes e depois da festa faz parte do culto ao caboclo e é planejado com antecedência. Há o planejamento pessoal, o planejamento da casa e o planejamento do coletivo. No âmbito pessoal, os filhos que possuem empregos cuidam para que estejam livres nos dias de obrigação do caboclo. A palavra obrigação não tem sentido como algo que é obrigatório, mas revela o sentido da aproximação da pessoa com sua entidade protetora. 5.1 Cantigas, entoadas e percussão Cantar e dançar no candomblé significa rezar com o corpo todo. Significa se colocar em movimento com alegria. Alegria que importa para atendimento aos pedidos que não rareiam em todas as reuniões. As cantigas identificam, , chamam, abraçam e ensinam

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ensinam a viver. Quando um caboclo chega, cumprimenta sempre. Às vezes, com cantigas conhecidas e muitas vezes improvisadas na hora. Desde a abertura do encontro ou da reunião ou da festa, o caboclo vai sempre cantando motivado por acontecimentos ou aconselhamentos necessários. Desde o primeiro encontro com o nosso grupo de sustentação, fomos saudados e acolhidos. É relevante notar que o caboclo que canta, dança e até brinca com as pessoas chega com muita reverência conforme esta cantiga: Ajoelha caboclo de pena/ Pede licença na aldeia reá 2x/ Eu vim buscar as muitas forças/ E pedir licença pra trabalhar. Você gostou de mim, gostei sim senhor, você olhou pra mim, olhei sim senhor, então dê cá um abraço eu dou sim senhor, então dê cá um abraço, eu dou sim senhor. Um abraço dado de bom coração é o mesmo que uma bênção, uma bênção, uma bênção.

A despedida também é cantada: Eu já vou me embora / Para a minha aldeia / Eu já vou embora camará para a juremeira. Na despedida do nosso encontro, Pena Dourada cantou: Selei, selei meu cavalo selei/ Selei, selei meu cavalo selei / vou me embora pra aruanda / o meu cavalo selei. Cantar e dançar são uma forma de se comunicar do Caboclo. Esta também é uma forma legítima de rezar. Dançar é rezar com o corpo todo. Observamos também que cada cantiga é repetida três vezes.

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5.2 Casa de caboclo: lugar de cuidado e acolhimento À medida que o dia da festa se aproxima, cuida-se da decoração do barracão, o local da festa. Importante o cuidado com a organização das roupas de trabalho e as roupas para a festa e outros elementos rituais. Saias estampadas são produzidas para o dia da festa. As roupas são de muita importância para os filhos. Cuidar do corpo, preparar-se para receber seu caboclo em dia de festa ou não, é obrigação de todo filho. No Centro de Sultão das Matas, “o caboclo se veste de natureza”. As cores do caboclo é a cor da natureza, diz Doné Conceição. O caboclo se veste da cor da terra, da cor do céu e do mar, da cor das matas, da cor da lua, cor do sol, cor do arco-íris e assim compartilha a sua energia com a natureza. Seu Sultão das Matas prefere a cor da terra e não dispensa o cocar. A pena é parte importante da roupa do caboclo e transcende a sua forma física. É a pena que protege o corpo do caboclo e como acontece com os indígenas, o cocar identifica o índio e sua tribo e se constitui parte da sua identidade. Este também é o mistério do Caboclo Pena Dourada. Ele veste uma roupa bem característica de um indígena conforme a foto do acervo do Memorial Kisimbie.

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O assentamento do caboclo é a obrigação que propicia a efetiva aproximação da pessoa com seu caboclo, seu encantado, sua entidade protetora. Para este encontro mítico, é necessário um tempo de reverência que se caracteriza pelo recolhimento para aprendizagem e convivência com a comunidade religiosa, sua família ancestral. O convívio inclui, além da prática de reverência ao dono da sua cabeça, também o respeito aos mais velhos e aos seus irmãos, madrinhas, padrinhos o que é extensivo a todos os membros da casa. Também estimula, obediência aos princípios que organizam a casa, cuidado consigo, com o ambiente e com os outros.

Os terreiros são marcados pelo acolhimento. É o encontro com uma nova família. A jovem que aparece na foto foi apresentada como alguém que está chegando ao Centro de Caboclo Sultão das Matas. É uma pessoa que está iniciando sua caminhada religiosa. A julgar pela postura das três pessoas, é possível perceber que tanto a Doné Conceição como a Equede Josenete estão acolhendo

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e amparando a jovem que está a caminho de aprender os princípios da sua família ancestral e do culto ao seu caboclo, que já lhe oferece o caminho e proteção para sua vida. No futuro, esta mesma pessoa devolverá este cuidado da mesma forma carinhosa e responsável para outra irmã mais nova que buscará também esta casa mãe. Ela se veste de acordo com a sua posição de noviça. É uma roupa simples, uso contas pequenas e anda descalça. O traje habitual expressa a idade e o compromisso da pessoa com as entidades protetoras. Há uma variação das formas de vestir-se de acordo com o dono da cabeça, a idade de feita ou assentada e o compromisso com a casa. O traje feminino, de um modo geral, inclui camizu, calça de baixo, vestido ou saia, bata, atakan e pano da costa. O uso das batas está associado a cargos e funções relativos à posição da hierarquia da casa. Os homens vestem a tradicional roupa de ração. 5.3 Comidas, bebidas e rituais O momento das compras aumenta a atenção. São duas notas, uma para o mercado e a principal é a nota da feira onde geralmente está a comida das entidades festejadas. Comidas das entidades, comidas para os filhos e para os simpatizantes. Este é um item muito importante. Muitas vezes, é o próprio caboclo que dita o que quer para a sua festa. Daí para a feira, toda atenção é pouca. A comida é sempre muito boa e farta. Tudo que se come é da melhor qualidade. “A gente come o que o caboclo come” diz Doné Conceição, por isto que a comida é tão boa.

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5.4 O candomblé de caboclo e seus símbolos

“O poder da palavra é terrível. Ela nos une e a revelação do segredo nos destrói.” (J. Vansina) O candomblé de caboclo tem seus fundamentos. Podemos fazer esta afirmação depois de muita prosa e convivência com o nosso grupo de sustentação. Doné Conceição, Pai Augusto César, Taata Anselmo e Mãe Juvani e seus respectivos caboclos. Não revelaremos tudo o que ouvimos e presenciamos. Não nos cabe, nem este é o propósito do registro com o qual nos comprometemos. O segredo é sagrado. Há uma parte do segredo que é inalcançável. As ferramentas que nos foram oferecidas pela academia não correspondem às nossas necessidades e não nos obriga à revelação do indizível. O segredo está também na entrega de si para a entidade que não se consegue definir porque se trata de um encantado. Acontece, porém, que o que não é definível também não pode ser desprezado sem buscar alguns caminhos deste segredo para a cura que parece a razão do caboclo ser cultuado. Importante observar que toda reunião vem conduzida pelo pretexto da cura. Neste contexto, está inclusa a cura das coisas, dos lugares e, principalmente, das pessoas e suas relações. A cura, igualmente, vem da lua nova ou da maré de vazante. A lua e a maré trabalham juntas. Cada fase da lua tem a sua importância na cura que buscamos para a nossa vida. Três dias antes da lua cheia, os pedidos são aceitos e resolvidos também de acordo com a fé e o merecimento de cada um.

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A CURA

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6 A CURA A cura vem pela luz e a vida da mata. Em cada caminho da mata, mora um caboclo. Com este pensamento, qualquer um pode entrar na mata. O caboclo, quando chamado na mata, ele caminha na frente e deixa um rastro de luz que ilumina o que a gente precisa. É a luz da força e da inteligência para a busca da cura. Não há bicho e não há sombra e não há medo que atrapalhe. As raízes aparecem, as folhas se iluminam e os rios correm em sua direção. Doné Conceição ainda lembra que “a questão é fazer as coisas na hora certa”. A água do sereno das plantas cura, é só saber como e quando colher. É na mata que o dia amanhece primeiro. Os raios do sol mergulham na mata e caem sobre a terra alimentando a vida. É aí o lugar da cura. 6.1 As folhas No candomblé, costuma-se dizer kosi ewé, kosi orisa ou, sem as folhas não há orixá. Sem as folhas, sem as matas não existiria candomblé nem de orixá, nem de nkisi, nem de vodun, muito menos de caboclo. No Kaonge, quando começamos a falar de folhas, a Mãe Juvani começou a cantar: “Ajunta folha com folha tatamirô. Ajunta galho com galho tatamirô. Somos de uma aldeia tatamirô. Esta aldeia nos protege tatamirô”. As folhas têm seus segredos e seus encantos e nos protegem. Pelo menos em duas casas visitadas, no espaço mato do terreiro, pode-se distinguir as árvores sacralizadas por serem estas geralmente adornadas por um laço de pano branco ou pela presença de recipientes de barro com oferendas. Cada terreiro tem que ter seu espaço mato possível. Mesmo os terreiros urbanos conseguem um espaço concentrado para o cultivo de folhas para as principais atividades rituais. Vale ressaltar que a colheita das folhas demanda um extremo cuidado e só deveriam ser colhidas onde as plantas crescem livremente e por pessoas competentes para o assunto. 102


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Cada folha tem suas propriedades particulares e quando misturadas podem ser preparadas para diversos rituais ou como remédios para a cura do corpo ou dos males espirituais. A folha, junto com a água, cura, purifica, abre caminhos e cria a comunicação entre as pessoas e o mundo da espiritualidade. Mãe Juvani afirmou que não há diferença entre o tratamento das folhas no candomblé e nas casas de caboclo. É preciso ter conhecimentos das folhas, da hora da colheita, dos preceitos pessoais para não atrapalhar ao invés de ajudar. Entendemos que a sabedoria da pessoa não depende da idade civil, mas da idade de feitura no santo ou no caboclo. Algumas folhas usadas no candomblé de caboclo: transagem, sangue-lavou, tapete de oxalá, amescla, aroeira, cajá, madororó, são gonçalinho, capim-santo, hortelã, capim-de-burro, alfazema, cidreira e água de alevante.

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6.2 A àgua A água, como elemento do universo vivo, continua brotando de qualquer ponto do corpo da terra, abençoando nosso solo, lugar sagrado onde vivemos. Maltratada pelos abusos da humanidade, a água, na sua fluidez e mobilidade, continua nos ensinando a paciência de contornar obstáculos e a generosidade que alimenta a existência de todos os seres vivos, mantendo o equilíbrio do mundo físico e equilibrando a vida espiritual que conduz a organização do mundo. Impossível falar de caboclo separado da água. A água acompanha todos os rituais de caboclo em forma de banhos com ervas, chás e infusões. Água como primeiro sustento do ser humano, acompanha quem está recolhido oferecendo-se como alimento, purificação e proteção. O banho ritual antes do sol nascer vai além do esperado. Neste momento, pode-se constatar o respeito e o cuidado com o corpo e a vida do outro. O banho não se resume apenas ao banho que higieniza. O banho com a água sacralizada contribui para preparação do corpo do iniciado para aproximação do encantado ou o caboclo. Neste momento, a água recebe tratamento especial com as ervas e rezas. E o caboclo ou encantado será cada vez mais presente. Ele estará entre nós sempre que se fizer necessário. Ele chegará como a água encarnada que canta, dança, reza ensinando como se enfrentam os obstáculos que a vida apresenta.

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6.3 O fumo, o fogo e a fumaça O fogo também é luz e tem força. O fogo transforma coisas do mato em comida. Da fogueira, emana o fogo e a fumaça que reúne e alimenta a sabedoria. A fumaça, o incenso limpa e abre caminhos para as boas energias. Salve a fumaça! Dizem os juremeiros. O cachimbo e o charuto, com sua fumaça, é um dos fortes fundamentos no culto do caboclo. É um jeito de falar com os encantados e com os ancestrais. O fumo é um elemento que faz

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parte dos rituais sagrados. É levado para a mata e oferecido como sinal de respeito, pedido de permissão e proteção para a entrada. “É folha verde que se queima quando é pra queimar. É limpeza, é energia que é levada pelo vento para onde tiver que levar. Nem mais nem menos.” (Doné Conceição, 2015)

A fumaça purifica o ambiente e as pessoas antes e durante os rituais

6.4 A esteira Na verdade, tanto o pensamento de matriz africana como o jeito caboclo de ser não separam a pessoa dos animais, nem do ar, da água, do fogo, da terra nem das folhas. Uma árvore não é apenas uma árvore. É uma parte de nós, nascida da mãe terra e irmã de toda natureza. Não é sem motivo que as cantigas de caboclo estão sempre saudando o solo sagrado, seja cantando, rezando, saudando também os astros e rios. Ao longo do recolhimento, a pessoa assume uma nova relação com a terra, agora através da esteira que passa a fazer parte deste lugar sagrado.

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É uma relação de amor, de afeto e de crescimento interior, com o outro e com a comunidade. Da esteira, que também tem sua origem na terra, levanta-se, gradativamente, ao longo da vida sem perder a humildade aprendida com a iniciação. Sobre a esteira assentada na terra, quando nos encontramos de obrigação, é que nos aproximamos da força da espiritualidade que nos acompanhará sempre.

A esteira é também conhecida como decisa ou dicisa. Este é um nome de herança banto no candomblé de angola. Recebe o nome de eni no candomblé de ketu e de zocré pelo povo fon no candomblé jejê. A esteira, conhecida como esteira de nagô, é confeccionada com palha trançada. Outro tipo é confeccionado com as palhas horizontais amarradas com cordão. É a esteira de cigano ou esteira de piri. Esteira, nos terreiros, é lugar de dormir e de comer para os que estão sendo iniciados. Serve como mesa de oferendas e comidas ritualísticas às entidades cultuadas. É lugar para colocar folhas e outros elementos durante as reuniões de cura. Lugar de sentar para os mais jovens e crianças. E durante toda vida, é o lugar onde

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nos colocamos de joelhos para rezar, louvar e, sobretudo, agradecer aos nossos ancestrais. Dormir na esteira nos remete à ideia de princípio da vida, de encontro com a ancestralidade. Significa estar em contato com o elemento que nos deu a vida e nos alimenta, fortalece sempre: a terra! A palavra obrigação no candomblé não significa fazer qualquer coisa como por obrigatoriedade, mas significa estar mais próximo das suas entidades protetoras. Dependendo da casa, algumas observações são importantes para o uso da esteira. Pessoas de orixá masculino carregam a esteira sobre o ombro direito. Pessoas de orixá feminino carregam a esteira debaixo do braço. Pessoas iniciadas, homens ou mulheres, de orixá masculino, não levantam a esteira do chão. No Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra, quando há pessoas de obrigação, somente a Cabocla Jaquaracira pode levantar a esteira.

6.5 A cabana

“A cabana é algo muito especial para a festa do caboclo. É o mais sagrado dentro do sagrado. Ainda sinto a emoção de quando eu fiz pela primeira vez a cabana para Pena Dourada. Eu vim fazer essa cabana para Pena Dourada, lá ele virou e pediu para que eu servisse a jurema, e eu servi a jurema. Puro mistério que vai durar para sempre.” (Taata Fernando, 2014)

A Doné Conceição também nos fala da cabana como lugar muito especial e de fundamento do caboclo. “A verdadeira cabana é de ouricuri. Uma ou duas pessoas, no máximo, são escolhidas para fazer a cabana. A cobertura deve ser feita por uma só pessoa, outra ajuda trançando as palhas. Tudo deve acontecer antes do sol nascer. A cabana é de fato o lugar do caboclo e de sua obrigação, onde tudo deve ser arrumado com arte e muito capricho. As mulheres tem importante participação nesta

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obrigação e devem comidas.”

se ocupar de ornamentar e preparar as

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6.6 Jurema: segredo sagrado que reúne, cura e traz alegria no ritual do caboclo Na roda de conversa, realizada no Terreiro Mokambo, a fala do Taata Fernando nos leva a conhecer aspectos importantes do culto ao caboclo. Ele se apresenta: “Meu nome é Fernando. Sou iniciado como Taata de Ngunzo do Terreiro Mokambo, desde outubro de noventa e seis, data de fundação da casa e após os quatorze anos da minha obrigação, recebi o cargo de Taata Komunguengi, pai pequeno da casa, mas a principio fui confirmado para Taata de Ngunzo de Dandalunda. Pra mim era o suficiente. Mas é daí que começa a minha relação com o candomblé e com a casa Terreiro Mokambo. Tudo veio através de Pena Dourada.” Pena Dourada é o caboclo da casa. É um encantado protetor das pessoas e da comunidade. É quem dá início e é quem finaliza o ciclo de festas da casa. Taata Fernando disse que não conhecia candomblé, que odiava o candomblé por ser pertencente a uma família católica que considerava o candomblé era coisa do Diabo. A fala do Taata Fernando não é única nem é uma novidade. Ser contra a religião afro-brasileira é uma prática comum e nas quatro casas que se constituem como nosso grupo de sustentação ouviu-se declarações idênticas de vários filhos. Também deixa o que pensar quando mesmo os adeptos do candomblé se recusam a aceitar e cultuar o seu caboclo. Rejeitado mesmo que de modo inconsciente o caboclo não abandona seus filhos. O caboclo permanece junto e atendendo as necessidades indistintamente. Importante é que nas falas das pessoas, muitos aspectos do culto aos caboclos são desvelados o que veio facilitando e enriquecendo por certo o trabalho como estamos apresentando. São falas que por si só se autorizam pela

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convivência com o sagrado e seus desdobramentos, principalmente de cuidado e cura. Taata Fernando continua, ”Tudo aconteceu para atender de má vontade, um pedido da minha ex-esposa. Ela queria oferecer uma jurema para o caboclo. Importante é uma mulher não faz jurema, principalmente se estiver menstruada. Ela prometeu a jurema pro Caboclo Pena Dourada e no período ela estava menstruada e não pode fazer. Anselmo tinha ido pra os Estados Unidos. Aproximava o dia da chegada. Faltava uma semana pra Anselmo chegar, e assim que ele chegasse ia fazer uma oferenda pro caboclo, coisa que eu não queria nem tomar conhecimento. Ela me pediu, insistiu que eu fizesse a jurema, até por um favor que ele já tinha feito a mim, e ela. Terminou que eu fiz a jurema para o caboclo. Depois fui levar a jurema no dia, que tinha que ser levada e é daí que se inicia toda minha historia com o caboclo”.

A Juremeira 111


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Nesta fala pode-se perceber que o encontro das pessoas com as entidades não acontece através de um planejamento com dia e hora marcada. A aproximação com o caboclo aconteceu exatamente pela interdição de outra pessoa. Precisam ser considerados também os preceitos da religião e o respeito pela tradição e seus fundamentos. Ao longo das rodas de conversa e oficinas foi possível observar que geralmente é de uma cadeia de acontecimentos aleatórios que resulta uma relação religiosa para toda vida. Assim o que foi declarado indica o nível da afinidade das pessoas com o caboclo ou encantado, a posição da mulher em relação aos fundamentos da religião, a solidariedade e o agradecimento pelo beneficio recebido e principalmente o valor da jurema como segredo sagrado de amparo, cura física e espiritual. Neste ponto, pedimos licença para comentar a fala do Taata Fernando para dizer de outras falas sobre a jurema. No candomblé de caboclo, a jurema é uma palavra de múltiplos significados. Jurema pode significar muita coisa inclusive é utilizada como nome da própria religião em Pernambuco ou na Paraíba. Jurema é templo, é festa, é bebida sagrada, é magia, é cura e muito mais. Doné Conceição fala da jurema como “bebida nativa com elementos que são usados dentro de cada ritual de cada caboclo.” Cada caboclo tem sua jurema e tem uma pessoa que foi escolhida para preparar a jurema. A jurema varia na sua composição. A base pode ser vinho ou suco da fruta da uva. Há terreiros que servem aruá, mistura de água, rapadura e gengibre. A bebida que é especial merece também recipiente especial. A jurema é servida em talha de barro em vasilhas também de barro. É comum que quem lida com o preparo da jurema a afirmação da sensação de bem-estar durante esta missão. Fernando diz: Eu me sinto muito bem, a começar pelo preparo da jurema. “Quando estou ralando os elementos para o ritual ou pilando o que tem para

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pilar eu me sinto privilegiado. Eu procuro me purificar espiritualmente, corporalmente, para cumprir a minha obrigação com o Caboclo Pena Dourada”. Este é o sentido transformador da jurema. “A jurema pode curar. A jurema não é uma bebida para o caboclo beber pra se embriagar, mas é uma bebida que ele pode dá como remédio a uma pessoa. Então eu me sinto privilegiado, de fazer isso de fazer esse preparo antes que Pena Dourada chegue para finalizar a sua jurema.” Sobre a sensação de quem cuida das coisas do caboclo, vale considerar que “cuidar das coisas do caboclo é uma ação que não tem palavra pra explicar. É uma coisa que vem que toma de quem não vira no santo, nem no caboclo, porque se trata de pessoas que não incorporam entidades nem encantados.”... “É inexplicável porque segundo estas pessoas, é um momento que, ao se sentirem diferentes, se tornam mais atentos do que nunca. E tudo acontece com muita leveza. É como se o caboclo tivesse ali irradiando. Ele sabe o que quer e vem fazer a coisa acontecer.” (TAATA FERNANDO, 2014) 6.7 Pedras e lagedos Pedrinha miudinha De Aruanda aê Lagedo tão grande Tão grande em Aruanda aê Meu lagedo é muito grande de pedrinha miuda De pedrinha miuda, de pedrinha grauda Pedras e pedrinhas são símbolos importantes, cantados em todo candomblé de caboclo. Em muitas manhãs, podia-se ouvir, muitas vezes, esta cantiga pelo serviço de alto-falante a voz do Ferroviário que se fazia ouvir no subúrbio de Periperi. A voz era do saudoso Joãozinho da Goméia, não por coincidência, avô de santo de Taata

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Anselmo. No momento, é a Doné Conceição que nos lembra o significado das pedras. As pedras e as pedrinhas são todos que acreditam que são iluminados e protegidos pelos caboclos, que não fazem distinção entre os seus protegidos. Todos são considerados de igual valor e merecimento, só depende de cada um. Também nos chama a atenção, nesta mesma cantiga, a presença do lajedo que não é apenas um acidente geográfico ou forma de relevo da terra nos solos continentais e costeiros. O lajedo, como as matas, é a morada do caboclo. É onde vivem várias qualidades de caboclo, de origens diversas. O caboclo é das matas, é dos lajedos, é boiadeiro e pode viver tanto no mar, como nos caminhos, nas matas ou nas minas.

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REZAS, LOUVAÇÕES E BÊNÇÃOS

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7. REZAS, LOUVAÇÕES E BÊNÇÃOS Iniciamos este trabalho com um fragmento do texto extraído do Torah que nos fala “ao nos aproximar de outro povo ou de outra cultura ou de outra religião, é dever tirar os sapatos, pois o lugar ao qual estamos nos aproximando é sagrado e Deus esteve lá antes”. Esta é uma afirmação mais que verdadeira, entretanto, quando se participa de uma reunião de candomblé de caboclo, em todos os momentos rituais é possível perceber que este cuidado não aconteceu com o encontro entre os jesuítas e o índio brasileiro. Ao contrário é fato que o universo espiritual do outro foi impregnado pela educação salvacionista pregada pelo cristianismo e que afetou a vida do índio nas profundezas da sua realidade humana e espiritual. A lembrança ancestral que estaria contida nas rezas e cantigas como expressão da alma indígena foi dilacerada na sua origem e tomaram uma forma diferente do diálogo com os deuses protetores dos seus antepassados. O que temos no plano histórico não deve ser limitado a uma interpretação apressada, entretanto nos arriscamos fazer algumas considerações. O culto aos caboclos possui aspectos da reminiscência da intervenção dos jesuítas na educação dos índios que predominou durante séculos. É a história de uma civilização invasora, ocupada de “converter o gentio” sem nenhum consideração a natureza do índio e particularmente às mulheres “que ao lado do diabo e dos pajés teriam já o seu lugar reservado no reino das trevas”. Gambini nos fala, por exemplo, das vozes dos espíritos escutadas pelos índios nos seus maracás que foram substituídos pelo som dos sinos. Podemos imaginar o efeito desta transferência em momentos distintos como nascimento, casamentos, mortes ou instantes de manifestação divina marcadas

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marcadas pelo som dominante de um sino. Os jesuítas condicionaram os índios a reproduzir os gestos apropriados durante os rituais católicos exatamente por não compreender que sua dança e que o maracá falando a linguagem dos espíritos era de fato mais místico e transcendental elemento ritual para um povo que vivia feliz com sua própria visão de mundo. Para os ouvidos dos missionários soava como “ harmonias diabólicas e, desde modo uma ocupação essencial foi mudar tudo que pudesse relacionar o índio com o sua ancestralidade. Assim foram alteradas o tom e as letras e das suas musicas consideradas “lascivas e diabólicas.” Ainda nesta empreitada evangelizadora “os europeus transformaram os espíritos da mata no diabo do cristianismo e elegeram os índios como suas vítimas exclusivas.”. Os jesuítas se apresentavam como “santos” e faziam acreditar que o remédio para todos os males estava na água batismal e os pajés eram malditos e principais obstáculos para a ação missionária. Ação que destituía o índio de seu território e da sua identidade cultural. Com o passar do tempo os jesuítas se convenceram que não era tão fácil converter os índios. A alma ancestral persiste e como disse Caetano um “índio descerá” e já desceu e surpreendeu a todos não por ser um diferente, mas por estar oculto em cada um de nós ocupando parte de nossa alma ancestral e ser tão óbvio na identidade brasileira. Neste contexto a ideia de transformação se fará se alimentamos esta esperança com gestos e ações concretas, principalmente cuidando das nossas crianças e jovens com outra forma de educar para o sentido da igualdade, pertença e participação solidária. Esta é uma utopia realizável. Não importa se a reza implora ao Pai Maior, a Virgem Maria ou ao Espírito Santo. Estas são consideradas também entidades de luz e respeitosamente cultuadas nas rezas com Rosários, Terços ou no Oficio à Nossa Senhora. Importante é que,

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com todas as rezas aos santos católicos, nós vivenciamos em cada casa, a força e a sabedoria das entidades das matas, dos lajedos e dos caminhos trabalhando juntas no cuidado com as comunidades curando e consolando cada pessoa que busca acolhida e proteção aos pés dos caboclos conforme a prece registrada:

“E a louvado seja a luz de Nosso Senhor Jesus Cristo (todos respondem: para sempre seja louvado Nossa Senhora Maria Santíssima), e a louvado seja a luz de Nosso Senhor Jesus Cristo, (todos respondem: para sempre seja louvado nossa senhora Maria Santíssima), e a graças a Deus, e a Graças a Deus, e a graças a Deus, louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”. “Eu Não Tem Pena na luz de Nosso Senhor Jesus Cristo, Pai Senhor que estai no céu, santificado seja vosso santo nome, venha nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu, o pão nosso de cada dia nos daí hoje, senhor perdoa aqueles que vos tem ofendido, não deixais seus filhos cair no laço da aprovação, mas livra senhor do mal, que assim seja, ave Maria cheia de graça, o senhor é convosco, bendito sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso frente Jesus, Santa Maria mãe de Deus, rogai por todos os pecadores, agora, na hora da vida, da morte de todos para sempre amém Jesus.” “Que a paz se faça para todos e que a paz que venha na frente do meu espírito, eu Não Tem Pena na luz de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que a luz se cubra o mutuê de todos que estão aqui, de todos que não está no lugar que todos estiverem que a luz que se faça para todos, todos que estão nas grades, nas cadeias, todos que estão desorientados, todos os desempregados todos os desabrigado, todas as 118


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órfã, todos os necessitado, que a paz que se faça para todos, eu Não Tem Pena na luz de Nosso Senhor Jesus Cristo, e eu a dizevo, como vai a passar todos que aqui está: “que Deus se faça forte no caminho de todos, e eu dizevo e perguntavo e quem apaga o fogo, (todos é a água) e quem apagavo fogo, (todos é a água) e que as águas cristalina que cubra o mutue de todos e que lava o coração de todos que aqui esta e todos que aqui não esta, e que a paz que venha na frente do meu espírito e a paz venha com todos vocês que estavam aqui a trabalhar, e que o trabalho que faça forte o caminho de todos vocês, que se não trabalhar não tem nada, não é assim camarado? e tem que trabalhar pra Deus ajudar, não é assim camarado? Trabalha aqui, trabalha ali, trabalha acolá, no lugar onde chegar é pra trabalhar, não é assim camarado? Se tiver a força de meu Deus, e a licença pra trabalhar, trabalho, e eu dizevo assim: Graças a Deus que eu cheguei, graças a Deus que eu cheguei, na casa da oração, pedindo a meu Deus do céu, rogando por todos os meus irmãos, pedindo a meu Deus do céu, rogando por todos os meus irmãos, Que Deus abençoa a todos, e eu dizevo assim, que eu dizevo o que eu é um trabalhador da ciara do mestre, dizevo pra esse mediu, que eu era um inkiso reformado, e dizevo que eu não pegavo mediu pra nunca obedecer, não é assim camarado? E eu dizevo também assim, começavo porque eu vievo do missão de missionário, mas eu sabevo de tudo, tudo que meu Deus mandavo fazer e falar, não é assim. Que Deus abençoavo todos porque não vai me demorar, e eu dizevo que eu vinhevo aqui amanhã, não é assim, mas eu dizevo assim: meu povo, eu divinhevo de um lugar bem longe, bem longe, não vai aqui falar, só vai cantar pra todos vocês assim:“eu venho de longe, eu venho de Minas Gerá, tô dizendo minha identificação, 119


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eu venho de longe, eu venho de Minas Gerá, espalhando a semente do meu Pai Celestiá, espalhando a semente do meu Pai Celestiá, eu venho de longe, eu venho de Minas Gerais, eu venho de longe, eu venho de Minas Gerais, espalhando a semente do meu Pai Celestiá, espalhando a semente do meu Pai Celestiá, eu sou um caboclo, não nego meu naturá, eu sou um caboclo e não nego meu naturá, mas eu venho de longe, venho de Minas Gerá, mas eu venho de longe, venho de Minas Gerá”.

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CABOCLO FALOU ESTÁ FALADO

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8 CABOCLO FALOU ESTÁ FALADO É preciso muita atenção e vivencia para compreender a fala do caboclo. Cada caboclo tem o seu jeito e sua linguagem própria. Quando as pessoas procuram o caboclo para cura de seus males físicos, ou espirituais o caboclo olha, conversa, examina e sem mesmo tocar diz a enfermidade, indicando remédios da mata: xaropes, rapés, banhos, chás ou infusões entre outros métodos da prática do caboclo. Se não for o suficiente a ordem é mandar procurar o homem do anel (o médico). Os verbos não são conjugados. O caboclo fala sabevo, dizevo. Refere-se ao outro sempre como camarado ou trata a todos usando o masculino independente do gênero. Pode ser Seu Maria Antônia. Manda cuidar da sua roseira, a esposa. Pede para a esposa cuidar do cravo. Cabeça é mutue e Deus é Zambi que é uma palavra de origem banto. Casa pode ser canzuá, aldeia ou cazebrado enquanto visaura é a porteira. O caboclo tem uma fala metafórica. Uma fala que vai além do significado do que ele diz, vai além do que é dito. O caboclo faz cada um pensar nas suas ações e no porque das suas necessidades. Voltamos a lembrar da influência da catequese jesuítica, fato que nos chama atenção na louvação da chegada do Caboclo Não Tem Pena. Ouve-se muito a palavra aruanda. Na mitologia afro-brasileira, aruanda, seria uma alusão ao principal porto africano, lugar utópico, lugar da liberdade perdida.

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O CABOCLO DITA AS ORDENS NO TERREIRO

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9 O CABOCLO DITA AS ORDENS NO TERREIRO O caboclo é amado e respeitado em todo terreiro, mesmo no terreiro onde não há o culto específico. A história do Ilê Omorodé Axé Orixá N´lá é pontuada pelas orientações e desejos do Caboclo Andaraí. Foi ele quem determinou sobre a magia, a construção e o axé do barracão das festas públicas. E daí uma série de mistérios foi acontecendo. O caboclo é assertivo “são sinceros, eles não tem meia palavra e nem esse negócio de deixar dúvida: se tá errado, tá errado, acabou, acabou. Ponto final. É assim que eu quero e quem manda aqui sou eu.” “Todo caboclo é comunicativo. Na sua festa, a gente se sente à vontade, é uma festa que a gente conversa, que a gente brinca, que a gente bebe a jurema, e é uma coisa, e eu sou suspeito de falar de caboclo pelo amor que eu tenho a Pena Dourada, até me emociono (começa a chorar e falar ao mesmo Tempo ) porque muitas coisas da minha vida principalmente na roça de candomblé, ele sempre teve presente ele sempre me avisou, me avisava de uma forma que eu não entendia... Desculpe... Então, gente, minha relação com o caboclo é essa. Eu adoro Pena Dourada, respeito, venero. A palavra dele é aquela e ponto final. Procuro transmitir os recados dele ao pé da letra e é isso.” (Taata Fernando, 2014).

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A PRESENÇA DAS CRIANÇAS

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10 A PRESENÇA DAS CRIANÇAS “(...) E há de se cuidar dos brotos para que a vida nos dê flor e frutos” (Milton Nascimento) No Kaonge, as crianças foram chegando, algumas com as mães ou aos pequenos grupos. Sentaram na esteira, diante do assentamento do caboclo, quase nas barras das saias das mulheres. Lindas e silenciosas era visível o respeito pelo lugar e prestavam atenção a tudo que ouviam. Vanda Machado pede licença aos adultos para se dirigir inicialmente aos meninos e meninas, filhos e estudantes da Escola São Cosme e São Damião da comunidade.

Então, meninos e meninas! Eu e Cosme queremos contar uma história pra vocês. Tudo bem? Há muito, muito tempo, mas muito tempo mesmo, muito tempo atrás, vivia um povo lá no distante continente africano, de onde vieram os nossos mais velhos, mais velhos, mais velhos, mais velhos, que a nossa gente chama de nossos ancestrais. Nossos ancestrais eram pessoas fortes e muito inteligentes.

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Este povo que se lançou pelo mundo, cultivando a terra e criando muitas comunidades. Trata-se do povo banto. Eles foram os mais antigos ancestrais trazidos a força para o Brasil. Na África, eles viviam em grandes grupos que trabalhavam livremente na agricultura. Plantando e colhendo foram formando comunidades e chegaram até ao sul do continente africano. Eles conheciam técnicas agrícolas e faziam criação de animais, além de outros conhecimentos. Era um povo forte, tão inteligente e trabalhador, que quando os portugueses chegaram lá, resolveram interferir na vida daquelas pessoas, transformando-as em escravizados e muitos desses homens e mulheres foram trazidos a força para trabalhar na agricultura, construções de palácios, igrejas e engenhos como essas ruínas que ainda existem na comunidade. Eles dominavam a metalurgia e já utilizavam a enxada e outras ferramentas. Assim, deram conta do trabalho com a plantação e cultivo da cana-de-açúcar, criando grandes riquezas para o Brasil. Assim também começou a infelicidade da escravidão. Foi assim que chegaram ao Brasil, os nossos ancestrais, entenderam? Um dos lugares que eles chegaram foi aqui no Kaonge. Aqui havia também uma grande quantidade de engenhos e muitos índios que foram sacrificados até com a morte. Vejam por aqui não se vê um índio! Morreram muitos, principalmente no governo de Mem de Sá. Voltando aos nossos ancestrais negros, tem uma coisa que não podemos concordar. Os nossos ancestrais foram escravizados, mas não nasceram escravos. Homens e mulheres africanas eram vendidos como a mercadoria mais cara do mundo. Assim, os que foram trazidos eram os melhores, os mais fortes e inteligentes. Eles eram filhos de reis, rainhas, eram príncipes, princesas, ferreiros, sabiam trabalhar nas minas de ouro e diamantes. Com o tempo, esses homens e mulheres escravizados pensaram:

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Não queremos mais esta vida de escravo. Nós não nascemos escravos. Pensaram e descobriram a solução: Fugir. Eles foram combinando entre si e começaram a fugir. Às vezes, fugiam em grupos maiores, mas também aconteciam as fugas até solitárias. Eles se embrenhavam pelo mato afora e foram se juntando e formando os quilombos. Nos quilombos, ninguém era dono de nada, tudo era da comunidade. Não foi fácil. Foi uma luta muito demorada que ainda não terminou. Nesta caminhada pelas matas, os negros que se libertaram por conta própria, muito antes do 13 de maio, se encontraram com os índios que viviam no Brasil, muito Tempo antes da chegada dos portugueses. Hoje, muitos acreditam que os índios que ampararam aqueles que fugiam da escravidão são os nossos ancestrais caboclos. Esses caboclos que cultuamos aqui neste

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terreiro. Viram só que história mais bonita? Junto com os índios, os negros foram se organizando, lutando e nunca mais trabalharam como escravos de ninguém. É bom compreender uma vez por todas que nós não somos descendentes de escravos. Na África, havia reinos muito ricos e conhecidos no mundo. Somos descendentes de gente que continua sendo muito importante na construção das riquezas do Brasil. Quando negros e negras se encontraram com os indígenas, estes foram ensinando onde se encontrava a água, onde se encontravam as frutas e eles foram vivendo numa situação que um ajudava o outro. Logo começou a aparecer gente de todo lugar. Em muitos quilombos, apareceu também uma porção de brancos pobres, aí todos se juntaram e o navio negreiro foi transformado em grandes navios guerreiros, dando origem aos quilombos. Quilombo é o lugar onde se inventou a liberdade no Brasil e ninguém pensou mais como escravo, porque ninguém nasceu escravo de outra pessoa. Intencionalmente, Cosme conclui com a contação da história que é do Brasil e também a história ainda vivida pela comunidade do Kaonge: O Kaonge não é uma novidade como pode parecer. O quilombo do Kaonge é coisa muita antiga. É lugar onde viveu gente livre numa sociedade que escravizava negros e negras como se fossem coisas de sua propriedade. Parece que só agora, depois de passados muitos anos, é que o Brasil descobriu os quilombos, ou redescobriu os quilombos. O quilombo é um espaço de luta, de resistência, de preservação de história, da nossa memória, da nossa ancestralidade o que legitima esse encontro aqui. Então, é por isto que estamos aqui.

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11 CONSIDERAÇÕES FINAIS Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante De uma estrela que virá numa velocidade estonteante E pousará no coração do hemisfério sul Na América, num claro instante Depois de exterminada a última nação indígena E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias. (Caetano Veloso)

Agora, as nossas palavras são para agradecer aos regentes e mentores deste trabalho de pesquisa. Estamos finalizando, mesmo que provisoriamente, e apresentando o resultado a cada terreiro para a legitimação do que aprendemos com o Caboclo Sultão das Matas, com Caboclo Andaraí, também com os Caboclos Pena Dourada e Caboclo Não tem Pena que nos acolheram sem restrições. Não se trata, porém, de um resultado de pesquisa acadêmica, mas do resgate de aspectos da memória do nosso ancestral indígena e sua relação com o culto de caboclo na Bahia. Neste contexto, se faz necessário também presentificar o povo negro na construção da sua história de libertação por conta própria, e a organização dos quilombos com a ajuda do irmão índio, que deu acolhida e com o tempo se tornou até irmão também, um irmão quilombola. Com este registro, esperamos estar contribuindo para implementação de ações que ofereçam condições para registro e salvaguarda do culto aos caboclos. Esperamos também colaborar para alcançar ações, que possibilitem a formação de educadores para Educação das Relações Étnica raciais, a partir desta pesquisa realizada em 04 (quatro) Terreiros de nações Jejê/Caboclo, Ketu, Angola, em 03 (três) municípios baianos, Salvador, Lauro de Freitas e Cachoeira, onde estão valorizadas as nossas raízes ancestrais.

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Na verdade, a proposta deste inventário virtual trouxe como princípio fortalecer a memória dos caboclos, cultuados nos terreiros de matriz africana e em casas de caboclos. Encontramos no candomblé importante depositário da cultura do caboclo, adotando uma postura positiva de preservação das tradições, dos saberes, dos costumes e dos valores ancestrais índios. Deste registro do Culto aos Caboclos como ponto de partida, esperam-se desdobramentos, que possam resultar no reconhecimento e no fortalecimento de nossa identidade coletiva. De fato, não somos os únicos a celebrar os ancestrais índios. O culto aos caboclos acontece no mundo e em todo Brasil com as nuances culturais que diferenciam os aspectos da religiosidade nas diversas regiões brasileiras. O culto aos caboclos reúne diversas culturas ou linhagens. A sua preservação nas casas de caboclo integra a história e as tradições, revigorando nossas ancestralidades, ritualizando a crença nos elementos da natureza, nos espíritos e na transcendência. A vinda dos primeiros escravizados tem sua origem no povo Banto, no continente africano. Famílias e etnias foram separadas no navio negreiro e só restava reunirem-se como irmãos, companheiros de uma viagem sem volta. Lutando contra a escravidão, na fuga pela liberdade na formação dos quilombos, foram acolhidos e se tornaram também irmãos do índio brasileiro. Uma nova família ancestral é construída nas Américas. Dessa mesma família, ganha vida a família de santo, os irmãos de santo, os terreiros e casas de caboclos, síntese da cultura e da religiosidade africana. Na história, como na vida cotidiana, convivemos com valores que são afro-brasileiros. Valores que ganharam forma, reunindo aspectos da cosmovisão africana que se junta ao jeito indígena de conviver ganhando, mais tarde, a influência dos jesuítas.

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O pensamento jesuítico ignorou a alma indígena. Ignorou a diversidade das tribos, igualando a todos, dizimando culturas. Deuses e espíritos, toda transcendência e significados foram aniquilados, arruinando a alma nativa. O indígena, o primeiro dono da terra, ainda é nosso desconhecido. É preciso ressaltar a participação histórica do índio além da Bahia. Vale reconhecer, ainda, como melhores guias para ensinar a importância da vida em coletividade, a cura através das ervas e dos alimentos vindos da Mãe Terra e o cuidado com a vida, com a família, com a natureza e com as pessoas. A presença das louvações, inclusive de joelhos, as orações e ofício a Nossa Senhora, representam a carga imposta pela religião católica e a inconfundível presença dos jesuítas. Em compensação, a presença dos tambores e maracás, as palmas e as cantigas, a oferta de alimentos, frutas e beberagens presentificam a natureza transcendente, as matas, as águas, as histórias e os lugares míticos, o culto à terra, à mata, à serra, aos ciclos da maré e da lua e que nos aproxima no toré, ritual de dança e cantos, como momento sagrado. Hoje o culto ao caboclo suaviza e recupera a essência da cultura indígena amenizando os prejuízos da interferência avassaladora pela intolerância cristã que considerava o pajé seu principal obstáculo à ação missionária dos jesuítas. Ouvimos da Doné Conceição que o Caboclo Sultão das Matas nasceu da luz do horizonte, das matas e surgiu das fontes e dos gritos dos ancestrais, como força do Pai Maior. Taata Anselmo fala da necessidade de ressignificar a presença indígena, dando visibilidade positiva a essas tradições que são milenares. Mãe Juvani diz que “todos os seres humanos, que vieram com origem de resistência dos caboclos e orixás, devem respeitá-la, pois é a sua raiz”. O Babalorixá Augusto César afirma que “A força do caboclo evidencia o espírito de independência e autonomia do brasileiro, seus códigos são próprios e sua lei é única.” No Terreiro Mokambo 132


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a presença do caboclo é simbolizada pelo Pau-Brasil, que também é um filho do solo sagrado embora represente também a força do capitalismo europeu. Nas religiões de matriz africana, a ancestralidade africana se reelabora também com elementos indígenas. O Boiadeiro nos remete a vaqueiros africanos e índios também conhecedores da agricultura, que trabalharam aumentando o território brasileiro, utilizando as experiências ancestrais. Na prática ritual, o culto ao caboclo integra elementos indígenas e católicos, numa representação que tem a ver com a presença dos jesuítas e com a expansão do gado. Os índios, como marujos, trabalharam na Marinha do Brasil e têm relação com habitantes do Sul da África, com a tradição da pesca e uso de pequenas embarcações. Na caminhada desse trabalho, entendemos que essas são ideias que conseguimos apreender nesse processo. Em nenhum momento, foi possível estabelecer critérios e ou categorias que nos levassem a afirmações peremptórias. Escrevemos sobre o que nos foi dito e observado sem interpretações particulares. O Caboclo, entidade venerada no contexto religioso e cultural afro-brasileiro, é reconhecido também pelos seus feitos históricos, que, sem dúvidas, contribuem para a formação cultural, social, política e tradicional das comunidades estudadas e na Bahia onde foi encontrada uma significativa população indígena. Lembramos que o índio era quem cuidava da defesa das vilas, avisando da aproximação dos inimigos dos portugueses e, por vezes, foram incorporados às tropas. No dia 02 de Julho, o caboclo é reverenciado como herói da Independência da Bahia. Nesta data, a maioria dos terreiros de caboclo se abre para festejar o seu encantado maior. A outra data festiva é o dia 19 de abril, quando os caboclos, durante o ritual, carregam a bandeira do Brasil como símbolo da luta do seu povo pela liberdade da Bahia quando foi consolidada a Independência 133


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do Brasil. É comum a bandeira nacional nos terreiros de caboclo. Como é comum o caboclo cantar o seu jeito patriota de ser: Sou brasileiro Sou brasileiro Sou brasileiro imperador Mas eu nasce foi no Brasil Sou brasileiro sim senhor Eu sou brasileiro Brasileiro o que é que sou Sou brasileiro Brasileiro imperador No dia 2 de Julho, acontece um grande cortejo popular, organizado pela Fundação Gregório de Matos. O festejo tem seu início na Lapinha e leva para as ruas gente de toda idade e toda classe, que acompanha o caboclo e a cabocla sem muita ordem. Também caminham políticos, grupos culturais, fanfarras, estudantes e o povo, que se manifesta em todos os sentimentos, desejos, protestos, aplausos e até vaias aos políticos. Hora de celebrar, sem perder de vista que ali se constrói um palco político onde as lutas por melhorias na cidade e políticas públicas são travadas com as mais diferentes linguagens da arte e muito sarcasmo e zombaria.

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Muitos garis se revezam conduzindo os carros e andam apressados, quase correndo com as crianças das ruas, homens e mulheres de todas as idades, que passam cantando e dançando, quase desbandeirados pelas ladeiras do Pelourinho. Paradoxalmente é um momento de fé. Tem gente que se agarra aos carros e não os abandona por nada. Gente que põe cartas, bilhetes e fotografias com seus pedidos e chora de verdade ao pé do caboclo e da cabocla com fé no único amparo para suas dores e suas esperanças. Pode parecer estranho, mas o alegre cortejo que corre pelas ruas da cidade velha é movido pelo amor aos caboclos da Bahia. Nos terreiros também, os caboclos vão e voltam, rezam, cantam, dançam, ensinam como encarar as dificuldades da vida, se despedem e tornam voltar. Ninguém sabe para onde, até a próxima necessidade da casa, independente do dia da sua reunião, atendimento ou festa. É Luciana, filha do Terreiro Mokambo que declara: “quando as coisas ficam difíceis, quando começamos a nos desentender, Seu Pena Dourada chega, chama todo mundo, conversa, canta, aconselha e quando ele sai, esquecemos de tudo que estava acontecendo. Ele vem e vai embora para nos manter unidos por nós mesmos.” O caboclo chega sempre pela necessidade de acolher os que precisam da cura física e conforto espiritual. Mesmo quando não são chamados é sentida a sua presença encantada. Este registro não nos possibilitou uma viagem de volta pela história da presença indígena na cidade de Salvador. Entretanto é impossível olharmos para o que aprendemos sobre o índio nas escolas em concluir que a pensamento brasileiro desconhece o índio na sua memória, sua história, bem como a inteireza da nossa ancestralidade. Esta é a parte impugnada da alma brasileira. A história oficial, na sua parcimoniosa atenção, registra alguns aspectos, em que é possível perceber que a cidade de Salvador foi criada em cima da memória indígena. O lugar de construção da 135


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cidade, hoje a região do Farol da Barra, foi indicado pelos índios, que tinham o conhecimento de como a cidade poderia se defender do inimigo que chegasse pelo mar. O trabalho indígena é uma realidade. O índio foi escravizado e contribuiu para a construção de boa parte do patrimônio material desta cidade, antes e até depois da chegada dos africanos que, no inicio, foram levados para a lavoura no recôncavo. Estranho é como são raras as marcas desta presença indígena entre nós. Não se fala sobre o assunto, nem está registrado nos livros didáticos para as crianças e raramente aparece na literatura, em placas nas ruas ou nos monumentos, a imagem real do índio como ele é verdadeiramente. O índio que se conhece continua sendo aquele de séculos atrás. A história ainda desconhece o índio e seus conhecimentos que a ciência e seus laboratórios tomam para si sem a menor cerimônia. Desconhece o protagonismo do índio que busca escrever sua própria história, apesar da relação de tutela com o Estado, lutando por suas terras, autonomia, pela proteção das suas crianças e por políticas públicas para seu povo. Paralelamente, nas casas de caboclo, percebe-se a presença do índio na condição de ancestral batizando seus adeptos, sendo cultuado e convivendo com os seus filhos a qualquer momento. No Terreiro Mokambo, ouvimos a declaração de um jovem estudante de relações internacionais: “Eu fui criado pelo caboclo. O caboclo é meu pai. Ele me orientou com conselhos que quero seguir sempre”. O Caboclo Rei do Congo faz parto e cuida de tudo para ajudar as mulheres que não podem ou não querem ir para o hospital. Do encontro do índio com negras e negos africanos, recebemos como resultado o enriquecimento dos conhecimentos das folhas, fruto da aproximação do saber caboclo com as divindades africanas, Oxossí, senhor da caça e do mato e Katendê, divindade das folhas litúrgicas e medicinais. No candomblé, nada é visto ou considerado separadamente. A 136


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A sabedoria africana com a sabedoria indígena criaram laços de parentesco em função do contexto ritual e de uma lógica da ancestralidade. O caboclo é parente. Sem laços de parentesco não há ancestralidade nem candomblé de caboclo. O caboclo é o primeiro ancestral brasileiro. O culto aos ancestrais africanos conseguiu atravessar o oceano Atlântico e hoje estamos ligados por este complexo sistema de parentesco. Caboclos, orixás, nkisi e vodun convivem livremente no mesmo panteão nas diversas casas de santo. Quando não é assim, cada um, em particular, é livre para cultuar o caboclo em suas casas. Já vivendo o terceiro milênio, a parte mais presente do nosso ancestral índio está viva nos candomblés da Bahia como a entidade nunca esquecida e mais solicitada nos trabalhos de cura e assistência a família. Como ancestrais primordiais, os caboclos têm o seu lugar especial nos terreiros. Lugar onde são esperados, consultados e solicitados quando há uma necessidade premente, ou simplesmente para louvar e serem louvados por seus filhos. Xetruá marumbaxetro. Eu já vou embora Para a minha aldeia Eu já vou me embora, camarada, Para a juremeira

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12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Acervo do Terreiro Mokambo. Arquivos audiovisuais de atividades do Centro de Caboclo Sultão das Matas. ANAIS do II Encontro de Nações de Candomblé (CEAO - Centro de Estudos Afro Orientais, Programa A Cor da Bahia, Fundação Gregório de Matos, Câmara de Vereadores de Salvador, Salvador, 1995. BORGES, Maristela Correa; LEAL, Alessandra. Patrimônio cultural imaterial: leis e documentos. In: Revista Caminhos da Geografia. v. 13, n. 44, Uberlândia Dez/2012 pp. 221–234. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/caminhosdegeografia/.Acessoem 08 Fev. 2014. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 2. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, Ed. da USP, 1987. ___________. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. 2. ed. Cotia, SP: Ateliê, 2004. BRASIL, 1988. Constituição Federal. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 08 jan. 2014. BRASIL, 2000. Decreto Nº 3.551 de 05 de agosto de 2000. Presidência da República. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto/D3551.htm..Acessoem: 20 jan. 2014. CASTRO, Maria Laura Viveiros de; FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônioimaterial no Brasil: legislação e Políticas Estadu-

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NASCIMENTO, Milton e TISO, Wagner. Coração de Estudante. Disponível em: < http://letras.mus.br/milton-nascimento/47421/>. Acesso em: 10 jun. 2015 PERRONE, Maria da Conceição da Costa. Os Caboclos de Itaparica: historia, música e simbolismo. Salvador, 1995. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia PINTO, Leila Mirtes Santos Magalhães (org.). Brincar, Jogar, Viver: IX Jogos dos Povos Indígenas./ Leila Mirtes Santos Magalhães, Beleni Saléte Grando (orgs.). Cuiabá: Central de Texto, 2009. ISBN: 978-85-88696-73-0 1. Povos Indígenas. 2. Jogos 3. Viver Indígena. I. Grando, Beleni Saléte (org.). II.Título RIBEIRO, Carmem. Religiosidade do índio brasileiro no candomblé da Bahia: influências africana e europeia. In: Revista Afro-Ásia, nº 14, pp. 60-80. Salvador, Centro de Estudos Afro Orientais, 1983. SANTOS, Jocélio Teles dos. O dono da terra: o Caboclonos candomblés da Bahia. Salvador: Sarah Letras, 1995. SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. São Paulo: Edusp, 2002. SANTOS, Anselmo José da Gama. Terreiro Mokambo: Espaço de Aprendizagem e memória do Legado Banto no Brasil. BrasiliaDF, 2010. SILVEIRA, Valdomiro. Os Caboclos. 2. ed. São Paulo: Nacional, 1928. _________________. Os Caboclos: contos. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.

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SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a Cidade. Rio de Janeiro: IMAGO, 2002. VANSINA, Jan. A tradição oral e a sua metodologia. In: KI-ZERBO, J. (Dir.). História geral de África I.São Paulo: Ática: UNESCO, 1982. p. 157-218, v.1. VELOSO, Caetano. Um índio. Disponível em: http://musica.com. br/artistas/caetano-veloso/m/um-indio/letra.html>. Acesso em 10 jun. 2015.

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Anexo 1 LISTA DE PRESENÇA DOS ENCONTROS E OFICINAS NOS TERREIROS: CENTRO DE CABOCLO SULTÃO DAS MATAS, TERREIRO ILÉ OMORODÉ AXÉ ORIXÁ N’LÁ, TERREIRO MOKAMBO ONZÓ NGUNZO ZA NKISI DANDALUNDA YE TEMPO E TERREIRO 21 ALDEIA DE MAR E TERRA. Ana Izabela Santos, A. Magnone, Alcione França, Almir Santos, Ananias Nery Viana, Adilma de Jesus Rodrigues, Antonio Marcelo de Oliveira Ferreira, Arilson Roque Brito, Arany S. Santos, Alexnaldo Queiroz Santos, Antônio Cosme, Augusto César da Silva Lacerda, Amanda Costa Santos, Angélica Ferreira, Ayanna Barbara dos Santos Costa Goes, Antonio Roque dos S. Costa, Amelia Morelli, Angela Crispina Jovelino, Aurea Barreto da Silva, Ana Paula de Santana dos santos, Ana Lavinia Queiroz, Amancio Bispo dos Santos Filho, Ana Clara Santana, Barbara, Carolina Cardeal Matos, Cauã Costa Santos, Claudiana Santos, Cleonice O, Celia R.S. Conceição, Cleonice da Conceição, Clarice F. Assunção, Carolina Conceição dos Santos, Cristiane Taguari, Carla Maria P. de Souza, Celina da Conceição, Celia Raimunda S. Conceição, Cristina dos Santos Silva, Cisale Mucaia R. da Silva, Claudio Reis, Wakai, Crispina Sena Reis, Cristiane Katia dos S. Gomes, Deoterio Conceição, Daniela Nogueira Silva, Disnalva dos Santos, Daniel Rego Vasconcelos, Daniel de Campos Oliveira, Danilo Souza Nery, Denise Araujo, Dina Santos, Daline dos Santos Silva, Eide Santos Sena Edileuza dos Santos, Eliseu Pereira dos Santos, Eva Silva Lima, Ednei Batista Conceição, Edmilson B. Conceição, Etegilda Nunes Costa de Oliveira, Elton Neves Cerqueira, Elaine Nunes, Euridice Lima, Edna Silva de Jesus, Emilia da Cruz, Eulina Martins, Evangivaldo Araujo, Emanuel de Souza, Everton Neves Cerqueira, Fabiano R. B. dos Santos, Fernanda Mascarenhas da Rocha, Francisco U.R. Filho, Felipe Bispo, Fernando Raimundo de Souza, Francisco O. Ribeiro, Genival N. de Santana, Genilda Rosa de Santana,

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Gerônimo dos S. Silva, Giselle Regina Silva Assunção , Gilmara S. Ribeiro, Helena Pereira da Silva, Iane R. Petrovich , Irasi Araujo, Ivone Melo dos Santos, Isia Maria, Ilmara Cerqueira da Silva Costa, Josenete Cardeal, Jocineia da Silva Bispo, Jamile Souza dos Santos, Jose Carlos, Jucilene Viana Jovelino, Jose Andrade Bomfim, Jeferson B. Borges de Almeida, Jorge Algusto dos Reis, Jamile Souza, Jandiara Graça Costa, Jorge Araujo, Jorge Augusto, Jose Carlos Costa, Juvanete Viana Oliveira, Jandimeire Viana, Jose C. Matias de Jesus, Jobson Cabral de Jesus, Joel Reis Vitorino, Juvane Neri Viana, Jose Carlos C. Junior, Luclécia Nery Viana, Leonice Jesus da Silva, Leilson Araujo Santos, Leandro Oliveira dos Santos, Lucidalva P. da Conceição, Lorena Silva Conceição, Luciana Lopes, Leonardo José Santos de Almeida, Lais Santana Conceição, Lucia do Patrocinio Batista, Livia Costa da Cruz, Luiz Ailton A. S. Filho, Luciano Silva de Jesus, Luciana Matos dos Santos, Luciana Melo dos Santos, Ludmila B. Santos, Maiane Ferreira de Araujo, Maria de Nazare da Silva Lacerda, Maria Goretti Soares, Mariana Damacio, Maria Claudomira dos Santos, Maria Jose Oliveira, Maria Valdete Mota, Maria da Piedade, Maria Conceição Costa, Maria Francisca, Marcos Vinicius, Maria Benedita Moura, Maria de Loudes Cardeal, Mariana Damasio, Maria Pereira da Silva, Maria de Nazare da S. lacerda, Milena Victoria Miranda, Maria de Lima Costa. Maria Auxiliadora Souza, Maria dos Anjos da Cruz, Marcos Ramos de Jesus, Marcos Antônio Miranda dos Santos, Monica da C. Caldena, Maeli de Jesus Gonçalves, Manoel N. de Melo, Matheus Henrique M. Pereira, Maria Golveia, Maria Cristina Barros Nelia de Oliveira, Nadio Costa, Nadson Leal Silva, Nelma Cassia da C. Melo, Noemia Anjos, Pedro Henrique Rocha Priscila Nogueira Dias, Philip Miranda Silva, Patricia Amaral de Jesus, Rui A. S. Filho, Roseli Paraguassu, Romilson Nery Bispo, Roseneide de Jesus Souza, Raimunda L. dos Santos, Railda dos Santos Silva, Rosinha Gomes da Silva, Regina Jesus de Santana, Rosiane Silva Andrade, Rita de Cassia V. B., Fernandes Raimunda L. dos Santos, Rosangela Silva Viana, Rosana Moura Barreto, Rafael Oliveira Guimarães, Rafaella Almeida Lima, Roberto Nascimento dos Santos Jr, Rosineide Viana Jovelino, Rosa Vilas Boas, Roseane Pereira da Silva,

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Rosane Viana Jovelino, Sueli Fernandes de Santana, Samara Catarina, Selma Silva dos Santos, Sergio Ricardo C. dos Santos, Sidnei Ribeiro Batista, Conceição Tereziane N. C. Mendes, Tata Anselmo Santos, Vanda Machado, Valdelice S. Rodrigues, Mendes de Oliveira, Veronica de Jesus Conceição, Vanessa C. Santos Campos, Valdelice Mota, Vera Maria, Vitor Melo de Moraes, Vera Lucia Brito dos Santos Vilene F. Santana, Walkiria Silva, Wilson Gois da Silva, Cabral de Jesus, Zenilda Lopes Nunes, Zeze Oluketumi.

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Anexo 2 GALERIA DE FOTOS

Click nos ícones abaixo para ver as imagens:

CENTRO DE CABOCLO SULTÃO DAS MATAS

TERREIRO ILÊ OMORODÉ AXÉ ORIXÁ N’LÁ

TERREIRO MOKAMBO ONZÓ NGUNZO ZA NKISI DANDALUNDA YE TEMPO

TERREIRO 21 ALDEIA DE MAR E TERRA

FEIRA DE CACHOEIRA/BA

ATIVIDADES DO PROJETO CULTO AOS CABOCLOS

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