As mulheres e a imprensa periódica

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Coleção Estudos Laura Areias  Luís da Cunha Pinheiro (coordenação)



As mulheres e a imprensa periรณdica



Laura Areias Luís da Cunha Pinheiro (coordenação)

As mulheres e a imprensa periódica

CLEPUL

Lisboa 2014


Lisboa, 2014

F ICHA T ÉCNICA Título: As mulheres e a imprensa periódica Coordenação: Laura Areias e Luís da Cunha Pinheiro Coleção: Estudos Capa, Composição & Paginação: Luís da Cunha Pinheiro Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Lisboa, março de 2014 ISBN – 978-989-8577-11-5 Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto “PEst-OE/ELT/UI00 77/2014”


Índice

Vanda Anastácio Almanaques: origem, géneros, produção feminina . . . . 5 Constância Lima Duarte Imprensa de mulheres no Brasil e suas interlocuções com o periodismo português . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 Vania Pinheiro Chaves Notícia do Almanaque de Lembranças e das suas “Senhoras” 43 Ana Paula Bernardo Alda Lara e a imprensa do seu tempo . . . . . . . . . . . 67 Ana Paula Ferreira Maria Lamas romancista: a parte esquecida da jornalista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85 Anna Faedrich Martins Albertina Bertha e a imprensa periódica . . . . . . . . . . 105 Fabio Mario da Silva A lírica de Florbela Espanca em Modas & Bordados e Portugal Feminino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 Nathália Macedo, Cláudia Costa Pereira e Solange Cardoso As “Senhoras” do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139 Laile Ribeiro de Abreu, Maria Inês de Moraes Marreco e Maria Lúcia Barbosa Perfil da presença brasileira no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147 3


Helga M. Lima da Costa, Kelen Benfenatti Paiva e M. Imaculada A. Nascimento Do Nordeste para o além-mar: a presença feminina no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro . . . . . . . . . . Iara Christina S. Barroca e Isabella F. Pessoa Três escritoras especiais: Ignez Sabino, Narcisa Amália e Júlia Lopes de Almeida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Aline Alves Arruda e Cristiane F. R. de Araújo Côrtes Josefina Álvares de Azevedo: uma jornalista polêmica . . Maria de Fátima Moreira Peres e Vera Lúcia Godói Presciliana Duarte de Almeida . . . . . . . . . . . . . . . Mini-Currículos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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ALMANAQUES Origem, géneros, produção feminina Vanda Anastácio1

Num texto escrito para servir de prefácio ao Almanaque Encyclopédico de 18962 , Eça de Queirós descreve a origem dos almanaques por meio de uma fábula. Conta que “nas vésperas do Dilúvio” dois Sábios, preocupados com a destruição iminente da Humanidade, acharam um meio de preservar a Ciência acumulada até então. E diz assim: Então, naquele caminho perdido da Mesopotâmia, sob a imensa tristeza do céu justiceiro, os dois Sábios, filhos de Seth, determinaram arquivar, escrevendo sobre matéria imperecível, a Ciência que possuíam, que era a Ciência total daquela primeira Humanidade. Durante três dias e três noites [. . . ] os Sábios, sem repouso, ansiosamente, espreitando as nuvens, gravavam sobre o granito e sobre o tijolo, duplamente, o Livro de Todo-o-Saber. [. . . ] Que direi? O Livro de Todo-o-Saber, gravado para a Humanidade vindoura, sobre o tijolo e o granito, nas vésperas do 1

Centro de Estudos Clássicos, Universidade de Lisboa. Eça de Queirós, “Almanaques” in Almanaque Encyclopédico, Lisboa, Livraria Antonio Maria Pereira, 1895. 2


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Vanda Anastácio Dilúvio, por dois sábios filhos de Seth, era na realidade e simplesmente um Almanaque3 .

E prosseguia explicando: É que o Almanaque contém essas verdades iniciais que a Humanidade necessita saber, e constantemente rememorar, para que a sua existência, entre uma Natureza que lhe não é benévola, se mantenha, se prossiga toleravelmente. A essas verdades, a essas regras, chamam os Franceses, finos classificadores, verdades de Almanaque. São as grandes verdades vitais. O homem tudo poderia ignorar, sem risco de perecer, excepto que o trigo se semeia em Março. E se os livros todos desaparecessem, bruscamente, e com eles todas as noções, e só restasse, da vasta aniquilação, um Almanaque isolado, a Civilização guiada pelas indicações genéricas, sobre a Religião, o Estado, a Lavoura, poderia continuar, sem esplendor, sem requinte, mas com fartura e com ordem. Por isso os homens se apressaram a arquivar essas verdades de Almanaque, – antes mesmo de fixar em livros duráveis as suas Leis, os seus Ritos, os seus Anais. Antes de ter um Código, uma Cartilha, uma História, a cidade antiga teve um Almanaque4 .

A estas considerações, Eça acrescentará no seu texto a seguinte conclusão: Só o Almanaque verdadeiramente nos penetra na realidade da nossa Existência, porque a circunscreve, a limita, a divide em talhões regulares, curtos, compreensíveis, fáceis de desejar e depois fáceis de recordar porque têm nome, e quase têm forma, e onde se vão depondo e vão ficando os factos da nossa feliz ou desgraçada História. As datas, e só elas, dão verdadeira consistência à vida e à sua evolução5 . 3 4 5

Ibidem, pp. 32 e 34. Ibidem, p. 35. Ibidem, p. 60.

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Como se verifica, do ponto de vista do escritor, o almanaque é visto como um objecto capaz de preservar o essencial da sabedoria humana, uma espécie de compêndio passível de arquivar as verdades essenciais da espécie, de fornecer um modelo de organização do quotidiano e da vida em sociedade6 . Ao mesmo tempo, Eça associa o Almanaque à dimensão temporal da existência, às estações do ano e ao ciclo renovável da Natureza que estas contribuem para assinalar e não há dúvida de que, ao fazê-lo, tinha presente o formato mais comum dos almanaques do seu tempo: destinados a um público heterogéneo, fornecendo um calendário e recheados de informações, de conselhos úteis e de indicações para bem viver, estas publicações procuravam simultaneamente guiar, instruir e deleitar os seus leitores7 . Contudo, nem todos os almanaques se enquadram nesta descrição. Afinal, a que nos referimos, quando falamos de Almanaques? Muito provavelmente, a várias realidades.

Almanaques e calendário O almanaque contemporâneo de Eça, tão difundido no século XIX e no século XX constitui, de facto, o ponto de chegada de uma fórmula editorial mais antiga. O almanaque tem origens remotas que se entrelaçam com as do calendário8 . Em português, os almanaques mais antigos que se conhecem – estudados por Luís de Albuquerque em 1961 6

Eça de Queirós exprime algo de semelhante no seu texto de 1895 intitulado “Um novo plano de Almanaque”, (reed. por Irene Fialho em Almanaques e outros Dispersos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010, pp. 245-248) quando diz: “O que me parece que um almanaque devia ser, era uma espécie de guia especial, para o pensamento e para a acção” (p. 245). 7 A mesma concepção de almanaque e a mesma associação deste com a temporalidade está subjacente à fábula sobre a origem dos almanaques, criada em 1890 por Machado de Assis, no texto “Como se inventaram os almanaques” in Marlyse Meyer (org.), Do almanak aos Almanaques, São Paulo, Ateliê Editorial, 2001, pp. 25-28. 8 Encontra-se uma indicação abreviada das origens do almanaque no artigo de

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– são manuscritos, e datam dos inícios do século XIV9 . Mas, na sua forma impressa, são contemporâneos da invenção da Imprensa de tipos móveis. Os mais vetustos datam do século XV e foram publicados na Alemanha em 1454 (Türkenkalender), em 1457 (Laxierkalender) e em 1458 (Astronomischerkalender), por Gutenberg. As décadas de 1460 e 1470 viram difundir-se os almanaques impressos na Alemanha e na Holanda. Em França, o mais antigo parece ter sido o Grand Calendrier compost des Bergers dado à estampa 1491, e o almanaque mais antigo que se conhece publicado em português é o célebre Almanach perpetuum de Abraão Zacuto, publicado em Leiria em 1496 por Abraão d’Ortas. Note-se que nem este, nem os almanaques anteriores ao século XVII eram periódicos, ou anuais. Eram, sim, perpétuos, ou perduráveis, como também se lhes chamava10 , formados por tabelas, destinadas a permitir o cálculo do tempo, da posição dos astros, das marés, etc., até ao fim dos tempos. Por isso também foram chamados, durante o século XVI, Reportórios dos tempos11 . Extensos de centenas

João David Pinto-Correia e Manuel Viegas Guerreiro, “Almanaques ou a sabedoria e as tarefas do Tempo” in Revista do ICALP, vol. 6, Agosto/Dezembro de 1986, pp. 43-52. Os autores recordam neste trabalho que também José Leite de Vasconcelos assinala a origem remota do género ao investigar as origens de uma das suas designações populares no século XVII (‘sarrabal’) em Etnografia Portugueza, vol. III, Lisboa, Imprensa Nacional, 1942, p. 458. 9 Luís Mendonça de Albuquerque, Os Almanaques Portugueses de Madrid, Coimbra, Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, Junta de Investigações do Ultramar, 1961; Idem, “Almanaques” in Joel Serrão (org.), Dicionário de História de Portugal, vol. I, Porto, Livraria Figueirinhas, 1971, pp. 112-114. 10 Veja-se o título do almanaque manuscrito português compilado por volta de 1321 que se preserva na Biblioteca Nacional de Madrid: Almanaque perdurável . . . Cf. Luís Mendonça de Albuquerque, Os Almanaques Portugueses da Biblioteca Nacional de Madrid, op. cit.. 11 Exemplos mais conhecidos são o Reportório dos Tempos de Valentim Fernandes (1518), o Reportório dos tempos de André de Avelar e a Chronografia o Reportorio de los tiempos de Jerónimo de Chaves (1576). Veja-se: Rosa Maria Galvão (coord.), Os Sucessores de Zacuto. O Almanaque na Biblioteca Nacional do século XV ao XXI, Lisboa, Biblioteca Nacional, 2002.

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de páginas, dirigiam-se preferencialmente aos navegantes, aos médicos e aos cientistas12 . Recordemos que a arte da impressão surge numa época e num contexto em que apenas uma parte minoritária da população europeia (cerca de 20% nos séculos XVI e XVII) se encontrava alfabetizada13 . Desde muito cedo, os impressores e os livreiros procuraram compensar as pequenas tiragens, os pesados custos da sua actividade e as escassas vendas de livros imprimindo espécies tipográficas menos caras e menos exigentes do ponto de vista das competências dos leitores, que podiam mais facilmente ser vendidas em muito maior quantidade do que aqueles: os calendários, as estampas com imagens de santos, as orações, os panfletos, os folhetos de cordel, as letras de cantigas da moda, os conselhos impressos para bem casar, para andar à moda, etc., serviram para estabilizar um mercado editorial financeiramente frágil e sujeito aos caprichos dos poderes político e eclesiástico. Durante o intervalo de tempo que medeia entre o século XV e o século XVII, o almanaque transformou-se, e foi incorporando algumas das características desses impressos de maior circulação. Um olhar atento sobre as espécies publicadas no século XVII em Portugal permite mesmo concluir que alguns impressores conseguiram assegurar a sua sobrevivência no mercado da edição dedicando-se exclusivamente à publicação

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O cronista Gomes Eanes de Zurara refere-se ao uso de almanaques para fins náuticos no Capítulo 58 da Crónica da Tomada de Ceuta que se supõe ter sido redigida antes de 1450. E, como recordou Luís de Albuquerque: “as profissões de médico e de astrólogo se confundiam por via de regra na mesma pessoa, e que a medicina era ensinada na Universidade” (Luís Guilherme Mendonça de Albuquerque, Os Almanaques Portugueses da Biblioteca Nacional de Madrid, op. cit., p. 11); afirmando ainda que: “a astrologia judiciária [era] considerada como necessária à medicina nas Universidades onde se professava esta arte [. . . ]” (Luís Guilherme Mendonça de Albuquerque, Os Almanaques Portugueses da Biblioteca Nacional de Madrid, op. cit., p. 12). 13 Veja-se a discussão em torno deste aspecto apresentada por Rita Marquilhas, A Faculdade das Letras. Leitura e Escrita em Portugal no século XVII, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000.

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de calendários e de almanaques, prova de que estas publicações asseguravam um volume de vendas considerável14 . De perpétuo, o almanaque tornou-se anual. Em vez de continuar a dirigir-se a uma camada restrita da população capaz de seguir os cálculos das tabelas de referência, alargou aquilo a que hoje chamaríamos o seu “público-alvo”, e passou a incluir, para além do calendário, conselhos sobre a lavoura (de interesse quase universal, num mundo cuja economia dependia essencialmente da agricultura), festas religiosas, informações úteis, efemérides, etc. A mudança é já bem visível na definição que dá, de “Almanach” o Padre Rafael Bluteau no seu Vocabulário portuguez e latino, em 1712: ALMANACH ou Almanaque. Derivase do Arabico Monach, que significa Calendario. He o que vulgarmente chamamos folhinha do anno. Veja-se em Vossio no livro das Etymologias latinas na palavra Manacus. Numa palavra Grega latina, de que usa Cicero, poderás dizer Ephemeris, idis. Fem. Porém como no ditto orador esta palavra, sô significa Diario, em que se escrevem os successos de cada dia, bom será acrecentar alguma cousa a Ephemeris, para mais especificar a significação de hum Almanaque15 .

Esta descrição, contudo, em breve se veria desmentida pela realidade dos factos. Com efeito, a partir dos finais do século XVII, os almanaques foram-se diversificando cada vez mais. O género tornara-se tão apete14

Veja-se, Maria Isabel Loff, Impressores, Editores e Livreiros no século XVII em Lisboa, separata de Arquivo de Bibliografia Portuguesa, anos X-XII, 1964-1966 e Margarida Ortigão Ramos, Tratamento bibliográfico de uma miscelânea de folhetos sobre a Restauração de Portugal 1641-1667 (exemplar policopiado), Coimbra, Universidade de Coimbra, 1980. 15 Rafael Bluteau, Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico, botanico, brasilico, comico, critico, chimico, dogmatico, dialectico, dendrologico, ecclesiastico, etymologico, economico, florifero, forense, fructifero. . . autorizado com exemplos dos melhores escritores portugueses, e latinos, Coimbra, Colegio das Artes da Companhia de Jesus, vol. I, 1712, p. 268.

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cível, do ponto de vista comercial, que suscitava rivalidades entre entidades que procuravam apropriar-se da sua concepção e comercialização16 . O importante número de vendas que asseguravam graças à inclusão de informação de interesse geral, impeliu os seus produtores a procurar chegar a públicos cada vez mais variados. Em França, por exemplo, durante o reinado de Luís XIV, ao lado dos almanaques de cariz popular, que incorporavam informações destinadas ao mundo rural, surgiram almanaques destinados ao público citadino e aos membros da aristocracia e da realeza. É o caso do Almanach Royal francês, por exemplo, que viria a ter, a partir do início do século XVIII, um sucessor alemão que ficou famoso e teve grande longevidade – o Almanach de Gotha. Este tipo de almanaque incluía dados sobre as casas reinantes europeias e a vida de Corte, listagens dos detentores de cargos políticos e administrativos, informações sobre a composição do corpo diplomático, etc. e teve um paralelo português no Annuario da Corte Portugueza publicado na última década do século XIX. A tendência para a diversificação do género alargou-se a outros países europeus e contribuiu para uma crescente variedade quer de formatos, quer de conteúdos17 . A associação entre informação deste tipo, acrescentada com roteiros dos programas da ópera, dos teatros, e de outros divertimentos se16

Como recordaram, para o caso português, João David Pinto-Correia e Manuel Viegas Guerreiro: “Nos princípios do século XVIII, o negócio das folhinhas e dos prognósticos era importante, como podemos depreender da luta pelo privilégio da impressão, luta que se prolonga até finais do século, e que teve como principais adversários o P.e Tinoco da Silva, o livreiro Pedro Vilela e seu filhos, e ainda os padres da congregação do Oratório” (op. cit., p. 5). 17 Vejam-se os estudos sobre a evolução dos almanaques ao longo do tempo de John Grand-Carteret, “L’Almanach-Livre a travers les âges” in Les Almanachs français. Bibliographie-iconographie des almanachs, années, annuaires, calendriers, chansonniers, étrennes, états, heures, listes, livres d’adresses, tableaux, tablettes et autres publications annuelles éditées à Paris 1600-1895, Paris, J. Alisie et Cie. Libraires-Editeurs, 1896, pp. XXVII-LXXIV e de João Luís Lisboa, “Apresentação” in Rosa Maria Galvão (coord.), Os Sucessores de Zacuto. O Almanaque na Biblioteca Nacional do século XV ao XXI, Lisboa, Biblioteca Nacional, 2002, pp. 11-23.

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melhantes destinados às elites, e o calendário, transformou os almanaques dos finais do século XVII e do século XVIII, em objectos elegantes, que eram muitas vezes trocados entre as pessoas da alta sociedade como presentes de fim de ano. Esta função levou a que muitos deles tenham sido impressos em formatos muito reduzidos (in-12o , in-24o , in-32o – que poderíamos chamar “de bolsinha” ou de “bolso de colete”) e encadernados em materiais luxuosos como a seda, o brocado, os tecidos preciosos bordados a pedrarias, etc18 .

Almanaques sem calendário É neste âmbito que podemos enquadrar o surgimento, no século XVIII, de almanaques em que os dados anteriormente habituais como o calendário, as informações sobre os astros, os conselhos para o quotidiano, etc., desaparecem, para dar lugar às produções poéticas mais em voga. O caso mais notório e de maior impacto é o do Almanak des Muses, fundado em França por Sautereau de Marsy em 1765, e publicado sem interrupção até 183319 . De facto, até 1771, este impresso não incluía calendário nenhum: era completamente formado por textos em verso seguidos de uma lista de obras poéticas publicadas no ano findo. Mesmo depois de ter começado a incluir entre as suas páginas informações sobre o ano astrológico, as festas móveis, etc., mais geralmente associadas com o formato almanaque, estas últimas nunca chegaram a ocupar mais do que escassas dezenas de páginas, às quais se seguiam entre três e cinco centenas de outras, totalmente preenchidas 18

A Biblioteca Nacional de Lisboa conserva alguns exemplares deste tipo. Veja-se a este respeito o artigo de Margarida Cunha, “A encadernação dos almanaques” in Rosa Maria Galvão (coord.), Os Sucessores de Zacuto. O Almanaque na Biblioteca Nacional do século XV ao XXI, op. cit., 2002, pp. 25-27. 19 A longevidade do Almanach des Muses é especialmente notável se nos lembrarmos das reformulações do calendário levadas a cabo em França pelo poder político na década de 1790.

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com poemas nos géneros mais em voga. Assim, apesar do título e da periodicidade anual, esta publicação distanciava-se do formato usual ao privilegiar a componente de entretenimento sobre as outras funções do almanaque (calendarizar, informar, ensinar, etc.). Mais do que um instrumento de organização do tempo, o Almanak des Muses apresentava-se como um repositório da poesia posta em circulação no ano anterior, para deleite dos leitores. Nas palavras do editor, tratava-se de “un recueil fait avec soin des meilleures poésies fugitives publiées dans le cours de l’année, soit dans les différents journaux, soit séparément”20 destinado às “pessoas de bom gosto” (gens de goût). Note-se que a inexistência de calendário e o lugar secundário que continuou a ser atribuído àquele na publicação, mesmo depois de 1771, era apenas um dos desvios que esta nova fórmula representava em relação ao formato mais comum do almanaque anual: na verdade, nem o interesse suscitado pelo seu conteúdo se esgotava no decurso de um ano, nem a obra era imputável exclusivamente ao seu compilador, uma vez que este recorria a composições de outros, postas a circular previamente. Tal como se dizia no aviso aos leitores incluído logo no primeiro número, no futuro, a colecção de volumes sucessivos do Almanach des Muses deveria funcionar não só como um repositório capaz de permitir o estudo da evolução da poesia ao longo dos anos21 , mas servir, tam-

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“Avertissement”, in Almanak des Muses, 1765, p. 3. Almanak des Muses, op. cit., p. 3: “Il est aisé d’imaginer quelle supériorité cet Almanach doit avoir par sa nature sur les autres ouvrages du même genre. Bien différent de ceux qui, le dernier décembre, perdent sans ressource leur agrément & leur utilité, l’Almanach des Muses de cette année ne cessera point d’être un livre de littérature agréable l’année prochaine. Dans la suite il deviendra le recueil le plus complet qui aura jamais paru de toutes les poésies fugitives qui méritent d’être conservées; il servira à faire voir les changements successifs du gout dans ce genre de poésie; & cette entreprise, exécutée avec un discernement sévére, fera peut-être regretter aux gens de lettres de ne l’avoir pas vû commencer plutôt”. 21

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também, como instrumento de difusão e de aperfeiçoamento do gosto pela boa poesia entre aqueles que viviam fora da capital: Enfin, cet Almanach, renouvellé tous les ans, pourra encore servir à repandre & à perfectionner le gout de la bonne poësie dans les provinces, ou l’on est moins à portée de se procurer les nouveautés de cette nature. Ce sera une espèce de journal annuel pour les poésies legères22 .

Seja como for, a fórmula parece ter correspondido às expectativas dos leitores da época23 . Foram numerosos os autores de vulto que cederam as suas produções para serem publicadas deste modo e que viram os seus poemas divulgados lado a lado com os de autores menos conhecidos e, até, anónimos24 . O êxito da empresa parece ter ficado a dever-se, também, a outra das facetas deste novo formato editorial de almanaque: a abertura à colaboração do público, solicitada logo no segundo número do Almanak des Muses destinado ao ano de 1767, nos termos seguintes: Ceux qui voudroient faire inserer des Pièces de Poësie dans cet Ouvrage, sont priés de les faire parvenir avant le 15 Octobre, à DELALAIN, libraire à Paris, Rue de la Comédie Française25 .

Como notou Catriona Seth, a proximidade entre a data de composição destes poemas e a sua publicação em livro aproxima o Almanak des Muses de um “laboratório da poesia em acto”26 ainda que possa 22

Almanak des Muses, 1765, p. 6. Como lembrou João Luís Lisboa, “Apresentação” in Rosa Maria Galvão (coord.), Os Sucessores de Zacuto. O Almanaque na Biblioteca Nacional do século XV ao XXI, Lisboa, Biblioteca Nacional, 2002, p. 13: “Públicos novos levarão a modelos novos”. 24 Entre os autores mais frequentemente acolhidos nos exemplares das décadas de 60 e 70 figuram, entre outros, Voltaire, Dorat, Piron e Colardeau, por exemplo. 25 “Avertissement” in Almanak des Muses, 1767, p. V. 26 Catriona Seth, “Sciences et techniques dans l’Almanach des Muses” in Cahiers Roucher-André Chénier. Études sur la poésie du XVIIIe siècle, Almanachs et Anthologies poétiques (1750-1830), n.o 28, 2009, p. 96: “Il devient, plutôt qu’un conservatoire, le laboratoire de la poésie en cours”. 23

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ser visto, também, como sublinhou Marie Emmanuelle Plagnol-Diéval, como um tipo de “antologia periódica” de textos27 . O impacto notável desta publicação pode avaliar-se pela sua irradiação europeia, dado que serviu de modelo a publicações congéneres em diversos países europeus cujos títulos evocam o do anuário francês28 . Os exemplos mais conhecidos dessa expansão são, certamente, os diversos Musenalmanach ou Anthologiealmanach, publicados na Alemanha e na Holanda, bem como o Wienerischer Musenalmanach (1777) da Áustria, mas o modelo foi também adoptado em Portugal, por uma publicação muito esquecida e bastante maltratada pela crítica oitocentista29 : o Almanak das Musas. Publicado por subscrição entre 1793 e 1794, este anuário era exclusivamente formado por poesia e não incluía qualquer calendário. Pelo facto de ter acolhido nas suas páginas obras de Manuel Maria Barbosa du Bocage, Domingos Caldas Barbosa, Manuel Curvo Semedo, Francisco Joaquim Bingre e outros, tem sido considerado pela historiografia literária como o principal órgão de difusão das produções da Academia de Belas Letras, também conhecida por Nova Arcádia, à qual pertencia a maior parte dos seus colaboradores. Diga-se que, apesar de haver já, por esses anos, algumas mulheres activas no campo literário português, nenhuma se encontra representada na colectânea. Quando o século XVIII terminou, o almanaque abrangia uma tipologia variadíssima: podia ser destinado ao público rural ou ao citadino, revestir-se de um cariz mais popular ou mais aristocrático, acolher nas suas páginas calendários e indicações para o quotidiano ou prescindir 27

Marie Emmanuelle Plagnol-Diéval, “La place de la poésie dans les Etrennes á la Jeunesse (1760-1820)” in Cahiers Roucher-André Chénier. Études sur la poésie du XVIIIe siècle, Almanachs et Anthologies poétiques (1750-1830), n.o 28, 2009, p. 38: “modèle sans doute novateur de l’anthologie périodique”. 28 Houve “Almanaques das Musas” pelo menos na Holanda, na Rússia, na Bélgica, em Espanha, na Alemanha e na Áustria. 29 Teófilo Braga, por exemplo, refere-se-lhe, em termos pejorativos já na obra Bocage Sua vida e Obra litteraria, Lisboa, Imprensa Portugueza, 1876 e a sua opinião continuou a ser repetida pela posteridade.

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delas, ser aberto à colaboração dos seus leitores, publicar as composições de autores anónimos, e também dos escritores mais famosos. Nas palavras de John Grand-Carteret, ao chegar ao limiar de oitocentos, o almanaque “generalizara-se, procurava interessar todas as classes e responder a todas as necessidades”30 . E se, até ao final do século XVIII, a presença feminina nestas publicações pode considerar-se residual, na centúria seguinte ela será cada vez mais visível. As mulheres, que constituíam já, pelo menos desde meados do século XVIII, um dos destinatários privilegiados destas publicações, passarão a ter uma presença cada vez maior nas suas páginas ao longo da centúria seguinte, quer como colaboradoras, quer como directoras, quer ainda como proprietárias de algumas delas.

Os Almanaques e produção feminina: a colecção da Biblioteca Nacional O estudo da presença feminina nos almanaques esbarra com algumas dificuldades. Por um lado, o facto de estes impressos terem sido encarados como objectos utilitários e descartáveis, que perdiam a sua razão de existir no final do ano a que se reportavam está na origem do desaparecimento de muitos deles e, por outro, a circunstância de não serem encarados como livros propriamente ditos levou a que, como já notou Rosa Galvão a propósito da colecção de almanaques da Biblioteca Nacional de Lisboa, “apesar da grande divulgação e procura que estas publicações tiveram ao longo dos séculos, a sua identificação” esteja “omissa em catálogos e inventários”31 . Pareceu-nos que uma 30

John Grand-Carteret, “L’Almanach-Livre a travers les âges”, art. já cit., p. XXVIII: “L’almanach se généralise, cherche à intéresser toutes les classes, à répondre à tous les besoins”. 31 Rosa Galvão, “Nota prévia” in Os Sucessores de Zacuto. O Almanaque na Bibioteca Nacional, op. cit., p. 29.

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primeira aproximação ao problema poderia ser tentada, precisamente, a partir da amostra representativa que constitui o corpus de 861 almanaques preservados nesta biblioteca, datáveis dos séculos XV a XX. Apesar de se tratar de uma colecção reunida de modo mais ou menos aleatório, a sua constituição parece corresponder ao que sabemos acerca da vida do género, que atingiu o ponto máximo da sua popularidade no século XIX (63% da colecção é desta época, sendo 31% do século XX, 3% do século XVIII, 2% do século XVII, 1% do século XVI e um único do século XV): Q UADRO I: DATAS DOS A LMANAQUES DA B IBLIOTECA N ACIONAL DE P ORTUGAL

Um outro aspecto a que a colecção da Biblioteca Nacional dá visibilidade é a ampla implantação geográfica alcançada pelos almanaques portugueses durante os séculos XIX e XX. Ainda que, como seria de esperar, a maior parte deles tenha sido publicada em Lisboa, no Porto e em Coimbra, o universo aqui em análise inclui títulos dados à estampa em 56 localidades diferentes, situadas um pouco por todo o Portugal Continental, do Minho ao Algarve, bem como nos Açores e na Madeira, em Angola e Moçambique e na Índia portuguesa. Se, para além dos lugares de impressão, tivermos em conta a circulação destes anuários, que incluía, frequentemente, o Brasil, veremos desenhar-se um www.lusosofia.net


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“mapa” extraordinariamente amplo, capaz de justificar quer o interesse destas publicações em termos comerciais, quer as diversas apropriações de que foram sendo alvo ao serviço da propaganda ideológica, religiosa e política. Q UADRO II: D ISTRIBUIÇÃO POR Á REAS G EOGRÁFICAS DOS A LMANAQUES DA B IBLIOTECA N ACIONAL DE P ORTUGAL

Q UADRO III: L OCAIS DE I MPRESSÃO NA Í NDIA P ORTUGUESA

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Q UADRO IV: L OCAIS DE I MPRESSÃO NA Á FRICA P ORTUGUESA

Títulos como Almanaque da Maria da Fonte (1882), Almanaque Republicano (1875), Almanaque da República (1910), O Almanaque do Legitimista (1871), Almanaque da Democracia Cristã (1903), são ilustrativos do que acabamos de afirmar, bem como os dos numerosos anuários postos a circular por instituições ligadas à Igreja Católica como o Calendário da Reza, conforme o Breviário e missal da Ordem dos Pregadores (1769-1833), O Almanaque do Bom Católico (1869-1875), Almanaque da Imaculada Conceição (1879), Almanaque da Virgem Mãe do Céu (1886), etc. A julgar por esta amostra, o formato “almanaque” foi também usado, no caso português, como porta-voz e como veículo de difusão de correntes de pensamento combatidas pela ortodoxia religiosa e pelo Estado, como a maçonaria (n.o 316 Almanaque do Rito Escocês Antigo e aceite em Portugal [1845]), ou a bruxaria e as ciências ocultas (como testemunham, por exemplo os espécimes n.o 157 Almanaque das feiticeiras, n.o 268 Almanaque do feiticeiro [1871], n.o 235 Almanaque de São Cipriano [1889], n.o 542 Almanaque saragoçano das feiticeiras [1894], n.o 141 e n.o 142 Almanaque da Tia Mónica e da Tia Micaela [1887-1896], entre outros). A proliferação de almanaques dedicados à defesa da Igreja Católica entre a data da extinção das Ordens Religiosas e 1926 pode ser entendida a partir deste mesmo ponto de vista. Como facilmente se verifica, ao reunir num objecto único as funções utilitária, informativa e recreativa, e procurando www.lusosofia.net


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chegar a todos os públicos, no século XIX o almanaque tornara-se um instrumento persuasivo de grande impacto, utilizável como canal de disseminação de ideias junto de um grande número de leitores. Quando tentamos entender a relação estabelecida entre as mulheres e os almanaques deveremos ter em conta este contexto, e distinguir entre os vários papéis atribuídos às mulheres pelos organizadores destas publicações e aqueles que resultaram de resistências a estes mesmos papéis ou da sua apropriação por parte da população feminina: incluídas entre o público indiferenciado que os almanaques passaram a ter em vista a partir do século XVII, as leitoras serão frequentemente invocadas como destinatário preferencial de alguns deles ao longo dos séculos seguintes e, quando estes livrinhos começaram a acolher contribuições do público anónimo nas suas páginas, contaram-se entre os seus colaboradores mais activos. Note-se que, ao apelar à colaboração dos leitores e ao acolher e publicar nas suas páginas textos seleccionados apenas com base no gosto do seu organizador, os editores de almanaques do século XVIII haviam criado as condições para a emergência de um novo tipo de autor: aquele que não frequenta necessariamente o meio literário ou erudito, que não conhece os meandros do acesso aos editores e à publicação, que não tem necessariamente uma obra extensa passível de ser reunida em volume, e que para fazer circular as suas produções não precisa necessariamente de declarar o seu nome nem de provar a sua identidade. . . Para publicar num almanaque bastava enviar um texto pelo correio, de preferência pouco extenso, e esperar que ele agradasse ao coordenador do volume. Ver o seu texto seleccionado de entre um número considerável de contribuições enviadas equivalia a um sinal de reconhecimento da aptidão para escrever; e, em caso de publicação, esse texto – e o seu autor – tinham assegurada a visibilidade e um número extensíssimo de leitores. A “facilidade” de acesso à publicação assim proporcionada pelo almanaque, associada ao facto de este ser encarado como um objecto distinto do livro, menos prestigiado e menos exigente que aquele, tornou-o

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numa via de acesso à imprensa e ao reconhecimento do público especialmente adequado à produção escrita das mulheres, numa época em que, apesar de ser já significativa a percentagem de elementos do sexo feminino alfabetizados, se lhes exigia modéstia, discrição e o confinamento à esfera doméstica. Para colaborar num almanaque não era preciso “sair de casa”, nem conhecer o funcionamento do meio editorial e autoras principiantes podiam servir-se dele como teste para as suas experiências e incursões, mais ou menos continuadas, no mundo da cultura escrita. Entre os almanaques representados no corpus em apreço que se apresentam expressamente como leitura feminina, predominam aqueles que pretendem corresponder aos papéis sociais tradicionalmente reservados às mulheres. A indicação de que se destinam “às boas donas de casa” é frequente em livrinhos como o Almanaque das cozinhas, o Almanaque dos bons pitéus, o Almanaque familiar, bem como a associação entre o sexo feminino e o espaço doméstico (Almanaque Doméstico) e o ambiente familiar (Almanaque familiar e Almanaque das famílias). Um olhar atento permite observar que os títulos dos exemplares conservados dão conta da estratificação do grupo mulheres na sociedade portuguesa do período, distinguindo entre as “elegantes” (Almanaque das Elegantes, Almanaque Elegante), por exemplo, e as mulheres de estratos sociais mais baixos, como as lavadeiras (Almanaque das lavadeiras), as sopeiras (Reportorio das sopeiras) ou as criadas (Almanaque de Santa Zita, Almanaque das criadas). A associação tradicional entre mulher e bruxaria encontra-se também implícita nos diversos almanaques de “feiticeiras” representados neste acervo, ainda que estes possam não ter sido pensados em exclusivo para o leitorado feminino. Uma apreciação geral e necessariamente provisória dada a natureza não sistemática e não exaustiva da colecção a que nos reportamos, levar-nos-ia a postular que os almanaques destinados expressamente a leitores do sexo feminino nos séculos XIX e XX têm em vista um público predominantemente urbano (recorde-se que a profissão de

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lavadeira se exercia com base em roupa recolhida na cidade que era tratada por mulheres dos arredores), muito provavelmente porque era sobretudo nas cidades que se concentrava o maior número de mulheres alfabetizadas32 . Merece destaque, neste conjunto, o Almanaque das Senhoras para Portugal e Brasil, fundado por Guiomar Torrezão em 1870 e continuado depois da sua morte, em 1885, por Felismina Torrezão e por Júlia de Gusmão, cuja publicação só foi suspensa em 1928, assim como o Almanaque das Senhoras Portuenses (1885-1886) e o Almanaque das Senhoras Portuguesas e Brasileiras (1885-1887) dirigidos por Albertina Paraíso, que tiveram menor longevidade. Distingue-os o facto de terem sido fundados e dirigidos por mulheres (o primeiro por Guiomar Torrezão, e os dois últimos por Albertina Paraíso) bem como a circunstância de resultarem de projectos a que hoje chamaríamos feministas, destinados a promover a dignificação, a instrução e a autonomia intelectual e financeira da mulher. No primeiro caso, como procurou provar Andrea Oliveira Romariz em tese de mestrado recente33 , o projecto do Almanaque das Senhoras ter-se-á inspirado directamente no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, um anuário que teve notável êxito editorial em Portugal e no Brasil e pode ser considerado como um fenómeno de longevidade (publicou-se ininterruptamente entre 1854 e 1931 adoptando, depois de 1871, a designação de Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro). Guiomar Torrezão (1844-1898), que colaborava com essa publicação desde 1866 e procurava assegurar a sua subsistência por meio da escrita e do trabalho intelectual, viu no formato almanaque e no modelo do Almanaque de Lembranças uma forma de concretizar quer este desígnio, quer o seu projecto de promo32

Em Portugal, a percentagem de mulheres analfabetas era de 85,4% em 1890; 85% em 1900 e 81,2% em 1911. Cf. João Gomes Esteves, “Os primórdios do Feminismo em Portugal: a 1.a década do século XX”, Penélope. Fazer e desfazer a História, n.o 25, 2001, pp. 87-112. 33 Andrea Oliveira Romariz, Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. Um ensaio para um projecto maior?, dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2011.

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ção da emancipação feminina. Retoma, assim, da publicação anterior, não apenas o aspecto gráfico e a organização interna dos volumes mas, também, os circuitos de distribuição e venda. Tal como no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro o Almanaque das Senhoras fornecia aos seus leitores, no final de cada número, umas listas separadas dos nomes de homens e de mulheres que haviam contribuído com textos para a publicação. A elaboração destas listas – em que os homens são designados por “autores” e as mulheres simplesmente por “senhoras” –, é um dos traços característicos retomados por Torrezão. Os dois títulos da responsabilidade de Albertina Paraíso acima mencionados, têm também as leitoras como destinatário principal, encontrando-se ao serviço de ideais semelhantes de luta pela melhoria da instrução e da condição femininas, no âmbito da defesa dos ideais republicanos professados pela sua fundadora34 . À laia de conclusão, gostaria de sublinhar que, no caso português, foi preciso esperar pelo século XIX para encontrar a presença das mulheres nos almanaques, quer como colaboradoras, quer como directoras editoriais quer, ainda, como proprietárias. Em números absolutos, poucas chegaram a ter acesso a estas funções, mas o impacto que tiveram não foi, por isso, menos significativo.

Q UADRO V: A LMANAQUES TENDO AS M ULHERES COMO PÚBLICO - ALVO PREFERENCIAL

Almanaque das cozinhas, Lisboa, 1888 (“indispensável às boas donas de casa”) (1888-1901) Almanaque Doméstico, Lisboa, 1854 Almanaque dos Bons Pitéus (“segredos maravilhosos para improvisar deliciosas petisqueiras”), 1874-1876 João Gomes Esteves, “Os primórdios do Feminismo em Portugal: a 1.a década do século XX”, art. já cit., pp. 87-112; Joel Serrão, “Da situação da Mulher portuguesa no século XIX”, in Ivone Leal, Um século de Periódicos femininos (1807-1926), Lisboa, Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, 1992. 34

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Almanaque das Famílias (“útil e necessário a todas as boas donas de casa”), Lisboa, 1893 Almanaque Familiar (há três: n.o 383, 384, 386) Almanaque das lavadeiras, Lisboa, 1893 Almanaque de Santa Zita (“Obra de Previdência e Formação das Criadas”), Lisboa, 194? Reportório das sopeiras, Porto, 1892 Almanaque das Elegantes, Lisboa, 1875 Almanaque Elegante, Porto, 1866 (“dedicado ás senhoras portuguesas”) Almanaque das Senhoras para Portugal e Brasil, Lisboa, 1870-1928 Almanaque das Senhoras Portuguesas e Brasileiras, Lisboa, 1885-1887 Almanaque das Senhoras Portuenses, Lisboa, 1888 Almanaque do Belo Sexo (“cómico e satírico”), Lisboa, 1876 Almanaque Pink, Porto, 1902 Almanaque ratices da tia Genoveva, 1870

Q UADRO VI: A LMANAQUES D IRIGIDOS POR M ULHERES

Almanaque das crianças, 1892 – dirigido por: Margarida de Sequeira Almanaque dos Bons Pitéus (“segredos maravilhosos para improvisar deliciosas petisqueiras”), 1874-1876 – dirigido por: Guiomar de Lima Almanaque das Senhoras para Portugal e Brasil, Lisboa, 1870-1928 – dirigido por: Guiomar Torrezão

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Almanaque das Senhoras Portuguesas e Brasileiras, Lisboa, 1885-1887 – dirigido por: Albertina Paraíso Almanaque das Senhoras Portuenses, Lisboa, 1888 – dirigido por: Albertina Paraíso Almanaque de Angola, Lisboa, 1955-1960 – “Propriedade literária”: Armanda Beatriz Correia – “Coordenação”: Joaquim Augusto Correia Almanaque de Moçambique, Lisboa, 1955-1960 – “Propriedade literária”: Armanda Beatriz Correia – “Coordenação”: Joaquim Augusto Correia Almanaque Ilustrado da Parceria António Maria Pereira, 1900 – dirigido por: Maria O’Neill

Q UADRO VII: M ULHERES R ESPONSÁVEIS POR A LMANAQUES

Alice Couto, n.o 671 Amélia Janny, n.o 463 Ana de Albuquerque, n.o 336 Armanda Beatriz Correia, n.o 173 e n.o 208 Branca Neves, n.o 841 Edite Soeiro, n.o 476 Guiomar de Lima, n.o 346 Guiomar Torrezão, n.o 162 Margarida de Sequeira, n.o 150 Maria João Fidalgo, n.o 436 Maria O’Neill, n.o 410

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Vanda Anastácio Q UADRO VIII: A LMANAQUES TENDO AS MULHERES COMO UM DOS PÚBLICOS - ALVO

Almanaque Ilustrado da Parceria António Maria Pereira, 1900 – dirigido por: Maria O’Neill Almanaque mil trovões, Lisboa, 1872 Almanaque Valmiki (“colaboração de damas e cavalheiros”), Nova Goa, 1884-1885 Almanaque dos Amores, 1911-1914 Almanaque dos bons namorados, 1892-1908 Almanaque dos Namorados (“novo methodo de namorar”), Lisboa, 1887 Almanaque das crianças, 1892 Almanaque da Bruxa da Arruda, Lisboa, 1892 Almanaque da Mafalda de Santa Cruz vulgo Bruxa da Arruda, Lisboa, 1912 Almanaque da Tia Mónica, Lisboa, 1885-1909 Almanaque da Tia Mónica e da Tia Micaela, 1887-1896 Almanaque Saragoçano das Feiticeiras, 1894 Almanaque das Feiticeiras, 1899 Verdadeiro Almanaque das Feiticeiras, Porto, 1886

Q UADRO IX: R ESPONSÁVEIS ANÓNIMOS (I NICIAIS )

A. C. B., n.o 561 A. J. D., n.o 654 B. J. da S., n.o 703 C. C. O., n.o 505 F. A. P., n.o 662 F. C. N., n.o 304 F. F. S., n.o 631 J. A. C., n.o 663 J. C. P. de N., n.o 600 www.clepul.eu


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J. M., n.o 278 J. S. B., n.o 849

Q UADRO X: A LMANAQUES PENSADOS PARA CIRCULAÇÃO LUSO - BRASILEIRA

Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro (1854-1870) Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro (Lisboa, 1871-) Almanaque das Senhoras Portuguesas e Brasileiras Almanaque Dom Luís I para Portugal e Brasil (Lisboa, 1879) Almanaque Familiar para Portugal e Brasil (Braga, 1868) Almanaque Ilustrado do Brasil-Portugal (Lisboa, 1900-1902) Almanaque Vegetariano Ilustrado de Portugal e Brasil (1913)

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Bibliografia AGUIER P IÑAL, F., La prensa española del siglo XVIII. Diarios revistas y pronosticos, Madrid, CSIC, 1978. ALBUQUERQUE, Luís Guilherme Mendonça de, Os Almanaques Portugueses da Biblioteca Nacional de Madrid, separata da Revista da Universidade de Coimbra, vol XX, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1961. I DEM, “Almanaques” in Joel S ERRÃO (org.), Dicionário de História de Portugal, Porto, Livraria Figueirinhas, vol. I, 1981, pp. 112-114. A NDRIES, Lise, “Almanaques: Revolucionando um género tradicional” in Robert Darnton e Daniel Roche (coords.), Revolução Impressa. A Imprensa na França 1775-1800, São Paulo, EdUsp, 1996, pp. 287-307. A SSIS, Machado de, “Como se inventaram os almanaques” in Marlyse Meyer (org.), Do almanak aos Almanaques, S. Paulo, Ateliê Editorial, 2001, pp. 25-28. BLUTEAU, Rafael, Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico, botanico, brasilico, comico, critico, chimico, dogmatico, dialectico, dendrologico, ecclesiastico, etymologico, economico, florifero, forense, fructifero. . . autorizado com exemplos dos melhores escritores portugueses, e latinos, Coimbra, Colegio das Artes da Companhia de Jesu, vol. I, 1712.


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Vanda Anastácio

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Imprensa de mulheres no Brasil e suas interlocuções com o periodismo português Constância Lima Duarte1

A breve reflexão sobre literatura, imprensa e emancipação da mulher no Brasil e em Portugal, no século XIX, que ora apresento, consiste no desdobramento de pesquisas que venho desenvolvendo há vários anos acerca da produção intelectual da mulher brasileira, dos papéis sociais desempenhados por ela e do movimento feminista. A constatação de que a literatura de autoria feminina, a consciência feminista e a imprensa das mulheres surgiram praticamente ao mesmo tempo no Brasil, ainda no século XIX, é válida também para Portugal. E tal fato nos permite ter uma percepção nova de todo o processo. Ou seja: quando as primeiras mulheres tiveram acesso ao letramento, imediatamente elas se apoderaram da leitura, que, por sua vez, as levou à escrita e à crítica. Assim, independentemente de serem poetisas, ficcionistas, professoras ou jornalistas, a leitura lhes deu consciência do estatuto de exceção que ocupavam no universo de mulheres analfabetas, da condição de subalternidade a que o sexo estava submetido, e permitiu a muitas realizar uma obra engajada, tal o tom de denúncia 1

Universidade Federal de Minas Gerais.


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e de reivindicação que os primeiros escritos contêm, em sua grande maioria. Outra constatação interessante foi compreender que, mais do que os livros, foram os jornais e revistas os primeiros e principais veículos da produção letrada feminina. Desde que surgiu, a imprensa tornou-se um importante elemento de aglutinação ao permitir que as mulheres tornassem públicas suas produções intelectuais, e pudessem expressar as nascentes vocações literárias. Tornou-se, ainda, testemunha de sua resistência às tentativas de apagamento e de discriminação, ao propagar as vozes que rompiam a inércia dominante, constituindo-se em autêntico espaço pedagógico e de conscientização para a sociedade como um todo. E à medida que realizo estas investigações, mais me convenço de que o que afirmo com relação aos jornais e revistas brasileiros vale também para os portugueses, até porque a história das mulheres – lá e cá – ocorreu de forma parecida e praticamente na mesma época. Senão, vejamos. Em ambos os países, antes mesmo que as mulheres criassem os próprios periódicos, alguns tipógrafos – atentos às novidades e às mudanças de costumes – se apressaram em criar jornais destinados ao novo público. Em Portugal, os primeiros foram O Toucador, em 1822, destinado à distração das jovens lisboetas, o Periódico das Damas, de 1823, dirigido “às benignas e sábias damas de Portugal”, e o Diálogo de duas velhas, também de 1823, este último limitado a uma espécie de “catecismo das concepções básicas do regime absolutista”, que já nem existia em Portugal2 . Nesta mesma década surgiram os primeiros periódicos brasileiros, em decorrência da promulgação, em 1827, da lei que autorizava a abertura de escolas para meninas. Assim, neste ano, veio a público O Espelho Diamantino – cujo subtítulo era “Periódico de Política, Literatura, Bellas Artes, Theatro e Modas, dedicado às Senhoras Brasileiras” –, que circulou no Rio de Janeiro até o ano seguinte. Pierre Plancher, o 2

Cf. Maria Ivone Leal, Um século de periódicos femininos, Lisboa, Comissão Para a Igualdade e Para os Direitos das Mulheres, 1992, p. 12.

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Imprensa de mulheres no Brasil e suas interlocuções com o periodismo português

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responsável pela façanha e também diretor do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, afirmou, logo no primeiro número, que conservar as mulheres “em estado de estupidez, pouco acima dos animais domésticos é uma empresa tão injusta quanto prejudicial ao bem da humanidade”. E coerente com tal afirmativa ele brindou as leitoras com poemas, contos e comentários sobre arte, moda e culinária, ao longo dos quatorze números de existência do jornal3 . Dois anos depois surgia, em São João del Rei (MG), O Mentor das Brazileiras, que circulou de 1829 a 1832, defendendo o acesso das mulheres à educação e ao debate político, e ainda as orientando nos quesitos de elegância e beleza. E em Recife (PE) tivemos O Espelho das Brazileiras, em 1830, por iniciativa do tipógrafo francês Adolphe Emile de Bois Garin. Aliás, foi nesse jornal que Nísia Floresta (1810-1885) inaugurou a carreira de escritora, publicando, ao longo de trinta números, artigos sobre a história da mulher no Brasil e no mundo, que depois retomaria em seus livros. A partir destes títulos, tanto cá como lá, outros se sucedem ora manifestando certa preocupação com a instrução das moças, ora limitando-se em distrair as leitoras com passatempos, poesia, humor e notícias. No Brasil, os primeiros periódicos criados por uma mulher surgiram em Porto Alegre, em 1833, e a responsável foi a escritora Maria Josefa Barreto (1786?-1837). Seus títulos eram Belona Irada contra os Sectários de Momo e Idade d’Ouro. Francamente políticos, eles se posicionavam a favor do Partido Conservador e contra a facção política republicana conhecida como “os Farrapos”. A novidade que tais publicações representaram – uma mulher assumindo um posicionamento político, naqueles longínquos tempos – com certeza contribuiu para o apagamento de seus títulos na história da imprensa do país. Em Lisboa, o pioneirismo de uma mulher se declarar fundadora, proprietária e diretora de um jornal coube a Antonia Gertrudes Pusich, que, em 1849, trouxe a público A Assembleia Literária, com o subtítulo “Jornal d’Instrucção”. Aliás, Dona Antonia Gertrudes foi ainda responsável por mais dois periódicos: A Beneficência, em 1852, e A Cruzada, 3

O Espelho Diamantino, Rio de Janeiro, 1 de outubro de 1827.

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em 1858, todos em Lisboa. Se, até então, a expressão “periódico feminino” era empregada para designar os jornais dirigidos por homens e destinados a mulheres, a partir dos primeiros jornais feitos por mulheres para mulheres, o sentido da expressão se amplia e até altera seu significado, pois o conteúdo também se torna diferente. Segundo Maria Ivone Leal: “o conteúdo altera-se porque os objectivos a atingir são outros, outros os meios de que se lança mão para os alcançar, outra a sensibilidade de quem fixa os primeiros e escolhe os segundos”4 . Nesse mesmo ano de 1852 surgia também, no Rio de Janeiro, aquele que ainda hoje costuma ser citado como fundador do nosso periodismo feminino: o Jornal das Senhoras, de Joana Paula Manso de Noronha (1819-1875), que vai circular até 1855. O fato de estar junto à Corte, e tratar basicamente de questões relacionadas à mulher, ao contrário dos anteriores, criados numa província longínqua e com forte conotação política, justifica em parte a ampla divulgação que este periódico obteve. Editado aos domingos, o Jornal das Senhoras tinha como objetivo “propagar a ilustração” e cooperar “para o melhoramento social e a emancipação moral da mulher”. Ou seja, já trazia a reivindicação que estará presente em praticamente toda a imprensa feminina que se segue: as meninas mereciam receber uma instrução mais consistente, que as preparasse melhor para seu papel social. Por isso, ao lado de notícias sociais e comentários sobre modas e receitas, encontravam-se sempre artigos com denúncias e protestos por melhores condições de vida. Dez anos depois, em 1862, O Belo Sexo, de Júlia de Albuquerque Sandy Aguiar, vinha a público no Rio de Janeiro, com o “propósito de provocar a manifestação feminina na imprensa, a favor do progresso social; e dar oportunidade ao desenvolvimento das capacidades exigentes entre as mulheres, olhadas com indiferença pelos homens de letras”5 . Em Minas Gerais, o primeiro que temos notícia surgiu em Campanha das Princesas, em 1873, fundado por uma professora de nome Fran4 5

Cf. Maria Ivone Leal, Um século de periódicos femininos, op. cit., p. 56. O Bello Sexo, Rio de Janeiro, 21 de agosto de 1862.

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cisca Senhorinha da Mota Diniz, cujo título era O Sexo Feminino. Em 1875, ela transferiu seu jornal para o Rio de Janeiro e continuou a reivindicar o acesso da mulher à educação, e a afirmar que a esposa não devia ser serva de seu marido. Com a Proclamação da República, em 1889, o nome do jornal é alterado para O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, e torna-se ainda mais veemente, exigindo o direito ao estudo secundário, ao trabalho, e denunciando o regime de submissão em que muitas mulheres viviam. Em artigo de 14 de setembro de 1889, por exemplo, intitulado “Emancipação da mulher”, Senhorinha defende a necessidade urgente de as mulheres se libertarem da tutela “eterna e injusta” que pesava sobre o gênero. São suas palavras: “Não estamos mais nos tempos em que o saber estava encarcerado nos claustros. . . . Vemos, graças à luz da civilização, que a verdadeira liberdade consiste na soberania da inteligência. Mas, verdade seja dita, sem se efetuar uma transformação radical e completa no regime da atual educação do nosso sexo, nada ou pouco, muito pouco, conseguiremos em benefício de nosso desideratum. . . . Precisamos pugnar pela emancipação da mulher, adquirida pela tríplice educação: física, moral e intelectual”6 . Tal apelo era mais que pertinente. No Brasil, até a década de 1870, apenas 5% das mulheres brasileiras estavam alfabetizadas, pois o pensamento patriarcal se opunha firmemente ao aumento de escolas femininas, prevendo, com certeza, as mudanças de comportamento que daí podiam advir7 . Tais jornais e revistas destinavam-se, portanto, às mulheres da elite que começavam a deixar a reclusão doméstica, contribuindo para minimizar seu isolamento, incentivar suas conquistas,

6

Cf. O Sexo Feminino, Rio de Janeiro, 14 de setembro de 1889. No primeiro censo realizado no Brasil, em 1872, divulgado em 1876, consta que 78,11% da população era analfabeta (cf. Ana Maria Araújo Freire, 2.a ed., São Paulo, Cortez Editora, 1993). Em Portugal, a situação era ainda mais grave: em 1878, 79,4% dos portugueses residentes no continente do Reino não sabiam ler (cf. Rui Ramos, “Culturas da alfabetização e culturas do analfabetismo em Portugal”, Revista Análise Social, vol. XXIV (103-104), 1988 (4.o , 5.o ), pp. 1067-1145). 7

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e criando uma espécie de rede de apoio e de intercâmbio intelectual entre elas. Por isso persiste, em praticamente todos eles, a tese de que o gênero está submetido ao fator econômico, ou seja, que “a dependência econômica determina a subjugação” e “o progresso do país depende de suas mulheres”. Encontram-se ainda inúmeras mulheres empenhadas em conscientizar as leitoras de seus direitos à educação, à propriedade, ao voto e ao trabalho profissional, como bem o fizeram Josefina Álvares de Azevedo, Luciana de Abreu, Narcisa Amália e Presciliana Duarte de Almeida, dentre outras, ainda no século XIX. Voltando ao periodismo português e brasileiro, não deixa de ser curioso observar a quantidade de títulos semelhantes que circularam, em momentos diferentes, aqui e lá. À guisa de ilustração, lembro alguns, como Jornal das Damas, Jornal da Família, Jornal das Senhoras, A Esperança, O Jardim das Damas, O Beija-Flor, A Violeta, O Lyrio, Voz Feminina, Mundo Elegante, Borboleta, Recreio das Damas, A Grinalda, etc. etc., entre outros, muitos outros. As referências aos insetos e aves (borboletas, beija-flores), a objetos relacionados ao mundo feminino (toucador, pente e agulha) ou ao mundo vegetal (violeta, lírio, miosótis) revelam não só as limitações dos periódicos, como, naturalmente, de seus responsáveis. Mas não foi só o Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro que circulou no Brasil e acolheu a colaboração da intelectualidade brasileira. Outros também atravessaram o oceano e, para não me alongar, destaco apenas três. O mais antigo foi O Correio das Damas – “Jornal de Litteratura e Modas”, fundado em 1836, em Lisboa, por Jacinto da Silva Mengo, que aliás sobreviveu até 1852. No acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, consultei alguns de seus 168 fascículos, que testemunham a preocupação em bem ilustrar as jovens com poesias e historietas morais, e de lhes sugerir modelos de vestimentas para diferentes estações. O segundo é o Jornal das Damas, que apesar de se intitular “jornal”, trazia o subtítulo “Revista de Litteratura e Modas”. Criado em

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1867 por J. J. Bordalo, circulou até 1870. Também no acervo da Biblioteca Nacional encontram-se coleções deste periódico, que revelam o mesmo empenho em instruir e distrair as leitoras. Já nesta época, a moda para o vestuário feminino vinha de Paris, e não havia qualquer preocupação em adaptar os figurinos ao clima tão diverso do Brasil. Por fim, apresento o terceiro – intitulado Almanach das Senhoras – que merece destaque por várias razões. A primeira, por se tratar de um periódico dirigido por uma mulher, no caso Guiomar Torrezão, que ficou à sua frente de 1871 a 1898, ano de sua morte, sendo substituída por sua irmã, Felismina Torrezão, que assumiu a direção e o manteve circulando até 1921. Ao todo, foram 50 anos ininterruptos, o que explica sua ampla divulgação, bem como o fato de Guiomar Torrezão ter-se tornado nome conhecido no Brasil e deixado tantas colaborações em jornais e revistas de todo o país. Outro motivo para a expressiva repercussão do Almanach de Guiomar deve-se ao fato dele ter acolhido a produção intelectual das jovens escritoras brasileiras. Por isso, ao lado de nomes tão prestimosos da literatura portuguesa e da brasileira – como Almeida Garret, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, Antero de Quental, Cesário Verde, Castro Alves, Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias e Machado de Assis – encontramos os nomes de Ignez Sabino, Presciliana Duarte, Zalina Rolim, Anna Sabina de Menezes, Júlia Lopes de Almeida, Adelina Lopes Vieira, Amália dos Passos Figueiroa e Narcisa Amália, entre tantos outros. O Almanach das Senhoras destaca-se ainda por configurar um “projeto político concebido e gerido por um círculo de mulheres especialmente portuguesas”, mas também por brasileiras e espanholas8 , que visava a formação e consolidação da leitura e da escrita entre as mulheres. Como os demais almanaques, este também dava destaque ao calendário, biografias, descobertas científicas, passatempos e anúncios, em sua maioria, aliás, dirigidos ao público feminino. Com o passar das 8

Ana Cláudia Gomes, O Almanach das Senhoras (1871-1927), Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Dissertação de Mestrado, 2002.

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décadas, a maioria das seções se modifica, exceto uma – “Do Tejo ao Atlântico”, que se tornou quase marca do periódico, numa clara referência à sua ampla abrangência. Como outros periódicos, também o Almanach das Senhoras foi contraditório quanto ao papel da mulher, ora defendendo a emancipação, ora abrigando opiniões conservadoras que consideravam o cuidado do lar e dos filhos, o único trabalho que a mulher devia exercer. Certo modelo exportado pela França – de mulheres fúteis, devotadas ao culto da beleza e da moda – ameaçava com certeza as convicções e a paz doméstica. Se sempre existiram periódicos que se limitaram a falar de moda, decoração e culinária, para nossa sorte outros insistiam em acompanhar a transformação dos tempos e das mulheres, ajudando-as a refletir, escolher, discordar. Enfim, são investigações como estas, que me mobilizam e tornam pertinente a proposta de prosseguir com o resgate desta imprensa – bem como de antigos escritos de mulher. Muitos periódicos destinados ao público leitor feminino, que hoje se encontram desaparecidos, uma vez redescobertos vão permitir que conheçamos melhor a produção literária e jornalística de nossas primeiras escritoras, assim como a discussão de inúmeras questões pertinentes à mulher e à literatura. Vão nos permitir, por exemplo, acompanhar as mudanças de mentalidade e a tomada de consciência por parte das autoras de artigos, crônicas, poemas, sobre os direitos das mulheres à instrução e à formação profissional; e, ainda, a ampliação do público leitor e o papel desempenhado pelas revistas e jornais como fatores propulsores da conscientização feminina de seus direitos, e de incentivo para a criação literária. Por fim, vai nos permitir chegar a novas conclusões sobre a trajetória das mulheres de Letras; saber como enfrentaram seus temores, desejos e fantasias; e as estratégias adotadas para se expressarem publicamente, apesar de seu confinamento ao pessoal e ao privado.

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Bibliografia B UITONI, Dulcília S., Imprensa feminina, São Paulo, Ática, 1986. Cadernos AEL, Mulher, história e feminismo, Campinas, Arquivo Edgard Leuenroth; Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, segundo semestre de 1995/primeiro semestre de 1996. D UARTE, Constância Lima, Mulheres de Minas: lutas e conquistas (coautoria), Belo Horizonte, Conselho Estadual da Mulher de Minas Gerais, Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais, 2008. G OMES, Ana Cláudia, O Almanach das Senhoras (1871-1927), Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002. H AHNER, June. E., Emancipação do sexo feminino. A luta pelos direitos da mulher no Brasil. 1850-1940, Tradução de Eliane Tejera, Lisboa, Florianópolis, Editora Mulheres/EDUNISC, 2003. L EAL, Maria Ivone, Um século de periódicos femininos, Lisboa, Comissão Para a Igualdade e Para os Direitos das Mulheres, 1992 (Cadernos Condição Feminina n.o 35). M ARTINS, Ana Luiza, Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempo de República, São Paulo, EDUSP, 2001.



Notícia do Almanaque de Lembranças e das suas “Senhoras” Vania Pinheiro Chaves1

Com esta comunicação2 pretendo dar conta dos primeiros passos da investigação do GI 6 do CLEPUL sobre a colaboração feminina no Almanaque de Lembranças3 , além de assinalar o interesse deste anuário para o conhecimento da sociedade, da cultura e da literatura de Portugal e do Brasil, bem como do intenso relacionamento que, através dele, se estabeleceu no espaço lusófono da segunda metade do século XIX e início do século XX.

1

Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 2 Este texto integra, na comunicação apresentada no I Encontro Luso-Afro-Brasileiro. As mulheres e a imprensa periódica (FLUL, 14 Julho 2011), dados que, obtidos posteriormente, alteraram as informações disponíveis até aquela data. 3 Intitulada, inicialmente, Almanach de Lembranças, esta publicação passou em 1855 a chamar-se Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro, tendo adotado, a partir de 1872, a designação Novo Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro. As três designações (na ortografia atual) serão aqui utilizadas, mas com maior frequência, a inicial por ser a mais concisa.


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Não é fácil definir o objeto almanaque, pois como refere Jean-François Botrel4 nele devem estar englobadas publicações anuais com outras denominações, tais como calendários, anuários, prognósticos, lunários, guias de forasteiros, etc. Impresso múltiplo em vários aspectos, o almanaque realiza, como refere Ernesto Rodrigues5 , a fusão do jornal, da revista e do livro, posto que reúne notícias do presente, memórias do passado e reflexão prospectiva relacionada com o ano vindouro, além de passatempos e criações literárias. Daí que Roger Chartier6 o considere um gênero simultaneamente editorial e literário e que Lise Andries7 o defina como um manual prático de consulta diária, anotando ainda que era frequentemente oferecido como presente de Ano Novo. Há almanaques populares e eruditos, bem ou mal concebidos, utilitários ou de divertimento, baratos e caros, destinados a um público especializado e reduzido ou a públicos amplos e diversificados, portadores de ideologia conservadora ou de ideias esclarecidas e reformadoras. Essa diversidade é posta em evidência por Jacques Le Goff que afirma: Ilustrado, com signos, figuras, imagens, o almanaque dirige-se aos analfabetos e a quem lê pouco. Reúne e oferece um saber para todos: astronômico, com os eclipses e as fases da Lua; religioso e social, com as festas e especialmente as festas dos santos, que dão lugar aos aniversários no seio das famílias; científico e técnico, com conselhos sobre os trabalhos agrícolas, a Jean-François Brotel, “Almanachs et calendriers en Espagne au XIXe Siècle: essai de typologie”, in Les Lectures du Peuple e Europe et dans les Amériques du XVIIe au XXe (org. Hans-Jurgen Lusebrink), Bruxelles, Complexe, 2003. 5 Ernesto Rodrigues, “Espaços alternativos”, in Cultura Literária Oitocentista, Porto, Lello, 1999. 6 Apud Linn Avery Hunt, A Nova História Cultural, 3.a ed., São Paulo, Martins Fontes, 2001. 7 Lise Andries, “Almanaques – revolucionando um gênero tradicional”, in A Revolução Impressa: a imprensa em França, 1775-1800 (org. Robert Darnton e Daniel Roche), São Paulo, EdUSP, 1996. 4

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medicina, a higiene; histórico, com as cronologias, os grandes personagens, os acontecimentos históricos ou anedóticos; utilitário, com a indicação das feiras, das chegadas e partidas dos correios; literário, com anedotas, fábulas, contos; e, finalmente, astrológico8 .

Com raízes nos calendários da Antiguidade e produção ainda nos dias de hoje, os almanaques sofreram inúmeras mudanças ao longo dos tempos e nos vários espaços onde foram e são produzidos. Na segunda metade do século XIX – altura em que aparece a coletânea em análise – haviam conseguido tanto em Portugal como no Brasil incontestável importância e expansão. Segundo Ernesto Rodrigues, em Portugal contavam-se vinte almanaques em 1868 e quarenta e sete em 1873. Por esses anos e nos seguintes, eles são tão lidos e numerosos em Lisboa que Alberto Pimentel chega a considerá-los uma “epidemia”. Por outro lado, Manuel Viegas Guerreiro e João David Pinto-Correia9 referem que a intelectualidade portuguesa passou a reconhecer os benefícios desse produto editorial e, em particular, a possibilidade de atingir um público mais vasto e, com isso, contribuir para o desenvolvimento cultural da nação e para o interesse pela literatura. Concebido por intelectuais, o Almanaque de Lembranças é de caráter urbano e deve ser enquadrado no subgrupo dos almanaques literários, pois, além de difundir informação sobre o ano vindouro e conhecimentos muito variados, apresenta passatempos e composições literárias. Em formato de livro de bolso e editado em Lisboa – exceção feita aos três primeiros números impressos em Paris –, este anuário teve uma existência invulgarmente longa, visto que circulou de 1851 a 1932. Suas tiragens excederam os vinte mil exemplares – acrescidos, às vezes, por reedições –, o que ficou a dever-se não apenas a baixos 8

Jacques Le Goff, História e Memória, Campinas, UNICAMP, 1994, p. 518. Manuel Viegas Guerreiro e João David Pinto-Correia, “Almanaques ou a Sabedoria e as Tarefas do Tempo”, Revista do ICALP, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, n.o 6, agosto/dezembro de 1986. 9

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preços de venda10 , a promoções na compra de um conjunto de volumes, à facilidade da sua aquisição no Brasil, bem publicitada em cada número, mas ainda às características e méritos da própria obra. Lançado para o ano de 1851 por Alexandre Magno de Castilho – irmão do renomado escritor romântico António Feliciano de Castilho – o Almanaque de Lembranças, devido a morte do seu fundador, passa a ser dirigido, em 1861, por um de seus sobrinhos, também chamado Alexandre Magno de Castilho. Este se valeu da colaboração de António Xavier Rodrigues Cordeiro, que assumiu sozinho a direção da coletânea, em 1872, quando falece prematuramente o seu parceiro na editoria. Com a morte de António Xavier Cordeiro, em 1897, o cargo manteve-se na sua família11 até a publicação do penúltimo número do almanaque, ficando apenas o volume de 1932 sob a responsabilidade de Armando de Lima Pereira. Fio condutor e determinante da natureza e ideologia do anuário, os editores do nosso almanaque exerciam inúmeras funções: selecionavam as informações, os textos e autores que nele figuravam, redigiam inúmeros textos, alguns dos quais introdutórios onde teciam comentários sobre a coletânea, faziam agradecimentos e registos fúnebres, correspondiam-se com os leitores, dando-lhes conselhos, elogiando ou criticando os seus escritos. Daí ser importante frisar que tais editores eram homens de cultura elevada e sólida reputação. Membro do Instituto Histórico de Paris, o seu fundador era matemático e escritor, tendo exercido ainda relevante atividade pedagógica. Seu sucessor e homônimo era engenheiro hidrográfico, professor da Escola Naval e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Autor de diversas obras, organizou um arquivo-biblioteca sobre os Descobrimentos portugueses, tendo reunido vasta informação sobre a geografia, a flora, a fauna e a vida social das colónias de Portugal, à semelhança do que se ve10

Em “Laços fraternos”, Eliana de Freitas Dutra informa que, na década de 80, o preço dum exemplar equivaleria, no Brasil, ao de meio quilo de café ou ao de um quilo de açúcar. 11 Em 1898, assumiu a direção Antonio Xavier de Sousa Cordeiro, tendo se seguido Adriano Xavier Cordeiro e O. Xavier Cordeiro, que a ocuparam até 1931.

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rifica na publicação em análise. Também eruditos e escritores foram os demais editores do Almanaque de Lembranças, cuja biobibliografia extravasa o nosso campo de interesses. Mantendo o rumo traçado pelo seu criador, o Almanaque de Lembranças sofreu, contudo, consideráveis mudanças, no longo período em que circulou. Além de ter aumentado em muito a sua extensão (cerca de cem páginas no primeiro número e mais de quinhentas em outros volumes, aos quais se junta, por vezes, um Suplemento), ele foi alargando e diversificando as suas matérias. Seu conteúdo inicial assemelha-se ao das publicações do mesmo tipo, incluindo o calendário português com o signo correspondente a cada mês, informações de cariz religioso (santos do dia, comemorações e prescrições da Igreja) e social (datas de festas nacionais, natalícios da família real portuguesa e da família imperial brasileira), elenco das feiras e mercados de Portugal. A isto se acrescentam alguns textos de natureza vária, apensos a cada dia do ano, um índice e observações do editor. Por outro lado, nele não se encontra a seção de astrologia, muito frequente nesse tipo de publicação. Progressivamente ampliado, esse elenco passou a abarcar outras informações, bem como passatempos, poemas e prosa literária, além de anúncios, da lista dos colaboradores, da correspondência do editor com os leitores, do retrato, perfil e bibliografia de figuras ilustres, a que se presta homenagem. Os passatempos, os textos em prosa e os versos passam a constituir uma seção independente, a partir do volume para o ano de 1855. No Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para 1872, inaugura-se uma prática, que se tornará permanente: o elogio biográfico de uma figura ilustre de Portugal ou do Brasil nas páginas iniciais de cada volume. No Indice Geral do Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro desde 1872 a 1898 (inclusive), as matérias que constam desta publicação estão classificadas em vinte três itens (alguns dos quais repartidos também em subitens) que, dela, nos

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podem dar um melhor conhecimento. São eles: Anedotas e chistes Anedotas históricas e autênticas Antiguidades (coisas do passado – comemorações e apontamentos retrospectivos) Antologia portuguesa (trechos escolhidos de poetas e prosadores) Arqueologia e arquitetura (monumentos e edifícios notáveis, numismática, etc.) Arte e artistas (apontamentos e esboços) Ciências naturais (receitas e indicações úteis) Contos, apólogos e lendas Educação e ensino Epigramas e sátiras Etnografia (costumes, tradições, superstições e trovas) Geografia (viagens e descrições) Gravuras História (trechos e episódios) Homens e damas ilustres (biografias, estudos críticos, fatos e notas) subdividida em: Portugal e Brasil; Diversos países Lembranças (fatos e notícias dos tempos modernos) Linguagem portuguesa (etimologias, locuções, anexins, etc.) Miscelânea Mitologia e lendas fabulosas Moral e religião (Santos e varões ilustres da Igreja) Pensamentos, máximas e conceitos Poesia Prosas literárias (portuguesas e brasileiras)

Quanto ao projeto editorial de Castilho, continuado pelos demais editores cabe observar que no “Prologo” do volume inicial do Almanaque de Lembranças são apontados como méritos fundamentais da obra a sua novidade e variedade: A presente obra tem, á falta d’outros méritos, novidade e variedade. Quanto á novidade, nem em Portugal, nem, que eu saiba, www.clepul.eu


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em paiz nenhum estrangeiro se publicou nunca Almanach pelo gosto d’este. Quanto á variedade, difícil fôra encerrar em tão diminuto quadro mais vasta colecção de apontamentos em todos os ramos dos conhecimentos humanos.12

Este “livrinho ameno” é definido no segundo volume também como “uma livraria em miniatura”13 . No “Prologo” deste volume Castilho menciona a boa acolhida do número de lançamento e declara o firme propósito de continuar a dar ás classes, profissões, e idades pouco instruidas, e que nada lêem, e que pouco sabem, algumas noções geraes do muito que lhes conviria saber, fugindo sempre nas minhas exposições dos termos technicos, uteis para os homens da sciencia, assustadores porém e aridos para o vulgo.14

Para a concretização deste propósito o editor pedira, já no primeiro volume da coletânea, colaboração. Numa nota colocada antes da página de rosto declara: N.B. O Author acceita quaesquer artigos que, por sua natureza e limitadas dimensões, possão entrar no seu Almanaque para o anno de 1852, quer se lhe remettão assignados, quer anonymos.15

E ela não tardou, pois, no anuário para 1854, agradece “a generosa e delicadíssima coadjuvação que para o presente Almanach não poucos litteratos portuguezes dos mais distinctos lhe prestaram”16 . O Almanaque de Lembranças passou, assim, a incluir um conjunto, que se foi alargando, de textos de renomados autores antigos e modernos (Camões, Vieira, Bocage, Garrett, Eça, Gonçalves Dias, Olavo 12 13 14 15 16

Almanaque de Lembranças para 1851, p. Almanaque de Lembranças para 1852, p. Almanaque de Lembranças para 1852, p. Almanaque de Lembranças para 1851, p. Almanaque de Lembranças para 1854, p.

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[17]. 22. 19. s/n. 15.


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Bilac, Cervantes, Goethe, Zola, etc.), prevalecendo, contudo, o contributo de escritores coevos, menores ou totalmente ignorados nos dias de hoje. Dessa colaboração ressalta uma profusão de poemas, o que leva, já em 1860, Alexandre Magno de Castilho a protestar, com veemência, contra a má qualidade de alguns deles: Por Christo e por quantos santos ha na côrte do céu, não me matem com versos! N’ísso já pouco se admitte hoje a mediocridade, e a maior parte das poesias que se me remettem está cem gráos abaixo do máu. [. . . ] Antes uma pagina de boa prosa do que outra de versos detestaveis.17

Castilho mencionou por diversas vezes o sucesso obtido pelo seu “livrinho” junto ao público, não só em Portugal e nas suas Províncias Ultramarinas, mas também no Brasil. E já no Almanaque para 1856, faz votos para que ele seja – como de fato foi – um nexo mais entre nós [portugueses] e os nossos irmãos brasileiros; estreite e fortifique os vinculos de sangue que mutuamente nos prendem; e já que é livro de lembranças, leve tambem lembranças da patria aos que longe d’ella gemem saudades!. . . ”18

Assim sendo, o estreitamento das relações Portugal-Brasil constituiu também objetivo fulcral da coletânea e o interesse pela participação brasileira evidencia-se desde logo no fato de diversos números do Almanaque oferecerem facilidades para o envio de textos ao editor19 . Silencioso nas questões da política do seu tempo, o Almanaque de Lembranças se posicionou claramente na defesa das ligações, da história e 17

Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para 1860, p. 5. Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para 1856, p. 27. 19 Em alguns deles se diz: “Os artigos que de qualquer ponto do Brasil nos hajão de ser mandados, poderão sobrescriptar-se ao Conselheiro José Feliciano de Castilho Barreto e Noronha, no Rio de Janeiro, por quem, prompta e obsequiosamente, nos serão remettidos” (Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para 1860, 4). 18

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da cultura comum de Portugal e do Brasil, realizando o que Eliana de Freitas Dutra20 entende ter sido uma estratégia de domínio cultural, naturalizadora da autoridade do colonizador e supremacia da civilização europeia. O início da publicação no Almanaque de Lembranças de escritos de autoria feminina não se distancia muito das primeiras participações masculinas, pois surge no volume para o ano 1854, ao passo que a de seus pares ocorre a partir de 185221 . No entanto, chama a atenção o fato de as mulheres cujos escritos nele foram editados serem colocadas num índice próprio, em que são sempre referidas como “Senhoras”, enquanto os homens que também nele colaboraram aparecerem noutro índice referidos como “Autores”22 . Essa curiosa solução é, no entanto, muito elucidativa do pensamento que presidiu à criação do Almanaque de Lembranças, bem como da mentalidade daqueles tempos, pois não se altera nos volumes publicados pelos demais editores. Inauguram a colaboração feminina no Almanaque de Lembranças para 1854 cinco textos: quatro poemas – “Um cipreste”, de Antónia Gertrudes Pusich23 ; “Canto ao amanhecer”, de Maria Rita Colaço Chiappe24 ; a composição iniciada pelo verso “La mort, c’est ici-bas la fin de toute chose”, de Elisa Morin25 ; a elegia precedida da legenda “À chegada a Lisboa do cadáver de S. A. I. a Princesa D. Maria Amélia”, de Maria José da Silva Canuto26 – e um escrito em prosa: “Usos e prejuízos no Minho”, assinado com o pseudónimo “Obscura Portuen20 Vd. Eliana de Freitas Dutra, “Laços fraternos”, Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, julho-dezembro de 2005, pp. 116-127. 21 No Almanaque de Lembranças para 1852, encontram-se dois poemas e uma tradução da lavra de António Feliciano de Castilho e outro de Luís Filipe Leite. 22 No Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para o ano de 1874, os dois índices vêm assim encimados: “SENHORAS / que collaboraram no presente Almanach” (p. 16); “AUTHORES / Dos artigos assignados d’este Almanach” (p. 18). 23 Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para 1854, pp. 150-151. 24 Ibidem, pp. 222-223. 25 Ibidem, pp. 327-328. 26 Ibidem, pp. 370-371.

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se”27 . A partir desse ano, todos os volumes da coletânea em estudo passaram a incluir produção feminina, que foi, em geral, crescendo até o final do século XIX, quando voltou a baixar. As décadas de 80 e 90 do Oitocentos são aquelas em que aparece um maior número de produções de autoria feminina, o que pode em parte ser explicado pelo fato de terem sido publicados também volumes suplementares, nos anos de 1886, 1887, 1889 e 1890. De qualquer modo a colaboração das “Senhoras”, ainda que totalize alguns milhares de escritos, é muito reduzida quando comparada com a dos “Autores”. Todavia, não nos é ainda possível afirmar quais as percentagens de textos de autoria masculina e feminina no conjunto da produção textual do nosso almanaque, embora já seja claro que a publicação de produções das mulheres é muito inferior à dos homens. Demonstra-o o Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para o anno de 187428 , que não difere muito do que ocorre em todos os outros e no qual somam trinta e cinco os escritos de autoria feminina, enquanto os de autoria masculina totalizam cento e doze, a que se poderia ainda acrescentar os cento e cinquenta e seis textos atribuíveis ao editor, ainda que apenas um deles esteja assinado29 . Por outro lado, é muito elevado o número de “Senhoras” que tiveram os seus escritos editados nessa coletânea, pois numa contagem, que ainda terá de ser conferida, foram encontrados mais de mil nomes, pseudônimos e iniciais femininos, identificados, à partida, pelo fato de aparecerem sempre precedidos da designação “Dona” ou “D.”. Todavia, um bom número dessas colaboradoras assina apenas um, dois ou três textos, e muito poucas, mais de uma dezena. E algumas participam 27

Ibidem, pp. 135-136. Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para o ano de 1874 ornado de gravuras com o retrato e o elogio biographico do Sr. L. A. REBELLO DA SILVA [. . . ] por ANTONIO XAVIER RODRIGUES CORDEIRO, Lisboa, Lallemant Frères Typ., 1873. 29 Trata-se do Elogio biográfico de Luís Rebelo da Silva, texto de abertura do referido almanaque (pp. 5-13), que traz no final a assinatura do seu autor: “A. X. Rodrigues Cordeiro”. 28

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no anuário apenas com passatempos, seção em que, por vezes, mais avultada é a sua presença. Ainda mais do que acontece com a colaboração masculina do Almanaque de Lembranças, no conjunto das “Senhoras” é muito rara a presença de figuras ilustres do passado e do presente, até porque o seu número era (e ainda é) certamente diminuto no cânone da literatura ocidental. Dentre as primeiras, encontram-se Georges Sand, Soror Violante do Céu, Maria Amália Vaz de Carvalho, a Marquesa de Alorna e a Viscondessa de Balsemão. No vasto elenco de figuras pouco conhecidas ou mesmo totalmente ignoradas nos dias de hoje, incluem-se Emília Augusta de Castilho, filha do idealizador do Almanaque de Lembranças, Anália Vieira do Nascimento, escritora gaúcha com copiosa colaboração no anuário, mas que não se sabe ainda se terá deixado obra publicada. Tomando novamente como objeto de análise o anuário para o ano de 1854, é de referir que das cinco escritoras que nele publicaram – Antónia Gertrudes Pusich, Elisa Morin, Maria José da Silva Canuto, Maria Rita Colaço Chiappe e Obscura Portuense – pelo menos três gozaram de alguma notoriedade no seu tempo, mas são hoje quase ou totalmente desconhecidas. Filha de António Pusich, nobre italiano que se fixou em Portugal ao casar-se com Ana Maria Isabel Nunes, cujo pai era valido da rainha D. Maria I, Antónia Gertrudes Pusich, nasceu em Cabo Verde, em 1805 e faleceu em Lisboa, em 1883. Monárquica e profundamente religiosa, ela é autora de inúmeras obras literárias, entre as quais se incluem poemas, ficção e teatro. Considerada por Maria Luísa V. Paiva Boléo30 como a primeira jornalista portuguesa, fundou os jornais A Cruzada, A Beneficência e A Assembleia Literária, nos quais procurou despertar nas mulheres o interesse pela aprendizagem da leitura e da escrita a fim de participarem na vida social e política. De Maria Rita Colaço Chiappe, também referida como Maria Rita Chiappe Cadet – que colaborou nos almanaques de 1854 a 1888, com 30

Cf. revista Máxima, março de 1998.

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cerca de três dezenas de escritos – sabe-se já que é uma das primeiras autoras portuguesas de textos originais para crianças e que publicou Os contos da mamã: dedicados à infância portuguesa (1883), além de um volume de poesias intitulado Sorrisos e lágrimas (1875). Quanto à Obscura Portuense – pseudónimo através do qual se escondeu Maria Peregrina de Sousa31 – considerável é a sua colaboração no Almanaque de Lembranças, que se dá entre 1854 e 1886 e soma vinte e oito textos em prosa ou verso, assinados ora com seu nome, ora com pseudónimo. Ficcionista, poetisa e folclorista, admirada por Camilo Castelo Branco e António Feliciano de Castilho, Maria Peregrina de Sousa (Porto, 1809-1896) publicou vários romances em folhetim e em livro. Colaborou também em diversos periódicos portugueses e brasileiros, tais como a Revista Universal Lisbonense, Panorama, A Borboleta, hebdomadário bracarense feminino, e Íris, editado no Rio de Janeiro. O único dado de que por agora dispomos a respeito de Maria José da Silva Canuto – que também se apresenta como Maria Canuto e colaborou na nossa coletânea de 1854 a 1894, com mais de uma dezena de textos em prosa e verso – é o que ela própria fornece: era mestra-régia. De Elisa Morin – cuja única composição conhecida é a que saiu no almanaque em análise – nada se sabe senão que escreveu em francês, o que, a par com o seu sobrenome e com o fato de Castilho ter vivido em França, pode indiciar que seja de nacionalidade francesa. A colaboração feminina brasileira (ou apenas proveniente do Brasil) no anuário em estudo, desde que teve início – ao que parece em 185832 –, tornou-se regular e intensa, chegando em alguns anos a ex31

Na comunicação apresentada, referi que dificilmente seria possível identificar a autora, que apenas revelava o espaço de onde provinha. Agora cumpre agradecer a sua identificação à Doutora Isabel Lousada, investigadora-colaboradora do CLEPUL. 32 Os dados de que dispomos no momento apontam como primeira colaboração proveniente do Brasil o poema “O carvalho e o vime” assinado por Rosa Albertina Figueiredo, que se apresenta como portuense, residente no Rio de Janeiro (Almanaque de Lembranças para 1858, p. 134).

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ceder a portuguesa, como se verifica no elenco das “Senhoras”33 cujo prenome começa pela letra A34 : A. (B: Recife) A. A. A. (B, BA: Océo) A. A. C. A. (s/l) Abelina/Avelina Paulistana (B: São Paulo) Abigail (P: Resende) A Caçadora Pernambucana (B, PE: Igarassu) Acácia de Macedo (B, PR: Curitiba) A. Cândida (P: Viana do Castelo; s/l) Acolid Zedlab (B: Pará; MA-São Luís) A Condessa Ironia (s/l) Ada Silveira Martins (B: São Paulo) Adalgisa (B, RS: Santana do Livramento) Adalgisa Castelo Branco, Lisbonense (B: Bahia) Adalgisa Duque Estrada (B: Rio de Janeiro-Flamengo) Adela Nobre Martins (Cabo Verde: Ilha de Santiago) Adelaide Arnaud (B: Fortaleza) Adelaide (da) Costa/C. (B, BA: Madre de Deus) Adelaide de Freitas (B: Rio Grande do Sul) Adelaide Furtado (B: Recife-Feitosa) Adelaide e Helena do Nascimento (B, BA: Juazeiro) Adelaide Júlia/J. de Bettencourt e Freitas (P: Lisboa) Adelaide M. Folard (B, BA: Salvador-Rio Vermelho) Adelaide Maduro (B: Santos; São Paulo) Adelaide Margarida da Silva (B, BA: Taperoá) Adelaide Maria das Neves (Cabo Verde: Cidade da Praia) 33

O levantamento da produção feminina do Almanaque de Lembranças tem contado com a colaboração de inúmeras investigadoras do Grupo de Investigação 6 do CLEPUL, entre as quais cumpre destacar Carla Maria Correia Campos Francisco, Maria Manuel Marques Rodrigues e Nathália de Jesus Macedo. A primeira colaborou ainda na construção do elenco das autoras cujo prenome começa pela letra A. 34 Os nomes das autoras referidas foram atualizados, mas ainda não estão definitivamente estabelecidos. Excluíram-se da listagem dois pseudónimos (Alice e Ann Moore) utilizados por escritoras cujos prenomes não começam pela letra A.

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Vania Pinheiro Chaves Adelaide Merine (B: São Paulo) Adelaide Moreira (s/l) Adelaide Pereira Rios (E: Maiorca) Adelaide Prego Roby (Moçambique) Adelaide Sampaio (B: Bahia) Adelaide Sarmento (s/l) Adélia do Prado (B: Bahia) Adélia F. M. L. Dória/Dorea (B, BA: Salvador) Adélia Josefina de Castro Fonseca/ C.35 (B: Bahia) Adélia Josefina/J. (de) Castro/C. Rabelo (B: Bahia; s/l) Adélia Nobre Martins (Cabo Verde: Ilha de Santiago) Adelina Castro (B: Sergipe) Adelina da Piedade Lopes (s/l) Adelina de Menezes Ribeiro (B, SE: Laranjeiras) Adelina de S. B. (B: Rio de Janeiro) Adelina Jordão (Cabo Verde: Cidade da Praia) Adelina Amélia/A. Lopes Vieira36 (B: Rio de Janeiro) Adelina Nobre Martins (Cabo Verde: Ilha de Santiago) Adelina Paulistana (B: São Paulo) Adozina Moraes Soares, Transmontana [P] A. E. (P: Beira Baixa) A. E. Conceição M. (P: Madeira) A. E. das Neves/N. Carneiro/C. Sanches Rolão (Preto) (P: Castelo Branco-Quinta da Serra) Aedé (P: Lisboa) A. E. (de) Almeida (e) Brito (P: Fornos do Dão; Lajeosa) Afonsina C. de Azevedo (B, MG: Sabará) Africana (Cabo Verde: Ilha Brava; s/l) Agar (B, BA: Itaparica) Agagra Sias (B: Lisboa) Águeda Pacheco (P: Lisboa)

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Esta senhora apresenta a mesma localidade e nomes de Adélia J./Josefina (de) C./Castro Rabelo, havendo apenas diferença no último sobrenome: serão a mesma pessoa? 36 Irmã de Júlia Lopes de Almeida.

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Notícia do Almanaque de Lembranças e das suas “Senhoras” A. H. (P: Beira) Aime Elle (B, MG: Sítio) Airga O’Tnegras (Moçambique: Tete) Alba Calderon (s/l) Alba Célia (B: Rio de Janeiro) Alba Valdez (B: Ceará) Albertina da França Ribeiro (Brasil) Albertina de Carvalho (P: Évora) Albertina de Lucena (P: Lisboa; Salvaterra de Magos; Torres Vedras; Praia da Nazaré) Albertina de Melo (B: Olinda) Albertina dos Prazeres Mendes Ribeiro (P: Bodiosa-Viseu) Albertina Emília dos Santos (B, PE: Encruzilhada) Albertina Gonçalves Crespo (Brasil) Albertina Paraíso (P: São Martinho do Porto; Évora; Lisboa; s/l) Alcina Amélia de Freitas Costa de Araújo (P: Santo Tirso) Alcina Cordeiro Meira (B, BA: Condeúba) Alda da firma Lara & Alda (B, SP: Mogi Mirim) Alda, la dernière (s/l) Alda Barata Ribeiro (B: Rio de Janeiro-Laranjeiras) Alda G. de Carvalho (B: Minas) Alda Rego (Moçambique: Mossuril-África Ocidental) Alda Sales (Cabo Verde: Ilha do Fogo) Alda Silva (P: Lisboa; s/l) Alda Sousa (Moçambique: Lourenço Marques) Alexandrina Porto (B: Bahia) Alfa e Antonieta (B: Rio Grande do Sul) Alfacinha Desconhecida (P: Tavira) Algarvia [P] Alice e Almerinda M. (B, BA: Rio Vermelho) Alice (Augusta Maulaz) Moderno (P, Açores: Ponta Delgada; São Miguel; s/l) Alice Áurea Samico Saldanha (B: Recife) Alice das Dores Nunes (P: Lisboa) Alice F. (B: Rio de Janeiro)

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Vania Pinheiro Chaves Alice Lamonnier (Brasil) Alice Lima, Rainha das Flores (s/l) Alice Moreira (B: Recife) Alice Pestana [P] Alice Pires (P: Lisboa) Alice Rebordão (Brasil) Alice Rosa Penalva (B, BA: Bonfim da Feira) Aliena Dinha (B, CE: Acaraú) Aline/Alina Judith Americana (B: Rio de Janeiro – À beira mar) Almerinda Ribeiro (B, SE: Estância) Alzira (Amélia) Belchior (B: Pelotas) Alzira C. Ramos (B: Porto Alegre) Alzira Galvão (B: Recife) Alzira Gomes de Castro (B: Barra do Piraí) Amália A. da Silva (B, MG: Sapé de Ubá) Amália de Almeida (s/l) Amanda Vidigal/V. Batista/B. Guimarães/G. (B: Campos; São João da Barra; P. do Rio de Janeiro) Amaralina Álvares (B: Bahia) A. Maria Fernandes (P: Lisboa) Amélia Adelaide M. B. (P: Lisboa; s/l) Amélia Augusta Quintino Furtado (P: Faro; Lisboa) Amélia Augusta Roiz (Brasil) Amélia Bacini (B: Pará) Amélia Braga (B: Niterói; s/l) Amélia Branca do Carmo (B: Rio de Janeiro-Praia do Roussel) Amélia C. S. Silva/S. Ramos (P: São Julião da Barra) Amélia Constantina Raposo (P, Açores: São Miguel) Amélia Coralina de Oliveira (s/l) Amélia de Vasconcelos (P: Faro) Amélia do Ó da Costa Ramos (P: Alcobaça; Lisboa) Amélia do Prado Pinto (B, BA: Cidade do Bonfim) Amélia Ernestina de Avelar (P, Açores: Ilha do Pico) Amélia F. (P: Algarve) Amélia Garcia, brasileira (B: Campos)

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Notícia do Almanaque de Lembranças e das suas “Senhoras” Amélia Janny (P: Coimbra; B: Rio de Janeiro, 1873; s/l) Amélia Leiria (B: Bahia) Amélia Pinto Madeira (B: Recife) Amélia Rebelo (s/l) Amélia Rebocho (Freire) de Andrade/A. (e) Albuquerque (P: Aveiro) Amélia Rodrigues (B: Bahia) Amélia Werneck (B: Valença) Amiga do Progresso (B: Setúbal) A. M. S. (B, BA: Taperoá) Ana Albacora (P: Vale de Nenhures; s/l) Ana Albertina Ribeiro de Carvalho (P: Évora) Ana Alexandrina/A. Cavalcanti de Albuquerque (B: Pernambuco) Ana Almerinda Dantas (B: MT; BA, Rio de Contas) Ana Amália de Sá (e Melo) (P: Vizela) Ana/A. Amélia/A. Benny (B: Pelotas) Ana Andorinha de Melo Gusmão (P: Vale da Coelha) Ana Angelina (P: São Cristóvão de Nogueira) Ana Bernardina (P: Leomil) Ana Cândida (P: Carreço) Ana Carriça de Sousa Loureiro (P: Valongo) Ana Cascais (B: Porto Alegre) Ana Contente (B: Pará) Ana de Castro Osório (P: Setúbal; s/l) Ana do Patrocínio Ramos (P: Guarda) Ana Filomena de Araújo Lima (P: Riba d’Âncora) Ana H. C. de Assis (B: Iguatu) Ana Isabel Leite de Noronha e Campos (Goa: Nova Goa) Ana J. Teixeira (B, BA: Salvador) Ana Neta (B: Barra de S. João) Ana Nogueira Batista (B: Ceará) Ana R. de Carvalho (P: Évora) Ana Ribeiro (de Góis) de Bittencourt (B, BA: Santana do Catu) Ana Rosa Guimarães (B: Rio de Janeiro) Ana Sabina de Menezes (B, SE: Laranjeiras)

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Vania Pinheiro Chaves Ana Sousa Gentil de Carvalho (P: Miranda do Douro; Bragança; Lisboa) Ana Teófila Filgueiras Autrau (B: Bahia) Ana Ursulina de Andrade (B: Jacarepaguá) Anália A. da Silva (Fernandes) (B, MG: Serena; Sapé de Ubá; Estação da Glória) Anália Vieira/V. do Nascimento (B, RS: Porto Alegre) Andradina de Oliveira/A. O. (Brasil) Andreza Lopes Dias Pinto (B, BA: Cachoeira) Ângela Ant[ônia] de Sousa (B, BA: Canavieiras) Angélica Jatobá (B, BA: Ilha do Medo) Angélica Safo (B: Província de São Paulo) Angelina Vidal (P: Lisboa) Angelita/Angelina Furtado (B: Recife-Feitosa) Angerona (B: Bahia) Anica França (B: Uberaba) Anileda-Virgo-Conchas (B: São Paulo) Anise (Angola: Bié) Anísia (Augusta/A.) (do) Amaral (Guimarães) (B, PE: Recife) Anita Neto (B: Porto Alegre) Anónima (B, BA: Lençóis) Anónima Alentejana [P] Anónima Famalicense (E. M.) [P] Anónima Setubalense [P] Anosina C. Oto (B: Bahia) Antélia Pina (B, BA: Carrapato) Antônia Angelina de Figueiredo (B, SE: Seriry) Antonieta de Campos (B, BA: Porto Seguro) Antônia de Figueiredo (B: Aracaju) Antónia de Jesus e Silva (P: Vermoil) Antônia Fernandes de Melo (B: Aracaju) Antónia Ferreira de Lima (Mandorninhja-Serra da Hora) Antónia Gertrudes/G. Pusich [CV] Antônia Pereira Marinho (B, BA: Canavieiras) Antonieta Fernandes (s/l)

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Notícia do Almanaque de Lembranças e das suas “Senhoras” A. Palha (B, PE: Timbaúba) Apolônia (Souto) Vilar (B: PE-Bonito; PB-Campina Grande) A. P. R. (P: Guarda) Arabela Martins de Campos (B, BA: Tabocas-Ilhéus) Arariboia (B: São Vicente; Santos) Argemira/Argimira Mossart (B: Província de São Paulo) Argina & Marcia (B: Recife) Ariam (s/l) Aristotelina Serra (B, PA: Belém) Arlinda A. de Moraes (B, BA: Plataforma) Armanda V. B. Guimarães (B: Rio de Janeiro-Campos) Armida (C.) F. Sousa (P, Madeira: Câmara de Lobos) Arminda (s/l) Arminda (B, RS: Itaqui) Arminda/Armida do Nascimento (P: Arraiolos; Viana do Alentejo) Arminda Lopes Vieira (B: Pernambuco) Arnoldina (B, PA: Belém) A. Rodrigues (P: Vila Real-Torgueda) A. Rosinda de S. (P: Porto) Atabalipa della Cerda (B, BA: Curral dos Bois) Audaz Alagoana (B: Maceió) Augusta (P: Setúbal) Augusta da Cunha (P: Lisboa; s/l) Augusta Dias da Silva (P: Lisboa; s/l) Augusta Gabriela (P: Santa Comba Dão) Augusta Lima Fonseca (B: Recife) Augusta Pedrosa (P: Olival; s/l) Augusta V. B. (B, BA: Busca Vida) Áurea Pires (B: Minas) Aurélia Teles (Cabo Verde: Ilha de Santiago) Aurora (s/l) Aurora Campos Sales (B: Rio de Janeiro) Aurora da Rosa Campos (B: Rio de Janeiro) Aurora Soares (P: Lisboa)

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Vania Pinheiro Chaves Aventurina do Club Diamantino (B, BA: Santo Inácio) Aziyadé (s/l)

Nesta listagem, composta por duzentos e vinte cinco nomes, iniciais e pseudônimos femininos, apenas uma “Senhora” indica, como lugar de escrita ou nascimento, localidade que não pertence ao universo lusófono e dezassete não dão indicações espaciais, embora os seus nomes sugiram ligação a esse universo. Das duzentas e sete restantes, sessenta e oito mencionam lugar de nascimento ou residência em Portugal continental ou insular, doze o situam nas antigas colónias portuguesas (Cabo Verde, Angola, Moçambique e Goa) e cento e vinte sete apontam localidades ou Estados do Brasil (ou mesmo o próprio país) como espaço de origem ou residência. Mas, sem fazer-se um levantamento completo e rigoroso de todas as “Senhoras” do nosso almanaque, não se pode afirmar que a totalidade da participação feminina proveniente do Brasil ultrapasse a de Portugal, nem que a de determinado Estado do Brasil tenha sido preponderante. Aliás, tal conclusão será sempre falível, pois é difícil, senão impossível, saber-se o país de nascimento de boa parte das colaboradoras, que, frequentemente, referem apenas o lugar de sua residência, permanente ou temporária, ou, o que é mais grave, não apresentam nenhuma indicação espacial. A questão se complica ainda mais quando uma “Senhora” se esconde por trás de um pseudónimo que não se consegue identificar. No entanto o fato de a maior parte das colaboradoras do Almanaque de Lembranças indicar o(s) local(ais) em que produziram os seus escritos já permite perceber que se espalham por Portugal continental, insular, colonial, bem como por todo o Brasil, mas raramente por outros países. A multiplicidade dos espaços a que estão ligadas revela a difusão da coletânea criada por Alexandre Magno de Castilho por todo o vastíssimo território da lusofonia. Embora ainda não tenha sido possível elaborar a lista completa das localidades, regiões ou Estados indicados no nosso anuário pode-se afirmar que totalizam algumas centenas. De exemplo sirvam algumas das cidades, vilas ou ilhas referidas pelas senhoras cujo prenome começa pela letra A. No Brasil: www.clepul.eu


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Acaraú, Aracaju, Belém, Barra do Piraí, Bonito, Cachoeira, Campina Grande, Campos, Curitiba, Curral dos Bois, Encruzilhada, Estância, Fortaleza, Igarassu, Ilha do Medo, Itaqui, Juazeiro, Lajeosa, Lençóis, Maceió, Niterói, Olinda, Pelotas, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Rio de Contas, Sabará, Santana do Catu, São Paulo, São Luís, Tabocas – Ilhéus, Taperoá, Timbaúba Uberaba, Valença. Em Portugal: Açores (Pico, Ponta Delgada), Alcobaça, Bragança, Carreço, Évora, Fornos do Dão, Lisboa, Madeira (Câmara de Lobos), Porto, Riba d’Âncora, Salvaterra de Magos, Santa Comba Dão, Setúbal, Tavira, Vale de Nenhures, Viana do Alentejo. Nas antigas colónias portuguesas: Angola (Bié), Cabo Verde (Cidade da Praia, Ilha Brava, Ilha do Fogo), Goa (Nova Goa), Moçambique (Beira, Lourenço Marques, Tete). O levantamento já realizado permite ainda afirmar que a produção feminina do Almanaque de Lembranças se enquadra nos três grandes conjuntos em que ele pode ser subdivido – prosa, poesia e passatempos –, bem como nos diversos subgrupos que cada um deles engloba. Além de terem produzido todo tipo de passatempos, essas senhoras escreveram poesia de formas e assuntos muito variados, sendo igualmente muito diversificadas as matérias tratadas na sua prosa. De comprovação serve o elenco da produção feminina – em ortografia atualizada e alfabeticamente ordenado pelo prenome das autoras – do Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para o ano de 1874, subdividido em três conjuntos, de acordo com os critérios fixados para o seu estudo pelo Grupo de Investigação 6 do CLEPUL: Prosa Augusta Gabriela, “A poesia e a cruz” Catarina Máxima de Figueiredo, “Uma manhã de dezembro” Inácia Filipa Martins Ramalho, “A esperança” Maria do Pilar Bandeira Monteiro Osório, “A ermida da Senhora da Guia dos Ciprestes”

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Vania Pinheiro Chaves Poesia Adélia Josefina de Castro Fonseca, “Soneto” A. E. Almeida Brito, “Regresso dum anjo” Algarvia, “Ao mar” Algarvia, “Uma voz” Amélia Janny, “Versos escritos numa carteira” Anália Vieira do Nascimento, “Num álbum” Anônima Famalicense (E. M.), “Que noite!” Francisca Carolina Garcia Redondo, “Recordações” Guilhermina de Jesus Maria da Costa e Silva, “Amor” Guiomar Torrezão, “Beatriz” H., “O meu sonho” Júlia de Gusmão, “No seu dia de anos” Leonor Adelaide Figueiredo, “Um diálogo” Maria Amália Vaz de Carvalho, “Fragmento” Maria José Ernestina de O. C. Corte Real, “Não chores” Maria José Furtado de Mendonça, “A flor simbólica” Maria Leopoldina A. Furtado de Mendonça, “Primavera” Mariana Angélica de Andrade, “Soares de Passos” Marquesa de Alorna, “Ausência” Narcisa Amália, “Amor de violeta”

Passatempos Amélia Augusta Quintino Furtado, Charada novíssima Anália Vieira do Nascimento, Charada XLVII Anália Vieira do Nascimento, Logogrifo acróstico Carolina Amélia de Freitas e Sá, Logogrifo X Cristina M. de A. Brenne Adrião, Logogrifo XIII E. A., Charada gramatical Francisca A. C. de Matos, Charada LI Joana Emília da Silva Segurado, Charada XXXV Júlia Henriqueta de Brito Mouzinho, Logogrifo XXV Leopoldina de Jesus Paes Mamede, Charada XIX Maria do Pilar Álvares Ribeiro, Charada VIII www.clepul.eu


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Dentre as poucas conclusões que, por agora, se podem tirar da investigação em curso é de referir a descoberta da importância e variedade da produção feminina do Almanaque de Lembranças, preponderando contudo poemas de diferentes formas e temáticas, bem como a percepção do interesse que tem um estudo aprofundado desse material para um melhor conhecimento da cultura e da vida social no espaço lusófono da segunda metade do século XIX e das três primeiras décadas do século XX. Se bem que a maior parte das escritoras que nele colaboraram não tenha passado à História, algumas foram conhecidas na época e em certos casos mereceram o aplauso de seus contemporâneos. Elas são portanto uma parte importante do universo cultural lusófono.

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Referências bibliográficas A NDRIES, Lise, “Almanaques – revolucionando um gênero tradicional” in A Revolução Impressa: a imprensa em França, 1775-1800 (org. Robert Darnton e Daniel Roche), São Paulo, EdUSP, 1996. B ROTEL, Jean-François, “Almanachs et calendriers en Espagne au XIXe Siècle: essai de typologie” in Les Lectures du Peuple en Europe et dans les Amériques du XVII e au XX e (org. Hans-Jurgen Lusebrink), Bruxelles, Complexe, 2003. C HARTIER, Roger, A Nova História Cultural, org. de Linn Avery Hunt, 3.a edição, São Paulo, Martins Fontes, 2001. D UTRA, Eliana de Freitas, “Laços fraternos”, Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, julho-dezembro de 2005, pp. 116-127. G UERREIRO, Manuel Viegas e P INTO -C ORREIA, J. David, “Almanaques ou a Sabedoria e as Tarefas do Tempo”, Revista do ICALP, n.o 6, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, agosto/dezembro de 1986, p. 52. H UNT, Linn Avery, A Nova História Cultural, 3.a ed., São Paulo, Martins Fontes, 2001. L E G OFF, Jacques, História e Memória, Campinas, UNICAMP, 1994. RODRIGUES, Ernesto, “Espaços alternativos”, in Cultura Literária Oitocentista, Porto, Lello, 1999.


Alda Lara e a imprensa do seu tempo Ana Paula Bernardo1

“O jornalista deve sentir todas as dores, revoltar-se contra todas as injustiças, aplaudir todas as boas acções, opor-se a todas as vilezas. [. . . ] Porque há-de haver sempre vítimas implorando clemência, poderosos que abusam da sua força, feridas que precisam de bálsamo, lágrimas reclamando conforto.” Carlos Mimoso Macedo, Jornal O Lobito, n.o 1142, dezembro de 1946.

Introdução Esta comunicação, apresentada no I Encontro Luso-Afro-Brasileiro As mulheres e a imprensa periódica, tem como objetivo referenciar a presença de Alda Lara em publicações periódicas, em Portugal e Angola, desde o final da década de 40 até à década de 70, do século XX, 1

Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


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Ana Paula Bernardo

através do que ela e do que sobre ela se escreveu e refletir sobre as genologias que podem enformar o texto jornalístico procurando realçar a diversidade, riqueza e multiplicidade discursiva que a imprensa possibilita. Nesse sentido, optaremos pela seleção de periódicos de diferentes tendências e preocupações editoriais apresentando textos de matrizes diversas, registos de caráter pessoal como a carta ou o diário, de índole literária como o texto poético, a narrativa ou a crónica, ou outros como o artigo, a notícia ou o registo fotográfico, não raras vezes marcados por um dialogismo intertextual, que adiante assinalaremos. Alda Lara não foi jornalista. Teve uma colaboração dispersa por várias publicações como, p.ex., ABC, Intransigente, Jornal de Benguela, Jornal de Angola, Jornal – Magazine da Mulher, A Província de Angola, LM Guardian, Tribuna, Mensagem, Ciência ou Estudos. É sobretudo conhecida como poeta, mas parece-nos oportuno realçar alguns traços da sua personalidade, uma mulher do seu tempo, não só uma voz da utopia da “Geração da Mensagem”, esse “celeiro do sonho”2 , mas um ser humano de causas e convicções com clara intervenção social, para quem a escrita se tornou uma forma de existência num tempo de opressão sob regime colonizador, progressivamente agravado pela luta de libertação nacional em Angola.

Traços de um perfil Nascida em Benguela, terra das acácias cor de fogo “que floriram quando a viram chegar [e] estenderam os seus ramos, como a saudá-la”3 a 9 de junho de 1930, irmã do jornalista e também poeta Ernesto 2

Maria Rosa da Rocha Valente Sil Monteiro, C.E.I. Celeiro do Sonho, Geração da “Mensagem”, Minho, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Col. Poliedro n.o 8, 2001. 3 Artigo publicado in Jornal de Angola, n.o 121, janeiro de 1963, assinado por N. de C., sob o título “Alda Lara – 1.o aniversário da sua morte”, p. 1.

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Alda Lara e a imprensa do seu tempo

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Lara (Filho), estudou no Lubango, no Colégio de Paula Frassinetti, da Congregação das Irmãs Doroteias e, posteriormente, em Lisboa, no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho. Frequentou o curso de Medicina, nas Universidades de Lisboa e Coimbra, onde concluiu a licenciatura com uma tese em psiquiatria infantil com o título Deficiências psíquicas provocadas por carências de cuidados familiares enunciando, na conclusão, algumas das suas preocupações com os seres que considerava indefesos, as crianças: Provámos que a carência altera a capacidade da criança para estabelecer contactos humanos. A criança “carenciada”, ao tornar-se adulto, manifestará sempre uma certa dificuldade nas suas relações com os outros [. . . ] Proteger uma criança contra “carência de cuidados familiares” é pois melhorar a sua sorte, e a de todas as gerações futuras.

Numa das suas crónicas da “Roda Gigante”, Ernesto Lara, numa referência às origens da sua família, muito grande e espalhada por toda a Angola, alude à irmã em Portugal, a dobrar “o Cabo das Tormentas de um sexto ano de medicina com quatro filhos à ilharga e uma força de vontade como [. . . ] poucos homens”4 , enfatizando alguns traços do seu perfil como a coragem, a perseverança e a determinação. Alda Lara, em carta enviada ao seu irmão5 , dá também conta dessa experiência em Lisboa, reflete sobre as suas intenções e a utilidade do curso, partindo do conhecimento que tinha das necessidades e dos problemas com que se debatia a população nas ex-colónias portuguesas, nomeadamente a mais desfavorecida. Esta missiva evidencia o seu profundo amor por Angola e o seu ideário de participação cívica e voz utópica em prol da gente da sua terra. Ernesto Lara (Filho), “Roda Gigante” in Jornal de Angola, n.o 64, 31 de julho de 1959, p. 7. 5 Excerto do “Requiem para Alda Lara” publicado no jornal ABC, de 14 de fevereiro de 1962 e, novamente, no jornal O Lobito, de 2 de fevereiro de 1971, assinalando o 9.o aniversário da sua morte, com o título: “Alda Lara – 9 anos de saudade” na forma como aqui o transcrevemos. 4

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Ana Paula Bernardo Uma vontade só me animava, um desejo único – fazer um curso que me pudesse tornar útil em Angola. [. . . ] Desejava apenas realizar uma vasta ação social em Angola – queria organizar postos de assistência gratuitos, cursos de puericultura e informação sanitária para mulheres indígenas e quantas coisas mais. [. . . ] Dirigi uma secção cultural que funcionou no ano já bem distante de 1952, na Faculdade de Medicina. Fiz poemas, proferi conferências e participei em mais de uma reunião ao lado dos mais variados credos políticos e religiosos. Fui amiga de protestantes e comunistas. E até numa festa judaica estive um dia. Passei sobre uma luz, sobre os caminhos mais escuros. E se alguém se lembra de mim é como uma pessoa de boa vontade e de coração puro desejando um mundo impossível de existir6 .

Numa outra crónica intitulada “Companheiros”7 , Ernesto Lara, a propósito da morte do poeta Alexandre Dáskalos, “esse rapaz de olhar profundo como o nosso mar”, cujos poemas tinham sido declamados com fervor por Alda Lara, também reconhecida pela sua eloquência, opta pela transcrição de um pequeno excerto de um artigo por ela publicado no Jornal de Benguela, um requiem na morte de uma companheira, “A dor não se escreve. Sente-se”8 . Neste cruzamento de vozes, parece-nos adequada a referência a uma carta pessoal de Alda Lara a uma amiga, cujo conteúdo temático alude à efemeridade da vida e à eternidade que, no seu entender, espera, inapelavelmente, o ser humano: Nas nossas conversas falámos de tudo menos da Dor e do Sofrimento. No entanto, talvez devêssemos tê-lo feito. [. . . ] É que ambos estão “integrados” EM NÓS. Não vale a pena, portanto, falar deles. Esperamo-los a toda a hora. [. . . ] Encara pois tudo 6

Idem. Ernesto Lara (Filho), “Companheiros” in O Planalto, Nova Lisboa/Lubango, de 31 de março de 1961; “Roda Gigante” in Jornal de Angola, n.o 100, 30 de abril de 1961, p. 8. 8 Idem. 7

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isso com dor sim mas sem temor. Partimos, como chegámos. Sem sabermos como, nem porquê, nem quando. Um ciclo da naturalidade, apenas. Assim deveríamos pensar. E pensamos. Mas o “sentir” é que é mais difícil. Não é verdade? Por isso a eternidade é qualquer coisa a que não podemos fugir. Tudo em nós, interior e exteriormente, clama por uma perpetuação. Então a eternidade é uma resposta. E talvez tu, um dia, possas vir a compreender9 .

Ernesto exalta, nesse texto, um tempo (de juventude), em que um grupo de jovens provenientes dos quatro cantos de Angola estudava nas universidades portuguesas. “Companheiros”10 , poema de Dáskalos que lhe dá título, aparece publicado num dos primeiros números de Mensagem, no mesmo onde surge “De Longe”11 , de Alda Lara, a que adiante nos referiremos. O Boletim Mensagem (inicialmente com o título Circular) foi uma edição da Casa dos Estudantes do Império, de saída irregular, publicado entre 1948 e 1964, interrompida, no entanto, entre os anos de 1952 e 1957. Curiosamente, a Casa dos Estudantes do Império, instituída pelo regime para acolhimento aos jovens africanos a estudarem em Portugal, acabou por ser uma voz dissonante em relação ao sistema político vigente. Edmundo Rocha realça a importância das atividades desenvolvidas pela secção cultural da C.E.I. pelo contributo dado para a divulgação das obras de escritores e poetas provenientes das antigas colónias portuguesas, assinalando que “estas [. . . ] representam um repositório [. . . ] de grande importância histórica e constituíram mensagens determinan9

Alda Lara, in jornal O Lobito, 2 de fevereiro de 1971, p. 9. Alexandre Dáskalos, “Companheiros” in Mensagem, Boletim da Casa dos Estudantes do Império, secção de Angola, Lisboa, outubro de 1948, p. 45. 11 Alda Lara, “De Longe” in Mensagem, Boletim da Casa dos Estudantes do Império, secção de Angola, Lisboa, outubro de 1948, p. 31. 10

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tes para a tomada de consciência nacionalista em Portugal e nas colónias”12 . O texto de abertura do n.o 1 do referido Boletim apresenta uma palestra intitulada “Os Colonizadores do século XX”, proferida por Alda Lara, então com 18 anos, acabada de chegar a Portugal. Aqui vemos espelhados os ideais que sempre a nortearam, a consciência da desigualdade entre brancos e negros, as diferenças entre a prosperidade intelectual da então designada Metrópole e os obstáculos com que se debatiam os espaços africanos sob domínio colonial. Após o levantamento das necessidades mais prementes, o seu apelo é dirigido às mulheres (dada a consciência que tinha do papel que estas podiam desempenhar naquela sociedade opressora e essencialmente patriarcal), realçando a importância da sua intervenção cívica, social, cultural e, claro, ao “Regresso”13 a Angola. Esse poema, emblemático, surgirá em várias antologias e é amiúde citado. [. . . ] A verdade, porém, é que se muito se fez, muito há ainda por fazer e se o branco goza já de uma relativa prosperidade intelectual e social, o mesmo se podendo dizer da maior parte dos mestiços, o negro continua bastante atrasado, no que diz respeito a higiene e instrução [. . . ] De um lado está a Metrópole, o meio intelectual por excelência, do outro a colónia tímida, quase envergonhada da sua insignificância literária, onde os talentos se limitam aos esboços jornalísticos [. . . ] Médicas, professoras, missionárias [. . . ] Angola espera-as!. . . Mais do que isso, conta com elas! Serão as principais educadoras dos filhos que, por sua vez, hão-de formar os alicerces da sociedade angolana futura. [. . . ] Quem. Senão nós, há-de voltar?! [. . . ] Queremos “gente nossa” para formar o escol da civilização africana, para 12

Edmundo Rocha, Angola – Contribuição ao Estudo da Génese do Nacionalismo Moderno Angolano, período de 1950-1064, Testemunho e Estudo Documental, Lisboa, Dinalivro, 2009, p. 89. 13 Alda Lara, “Regresso” in Mensagem, Boletim da Casa dos Estudantes do Império, n.o 1, julho de 1948, pp. 17-19.

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que os nossos filhos não tenham que vir buscar à Metrópole distante, à custa, sabe Deus, de que sacrifícios, a intelectualidade e a instrução que não encontraram na terra onde nasceram! [. . . ] Regressemos, pois!14 .

Numa outra crónica de Ernesto Lara encontramos, de novo, palavras cruzadas sobre “o regresso”. Curiosamente, o poeta-jornalista subverte a ordem de apresentação dos vocábulos e substitui o verbo “dizer” por “gritar” o que, para quem conhece a escrita e, eventualmente, o temperamento destes dois poetas, nem será estranha a ocorrência. Voltar nem que seja para a cadeia é sempre voltar. Há um regresso latente em todos nós, na vida de cada um de nós. Todos gostaríamos de voltar a um tempo que se perdeu e que não encontramos jamais. [. . . ] Tem sido o Norte da minha inconstância, o Sul da minha atitude perante a vida, o Este de muitas renúncias e o Oeste da minha fraqueza. Cavaleiro da esperança, eu tenho voltado sempre, eu parto para longes terras e regresso sempre de olhar alegre e de mãos vazias. [. . . ] Rico apenas de imagens nos olhos, de paisagens no coração. [. . . ] Termino com os versos da minha irmã: [. . . ] minha alegria enorme Meu prazer sem lei De poder gritar, enfim, VOLTEI! . . . E lá em baixo, nas avenidas da cidade, as acácias rubras, numa verbena sem fim, estarão florindo, florindo, só para mim. . . !15 . 14

Alda Lara, “Os Colonizadores do século XX” in Mensagem, Boletim da Casa dos Estudantes do Império, n.o 1, julho de 1948, pp. 2-10. 15 Ernesto Lara (Filho), “Roda Gigante” in Jornal de Angola, n.o 88, 31 de outubro de 1960, p. 10.

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Ainda na linha temática do regresso à terra-mãe, desejo ardente, tópico recorrente dos poetas no exílio, o jornal A Província de Angola16 noticia, a 5 de julho de 1950, um recital de poesia no Teatro Ginásio, em Lisboa, nesse mesmo mês, numa noite dedicada aos poetas angolanos e moçambicanos, um espetáculo organizado pelo Jornal-Magasine da Mulher onde João Villaret declama o poema “De Longe” de Alda Lara e outros de poetas angolanos como, p.ex., Agostinho Neto e Viriato da Cruz. O texto, que aborda a problemática do sofrimento pela proscrição, não surge sob o ângulo do pessimismo, mas como fonte de inspiração de “cânticos de esperança [. . . ] incitamento [. . . ] e fé [porque] a hora é de avançadas / e havemos de atingir um dia / o fim. . . ”17 . A questão do distanciamento espacial e a sua relação com a produção/receção das obras literárias é abordada numa “Crónica do Brasil”18 , de Mário Gular, publicada no Jornal da Angola, sob o título “Considerações sobre a poesia de Angola” onde se alude ao isolacionismo daquele país na época, ainda muito fechado sobre contendas internas, motivo que, na perspetiva do cronista, o afastava dos problemas vividos em outras terras onde se falava o Português. Gular sublinha a importância dos artigos escritos sobre o Brasil e publicados na imprensa africana como textos que faziam a ponte entre os dois lados do Atlântico e fomentavam o aparecimento de fenómenos literários nas várias colónias, aponta os escritores que davam os primeiros passos nos centros culturais de Lisboa e Coimbra e que, mais tarde, se radicavam em África e salienta a importância das antologias. Ao longo do texto tece uma série de considerações reveladoras do seu ponto de vista sobre as manifestações culturais nos vários espaços de Língua Portuguesa e cita, a propósito, excertos do poema de Alda Lara “Presença Africana” escrito em 1953, de significação histórica por 16 Jornal A Província de Angola, suplemento de Domingo, n.o 773, ano XVI, de 5 de julho de 1950. 17 Alda Lara, “De longe”, poema escrito em Portugal e dirigido à mãe que se encontraria em Angola. 18 Mário Gular, “Crónica do Brasil” in Jornal de Angola, 24 de dezembro de 1960, p. 5.

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via da interpenetração de elementos estéticos, filosóficos e biográficos. Aqui, o sujeito poético saindo do seu domínio próprio mede a relação entre o seu comportamento e o de todos os outros, na medida em que o mundo real se impõe pela força da redução do homem a um estado sub-humano19 , patente na caraterização do universo do trabalho físico dos “carregadores do cais / suados e confusos, / pelos bairros imundos e dormentes”20 ou na constatação da falta de vitaminas e proteínas das crianças de “barriga inchada e olhos fundos”21 , situações em que a dureza e o absurdo da realidade forçam uma ação concreta. Sobre Alda Lara, Gular afirma desconhecer “se [é] negra, branca ou mulata, mas em todo o caso nascida em Angola, ao exprimir-se não ignora o que a rodeia”22 , considerando-a, por isso, uma voz no processo de consciencialização de identidade partilhado por muitos outros autores africanos. Durante a permanência em Portugal Alda Lara manteve uma intensa atividade ligada à vida cultural e académica. Escreveu artigos, “Acerca da poesia angolana”, “O profissionalismo na mulher do Sul de Angola”, ou “Salvemos a África em Cristo”, e proferiu conferências, “Katherine Mansfield” ou “Acerca do auxílio médico às missões”23 . Nesta última, de grande repercussão, observamos os traços de idealismo e generosidade marcantes da personalidade da autora, à data com 22 anos, mas também a sua capacidade de interrogar a realidade e analisar os problemas do mundo que a rodeava, na medida em que teceu comentários, delineou formas de ação, questionou métodos e processos, sugeriu procedimentos.

Alfredo Margarido, “Esboço sobre a poesia de Alda Lara” in Mensagem, s/n.o , 1962, pp. 12-19. 20 Excertos do poema “Presença Africana” de Alda Lara citados na crónica “Considerações sobre a poesia de Angola” de Mário Gular. 21 Ibidem. 22 Ibidem. 23 Alda Lara, “Acerca do auxílio médico às missões”, in revista Estudos, Coimbra, 1952. 19

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A autora revelava um conhecimento aprofundado de Portugal e das colónias, fazendo da defesa dos mais necessitados um combate em que sempre se empenhou por palavras e por atos. Alguns tópicos dos assuntos abordados nessa conferência são reveladores das suas inquietações: a) Defesa e crítica ao trabalho das obras missionárias católicas e laicas; b) Reflexões sobre o trabalho de caráter social; c) Preocupações com os problemas das colónias; d) Apologia do espírito crítico necessário à transformação social; e) Alegações sobre a relevância do “auxílio médico às missões”, causas, razões e soluções; f) Sustentação da igualdade entre os homens; g) Referência ao movimento francês Ad Lucem, que considerava “uma lição de Humanidade”. A sua formação profundamente católica, a par com um espírito liberal, marcaram a sua vida, a sua forma de ser e estar, o seu modo de encarar o mundo e os seres humanos que a rodeavam. Em 1956, o Jornal de Angola publicou um texto seu intitulado “A morte de um santo”24 sobre a figura do Padre Américo, fundador da Casa do Gaiato, uma instituição de apoio a crianças órfãs e abandonadas, a propósito de uma visita à “casa”25 . “Almocei o almoço dos gaiatos. E vi o refeitório. E preguei botões nas calças dos mais novos, e joguei à bola durante o recreio e amei-os”26 . Não podendo nem pretendendo escamotear a informação que hoje possuímos sobre as relações entre a Igreja Católica e a política do Estado Novo, que levamos em linha de conta para melhor entendimento dos factos, assinalamos a relevância atribuída à obra do Padre Américo em vários periódicos da época, não só em Portugal como nas antigas Alda Lara, “A morte de um santo” in Jornal de Angola, Ano III, n.o 31, 5 de agosto de 1956. 25 Designação dada, ainda hoje, aos espaços de acolhimento de crianças e jovens da Instituição criada pelo Padre Américo. 26 Alda Lara, “A morte de um santo”, art. já cit.. 24

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colónias. Citamos, a título de exemplo, uma notícia publicada no jornal O Lobito, a 15 de agosto de 1952, sob o título “Vem aí o bondoso Padre Américo” onde se anuncia a chegada do sacerdote a Luanda e a sua visita à cidade do Lobito, no dia 23 desse mesmo mês, acontecimento assinalado por vários periódicos de Angola. A 2 de julho de 1953, também o Jornal de Benguela, num artigo intitulado “A filantrópica obra de Padre Américo”, a propósito de um espetáculo de consagração do seu trabalho realizado no Porto, tece elogios à sua obra social e enfatiza as visitas deste padre “peregrino” a Angola, Moçambique, Congo e União Indiana, exaltando o seu espírito de missão. Dando relevo a outras apreensões, afigura-se-nos adequado citar um outro registo, um excerto do diário de Alda Lara, escrito provavelmente entre 1959 e 196027 , publicado no jornal O Lobito, de teor pessoal e íntimo e tom confessional, onde encontramos reflexões e referências a questões pessoais, mas também preocupações culturais e sociais. Os problemas de Angola, os do Congo, a leitura de Gabriela Cravo e Canela, de Jorge Amado, publicado em 1958, o estabelecimento das semelhanças entre o universo de Ilhéus dos anos 20 e a situação angolana na época, o sentimento humano e o amor à terra natal, as referências a António Nobre “Regresso a Coimbra só com o meu coração”28 (com o qual se identifica na situação de poeta no exílio) ou observações sobre a condição de médica e mãe, de sofrimento abafado por ausência de afeto: Quando vejo os meninos na “pediatria” fico com os olhos cheios de lágrimas e a saudade dos meus filhos morde o meu peito como um bicho venenoso, destilando fel nas minhas veias. [. . . ] A mim é que me faltaram os filhos [. . . ] Por isso a dor, a instabilidade, o nervosismo, angústia [. . . ] É como se um orgulho íntimo, pessoal, indecifrável, pusesse um nó na garganta, mas 27

In jornal O Lobito, a 2 de fevereiro de 1971, pp. 2, 9. Alda Lara, excertos de páginas do seu diário publicados no jornal O Lobito, ibidem. 28

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Ana Paula Bernardo também nos secasse as lágrimas nos olhos, como fontes sem água. Então, o coração rebenta, mas os olhos ficam secos. Tende piedade das mães que não choram!29 .

Uma crónica de Ernesto Lara, publicada inicialmente no jornal ABC, em 1962 e, posteriormente, no Jornal O Lobito em 1971, assinalando os nove anos da sua morte, enfatiza a sua utopia da comunhão universal, da fraternidade entre os homens de todas as etnias e o seu exemplo: [. . . ] Foi a árvore mais frondosa de quantas conheci na minha extensa família. [. . . ] à sua sombra [. . . ] todos nós, angolanos, moçambicanos, indianos, macaístas, chineses, judeus, negros, brancos, mulatos, comemos alguns frutos saborosos daqueles ramos, bebemos um pouco da seiva daquele tronco, a seiva que corria naquele fuste enorme. [. . . ] Alda morreu com 31 anos de idade. [. . . ] Como um farol na noite escura, procuro ainda a luzinha que se gerou depois da sua morte. [. . . ] legou-nos o seu exemplo e por isso, alguns ficarão mais fortes no lugar da fractura. Mas a perda que ela constitui é uma perda universal. [. . . ] Mas continua em nós, continua como o fulgor, o clarão da queimada, a beleza de um poente no Sombreiro, viva, cada vez mais rutilante, estrela a cintilar no céu de Angola, estrela que não nos abandonará nunca mais [. . . ]30 .

Pouco depois da sua partida, o Boletim Mensagem, em 1962, numa publicação do dia do estudante, sem número ou data, assinala o súbito desaparecimento de Alda Lara, num sinal de consternação pela morte da poeta, da declamadora, da conferencista. Nesse mesmo número, Alfredo Margarido traça um “Esboço de interpretação da poesia de Alda Lara”31 e na edição desse Boletim surge, sob o título “Presença”, o poema anteriormente referenciado por Mário Gular. 29

Alda Lara, in O Lobito, ibidem. Excerto do “Requiem para Alda Lara” ibidem. 31 Alfredo Margarido, “Esboço de interpretação da poesia de Alda Lara” in Mensagem, s/n.o , 1962. 30

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A 30 de junho desse ano, o Jornal de Angola publica alguns dos seus poemas, “Carta Aberta”, sem data, “Miserere”, de 1949, “Deixo-te a paz”, sem data, “Testamento” de 1950 ou “Momento”, de 1952, bem como duas fotos de Alda Lara, uma das quais com os seus quatro filhos, Pedro, João, Luís e Orlandinho (o bebé) e uma outra da romagem de vários amigos ao seu túmulo, no Dondo, em março de 1962. Nessa mesma página, assinalamos o registo das palavras proferidas por Cochat Osório na despedida: Mas eu conheço-te Alda Lara; como eu e tu conhecemos todos os que trazem ao Mundo a mensagem do amor e da compreensão; todos os que enfeitam as palavras com foguetes de estrelas e lágrimas que são as imagens dos poetas; todos os que modelam com ritmos as ideias e os conceitos puros para cantar, indiferentes à indiferença, o ideal humano de viver. Viver como destino de homens. Com grandeza. Mas o que é verdade é que eu sinto que a tua poesia é uma mensagem de pureza, numa altura em que os artistas, por vezes, despem o corpo ocultando a alma no lixo que a integra. Tua poesia limpa afirma que não é preciso o artista dar-se como espetáculo. Basta impor-se como exemplo32 .

O Jornal de Angola assinala o primeiro aniversário da sua morte com um artigo de primeira página assinado por N. de C. (Norberto de Castro), um elogio, uma homenagem sob a forma de prosa poética, um jogo intertextual de vários poemas de Alda Lara33 . O mesmo jornal publica, em janeiro de 1963, sob o título “Antologia” dois dos seus poemas, “Herança” (de esperança, justiça e paz), de 1950, e “Círculo”, de 1954 (a circularidade da vida e a fragmentação do “eu”). Em 1971, o jornal O Lobito34 apresenta na rubrica “Mosaico Literário” um conto de Alda Lara intitulado “Desencontro”, escrito em 32 33 34

Cochat Osório, in Jornal de Angola, 30 de junho de 1962, p. 7. Artigo publicado in Jornal de Angola, n.o 121, janeiro de 1963, pp. 1, 11. Jornal O Lobito, 2 de fevereiro de 1971, pp. 2, 9.

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Cambambe, em 1962 e, em 1972, A Província de Angola publica uma narrativa inédita Tempo de Chuva35 , escrita também em Cambambe e datada de 1962, uma reflexão sobre a condição humana na sua ambiguidade. Os textos desta época já não denunciam o entusiasmo contagiante pelas imagens do regresso que lhe conhecemos no final da década de 40 e no início da década de 50. Tempo de Chuva aborda a problemática da imponderabilidade da relação entre os homens e a natureza, a estranheza e a perplexidade perante as mudanças, o tempo de guerra, num registo marcado por uma imagética fortemente lírica36 . Por toda a parte, a opressão desse tempo [. . . ] tempo abafado de loucuras mansas. [. . . ] Morte e vida dando-se as mãos no parto da chuva. Morte e vida gerando frescura e cansaço, lassidão e esperança. Sempre e sempre. Chove. Estranho tempo! Estranhos homens. . . Estranhos caminhos. . . 37

Notas finais O percurso de Alda Lara parece tê-la conduzido, por caminhos sinuosos, pejados de obstáculos, à constatação de que a vida em sociedade se rege, sobretudo, por razões de pragmatismo. Contudo, mulher 35

Alda Lara, “Tempo de Chuva”, in A Província de Angola, 17 de maio de 1972, pp. 17-18. 36 Ana Maria Mão-de-Ferro Martinho, Contos de África escritos por mulheres, Évora, Pendor Editorial Lda., 1994, pp. 69-73. 37 Alda Lara, “Tempo de Chuva”, já cit., p. 18.

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de convicções, vítima de conjunturas várias, um ser em busca de si, nunca desistiu do sonho. Fez do Amor, da Esperança, do desejo de Liberdade, Fraternidade e Igualdade entre todos os seres humanos lemas de vida cujo valor e sentido sempre exaltou, de forma empenhada e militante, num tempo em que se confrontavam condições de vida adversas contra as quais se rebelava. A sua meteórica passagem por este mundo não lhe permitiu desenvolver uma obra mais vasta. A atividade profissional, a sua participação cívica e a sua condição de mãe de uma prole crescente também lhe consumiram lazeres necessários ao recolhimento e à arte da escrita. A sua coletânea de poemas surge, postumamente, organizada e publicada por Orlando de Albuquerque. Alguém para quem a vida passou depressa, poeta das “acácias rubras” Alda Lara morreu a 30 de janeiro de 1962, com 31 anos, em Cambambe, a norte de Luanda. O “Testamento” que deixou, escrito aos 20 anos, pode ser visto como uma dádiva aos pobres, aos descrentes, aos desfavorecidos, aos ingénuos. Razões que continuam a permitir a reflexão sobre o seu legado e a justificar a leitura dos seus textos. Apesar de curta, a sua existência terrena deixou marcas indeléveis naqueles que com ela de perto conviveram, transformando-a num ícone para as gerações que se lhe seguiram. Em vida, o que dela ficou testemunhado foi o que os jornais ou outras publicações iam assinalando, em espaços de divulgação cultural de Portugal e da Angola colonial. Em periódicos da época foi possível resgatarmos alguns desses registos escritos, por/sobre ela redigidos/a ela dirigidos, que aqui deixamos em memória, e que nos permitem assinalar a relevância do texto de imprensa, não só pela quantidade mas também pelas variantes formais e semânticas, pela tipologia das informações e matrizes discursivas nele contido. Por tudo isto, podemos afirmar que o cruzamento das palavras de Alda Lara com o que dela se publicou nos deu o que é mérito reconhecido dos textos plasmados na imprensa de um determinado tempo – os seus insubstituíveis testemunhos, preciosos instrumentos de aná-

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lise e estudo dos períodos históricos, dos fatores sociais e culturais, elementos imprescindíveis para o devido enquadramento das problemáticas, para o questionamento das atitudes, das opções, das soluções encontradas em cada momento e, consequentemente, para uma melhor compreensão dos atores e dos tempos aludidos.

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Bibliografia B ERNARDO, Ana Paula, “Em torno da poética de Alda Lara” in Vozes de Cabo Verde e de Angola: quatro percursos literários, Lisboa, CLEPUL, 2010. M ARTINHO, Ana Maria Mão-de Ferro, Contos de África escritos por mulheres, Évora, Pendor Editorial Lda., Col. Ao Sul, 2, 1994. M ONTEIRO, Maria Rosa da Rocha Valente Sil, C.E.I. Celeiro do Sonho, Geração da “Mensagem”, Minho, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Col. Poliedro n.o 8, 2001. O LIVEIRA, Mário António F., Reler África, Coimbra, Instituto de Antropologia da Universidade de Coimbra, 2009. ROCHA, Edmundo, Angola, Contribuição ao Estudo da Génese do Nacionalismo Moderno Angolano, período de 1950-1964, Testemunho e Estudo Documental, Lisboa, Dinalivro, 2009. S OUSA, Carlos Teixeira de, Crónicas de Ernesto Lara (Filho), versão integral de Roda Gigante, Lisboa, CLEPUL, 2010.


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Periódicos Boletim da Casa dos Estudantes do Império, Mensagem, Vol. I, Col. Para a História das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Instituto Nacional da Biblioteca e do Livro, 1996. Jornal ABC, de 14 de fevereiro de 1962. Jornal A Província de Angola – Suplemento de Domingo, n.o 773, ano XVI, de 5 de julho de 1950; de 17 de maio de 1972. Jornal de Angola, n.o 64, de 31 de julho de 1959; n.o 88, de 31 de outubro de 1960; n.o 100, de 30 de abril de 1961; n.o 118, de 30 de junho de 1962. Jornal de Benguela, de 2 de julho de 1953. Jornal O Lobito, de 2 de fevereiro de 1971. Jornal O Planalto, Nova Lisboa/Lubango, de 31 de março de 1961. Revista Estudos, Coimbra, ano XXX, n.os 305 e 306, 1952.

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Maria Lamas romancista: a parte esquecida da jornalista1 Ana Paula Ferreira2

Maria Antónia Fiadeiro, autora de uma informativa biografia de Maria Lamas (1893-1983), publicada em 2003, afirma a necessidade de se atender à obra jornalística de uma mulher que ficou conhecida sobretudo como símbolo de resistência anti-fascista3 . A re-edição pela Editorial Caminho, em 2002, de As Mulheres do Meu País, que aparece originalmente em fascículos entre 1948 e 1949 e é editada em livro em 1950, de algum modo fixa para a posteridade a memória de Maria Lamas a partir de um único momento na sua carreira, quando, em desafio à política repressiva do Estado Novo, elabora todo um monumento de 1

Uma versão diferente do presente estudo encontra-se publicada com o título, “Maria Lamas e o Mito do Amor Romântico”, in Regina Marques (org.), A Memória, a Obra e o Pensamento de Maria Lamas, Lisboa, Edições Colibri, 2008, pp. 13-42. 2 University of Minnesota. 3 Maria Antónia Fiadeiro, Maria Lamas – Biografia, Lisboa, Quetzal, 2003. Para a recuperação da memória de Maria Lamas vejam-se ainda, Maria Lamas (1893-1983), Lisboa, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 1993; e a coleção organizada por Regina Marques citada na nota 1.


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Ana Paula Ferreira

reportagem literária às mulheres de Portugal continental e insular4 . A Autora lança-se ao projecto quando é despedida do jornal O Século, no âmbito do qual dirigia o suplemento semanal, Modas e Bordados, desde 1929. O seu despedimento ocorre em consequência da “Exposição de Obras Escritas por Mulheres”, em 1947, uma iniciativa de Maria Lamas, Presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas desde 1945; o Estado Novo extingue também então o Conselho, declarando-o ilegal. Numa entrevista a Maria Cândida Caeiro, filha da Autora, publicada a 6 dezembro de 2003 no jornal O Público aquando do vigésimo aniversário da morte de Maria Lamas, São José Almeida reitera os termos da espécie de lenda em que se resume a sua memória: “jornalista, resistente ao Estado Novo, lutadora pelos Direitos Humanos e pela emancipação/dignificação da Mulher”5 . Acaso devido ao seu carácter positivo e exemplar, tais generalidades sobrepõem-se à atenção devida a uma obra que de maneira nenhuma se pode reduzir ao jornalismo ou a uma noção simplística e ahistórica de resistência. Tal como outras escritoras que a precedem ou lhe são contemporâneas – por exemplo, Ana de Castro Osório (1872-1935), Virgínia de Castro e Almeida (1874-1945), Maria Archer (1899-1982) e Fernanda de Castro (1900-1994), Maria Lamas envereda pelo jornalismo a partir de ou a par da escrita de ficção e do ensaísmo cultural, estando na primeira metade do século vinte estes géneros muito mais próximos entre si no processo de profissionalização da mulher escritora do que o estariam posteriormente. A entrada das mulheres no jornalismo, fenómeno que se verifica por finais do século XIX – Guiomar Torresão (1844-1898) faz nome então – obedece estrictamente à divisão das esferas pública e privada e a consequente diferenciação entre uma cul4

É de notar que Maria Lamas não faz representar a mulher portuguesa nas coló-

nias. 5

São João Almeida, “Lembranças de Maria Lamas 20 anos após a sua morte: entrevista com Maria Cândida Caeiro”, Público, 6 de dezembro de 2003, pp. 14-15 (Secção “Nacional”), post em História e Ciência a 8 de dezembro de 2003 (http://historiaeciencia.weblog.com.pt/arquivo/043251.html, acesso a 29 de junho de 2011).

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tura “masculina”, ligada à política e assuntos da esfera pública, e uma cultura “feminina”, correspondente ao mundo dos afectos, da família, da moral, tanto quanto das modas e beleza. Daí que as mulheres sejam convidadas a editar e a colaborar nos suplementos femininos da imprensa periódica, como é o caso com Maria Lamas, que edita o suplemento semanal do jornal O Século, Modas e Bordados, entre 1928 e 1948. É preciso ter em conta a sua actividade como escritora de ficção para se compreender o desenvolvimento de uma acção cultural (inclusive como editora e jornalista) em prol das mulheres portuguesas mas não idêntica à posição de resistência anti-fascista pela qual ficou conhecida. A obra de Maria Lamas – desde os romances e novelas escritos na década de vinte, aos dos anos trinta, à série de quadros-reportagens que integram As Mulheres do meu País (1948-1950) – ilustra como o pensamento sobre a Mulher herdado do século XIX vai ao encontro do sempre renovado apelo às mulheres, sobretudo enquanto mães, perante o destino da comunidade nacional. No que segue tentarei demonstrar sumariamente esse percurso, incidindo sobre os quatro romances publicados pela Autora, Diferenças de Raças (1923), O Caminho Luminoso (1930), Para Além do Amor (1935) e A Ilha Verde (1938). Neles se manifesta o caminho que antecede a opção de Maria Lamas por fazer público um posicionamento a favor da democracia e contra o Estado Novo a partir de meados dos anos quarenta. Pretendemos assim chamar a atenção para a mulher escritora-jornalista – nessa ordem – e por oposição à figura em que se tem congelado e mitificado a sua memória, continuando por isso a ignorar-se a sua contribuição para a história não apenas da literatura assinada por mulheres mas para a história das mulheres em Portugal6 .

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O desconhecimento da obra literária de Maria Lamas é escandaloso, como se pode ver no site de divulgação, Mulheres. Aqui se lê que O Caminho Luminoso e Para Além do Amor são “obras infantis” (http://www.mulheres-ps20.ipp.pt/Maria_Lamas. htm, acesso a 1 de julho de 2011).

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I Escritos respectivamente na primeira e na última parte dos anos vinte e publicados com o pseudónimo de Rosa Silvestre, os dois primeiros romances de Maria Lamas, Diferenças de Raças (1923) e O Caminho Luminoso (1927, 1930), representam dois momentos diferenciados do discurso eugênico (e não apenas higienista), nacionalista e conservador surgido na década de vinte em resposta a um estado de crise nacional. Este compreendia vagas de migrações do campo à cidade, de emigração para as Américas, sobretudo Brasil e Estados Unidos da América, e por tumultos sociais ligados ao anarco-sindicalismo. Contando também com a participação de Emília de Sousa Costa (1877-1959), Sarah Beirão (1880-1974), Aurora Jardim (1898-1988) e a já referida Fernanda de Castro, por exemplo, Maria Lamas junta a sua voz a uma corrente de forte carácter moralista que representa certo desencanto perante as promessas da primeira república vis-à-vis a situação das mulheres em Portugal. Nos seus dois primeiros romances, mas de modo mais acentuado ainda no segundo, Maria Lamas serve-se de um estilo simples e imediato, pedagógico-maternal – é de notar que começa a escrever para crianças em 19257 – para apresentar modelos de conduta feminina exemplar-salvadora, que evocam o receituário conservador de, por exemplo, uma Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921) e cujos elementos de base re-aparecerão na propaganda do Estado Novo sobre a mulher e a família8 . 7

Também com o pseudónimo de Rosa Silvestre, Maria Lamas funda a revista infantil, O Pintaínho, em 1925, começando então a sua atividade como escritora para crianças. Como refere Alice Vieira, Maria Lamas é uma dos vários escritores e escritoras das primeiras três décadas do século XX a cultivar a literatura infantil (veja-se Alice Vieira, “Maria Lamas – Uma Escritora para a Infância” in Maria Lamas (1893-1983), Lisboa, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 1993, pp. 17-18). 8 O Caminho Luminoso é efectivamente apresentado, quando da sua publicação,

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Diferença de Raças é publicado três anos após o regresso de Maria Lamas de África, divorciada do primeiro marido com quem aí vivera nove anos e encontrando-se já casada por segunda vez, com um jornalista da imprensa monárquica. A intriga subentende toda uma problemática histórica recaindo em crítica à Primeira República pela condição humilhante que Portugal mantém no contexto europeu do colonialismo tardio, dando lugar à primeira grande vaga de emigração9 . No texto, a incompatibilidade matrimonial entre Beatriz, jovem do campo educada de modo equilibrado, liberal e sadio por sua mãe viúva, e o homem inglês que a seduz com sua beleza loura, sua riqueza e savoir-faire, é porventura metáfora do sério desajuste dos pares na aliança política entre Portugal e Inglaterra. Independentemente do grau de conhecimentos atingido por uma pequena minoria por privilégio de classe (como Beatriz, a narradora) ou graças a esforço próprio (como Jorge, o pretendente local inicialmente rejeitado), o atraso económico e cultural do país, magnificado por uma elevada taxa de analfabetismo não obstante os esforços da Primeira República para corrigir a situação, fariam dos portugueses “os cafres de Europa”10 . Muito embora não referindo directamente esta conjuntura em que moral e política doméstica e colonial são indissociáveis, é evidente que Maria Lamas se apropria da inferiorização que marginalizaria então os como continuador da obra de Maria Amália Vaz de Carvalho (in Eugénia Vasques, “Um Crime de Lesa Romance [Maria Lamas 1893-1983]”, Prefácio a Maria Lamas, Para Além do Amor, Lisboa, Pareceria A. M. Pereira, s.d., p. 12). Veja-se especialmente Maria Amália Vaz de Carvalho, Cartas a uma Noiva, Lisboa, Editores Tavares Cardoso & Irmão, 1891. Entre as numerosas edições e, sobretudo, re-edições de que goza o volume até finais dos anos setenta, saliente-se que pelo menos três delas saem à luz nos anos trinta. 9 O número de habitantes em Portugal, segundo os censos de 1911 e 1920, é quase o mesmo, o que se explica principalmente pelo alto volume de emigração ao longo deste período. Veja-se A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, 3.a ed., Lisboa, Palas Editores, 1986, vol. III, p. 289. 10 A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, op. cit., pp. 345-346. A frase “cafres da Europa” é utilizada por Charles Boxer, The Portuguese Seaborn Empire, 1415-1825, London, Hutchinson, 1969, reprint 1977, p. 340.

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portugueses das raças civilizadoras europeias para a questionar e até certo ponto ultrapassar com brios nacionalistas11 . Essa perspectiva faz-se patente ao princípio do romance na linguagem utilizada pela narradora autobiográfica, Beatriz, para descrever Jorge, jovem solitário de família modesta, que transfere a sua secreta paixão por ela, de quem se sente indigno, para os estudos de engenharia. O “nativo” Jorge apaga-se de tal modo sob as atribuições de “feio”, “mágico”, “selvagem”, que justificariam a sua preterição em favor do marido inglês de Beatriz, que só saindo de Portugal rumo à emigração nos Estados Unidos conseguirá reincorporar-se como homem seguro do seu merecimento. Ganha, assim, graças à fortuita morte do marido de Beatriz, o direito ao seu amor e à sua mão. Esta acaba por reconhecer ter-se sentido “desconsiderada, quando o marido a procurava mais intimamente”12 . O objectivo é colocar em destaque a virilidade do homem português para sugerir que superará a de qualquer inglês (ou estrangeiro). Daí que, já felicíssima mãe, a narradora encerre a sua história com uma espécie de acto de fé contra a possibilidade de que sua filha, ainda se crescendo “no estrangeiro onde agora habitamos”, case com um homem de raça diferente13 . Para além do alerta contra a miscegenação, sendo as diferenças de raças, segundo ideias social-darwinistas, extensivas a certas etnias, nacionalidades e classes sociais, Diferença de Raças acaba propondo um modelo nacionalista de conduta sexual para o alarmante número de portugueses que emigram entre 1911 e 1920 para os Estados Unidos da América14 . (Em 1927, o jornalista António Ferro maravilhar-se-ia com 11

Sobre a relação de inter-dependência entre discursos sobre moral colonial e moral doméstica tendentes à racialização de todos aqueles considerados “inferiores”, o que inclui também os irlandeses e os europeus do sul, veja-se Ann Laura Stoler, Race and the Education of Desire: Foucault’s History of Sexuality and the Colonial Order of Things, Durham e Londres, Duke University Press, 1995, especialmente as pp. 95-136. 12 Maria Lamas, Diferença de Raças, Lisboa, Portugália, 1923, p. 219. 13 Maria Lamas, Diferença de Raças, op. cit., p. 253. 14 Joel Serrão, A Emigração Portuguesa – Sondagem Histórica, 4.a ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1982, p. 45. Segundo Joel Serrão, a emigração portuguesa funciona desde o século XIX como

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o tipo de mulher moderna guardiã da raça portuguesa na comunidade emigrante no norte da Califórnia15 .) Se a responsabilidade de impedir a mistura de raças recai sobre a mulher-mãe como guardiã da moral sexual familiar e, consequentemente, da pureza ou integridade racial do povo português, é ela também chamada a influir junto da família para a manutenção da ordem social, levando cada um a aceitar o seu lugar na sociedade de acordo com a classe em que nasceu. Já em Cartas a Luiza (1886), Maria Amália Vaz de Carvalho fora inequívoca quanto à importância da influência da mãe para ensinar a todos a aceitar o seu lugar na sociedade, e assim desarmar as razões dos “pobres”16 . O segundo romance de Maria Lamas, O Caminho Luminoso, subscreve o mesmo argumento, podendo ser considerado um gesto público de adesão à reacção anti-democrática que pôs termo à Primeira República em 1926 e possibilitou a implantação de uma ditadura militar cada vez mais autoritária e repressiva. A obra apresenta em termos um tanto tenebrosos os castigos físicos e morais advindos àqueles que, deslocados do campo para a cidade, caem vítimas de tentações de luxo e mobilidade social ou, por outro lado, de ideais anti-capitalistas que inspiram revoltas sociais. Maria da Graça, a protagonista, representa o primeiro caso; Luís, seu antigo companheiro de infância tornado operário revolucionário, o segundo. Órfãos de mãe, ambos deixam a vida modesta da aldeia para ir viver em Lisboa, mas em condições muito diversas: ela, para ser criada por uma madrinha ainda jovem, viúva e rica; ele, para cumprir o serviço militar, ficando depois a trabalhar numa fábrica, onde se instrui e se associa a um movimento anarco-sindicalista. Encontram-se, portanto, “válvula de segurança” de um sistema económico que não possuindo a base fundamental do desenvolvimento capitalista, a Revolução Industrial, cai num atraso e numa desorientação irrecuperáveis no mundo moderno (Joel Serrão, A Emigração Portuguesa – Sondagem Histórica, op. cit., pp. 115 e 171). 15 Veja-se Novo Mundo Mundo Novo, Lisboa, Portugal-Brasil, 1930, pp. 199-210. 16 Maria Amália Vaz de Carvalho, Cartas a Luiza (Moral, Educação, Costumes), Porto, Barros & Filha Editores, 1886, especialmente a Carta XXI, “Quem são os pobres?”, pp. 263-264.

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em pólos radicalmente opostos de consciência social – ela, “escravizada por ideias falsas”, como lhe aponta Luís; este, segundo Maria da Graça, fixo nas “ideias avançadas” que o levarão, efectivamente, à prisão17 . Não é, porém, a prisão que o leva a abandonar a luta social, mas sim uma doença biliosa que o ameaça de morte mas lhe assegura a dedicação de Maria da Graça, entretanto convertida à fé cristã. Assim, é a imagem de Luís a sofrer no hospital o que acaba por despertar em Maria da Graça o sentimento novo que lhe indica ser ele o companheiro da sua vida e que o seu dever, como mulher, é de apaziguar a rebeldia e a insatisfação social. A protagonista instala-se depois, “radiante de alegria, na casa pequenina, mas confortável, que transformou num lar cheio de encanto”18 . Eis a base moral e o plano de conduta que a guiarão como mulher de Luís na África portuguesa, em Benguela, para onde o casal se muda. E eis também o modelo de conduta que a Autora propõe às mulheres portuguesas em consonância com uma política de colonização que incentiva a imigração de casais para os territórios africanos. Não há dúvida que Maria Lamas soube aproveitar em benefício próprio e de outras escritoras o ensejo nacionalista de trazer a mulher (burguesa) de volta ao seu papel de influência moral na família portuguesa. No mesmo ano em que sai à estampa o seu segundo romance em edição de autora, em 1930, e pouco depois de assumir as suas novas funções como Directora da revista Modas e Bordados, Maria Lamas organiza nos salões do jornal O Século a exposição, “Mulheres Portuguesas – Exposição da Obra Antiga e Moderna de Carácter Literário, Artístico e Científico”. A sua eventual condecoração, em 1934, com a Ordem Militar de Santiago de Espada pelo Presidente Marechal Carmona não significa apenas o reconhecimento oficial do trabalho da escritora e jornalista em prol da cultura feminina19 ; assinala a importância ideológico17

Maria Lamas, O Caminho Luminoso, Lisboa, ed. da Autora, 1930, p. 78. Maria Lamas, O Caminho Luminoso, op. cit., p. 198. 19 Eugénia Vasques refere o ano de 1934 para esta condecoração, também dada à escritora feminista da geração anterior, Emília de Sousa Costa (Eugénia Vasques, “Um Crime de Lesa Romance [Maria Lamas 1893-1983]”, art. já cit., p. 12). 18

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-pedagógica da exposição dedicada à obras de Mulheres Portuguesas, posto que destas o Estado Novo esperaria apoio se não mesmo cumplicidade no dealbar dos anos trinta. Que algumas mulheres escritoras seriam em princípio desafiadas pelo novo regime a ter protagonismo é sugerido pelas condecorações de que foram alvo logo em 193120 . Atendendo a este contexto, não será de admirar a nova procura, logo feita valer pelo aumento de preço, da Modas e Bordados na época21 .

II Os anos trinta, com a instituição do Estado Novo e o desenvolvimento do aparelho de propaganda fascista sobre a mulher e a família viriam, efectivamente, privilegiar o papel social da leitora em teoria visada na revista dirigida por Maria Lamas. À dona de casa, enquanto esposa e mãe ocupando o centro moral da célula familiar, unidade mínima e base do regime corporativo, ser-lhe-ia atribuída a principal responsabilidade no projecto nacionalista de regeneração dos costumes e re-cristianização da nação. Daí a importância que as mulheres fossem “re-educadas” para preencher um papel não só reformado mas essencialmente reformador com relação aos supostos excessos de liberalismo e individualismo da Primeira República22 . Porque se podem 20

Em 1931, foram distinguidas Branca de Gonta Colaço e Teresa Leitão de Barros também com a Ordem de Santiago de Espada; Ana de Castro Osório com a Ordem do Mérito Agrícola e Lutgarda de Caires com a Ordem de Benemerência (Rosa Maria Wank-Nolasco Lamas, “O Feminismo Português Através da Leitura da Alma Feminina e do Portugal Feminino”. Dissertação final, Curso de Ciências de Informação, Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa, 1993, p. 111). 21 Tomo o importante detalhe da entrevista que Maria Cândida Caeiro, filha da Autora, deu a São José Almeida para o jornal o Público (6 de dezembro de 2003, Secção “Nacional”, pp. 14-15). Veja-se nota 5. 22 Para esse fim serão mobilizados os movimentos femininos do regime, a Obra das Mães para a Educação Nacional (OMEN), cujas actividades tiveram início em 1937, e a Mocidade Portuguesa Feminina, fundada um ano mais tarde.

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resgatar indícios de resistência feminista nos romances assinados por Maria Lamas por primeira vez sem pseudónimo nos anos trinta, Para Além do Amor (1935) e A Ilha Verde (1938), deve-se ter, portanto, presente a ameaça que cai sobre os movimentos feministas após a condenação pública de Salazar do Segundo Congresso Feminista de 1928. Não será tanto em periódicos “femininos” sujeitos à censura prévia, a que acresce limitações de espaço, onde se deve procurar o paradeiro desses feminismos na primeira fase do Estado Novo23 . É sim na vaga de ficção em prosa, compreendendo o conto, a novela e o romance, que surge (talvez não por acaso) a partir da segunda metade dos anos trinta e se afirma ao longo dos anos quarenta. Um dos temas mais tratados é a contínua dependência feminina, promovida por toda a cultura patriarcal, no mito do amor romântico. Trata-se de denunciar as falsas expectativas que a mulher leva para o casamento, sendo este o destino que é compelida a seguir por condicionamento cultural, contingências socio-económicas mas, mais que tudo, em vistas da glorificação oficial da mulher-mãe. Maria Lamas é uma das pioneiras desta tendência crítica, que de modo algum é homogénea nem na exposição nem na resolução do conflito advindo da disjuntiva amor romântico/casamento. O que é original na sua perspectiva é o ter chamado a atenção para esse tabu que Virginia Woolf desafiou, na sua palestra de 1931, “Professions for Women”, as mulheres escritoras a conquistar – “dizer a verdade sobre as [suas] experiências como corpo”24 , objectivo para o qual a psicanálise de Freud, direccionada ao desvelamento (ou construção fálica) da sexualidade feminina, também concorre. Publicados com apenas três anos de intervalo, o primeiro em 1935 e o segundo em 1938, Para Além do Amor e A Ilha Verde são duas demonstrações experimentais de uma mesma proposta literário-ensaística 23 Demonstrar uma orientação feminista na revista dirigida por Maria Lamas é em parte o objectivo do estudo de Maria Alice Pinto Guimarães, Saberes, Modas e Pó-de-Arroz. Sobre Modas e Bordados e Vida Feminina, Lisboa, Livros Horizonte, 2008. 24 Virginia Woolf, “Professions for Women” in Women and Writing, org. Michèle Barrett, San Diego, Nova Iorque e Londres, Harcourt Brace, 1980, p. 60.

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de inspiração psicoanalítica. Primeiro que tudo, os dois romances tematizam de maneira insistente a base instintual, fisiológica, daquilo que passa por amor romântico, apontando a incompatibilidade entre o mesmo e a instituição do matrimónio como parte da ordem social e do amor que o indivíduo deve repartir com os outros. Mas estes dois romances ponderam, por outro lado, o papel potencialmente catártico, generoso e “civilizador” que um grande amor unindo sentimentos emocionais e físicos poderá ter na vida de uma mulher25 . Se o direito que ela tem ao gozo da sua sexualidade é deste modo corajosamente reivindicado, de modo nenhum se extingue aí um percurso psico-sexual cuja finalidade vem a ser o confronto da mulher com sua (suposta) função ou “missão” maternal a nível tanto da família nuclear como da comunidade nacional mais ampla. Em ambos os romances Maria Lamas constrói personagens excepcionais, maiores do que o real embora mantendo alguns traços de verosimilhança com o mesmo, para surtir um efeito de adesão emocional nas suas leitoras. A ideia é levá-las a identificar-se ao nível de uma suposta universalidade de experiência com as protagonistas e com todas aquelas vagas mulheres portuguesas, de resto, mulheres de elite, que ao tempo começavam a ser chamadas pela ideologia dominante ao imperativo de aperfeiçoamento moral26 .

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Para Freud, a “atitude normal do estado amoroso” é definida pela coexistência de “sentimentos ternos de afecto e sentimentos sensuais. . . ”. Veja-se “The Most Prevalent Form of Degradation in Erotic Life” [1912], traduzido pela psicanalista feminista Joan Rivière, in Sigmund Freud, Sexuality and the Psychology of Love, org. Phillip Reif, New York, Collier Books/Macmillan Publishing Company, 1963, reprint 1993, p. 49. 26 Como indicaria, por exemplo, a recomendação que se devia “trabalhar a alma, limpá-la, aperfeiçoá-la. Ir à procura dos defeitos para os vencer; ver como são lindas as virtudes para as conquistar” (Boletim de Instrução para Dirigentes da M. P. F., n.o 6, 1946, p. 230, in Inês Paulo Brasão, Dons e Disciplinas do Corpo Feminino: Os Discursos sobre o Corpo no Estado Novo, Lisboa, Organizações Não Governamentais do Conselho Consultivo da Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres, 1999, p. 59).

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O tema de facto em debate em Para Além do Amor é a insatisfação emocional e sexual que sofre a típica mulher-mãe – aquela que, contrário à narradora-protagonista, se submete “ao marasmo duma tristeza humilde e resignada”27 . Desde o começo do romance é evidente que a constante queixa e, logo, a revolta representada pelo papel transgressivo de Marta, que tem um amante, Gabriel, recaem sobre o casamento. Não se trata de pôr em questão a instituição social em si, mas de fazer público o desencanto, a frustração, a inferiorização física e legal que opera na maior parte das mulheres. Confronta-se aqui a ideologia natalista do Estado Novo, responsável por incutir nas mulheres a crença de que se devem esquecer de si próprias e serem, primeiro que tudo, mães – “Sê-des mulheres, cumprindo-vos como mães”, reza o lema natalista da Mocidade Portuguesa Feminina28 . “A Mãe sofre sempre pela Mulher” – assevera a narradora, ou Maria Lamas por meio dela – porque se sente fisiologicamente impedida de gozar a sua sexualidade com o pavor de engravidar29 . Não há qualquer referência a este pavor na descrição da relação de Marta com Gabriel, seu amante, ou quando menciona prévias relações extraconjugais: nelas parece ter protagonismo o desejo da mulher; não o dever da esposa-mãe. Mas o romance sugere que é esse dever que a mulher deve seguir, como se repreendendo-a pelo erro de querer gozar do prazer do seu corpo – como se fosse uma amante e não a mulher-mãe30 . Maria Lamas coloca em boca deste modelo positivo 27

Maria Lamas, Para Além do Amor, Lisboa, Editorial O Século, 1935, p. 29. Vejam-se, por exemplo, Luís Vicente Baptista, “Valores e Imagens da Família em Portugal nos Anos 30 – O Quadro Normativo” in A Mulher na Sociedade Portuguesa. Visão Histórica e Perspectivas Actuais, Actas do Colóquio 20-22 Março de 1985, 2 vols., Coimbra, Instituto de História Económica e Social, Universidade de Coimbra, 1986, vol. I, especialmente as pp. 201-202 e 208-210; e Inês Paulo Brasão, Dons e Disciplinas, op. cit., pp. 54-56. 29 Maria Lamas, Para Além do Amor, op. cit., pp. 76-77. 30 Lembre-se a propósito o argumento segundo o qual evitar os filhos seria não só ir contra a natureza e “a vontade de Deus”, mas confundiria “a Esposa e a Mãe com a amante”, encorajando “as maiores depravações” e o adultério (Luís Vicente Baptista, “Valores e Imagens da Família em Portugal nos Anos 30”, art. já cit., p. 210). Maria 28

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de mulher moderna a definição normativa do casamento, que constitui a tese do romance: “O casamento devia ser a união de dois seres ainda para além do amor, mas não passa, em geral, de uma sociedade sentimentalmente falida”31 . É pois contra o horizonte de ameaça da “corrupção dos costumes”, para citar a última alínea do Artigo 14 da Constituição do Estado Novo, que parece (cor)responder A Ilha Verde (1938). Pondo em cena uma demonstração complementar àquela apresentada em Para Além do Amor, o romance pode ser considerado uma fantasia feminista de tipo reformador. Maria Lamas recorre a uma intriga inusitada, espectacular, de uma potencialidade pedagógica “moderna” mais próxima do cinema (do tipo de Hollywood) do que dos discursos propagandísticos sobre a mulher e a família. A repetição insistente e em várias formas da tese segundo a qual o amor não passa de um instinto fisiológico que a imaginação espiritualiza e embeleza resolve-se no afastamento da protagonista estrangeira, de nome Ilonka, da comunidade nacional (açoreana). Não obstante ou, antes, por virtude do tema moralmente risqué, A Ilha Verde parece assim observar o imperativo político do Estado Novo da defesa da família “. . . como fonte de conservação da raça, como base primária da educação, da disciplina e harmonia social e como fundamento da ordem política e administrativa, . . . ” – tal como reza o Artigo 12 da Constituição32 . Mas, deliberadamente ou não por parte da Autora, a mensagem do romance permanece ambígua. Sintomaticamente, contrário ao que acontece em Para Além do Amor, não se regista neste último romance de Maria Lamas nem a valorização da fé cristã nem da maternidade como terapias reintegradoras do indivíduo na família e na comunidade. A Ilha Verde constitui, de facto, um hiato crítico-especulativo na ficção da Autora após o qual não haverá retorno à articulação normativa entre a mulher e a mãe, que é Lamas, Para Além do Amor, op. cit., p. 121. 31 Maria Lamas, Para Além do Amor, op. cit., p. 125. 32 Constituição Política da República Portuguesa e Acto Colonial, 2.a ed., Lisboa, Livraria Moraes, 1936, p. 9.

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outro modo de dizer o silenciamento daquela em função do papel reprodutivo desta última. Esse hiato, como vimos, centra-se na explanação da sexualidade feminina como fonte de prazer marginal à ordem moral do casamento (cujo objectivo é a maternidade). Que se faça representar por meio de uma personagem estrangeira, uma mulher solteira, instruída e independente, não admira; Maria Archer segue a mesma convenção com a protagonista da sua novela Ida e Volta de Uma Caixa de Cigarros, publicada no mesmo ano em que A Ilha Verde, em 1938, e depressa apreendida pela censura33 . Mas seja ou não estratégia dado um tema supostamente imoral, o uso de uma estrangeira reclamando o direito feminino ao prazer sexual pode ser sugestiva da distância irremediável entre ideais (e condutas) feministas “lá de fora” e mulheres portuguesas vivendo realidades concretas relativas a meio-ambiente, a classe social, a nível de educação, de formação religiosa, etc. É a estas mulheres que Maria Lamas dedicará a sua atenção em As Mulheres do Meu País, poucos anos depois de se afirmar publicamente como feminista e, sobretudo, como democrata.

III A partir de 1936, ou seja, no período contemporâneo à escrita de A Ilha Verde, Maria Lamas teria marcado certa distância em relação à ideologia sobre a mulher e a família promulgada pelo Estado Novo ao aderir à Associação Feminina Portuguesa para a Paz (AFPP), criada possivelmente com o apoio do Partido Comunista Português para auxiliar os republicanos na Guerra Civil de Espanha34 . Mas é só em 1945, 33

Veja-se Ana Paula Ferreira, “Maria Archer e a «sexualidade feminina»” in Percursos de Eros: Representações do Erotismo, org. António Manuel Ferreira, Aveiro, Associação Labor de Estudos Portugueses, Universidade de Aveiro, 2003, pp. 155-164. 34 Eugénia Vasques, “Um Crime de Lesa Romance [1893-1983]”, art. já cit.,

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quando, no final da Segunda Guerra Mundial, e então com cinquenta e dois anos, a Autora regista uma tomada de posição inequívoca, ao apoiar a formação do Movimento Democrático Juvenil. Ao ser eleita nesse ano Presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, Maria Lamas representa, portanto, uma voz na oposição democrática, especificamente em relação à defesa dos direitos das mulheres portuguesas. Na sua palestra de apoio à candidatura do General Norton de Matos pela Oposição Democrática, em 1949, a escritora desmascara a política fascista do Estado Novo referente à protecção da mulher e da família, dando conta da difamação de que sofriam as mulheres democráticas por parte do regime. Neste importante texto, a Autora começa por questionar a categoria normativa “mulheres portuguesas” – que seriam as donas-de-casa afectas ou submissas ao regime, aquelas que respeitariam o mandato de volta ao lar. Segue-se uma demonstração de como o Estado Novo colabora para a exploração das mulheres do povo permitindo que ganhem salários muito inferiores aos dos homens e deixando-as sem assistência de maternidade. Se essas mulheres pobres trabalhadoras, junto com os membros da sua família, são vistas como “irracionais” por burgueses que lhe estão distantes, o imperativo da volta ao lar recai sobretudo sobre as mulheres desta classe. Muitas delas vêm a ser as maiores vítimas da suposta defesa oficial da família e da mulher, porque se vêem obrigadas a trabalhar devido à necessidade económica e porque têm consciência de que não se podem desenvolver intelectual e profissionalmente. “Será que o Estado Novo tem medo da consciência esclarecida p. 15; veja-se também Irene Flunser Pimentel, História das Organizações Femininas no Estado Novo, op. cit., p. 117 para uma breve menção da AFPP. Na página “Estudos Sobre o Comunismo”, José Pacheco Pereira oferece-nos um pouco mais de detalhe sobre essa organização feminina de oposição ao Estado Novo, referindo que Maria Lamas “Como responsável pelo Movimento da Paz, um instrumento da política soviética na guerra fria, criado por Staline e Jdanov, manteve-se sempre de uma ortodoxia total, em particular nos anos cinquenta” (José Pacheco Pereira, “A Propósito de Maria Lamas”, 7 de dezembro de 2003, http://estudossobrecomunismo.weblog.com.pt/arquivo/042852.php).

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da mulher?” – pergunta-se Maria Lamas. Salazar manda-a prender, primeiro em 1949, sob pretexto de ter assinado um documento contra a base de Lages, nos Açores, e logo nos anos 1950, quando a actividade política de Maria Lamas se intensifica. Essa palestra de Maria Lamas em apoio à candidatura de Norton de Matos (em 1949) pressupõe as investigações de campo que a Autora teria começado a fazer em 1947 quando ficara desempregada do Modas e Bordados em consequência de ter presidido ao Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas desde 1945 e organizado a Exposição de Livros Escritos por Mulheres em 1947. As informações sobre diferentes tipos de mulheres portuguesas, de diversas regiões, profissões e estratos sociais juntar-se-iam ao caminho andado entre o moralismo conservador, anti-republicano, dos anos vinte; a ambiguidade resultante da experiência de um novo terreno de reflexão e escrita em torno dos problemas da mulher casada; e o virtual abandono de um projecto de ficção pedagógica, em prol da acção mais directamente política a partir da segunda metade dos anos de 1940. O que Maria da Lamas teria para dizer e para tentar fazer acontecer não se poderia continuar a limitar ao número restrito de leitoras de romances ou da revista Modas e Bordados. Nem tampouco, após o longo percurso culminando em As Mulheres do Meu País, poderia a Autora continuar a privilegiar um padrão de experiência feminina exclusivamente burguês ou alto-burguês como norma universal da “mulher portuguesa”. A única excepção seria, como afirma no final do volume, o problema da maternidade, que irmana as mulheres a nível de necessidades e direitos muito apesar das diferenças entre si. Em vez de encerrar a memória de Maria Lamas num lugar-comum politicamente correcto mas sem dimensionalidade histórica ou humana, deve-se procurar na sua obra de ficção as experiências tanto quanto as ideologias que iriam informando – domesticando? – as mulheres do tempo em que foi vivendo e escrevendo, para, à luz das mesmas, melhor compreender as nossas.

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Bibliografia A LMEIDA, São João, “Lembranças de Maria Lamas 20 anos após a sua morte: entrevista com Maria Cândida Caeiro”, Público, 6 de dezembro de 2003, pp. 14-15 (Secção “Nacional”), post em História e Ciência a 8 de dezembro de 2003, http://historiaeciencia.weblog.com.p t/arquivo/043251.html (acesso em 29 de junho de 2011). BAPTISTA, Luís Vicente, “Valores e Imagens da Família em Portugal nos Anos 30 – O Quadro Normativo” in A Mulher na Sociedade Portuguesa. Visão Histórica e Perspectivas Actuais, Actas do Colóquio 20-22 de Março de 1985, 2 vols., Coimbra, Instituto de História Económica e Social, Universidade de Coimbra, 1986, vol. I, pp. 191-219. B OXER, Charles, The Portuguese Seaborn Empire, 1415-1825, London, Hutchinson, 1969, reprint 1977. B RASÃO, Inês Paulo, Dons e Disciplinas do Corpo Feminino: Os Discursos sobre o Corpo no Estado Novo, Lisboa, Organizações Não Governamentais do Conselho Consultivo da Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres, 1999. C ARVALHO, Maria Amália Vaz de, Cartas a Luiza (Moral, Educação, Costumes), Porto, Barros & Filha Editores, 1886. I DEM, Cartas a uma Noiva, Lisboa, Editores Tavares Cardoso & Irmão, 1891.


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Maria Lamas romancista: a parte esquecida da jornalista

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Albertina Bertha e a imprensa periódica Anna Faedrich Martins1

O trabalho que venho realizando sobre a autora Albertina Bertha é oriundo de um contexto de pesquisa sobre o romance de introspecção no Brasil, que se iniciou em 2007, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com apoio do CNPq. O título do projeto de pesquisa era “Espaços circunscritos e subjetividade: a formação do romance de introspecção no Brasil (1888-1930)”, e o recorte temporal permitiu a sua conclusão em 2010, tendo em vista uma continuidade nos estudos sobre as narrativas de exploração da subjetividade, através da renovação do projeto2 e da extensão no recorte temporal. O estudo é focado na formação dos romances da linhagem da introspecção, bem como na visibilidade a autores negligenciados pela crítica literária brasileira. Também é realizada a revisão de obras já consagradas na literatura brasileira, tal como mostram alguns de nossos estudos já concluídos, os quais inserem O Ateneu (Raul Pompéia) 1

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). A extensão do projeto deu origem ao que hoje se intitula “Escritas do Eu: perfis e consolidação do romance de introspecção no Brasil (1930-1970)”, realizado na PUCRS, cujo período de desenvolvimento será de março de 2010 a fevereiro de 2013. A coordenação dos projetos a que me refiro é da responsabilidade da Professora Doutora Ana Maria Lisboa de Mello (PUCRS). 2


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e Dom Casmurro (Machado de Assis), por exemplo, na construção da vertente introspectiva do romance, avaliando ambas obras como momentos privilegiados da narrativa de imersão na subjetividade. O resultado desta pesquisa foi a minha Dissertação de Mestrado, intitulada “O romance de introspecção no Brasil: o lugar de Albertina Bertha”, defendida em janeiro de 2010, na PUCRS. Nesta, pude trabalhar com a formação do romance de introspecção no Brasil; refletir sobre o intercâmbio dialético entre luz e sombra nas Histórias da Literatura; apresentar a autora Albertina Bertha, trazendo à luz dados biográficos e a recepção da sua obra na época; traçar diálogos possíveis com o Simbolismo, o Decadentismo e outros autores da linhagem da introspecção; e, por fim, analisar os modos de representação psíquica, no âmbito da narratologia, tendo o romance Exaltação como corpus de análise. Para esta apresentação no I Encontro Luso-Afro-Brasileiro – As Mulheres e a Imprensa Periódica3 , tratei de mudar o enfoque da minha pesquisa sobre a escritora Albertina Bertha, traçando, agora, um recorte e uma busca sobre a sua participação na imprensa periódica da época, bem como a sua atuação na sociedade intelectual do início do século XX. Albertina Bertha de Lafayette Stockler nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 74 de outubro de 1880 e faleceu, na mesma cidade, em 20 de junho de 1953. Por sua biografia não ter sido documentada, poucas eram as informações que tínhamos a respeito de sua vida pessoal na época da escrita da Dissertação de Mestrado. Hoje, tendo a oportunidade de contatar a sua família, em especial a bisneta Beth Stockler, desfrutamos 3

Evento realizado em Lisboa, nos dias 14 e 15 de julho de 2011, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, organizado por Laura Areias (CLEPUL 6), Vania Chaves (CLEPUL 6) e Constância Lima Duarte (UFMG). 4 Nota-se uma contradição no que diz respeito à data de nascimento da autora. Todos estudiosos que escreveram sobre a autora afirmam que a data é 7 de outubro de 1880, porém, na nota de falecimento publicada no Jornal do Comércio, consta o dia 2 de outubro de 1880. Também a bisneta Beth Stockler afirma ser dia 2.

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do acesso a dados pessoais, histórias, lembranças, fotos, entrevistas e documentos importantes sobre a escritora carioca. Esse riquíssimo material será utilizado na elaboração de uma edição crítica, por mim organizada, do primeiro romance publicado por Albertina Bertha, em 1916, Exaltação. Albertina era filha do Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira5 e de D. Francisca de Freitas Coutinho Lafayette, neta dos Barões de Pouso Alegre, pertencia a uma importante família da época, o que não impediu que sua biografia fosse ignorada. Foi educada por uma professora alemã, formada pela Escola Normal de Berlim, que o pai mandara buscar especialmente para a sua educação, preocupado com a qualidade e o refinamento da formação da filha. Albertina aprendeu línguas, estudou Estética e Filosofia, entretanto, sem se distanciar de casa, como era o costume nas famílias abastadas brasileiras. Foi casada com o republicano histórico Alexandre Stockler Pinto de Menezes, com quem teve quatro filhos, Clara, Alexandre, Lafayette e Francisca. De acordo com Beth Stockler, Albertina “tinha marido e filhos. Não sabia o que era solidão, embora buscasse o silêncio das tardes para conviver com seus personagens, sozinha, longe do ritual da casa”6 . Romancista e ensaísta, a obra de Albertina Bertha é composta por cinco volumes7 : Exaltação (romance, 1916), Estudos 1.a série (ensaio, 5

Sobre a vida do Conselheiro Lafayette e sua importante participação político-histórica no Brasil, existe um livro publicado, Lafayette, um jurista do Brasil, escrito por Maria Auxiliadora de Faria, Lígia Maria Leite Pereira e Paulo Roberto de Gouvêa Medina. 6 Beth Stockler, A volúpia de Voleta. Em memórias de amor, Niterói, Rio de Janeiro, Muiraquitã, 2004. 7 Nelly Novaes Coelho (2002), em O dicionário crítico de escritoras brasileiras, e Zahidé Muzart (2004), em Escritoras Brasileiras do século XX, apontam que A mulher na guerra seria um romance de Albertina Bertha, cuja data de publicação é desconhecida (s.d.). Caso fosse verdadeira essa informação, a obra da autora de Exaltação seria composta por seis volumes, e não cinco conforme mencionamos neste trabalho. Porém, constatamos que “A mulher na guerra” é um ensaio integrante do livro Estudos (1920) e que se refere à conferência que deveria ser realizada em 1918 pela própria autora. Em Estudos, podemos encontrar seis ensaios: “Nietzs-

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1920), Voleta (romance, 1926), E Ela Brincou com a Vida (romance, 1938) e Estudos 2a série (ensaio, 1948). Participou, também, da vida jornalística, colaborando ativamente na imprensa carioca, em jornais como O Jornal (para os Diários Associados), Jornal do Comércio, O País, O Malho, A Noite, e em revistas como a Panóplia, publicação literária dedicada às mulheres, e Para Todos. Albertina Bertha foi admitida como Membro da Academia de Letras de Manaus e, conforme Adalzira Bittencourt8 , a autora pertenceu a inúmeros grêmios culturais de seu tempo9 . Foi, também, introduzida na Sociedade de Homens de Letras, por Olavo Bilac, que admirava seu estilo de fortes influências parnasianas. Na imprensa periódica da época, encontramos a participação ativa da autora, que publicou contos literários, trechos de romances, deu entrevistas aos mais variados jornais e revistas brasileiras e estrangeiras, destacou-se pelas palestras e conferências sobre filosofia, que acabava che”; “A criança”; “A mulher na guerra”; “Notas de filosofia: Indução. Princípio de causalidade”; “Estética contemporânea”; e “O romance, a sua evolução”. 8 Adalzira Bittencourt (1904-1976), advogada, escritora e feminista, organizou um dicionário, utilizando como critério a ordem alfabética do primeiro nome de mulheres intelectuais e notáveis do Brasil, bem como “senhoras nascidas em outras terras, mas que vivem ou viveram entre nós, assim como brasileiras natas que vivem ou viveram sempre no estrangeiro” (1969, p. 10). Este é um registro importante da participação feminina na vida intelectual, artística e social do Brasil. Adalzira expõe a dificuldade encontrada em realizar esse tipo de trabalho, tanto pela escassez de informações biográficas, como pela dificuldade em conseguir fotografias. A autora afirma que essa não é uma obra de crítica, que este trabalho não mede nem compara valores, sendo assim, “apenas um Dicionário” (p. 12). A intenção é que esses nomes não caiam no esquecimento com o rolar dos tempos e que esse estudo seja uma fonte honesta de consultas. Bittencourt completou apenas três volumes do dicionário, referente às letras A e B. O terceiro e último volume, publicado em 1972, não foi concluído pela autora. Dentre inúmeros trabalhos, Adalzira Bittencourt publicou: Mulheres e livros (1948), Antologia de letras femininas (1948) e A mulher paulista na história (1954). Sua vasta obra mostra a sua preocupação com a causa da mulher e com a construção da memória feminina brasileira. 9 Adalzira Bittencourt, Dicionário bio-bibliográfico de mulheres ilustres, notáveis e intelectuais do Brasil, Rio de Janeiro, Pongetti, 1969, pp. 114-115.

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publicando na imprensa, emitiu opinião sobre os assuntos mais variados, tais como o voto feminino, a criação de uma Academia Feminina de Letras e o divórcio. Albertina escrevia, sem limites, sobre religião, política, filosofia, psicologia e história. Dava conselho às mulheres, demonstrava uma visão crítica da sociedade intelectual predominantemente masculina, reconhecia a necessidade de a mulher mudar a sua postura antes mesmo de exigir seus direitos. A voz de Albertina era muito respeitada, como podemos ver na forma de tratamento à autora publicada nos jornais. Além dessa produção ativa da escritora na imprensa periódica, onde ela escreve e publica, destacamos a recepção crítica de toda a sua obra, literária e ensaística, que originou uma série de comentários, algumas vezes elogiosos, reconhecendo o talento da escritora, outras vezes severos, acusando a ousadia do seu estilo e o teor de seus romances. Nos jornais, encontramos uma série de publicações, opiniões, polêmicas, notas, recomendações e críticas, sobre a escritora e sua produção intelectual, que confirmam a importância da sua voz na sociedade em que vivia, confirmam a participação ativa que ela tinha no meio literário e cultural da época e, principalmente, o seu público-leitor. Tal popularidade, infelizmente, não perdurou, pois, hoje, dificilmente se encontra alguém que conheça a escritora. O primeiro livro de Albertina Bertha, intitulado Exaltação, foi publicado como romance em 1916; entretanto, já havia sido publicado como folhetim no Jornal do Comércio10 , mediante o pedido de T. A. 10

O Jornal do Comércio, importante jornal econômico brasileiro que teve origem no Diário Mercantil (Francisco Manuel Ferreira & Cia – 1824), foi fundado em 31 de agosto de 1827, pelo francês Pierre Plancher, no Rio de Janeiro. “No influente órgão da imprensa fluminense, a mais antiga folha de circulação diária ininterrupta da América Latina desde a fundação, em suas páginas têm colaborado as mais eminentes personalidades do primeiro e do segundo Império bem como da República até os dias presentes . . . Durante este período eram colaboradores, entre outros, Justiniano José da Rocha, José Maria da Silva Paranhos (Visconde do Rio Branco, autor, em 1851, das Cartas do Amigo Ausente), Carlos de Laet, Francisco Octaviano, José de Alencar, Homem de Mello, Joaquim Nabuco, Guerra Junqueiro e outros intelectuais. O próprio Pedro II escrevia sob pseudônimo no jornal e influía em seus editoriais, a ponto

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Araripe Júnior11 e, desde então, sendo alvo da crítica. Constância Lima Duarte12 , ao refletir sobre o cânone e a autoria feminina, observa a dificuldade que a mulher, nos séculos passados e ainda no início do século XX, enfrentava para ser considerada escritora e integrar o cânone literário “numa sociedade que se recusava a aceitar a concorrência feminina, em qualquer de seus domínios”13 . Dessa forma, segundo Duarte, mesmo que a mulher tivesse o incentivo da família, uma educação sólida e a oportunidade de publicar, como mostramos ser o caso de Albertina Bertha, a crítica se encarregava de desencorajá-la14 . Albertina Bertha cresceu e viveu entre os livros, teve a oportunidade de uma educação refinada e, principalmente, o incentivo à escrita e à leitura por parte do pai: A biblioteca de papai era imensa – informou-me D. Albertina Berta. Estantes de alto a baixo. Eu cresci entre os livros. Aprendi a ler em francês e foi em francês que escrevi os meus primeiros contos. Papai leu-os e me disse: “Você tem intuição literáde um destes ter causado a queda do Ministério. Com seus colaboradores de nível tão alto, o jornal desempenhou o papel de precursor da Academia Brasileira de Letras, cuja fundação somente ocorreria a 20 de julho de 1897, tendo como seu primeiro presidente o escritor Machado de Assis. . . . Entre os colaboradores destacavam-se José Veríssimo, Visconde de Taunay, Alcindo Guanabara, Araripe Junior, Afonso Celso e outros” (disponível em http://www.jornaldocommercio.com.br/, acessado em 13 de junho de 2009, grifo nosso). 11 Tristão de Alencar Araripe Júnior (n. Fortaleza, 1848 – m. Rio de Janeiro, 1911) foi escritor, crítico literário e advogado. Sua família foi uma das mais importantes do Ceará, no século XIX. Primo de José de Alencar, sua obra literária iniciou-se ligada à ficção, porém tornou-se célebre no campo do ensaio, formando com Sílvio Romero e José Veríssimo a trindade crítica da época positivista e naturalista. Araripe Júnior é considerado, no bom e no mau sentido, “padrinho” de Albertina Bertha, uma vez que é ele quem escreve o primeiro registro sobre o romance-estreia da autora, Exaltação. 12 Professora da Universidade Federal de Minas Gerais. 13 Constância Lima Duarte, “O cânone e a autoria feminina” in Rita Terezinha Schmidt (Org.), Mulheres e literatura: (trans)formando identidades, Porto Alegre, Editora Palotti, 1997. 14 Constância Lima Duarte, “O cânone e a autoria feminina”, art. já cit., p. 57.

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ria”. Exultei. “Mas precisa conhecer a nossa língua”. E deu-me para ler A Morgadinha do Val-Flor. Aborreceu-me o livro. Papai passou-me, então, a Ulisséia, de Pereira de Castro. Depois, eu quis ler Carlyle15 . Papai não consentiu. Às instâncias reiteradas, indicou-me La Philosophie, de Jourdain, para que aprendesse a linguagem metafísica, a introspecção. Data aí o meu amor à filosofia.16

Beth Stockler, bisneta da autora, escreve um livro que dedica a sua bisavó. O título do livro é A volúpia de Voleta, e Voleta é uma personagem de Albertina no romance de mesmo nome. Nas orelhas do livro, Stockler escreve sobre a bisavó e o seu contexto, o que nos permite, também, uma aproximação a esse universo tão distante e apagado da história literária brasileira. Beth Stockler ressalta a vida cultural e intelectual da bisavó: Conheci uma escritora que poderia ter sido uma das maiores do nosso tempo. Escrevia crônicas, poesias, diários. . . aproveitava qualquer pedacinho de papel para anotar aquela ideia brilhante 15

Thomas Carlyle, escritor inglês, nasceu na Escócia, em 4 de dezembro de 1795 e morreu, em Londres, no dia 4 de fevereiro de 1881. Estudou na Universidade de Edimburgo e, quando leu o livro de Madame de Stael, De l’Allemagne, ficou impressionado e decidiu estudar alemão para ler os filósofos e os poetas germânicos no original. Traduziu em inglês os Années d’apprentissage de Wilhelm Meister, de Goethe, e seu Années de Voyage de Wilhelm Meister. Escreveu uma Vie de Schiller (Vida de Schiller, 1825), além de uma história da literatura alemã, que deixou inacabada. Em 1833-1884, publica o curioso romance Sartor Resartus, que Taine julga ser uma mistura de barroco e de misticismo, de ironias ferozes e de tendências pastorais. Esse livro não despertou muito interesse, enquanto que l’Histoire de la Révolution Française, publicada algum tempo depois, marcou o início de seu imenso prestígio como escritor e pode, ainda hoje, ser considerada como um marco importante da historiografia romântica (Laffont-Bompiani, Dictionnaire Bibliographique des Auteurs de tous les temps et de tous les pays, Grande-Bretagne, Éditions Robert Laffont, 1952). 16 Francisco de Assis Barbosa, “Lafayette Rodrigues Pereira visto por D. Albertina Berta” in Francisco de Assis Barbosa, Retratos de Família, Rio de Janeiro, José Olympio, 1954, p. 136.

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Anna Faedrich Martins que poderia aflorar a qualquer momento. [. . . ] À sua volta respirava-se inteligência e cultura. . . Os livros estavam gastos pelo constante manuseio. Livros de temas variados, livros franceses antigos. . . As páginas marcadas, os parágrafos sublinhados, as margens com anotações e opiniões. . . livros lidos!!!17 .

Albertina Bertha é uma escritora de grande destaque para a sua época; através de seus estudos filosóficos e de sua obra literária, despertou considerável interesse e curiosidade nos leitores e críticos. Na terceira edição do livro Exaltação, publicada em 1918, com a qual trabalhamos, encontra-se o prefácio com grande elogio de Araripe Júnior. Esse prefácio é uma carta dele à Albertina Bertha, em resposta aos seus primeiros escritos literários: Ainda não me restabeleci da surpresa que me causou a Exaltação. Continuo a garantir que o seu livro será o mais vibrante dos romances publicados no último decênio. Salvo Os Sertões, de Euclides da Cunha, não conheço estilo mais percuciente. É esta a verdade que sustentarei na liça, com o valor de cavaleiro medieval.18

O primeiro registro sobre Exaltação é uma carta de Araripe Júnior ao Jornal do Comércio, na qual recomenda fortemente a obra de Albertina Bertha para publicação: Solicitando do Jornal a inserção, nas suas colunas de honra, dos dois capítulos do romance Exaltação, escrito por D. Albertina Bertha, o meu fim é chamar a atenção para um dos talentos femininos que mais me tem impressionado. O romance Exaltação, no seu conjunto, apresenta, quer pela concepção, quer pelo estilo, qualidades extraordinárias. O poder descritivo da autora tem um cunho singular e o colorido da paisagem exibe notas fulgentes que recordam a escola dos coloristas italianos, e, às vezes, 17

Beth Stockler, A volúpia de Voleta: em memória de amor, op. cit., orelhas. Araripe Júnior, “Prefácio”, in Albertina Bertha, Exaltação, 3.a edição, Rio de Janeiro, Jacintho Ribeiro dos Santos Editor, 1918. 18

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o modo do pintor inglês Turner. Os dois trechos, que a autora me entregou, são talvez os que mais lhe agradam. A muitos leitores, porém, parecerão de uma abundância excessiva de adjetivação, devida quiçá à influência dannuziana. Há um lirismo insóbrio! Mas é preciso não perder de vista que essa parte do livro contém justamente o delírio das folias, as comunicações de amantes, vítimas de uma formidável intoxicação pelo amor; além de tudo instruídos, cultos e devorados pela ansiedade de realização de um tipo ético ultra vires. O Jornal, publicando esses fragmentos, não fará senão concorrer para que no horizonte das nossas letras desponte um astro de primeira grandeza.19

Percebemos que no livro Escritoras Brasileiras do século XX – Vol. II há um equívoco nas informações a respeito da recepção do romance de Albertina Bertha por parte de Araripe Júnior. Zahidé Muzart (2004), baseada em informações colhidas por Fábio Luz, publicadas em 1927, em Estudos de literatura, às quais não conseguimos obter acesso, afirma que Araripe Júnior não partilhava da mesma opinião dos colegas que elogiavam o romance Exaltação, já publicado no Jornal do Comércio. Essa informação não pode ser verdadeira, pois a carta a qual se refere Muzart está publicada integralmente em algumas das edições do romance, em especial, na terceira e quinta edição, com as quais trabalhamos. Ressaltamos que Araripe Júnior não só elogia o romance Exaltação, como recomenda fortemente a sua publicação. E foi por isso que, desde então, ele ficou conhecido como o “padrinho” de Albertina Bertha. A estreia do romance mereceu dos críticos em geral grandes elogios. Um crítico desconhecido, que também publicou no Jornal do Comércio, registra a sua opinião a respeito da autora e de Exaltação: A senhora Albertina Bertha não é um temperamento banal. É uma escritora que revela, exprime, estampa estados de alma tão 19 Araripe Júnior, “Prefácio” in Albertina Bertha, Exaltação, 5.a edição, Rio de Janeiro, Jacintho Ribeiro dos Santos Editor, 1922.

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Anna Faedrich Martins singulares, situações tão bizarras, sensações tão estranhas, que tudo no seu romance se ressente dessas anormalidades, e tudo, estilo, composição, contextura, tipos, fábulas, é ardente, vivaz, desequilibrado, fogoso, brilhantemente exótico e amorosamente bárbaro e sincero.20

Anna Ribeiro de Góes Bittencourt,21 entretanto, não partilhava da mesma opinião, publicando, no mesmo ano de estreia do romance, a seguinte resposta ao prefácio de Araripe Júnior: Não nego à autora deste livro um belo estilo; e sem dúvida cedendo à sedução desta beleza é que Araripe Júnior teceu-lhe o elogio pomposo que lhe serviu de batismo. Todos sabem a importância de um bom padrinho; muitas vezes é o fator de um brilhante futuro. [. . . ] Pretende igualar Exaltação ao livro do infeliz Euclides da Cunha! Que injustiça! Colocar ao lado de uma obra de peso, útil, primorosamente elaborada, o produto funesto de uma imaginação exaltada!22

A aproximação entre Exaltação e Os sertões não parece cabível porque são obras muito diferentes e não podem ser examinadas com 20

“Livros novos”, in Jornal do Comércio, 24 de fevereiro de 1916, p. 2. Anna Ribeiro de Góes Bittencourt nasceu em Sant’Anna do Catu, no município de Itapicuru (BA), em 1843, e faleceu em Salvador (BA), em 1930. Escreveu romances, contos, crônicas e poesias, além de colaborar na imprensa local e participar ativamente da vida cultural e literária baiana. A partir de 1911, passou a escrever regularmente na imprensa católica (A Paladina, O Mensageiro da Fé, A Voz da Liga das Senhoras Católicas), adotando posturas críticas ao feminismo e defendendo os papéis sociais tradicionalmente reservados às mulheres, mas advogando por outro lado a igualdade da educação para ambos os sexos. Entre 1913 e 1920, publicou diversos artigos e poesias na revista A Voz, fundada por Amélia Rodrigues. Colaborou também com jornais locais de grande circulação, como A Bahia, Gazeta do Povo e Diário da Bahia. Essas informações foram retiradas do CEDIC (Centro de Documentação e Informação Cultural sobre a Bahia), disponível em http://www.fcmariani.org.br/arquivo/br_fcm_ab.htm, acessado em 14 de junho de 2009. 22 Adalzira Bittencourt in A Voz da Liga Católica das Senhoras Baianas, setembro de 1916, n.o 6, pp. 91-93. 21

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os mesmos critérios. Entretanto, a apreciação crítica de Bittencourt é muito severa, ela chega ao extremo de recomendar que as famílias de boa conduta moral não comprem o livro e não permitam que seus filhos o leiam. Percebemos, assim, um discurso preconceituoso e conservador, arraigado na moral e nos princípios da Igreja Católica. Lima Barreto, Monteiro Lobato, Almachio Diniz, Heitor Muniz, Homero Prates, Humberto de Campos, Orestes Barboza, Joaquim Tomaz, Thomaz Murat são grandes nomes da literatura e da crítica literária que escreveram sobre Albertina Bertha e sobre a sua produção artística; também encontramos muitas referências à autora em revistas e jornais, como nas revistas Del Mundo, de Buenos Aires, e Fon-Fon, do Rio de Janeiro; e nos jornais Jornal do Comércio, O Jornal, Gazeta de Notícias, Correio da Manhã, A Noite, O País, Diário Mercantil, etc. Monteiro Lobato, no artigo “Em pleno sonho”, de 1926, publicado Na antevéspera23 , fala que “Albertina Berta documenta a capacidade feminina para voos elegantes sobre cumeadas alpestres onde esvoaçam os d’Annunzios”24 . Humberto de Campos diz, em entrevista à revista Para Todos, que Albertina Bertha é uma autora que merece ser lida. Assim como a recepção de sua obra Estudos foi de uma repercussão estupenda. No Correio da Manhã, “A escritora Patrícia Albertina Bertha surge, agora, com um novo livro: Estudos. [. . . ] Incontestavelmente, é um excelente livro, revelador duma brilhante inteligência e duma cultura muito rara na gente feminina”. No Jornal do Comércio, “A sra. Albertina Bertha com os seus «Estudos», livro de ensaios filosóficos, vem de renovar entre nós a «gaia ciência»”. Ainda no Jornal do Comércio, em “Livros Novos”, A Sra. Albertina Bertha teve no romance Exaltação uma estreia sensacional nas letras brasileiras. O seu livro é, de fato, pela estética que revela, pela impetuosa beleza de estilo, pela 23

Trata-se de uma reuniões de artigos publicados n’O Jornal, de Assis Chateaubriand, entre 1925 e 1926, e n’A Manhã, de Mário Rodrigues, ambos do Rio de Janeiro. 24 Monteiro Lobato, Na véspera, São Paulo, Globo, 2008, p. 194.

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Anna Faedrich Martins frase quente e espumante, dos mais fortes e característicos que a moderna geração brasileira tem produzido. Assim, a Sra. Albertina Bertha conquistou, de um só impulso, todo o sucesso que o nosso acanhado mundo literário pode proporcionar. E o sucesso foi merecido. Há uma grande alma de artista, de poeta e de filósofa naquele romance, que é um hino à natureza, à beleza e ao amor. Nada mais natural do que receber um livro de filosofia da mesma autora de Exaltação. No romance, a Sra. Albertina Bertha demonstrou cultura que indicava conhecimentos filosóficos e científicos. Os Estudos, agora publicados, confirmam a artista.

Na revista Fon-Fon, A inteligente senhora Albertina Bertha, pensadora e filósofa, um dos reveladores de Nietzsche no nosso meio, publicou mais um livro que é mais uma prova da sua vasta cultura e do seu amor às letras pátrias, para as quais tem constantemente e brilhantemente concorrido. Neste novo volume, otimamente escrito, a admirável escritora patrícia enfeixa diversos estudos de real valor, cada um dos quais atesta o grande poder de sua inteligência, talvez a maior inteligência feminina do Brasil.

E, assim, somos capazes de citar aqui inumeráveis artigos elogiosos sobre os livros de Albertina Bertha, publicados na imprensa periódica da época. Entretanto, gostaríamos de dar um enfoque especial, nesta apresentação, para a participação ativa da escritora nos periódicos. Sua participação se deu de diversas formas. É impressionante o número de entrevistas que Albertina Bertha cedera aos jornais e revistas. Ela opinava sobre os mais variados assuntos, e podemos perceber que sua opinião era muito importante para esses veículos de comunicação e, também, sempre muito respeitada. No Correio da Manhã, de sábado, dia 16 de janeiro de 1926, Albertina fala sobre o papel da mulher na www.clepul.eu


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política brasileira e dá a sua opinião sobre a criação de uma Academia Feminina de Letras. Primeiramente, percebemos o respeito com que os jornais da época se referiam à autora e o reconhecimento do valor de sua obra: “A Sra. Albertina Bertha é uma figura singular na sociedade feminina das nossas raras escritoras. Viva, inteligente, ilustrada, a sua mentalidade está sempre agitando ideias, as mais variadas, as mais diferentes”. Sobre a Academia Feminina, Albertina demonstra simpatia com a ideia: “Eu sou partidária entusiasta da ideia. Tudo o que eleva e exalta a mulher tem as minhas simpatias e o meu apoio”. E fala sobre a primeira academia feminina no mundo, mostrando a riqueza de seus conhecimentos culturais: “Coube a Portugal a primazia. Foi no século XVI, no reinado creio de D. Manoel. Sob a direção de uma infanta congregaram-se diversas mulheres de letras que prestaram à literatura portuguesa serviços excelentes”. Desta mesma entrevista, temos uma declaração extremamente pessoal da autora, que revela um pouco do seu perfil: Vivo entre os livros. O meu prazer é o estudo. Gosto imenso de escrever. . . Não frequento festas. Vou raramente a espetáculos, a passeios. . . Saio pouco de casa. A muitas amigas tenho dito: vocês sentem prazer e se divertem nas festas, nos banhos, nas danças, nos teatros. . . E vivem felizes! O meu prazer, o meu divertimento. . . é o livro, é o estudo. . . E sou feliz assim!

Em outra entrevista, para o mesmo jornal, no dia 23 de setembro de 1926, Albertina fala a respeito do divórcio e demonstra uma visão crítica sobre o comportamento da mulher em geral. A sua opinião não é contra o divórcio, mas a favor de uma mudança de comportamento que deve ser anterior à idealização de que o divórcio resolve muitos problemas. O divórcio não se revela uma reivindicação de justiça, um desagravo, um direito, apresenta-se, ao contrário, como uma instituição artificial, hostil à vida das nações e ao destino das sociedades. www.lusosofia.net


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Anna Faedrich Martins Compreendo que seja quase uma impossibilidade a fixidez eterna do casamento na mobilidade vertiginosa do universo, mas também não admito que o divórcio represente uma finalidade, a solução ideal para o reestabelecimento da harmonia violada. [. . . ] É uma arma de gumes duplos que se adita as mãos recursos do homem contra nós, é mais um meio que se lhe proporciona para escapar com dignidade aos encargos e às responsabilidades de chefe da família.

Outra entrevista que a escritora cede ao jornal é sobre o voto feminino. Percebemos que Albertina Bertha participa ativamente de assuntos dos mais variados e de decisões importantes em voga na época. Para cada situação, ela tem uma opinião própria, uma reflexão a acrescentar e a estimular a sociedade a pensar mais profundamente nos assuntos. Continuando a nossa “enquete” sobre a questão do voto feminino fomos ouvir a notável e vigorosa brilhante prosadora d. Albertina Bertha, incontestavelmente uma das figuras mais representativas da literatura nacional e autora da “Exaltação”, que não é contrária ao voto feminino muito pelo contrário, considera-o apenas extemporâneo atualmente. [. . . ] Enquanto a mulher tiver como preocupação exclusiva os chás dançantes e o teor dos vestidos e dos chapéus, enquanto se limitar às mil futilidades que uma vida ociosa provoca, ela permanecerá eternamente vítima de si mesma, jungida à sua inferioridade, incapaz de se erguer, de se reabilitar mesmo que todas as garantias libertárias a rodeiem [. . . ] Do contrário será uma lei morta.

Além desses assuntos, ela escreveu sobre o trabalho feminino, a vocação, sobre a participação feminina na guerra, sobre psicologia, sobre crianças, sobre religião, sobre o Imperador Pedro II, sobre a morte do Padre Natuzzi, sobre filosofia, literatura, etc. www.clepul.eu


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Albertina Bertha aparece como colaboradora da revista Panóplia, onde ela também publica um conto literário, “O desejo da nuvem”, um ano depois de publicar o romance Exaltação. Neste conto, o teor erótico está presente, assim como o adultério enquanto temática: “Pedro Sandoval, ao findar a leitura dessa carta, exclamava a soluçar, entre dentes: Maldição! Maldição! Totalmente impotente contra a mulher de seu melhor amigo”25 . Nos anos 1927 e 1928, o jornal O Malho promoveu um concurso para promover o “Príncipe dos prosadores brasileiros”. Albertina Bertha aparece lá, entre os votantes, mostrando, mais uma vez, a sua intensa participação na elite intelectual da época. O príncipe dos prosadores seria o ganhador da eleição, feita por votos: “A escolha far-se-á unicamente entre os prosadores, isto é, entre aqueles brasileiros vivos que melhor puderam, na novela, na crônica, no ensaio, na crítica, no romance, no teatro, na história tratar o nosso idioma. E será por eleição”. Entre os candidatos estavam Coelho Neto, Gilberto Amado, Monteiro Lobato, Humberto de Campos, Viriato Correia, José do Patrocínio, Afrânio Peixoto, Graça Aranha, Agripino Grieco, etc. O voto de Albertina foi para Gilberto Amado (que obteve 85 votos), mas o vencedor, o príncipe dos prosadores brasileiros eleito, foi Coelho Neto, com 92 votos. Albertina Bertha destacou-se, também, pelas conferências que proferia. A maioria delas foi ao Salão do Jornal do Comércio. Lá, ela falou sobre Nietzsche, sobre um estudo psicológico da criança, sobre a mulher na guerra, sobre estética, romance, estudos filosóficos, etc. Realizou conferência para as moças da Associação Cristã Feminina, onde falou sobre “Como tornamo-nos interessantes”. Entre os conselhos da autora, estão: O homem detesta ouvir de lábios femininos recriminações – palavras severas, radicais, que advertem e amesquinham. Como 25

Albertina Bertha, “O Desejo da Nuvem”, Revista Panóplia, outubro de 1917, p.

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Anna Faedrich Martins chefe e autoridade não se resignará facilmente a essa humilhação que o desprestigia. Involuntariamente e, a pesar seu, o olhar, a fisionomia se embruscam e as palavras lhe sairão atropeladas, nervosas. Nesse momento, aconselho a todas vós não reagir, não invectivá-lo de adjetivos desagradáveis para não parecerdes desinteressantes. A mulher tomada de cólera, desnuda atavios que a colorem de magníficas intensidades se descentraliza, torna-se grotesca e banal. [. . . ] A meiguice, o devotamento e a inteligência conferem à mulher uma languidez ardente e apaixonada que impressiona, subjuga e faz com que o homem anseie identificar-se com essa criatura iluminada e infinitamente doce.26

Algumas dessas conferências foram publicadas em dois volumes de Estudos (1.a e 2.a série). Em 21 de junho de 1953, o Jornal do Comércio publicava a nota de falecimento da “ilustre escritora Albertina Bertha”, que ocorreu no dia anterior, aos 73 anos: Os meios literários do país receberam, com grande consternação, a notícia de falecimento da brilhante escritora D. Albertina Bertha, personalidade vigorosa que se impusera, logo ao fazer suas estreias nas letras, à admiração dos nossos meios culturais. Individualidade forte, antecipada no tempo pela aprimoração de suas ideias, que surgiam ao comum, D. Albertina Bertha cedo chamou a si as atenções de quantos se interessam pelo nosso desenvolvimento cultural, granjeando os aplausos que jamais desmereceu, em toda a sua longa existência e que bem traduziam a admiração de todos pela sua obra até certo ponto ousada, mas digna dos encômios que lhe foram endereçados. O aparecimento de D. Albertina Bertha na vida literária do país constituiu um fato de grande repercussão, pois sua obra de estreia, o romance “Exaltação” trazia a marca ainda não conhecida de um espírito cintilante e, ainda que não fosse impecável 26

Albertina Bertha, Estudos, 2.a série, Rio de Janeiro, A. Coelho Branco Fo Editor, 1948, pp. 245-246.

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na forma, constituía uma mensagem falada a não se perder na inocuidade dos elogios fáceis e no efêmero de fingidas glórias: era algo de novo em nossas letras, novas ideias, nova concepção, tudo revestido num estilo vivo, palpitante, estuante de vida. Ao mesmo tempo, era uma obra personalíssima, original, liberta de qualquer filiação a escolas literárias, valendo, a propósito, lembrar o seu conceito de arte: “É uma impossibilidade a luta de Escola: a arte não é um elemento abstrato, idêntico a si mesmo, porém, um movimento dinâmico, que muda, sem hierarquias e privilégios; o seu senso de universalidade se estende a todas as manifestações do pensamento e da imaginação; o escritor deve, portanto, apresentar-se livremente, ousadamente, com o seu estilo, a sua maneira de ser, a sua intuição maravilhosa. E a Escola que trouxer as características permanentes da vida, a sua realidade e a sua magnificência não fenecerá, será a escola diretriz, a que terá por missão completar, com a violência do presente, a luminosidade do passado”. E ela mesma confessava que, ao se fazer escritora, “obedecia a uma tendência forte, irresistível, doentia”. Araripe Júnior, assinalando o aparecimento de Albertina Bertha no cenário de nossas letras, afirmou ser “Exaltação” – “o mais vibrante dos romances publicados no último decênio”. E, deve notar-se, a sequência das publicações dessa admirável escritora, foi uma constante reafirmação de seu talento criador para caracterizar-se, mais tarde, como uma obra de unidade, um todo valioso. Ao desaparecer, Albertina Bertha deixa o traço luminoso de sua passagem, sublinhando a legenda vitoriosa de seu nome. [. . . ].

Depois de todo o nosso trabalho investigativo sobre a biografia, a recepção crítica da obra e a participação da escritora Albertina Bertha na imprensa periódica e na vida cultural do início do século XX, o imenso número de artigos, publicações, referências à autora, os documentos que comprovam que sua produção literária e ensaística era lida, publicada por grandes editores, recomendada por grandes figuras do cenário www.lusosofia.net


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literário, reconhecida e respeitada na época em que vivia, assim como a repercussão abaladora de seus romances e estudos filosóficos, a polêmica gerada em torno do teor erótico e ousado de seus textos, a sua contribuição para o avanço do papel feminino na sociedade brasileira, depois de toda a nossa trajetória em busca de dados sobre uma escritora que foi apagada da historiografia literária brasileira, fica difícil acreditar que, mediante a abundância de fatos e dados, tal sombra possa ter ocorrido. Quando comecei a pesquisar sobre a Albertina, não imaginava que a atuação dessa mulher no campo das letras fosse tão efetiva e produtiva. Dessa forma, o silêncio existente em torno da ensaísta e romancista carioca representa não apenas uma injustiça, mas uma lacuna na História da Literatura Brasileira.

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Bibliografia BARBOSA, Francisco de Assis, “Lafayette Rodrigues Pereira visto por D. Albertina Berta” in Francisco de Assis Barbosa, Retratos de Família, Rio de Janeiro, José Olympio, 1954, pp. 131-140. BARRETO, Lima, Impressões de Leitura, 2.a edição, São Paulo, Brasiliense, 1961. B ERTHA, Albertina, Exaltação, 3.a edição, Rio de Janeiro, Jacintho Ribeiro dos Santos Editor, 1918. I DEM, E ela brincou com a vida, Rio de Janeiro, Borsoi, 1938. I DEM, Voleta, Organização, atualização e notas de Geysa Silva, Rio de Janeiro, Brasília, INL – Instituto Nacional do Livro, 1987. I DEM, Estudos, 1.a série, Rio de Janeiro, Jacintho Ribeiro dos Santos Editor, 1920. I DEM, Estudos. 2.a série, Rio de Janeiro, A. Coelho Branco Fo Editor, 1948. B ITTENCOURT, Adalzira, Dicionário bio-bibliográfico de mulheres ilustres, notáveis e intelectuais do Brasil, Rio de Janeiro, Pongetti, 1969. C OELHO, Nelly Novaes, Dicionário crítico de escritoras brasileiras: (1711-2001), São Paulo, Escrituras, 2002.


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I DEM, “O desafio ao Cânone: consciência histórica versus discurso em crise” in Helena Parente Cunha (Org.), Desafiando o cânone: aspectos da literatura de autoria feminina na prosa e na poesia (anos 70/80), Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1999, pp. 9-14. D INIZ, Almachio, Meus odios e meus affectos, São Paulo, Monteiro Lobato & Cia, 1922. D UARTE, Constância Lima, “O canône e a autoria feminina” in Rita Terezinha Schmidt (Org.), Mulheres e literatura: (trans)formando identidades, Porto Alegre, Editora Palotti, 1997. L AJOLO, Marisa, “Literatura e história da literatura: senhoras muito intrigantes” in Letícia Mallard, Marisa Lajolo, Lúcia Helena, Maria Eunice Moreira, Regina Zilberman, Roberto Ventura, História da literatura – ensaios, Campinas, Editora da Unicamp, 1994, pp. 19-36. L OBATO, Monteiro, Na antevéspera, São Paulo, Globo, 2008. M UZART, Zahidé Lupinacci, Escritoras Brasileiras do Século XIX. Antologia, Volume II, Rio Grande de Sul, Edunisc, 2004. S ANTOS, André Luiz dos, Caminhos de alguns ficcionistas brasileiros após as Impressões de Leitura de Lima Barreto. Tese (Doutorado em Letras – Literatura Brasileira) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2007. S ILVA, Auristela Oliveira Melo da, A mulher no limiar do século XX em “Exaltação” de Albertina Bertha. Dissertação de Mestrado em Letras – Universidade Federal de Pernambuco, 1999. S TOCKLER, Beth, A volúpia de Voleta: em memórias de amor, Niterói, Rio de Janeiro, Muiraquitã, 2004. TACQUES, Alzira Freitas, Perfis de musas, poetas e prosadores brasileiros, V.I, Porto Alegre, Thurmann, 1956. www.clepul.eu


A lírica de Florbela Espanca em Modas & Bordados e Portugal Feminino Fabio Mario da Silva1

Na passagem do dia 7 para o dia 8 de dezembro de 1930, Florbela Espanca morre em Matosinhos, e Guido Battelli, que tinha se oferecido para tratar da publicação da obra Charneca em Flor (1931), apressa-se em publicá-la, construindo, através da imprensa e do seu prestígio como professor convidado da Universidade de Coimbra, uma imagem de “poeta” romântica. Em 1985, Rui Guedes, empresário português, publicou as Obras Completas de Florbela Espanca, com um material inédito de contos e poemas, pois, segundo o próprio, percorrera tudo o que Florbela tinha escrito, bem como todo o acervo (cartas, postais, histórias de colegas e familiares) e fotos da poetisa para publicá-las. Rui Guedes, nestes percursos, conseguiu encontrar e comprar as poesias inéditas, na posse de um antigo familiar de um dos maridos da poetisa alentejana, e publicou-os nessas “Obras Completas”: trata-se de um manuscrito conhecido de Florbela Espanca, intitulado Trocando 1

Doutorando em Literatura pela Universidade de Évora. Bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Investigador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CLEPUL).


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Olhares2 , que compreende 88 poemas, “ou, mais precisamente, 145, se [incluirmos] nesse cômputo os diferenciados no interior de quatro grandes grupos temáticos e mais 3 contos”3 . Amadurecendo ideias e projetos poéticos, que serviram para a publicação do Livro de Mágoas, Florbela nos apresenta, de forma não intencional, um montante de produções que foram compostas entre 10 de maio de 1915 e 30 de abril de 1917, como nos demonstra o manuscrito. Segundo Dal Farra, num estudo muito acurado e intensivo, Florbela teria em mente outras produções poéticas expostas no Trocando Olhares: Por meio da documentação preciosa que nos fornece este manuscrito-matriz e do socorro de outros manuscritos, pois que aquele a estes se espraia, por meio de outras fontes primárias e secundárias, (. . . ) em ordem cronológica, a formulação dos projectos poéticos Trocando Olhares e Alma de Portugal, da antologia Primeiros Passos, dos projectos poéticos O Livro d’ele e Minha Terra, Meu Amor, da colectânea Primeiros Versos; esta última, o passaporte para o Livro de Mágoas.4

Vale destacar que é no ano de 1916 que Florbela se dedica com afinco à produção do caderno-manuscrito de nome Trocando Olhares. É a partir desse manuscrito-matriz, hoje depositado na Biblioteca Nacional de Portugal, que percebemos como Florbela amadurece e reflete sobre suas futuras produções poéticas, numa fase que preferimos chamar, se assim podemos dizer, de “gestação poética”; é uma fase de 2

Maria Lúcia Dal Farra vem esclarecer, com uma nova publicação do caderno Trocando Olhares em 1994, os problemas graves das edições das Obras Completas de Florbela Espanca, resolvendo as gralhas, erros primários, falta de cientificidade e alterações de datas deixadas por Rui Guedes na sua respectiva edição. 3 Os contos têm como título “Alma de mulher” (12 de março de 1916), “Oferta do destino” (1 de abril de 1916) e “Amor de sacrifício” (11 de abril de 1916). Maria Lúcia Dal Farra, “Estudos introdutórios, estabelecimento do texto e notas”, in Florbela Espanca, Trocando Olhares, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994, p. 17. 4 Maria Lúcia Dal Farra, “Estudos introdutórios, estabelecimento do texto e notas”, art. já cit., p. 19.

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A lírica de Florbela Espanca em Modas & Bordados e Portugal Feminino

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reflexão e crescimento enquanto artista, discutindo suas poesias e as de outras poetas, principalmente em cartas trocadas com Júlia Alves, Madame Carvalho e Raul Proença. É justamente no ano de maior produção do Trocando Olhares, 1916, que Florbela começa a travar diálogo com Madame Carvalho5 , diretora do suplemento Modas & Bordados6 do jornal O Século, e com a subdiretora, Júlia Alves7 , que viria a ser sua amiga e confidente, sem que nunca se tivessem encontrado. Nas primeiras correspondências enviadas ao suplemento Modas & Bordados encontramos uma resposta de Madame Carvalho (numa carta datada de 14 de janeiro de 1915) sobre o poema “O Teu Olhar”8 – assinado com o apelido do primeiro marido9 , Alberto Moutinho. É com 5

Ela dirige a publicação entre 1914 e 1921, ficando a cargo de diferentes editores a responsabilidade da publicação. É apenas em abril de 1925 que o jornal voltará a ter uma outra diretora, Carolina Homem Christo. 6 A publicação se destinava a ensinar às mulheres os “cuidados do lar” e começa a introduzir poemas, romance, folhetins e contos de maneira processual e com menos destaque. Foram publicados ao longo dos anos poemas de Virgínia Victorino, Branca de Gonta Gonçalo, Maria Amália Vaz de Carvalho, António Nobre, Antero de Quental, Marquesa de Alorna, Fernanda de Almeida, Gomes Ferreira, Bulhão Pato, entre outros. Há muitas produções literárias assinadas com pseudónimos, como “Eva”, “Miss Rell”, “E-Mece”, ou apenas com as primeiras iniciais (“J”). Isto configura um certo medo em assumir-se como escritora, numa publicação que não era voltada para um público literário, como pode também ser, por questões históricas, o medo feminino de se expor em imprensa pública, como acontecera com outras mulheres que ocultaram o seu nome, como Teresa de Mello Breyner, ou que escreveram com pseudónimos, como Ana Augusta Plácido. 7 Maria Lúcia Dal Farra, na obra Trocando Olhares, faz conjecturas sobre a possível identidade tanto de Júlia Alves (que afirma Rui Guedes ser a subdiretora de Modas & Bordados) como de Madame Carvalho, que não passaria de um nome fictício: “Com certeza esse nome não passa de um pseudónimo; seria ela Júlia Alves? A mudança de tratamento observada na carta de Alma de Portugal pode indicar a passagem de Madame Carvalho (a impessoal directora) para Júlia Alves (a verdadeira identidade da directora) (Cf. Maria Lúcia Dal Farra, “Estudo introdutório, estabelecimento do texto e notas”, art. já cit., p. 53). 8 Poema contido no manuscrito Trocando Olhares e que foi publicado no suplemento literário em 23 de agosto de 1916, n.o 237. 9 Em todos os poemas publicados por Modas & Bordados a autora assina como

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júbilo que a diretora da revista saúda Florbela, que teria “as faculdades de inspiração de uma alma dedicada de poetisa”10 . Faz, no entanto, algumas reservas e solicita à poetisa que substitua a palavra “fatal”, por ser de “exagerada acepção”, por “ideal”, numa tentativa clara de não chocar suas leitoras mais conservadoras, como também várias alterações no que diz respeito à pontuação; porém tal alteração não acontece no manuscrito original11 . Ou seja, mesmo nessa poesia, não sendo de maior cariz sensual, como na produção florbeliana apresentada a partir da obra Livro de Soror Saudade, seus versos deveriam, segundo sugere a diretora do suplemento, ser mais comedidos, dentro de uma zona literária situada no interdito, imposição histórica que recaía sobre as mulheres portuguesas. Numa outra epístola, Florbela Moutinho tenta demonstrar sua qualidade literária a Madame Carvalho, demonstrando certa insegurança em publicar sua primeira obra, o que faz com a diretora do suplemento responda tentando tranquilizar sua leitora e colaboradora: “A sua carta é um grito de desilusão, cuja repetição vamos desde já evitar. (. . . ) Não há nenhum livro bom que se exima à condição de deficiências inerentes a tudo o que é humano, (. . . ) o seu livro há-de alcançar o sucesso a que tem jus”12 . Vale ressaltar que o primeiro poema da poetisa a ser publicado neste periódico foi o poema esparso “Rosas”13 – poema elegíaco à natureza (“Eu abençoo então a Natureza, / E curvo-me ante vós com humildade”), como mãe da mais gentil de todas as flores, que ao serem contempladas trazem ao “eu” lírico aprazimento e esquecimento para as suas dores e saudades (“Ao ver-vos tão bonitas, tão mimosas / Florbela Moutinho. 10 Obras Completas de Florbela Espanca, Vol. VI, Cartas (1923-1930), recolha, leitura e notas por Rui Guedes, Lisboa, Dom Quixote, 1986, p. 223. 11 Manuscrito original disponível no espólio on-line da escritora, que está disponível na página da Biblioteca Nacional de Portugal, em http://purl.pt/272/2/n10/n10_it em9/P20.html. 12 Ibidem, p. 225. 13 Publicado no dia 16 de agosto de 1916, n.o 236.

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Esqueço a minha dor, minha saudade”). Tal poema também foi drasticamente alterado em relação ao manuscrito original, não apenas ao nível da pontuação, mas mesmo das palavras, já que no periódico o último verso do primeiro quarteto diz: “A obra prima pois da natureza!”, enquanto no manuscrito original encontramos: “Vós sois a obra prima deste mundo!”. Já o terceiro e último poema florbeliano foi publicado em 8 de novembro de 1916, no número 248, e se intitula “Junquilhos”14 , poema que faz parte do manuscrito Trocando Olhares, e que retoma novamente a ideia duma flor como enredo poético de comparação do sentimento com a sua paixão pelo amado que vai embora: “E como a alma, dessa florzita, / Que é a minha, por ti palpita amante!”, é certamente o que mais contém alterações: Versão do manuscrito original:

Versão publicada em Modas & Bordados (alterações destacadas em negrito): Nessa tarde mimosa de saudade Nessa tarde mimosa e tranquila Em que eu te vi partir, ó meu Em que eu te vi partir, meu amor, doce amor, Levaste-me a minh’alma apai- Levaste-me a minh’alma apaixonada xonada Nas folhas perfumadas duma Nas pétalas benditas duma flor. flor. E como a alma, dessa florzita, E como a alma, dessa alva florzita, Que é minha, por ti palpita A minha alma por ti palpita amante! amante! Oh alma doce, pequenina e Oh minha flor tão pequena e branca, doce, 14

Manuscrito original disponível no espólio on-line da escritora, que está disponível na página da Biblioteca Nacional de Portugal, em http://purl.pt/272/2/n10/n10_it em9/P35.html.

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130 Conserva o teu perfume estonteante! Quando fores velha, emurchecida e triste, Recorda ao meu amor, com teu perfume A paixão que deixou e qu’inda existe. . . Ai, dize-lhe que se lembre dessa tarde, Que venha aquecer-se ao brando lume Dos meus olhos que morrem de saudade!

Fabio Mario Silva Conserva o teu perfume estonteanfquanto te! Quando fores velha, emurchecida e triste, Recorda ao meu amor, com teu perfume A paixão que deixou e qu’inda existe. . . (. . . ) Dize-lhe que se lembre dessa tarde, E venha aquecer-se ao brando lume Dos meus olhos que morrem de saudade!

Entretanto, acontece que Florbela nesta época era uma autora quase desconhecida e procurava se afirmar nas letras enviando seus poemas para serem publicados em diversos jornais. Como seu nome ainda não estava em destaque na imprensa e letras portuguesas, sua poesia, fora dos padrões daquelas poesias produzidas no começo do século XX, gerou algumas desconfianças, quando uma autora “desconhecida” do meio literário escreve versos além do senso comum, levantando suspeitas de plágio nos seus poemas. Florbela Espanca passou por essa suspeita ao considerarem os seus versos cópias e responde numa carta endereçada à diretora do suplemento Modas & Bordados de O Século, Madame Carvalho, em 23 de abril de 1916: “Tenho a consciência absoluta dos versos serem meus, sim, Madame, pois que a meu ver é uma indignidade revoltante firmar, com o próprio nome, versos alheios”15 . Apesar das inúmeras cartas trocadas com a diretora do suplemento e depois com a subdiretora, necessariamente, apenas três poemas de Florbela são publicados nesse periódico, mesmo tendo Florbela enviado 15

Afinado Desconcerto (contos, cartas, diário), organização, notas e estudos de Maria Lúcia Dal Farra, São Paulo, Iluminuras, 2002, p. 205.

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os sonetos “No meu alentejo”, “Paisagem”, “O fado” e “Às mães de Portugal”16 . Nota-se que depois de algumas cartas trocadas com Madame Carvalho é Júlia Alves quem responde a Florbela, que numa primeira carta17 , datada de 16 de junho de 1916, revela à sua nova amiga o seu caráter “triste, amargo e doentio”. Entretanto, apesar de ser, como afirma Rui Guedes18 , subdiretora do suplemento e amiga epistolar de Florbela, Júlia Alves parece não exercer influência alguma para publicar mais poemas no suplemento, já que dos vários versos e até sonetos19 enviados a Júlia Alves nenhum mais figurou neste periódico feminino. Já a colaboração de Florbela em Portugal Feminino acontece em março de 1930, no número 2, com o conto “À margem dum soneto”, justamente na época do surgimento e fortalecimento de movimentos feministas, por isso este periódico conseguiu reunir as grandes mulheres intelectuais de Portugal, como, por exemplo, Ana de Castro Osório, Elina Guimarães, Maria Lamas, Branca de Gonta Gonçalo, Emília de Sousa Costa, Fernanda de Castro, Tereza Leitão de Barros, Laura Chaves, Maria de Portugal20 . Por conseguinte, a grande questão que se coloca é: seria Florbela Espanca uma feminista? Liliana Maria Rodrigues Queirós Matias refere, em sua dissertação de Mestrado, que é comum considerar Florbela como elemento básico duma feminilidade datada, encarnando “o feminino poético” em Portugal, mas acredita que esse pensamento não foi requerido pela poetisa: 16

Esta carta não está datada e esses poemas fazem parte de um dos projetos contidos no Trocando Olhares que a poetisa abandona e que se intitularia Alma de Portugal, mas que provavelmente teriam sido enviados também em 1916, data dos manuscritos dos poemas. 17 Cartas nas quais Florbela fala de sua vida pessoal, do seu modo de entender a vida, de sua relação com a poesia – período que vai de 16 de junho de 1916 até à última epístola conhecida, datada de 5 de abril de 1917. 18 Cf. notas da página 266, Obras Completas de Florbela Espanca, Vol. V, Cartas (1906-1922), recolha, leitura e notas por Rui Guedes, Lisboa, Dom Quixote, 1986. 19 São eles: “O espectro”, com dedicatória “À gentilíssima Júlia Alves”; “Nunca Mais”; “Escuta”; “Súplica” e “Rústica”. 20 Cf. anexo da foto onde estão todas as colaboradoras do periódico com a presença de Florbela Espanca.

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Fabio Mario Silva Pensamos mesmo que as questões feministas, enquanto luta organizada em favor da emancipação da mulher, estavam fora dos horizontes de intervenção activa da artista alentejana. Naturalmente, e esse factor é inegável, que reflecte sobre a sua condição de mulher e se apercebe inequivocamente dos limites demasiado estreitos em que as mulheres se movimentam. A comprová-lo estão os desabafos sentidos que regista nas suas cartas enviadas a Júlia Alves e também a sua obra poética, cuja linguagem livre e sensual é a expressão mais perfeita de contestação à sociedade opressiva do seu tempo. Mas pensamos que se trata de uma contestação socialmente passiva, porque exclusivamente centrada no mundo interior da poetisa. Se após a sua morte e com o decorrer do tempo ela acaba por ser arvorada como estandarte da luta feminista por um lugar que é devido à mulher por direito próprio, é esse facto aleatório. Não há, com efeito, em Florbela um “engagement” social com a causa feminista, nem assume explicitamente esse papel interventor como outras mulheres da época o fizeram.21

Acreditamos que Florbela conviveu e participava no Portugal Feminino, não por causa de uma ideologia política, porque em carta enviada a seu pai ela diz não ter nenhum posicionamento político, mas, cremos, por estar presente no meio de mulheres intelectuais pioneiras, coisa que os ambientes de Évora e Matosinhos (sua última cidade de residência) não conseguiam lhe proporcionar. A proximidade e amizade com a diretora da revista, a escritora brasileira Maria Amélia Teixeira, é realmente comprovada, como constatamos num telegrama22 enviado pela diretora ao professor Guido Batelli, em 14 de junho de 1930, a dizer que Florbela se encontraria em sua residência até dia 19 de ju21

Liliana Maria Rodrigues Queirós Matias, Poesia, Errância e Mito em Florbela Espanca, dissertação de Mestrado, Porto, Universidade do Porto, 1998, p. 12. 22 Enviado a Guido Battelli com o timbre Portugal Feminino. Tal correspondência faz parte do espólio de Florbela Espanca que se encontra na Biblioteca Pública de Évora.

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nho, antes de passar um mês no Alentejo de repouso23 . Outro detalhe importante é que em Portugal Feminino24 Florbela começa a publicar seus primeiros contos, como “Carta da Herdade”25 e “Os mortos não voltam”26 , bem como vários sonetos27 . Também como aconteceu em Modas & Bordados, no Portugal Feminino encontramos imensas alterações dos seus sonetos, quer ao nível de pontuação, quer ao nível linguístico. Por exemplo, o soneto “O meu condão” no manuscrito está “Desta paixão imensa, ardente, incrível”, já na publicação encontramos “Desta paixão estranha, ardente, incrível!”. No soneto “A um moribundo” também há alteração, no verso final, que deveria ser “Tudo será melhor do que este mundo!”, mas foi publicado da seguinte forma: “Tudo será melhor do que esta vida!”. Os outros poemas, bem como os contos, têm alterações no que diz respeito à pontuação, o que interfere no ritmo dos textos, principalmente das poesias. Um fator deveras negativo diz respeito à alteração dos versos, que viola o ritmo do poema, deixando versos de alguns sonetos imperfeitos, porque já não perfazem as dez sílabas métricas. Contudo, notamos que esta questão sempre foi comum na vida da autora, que em cartas reclama dessa atitude dos seus editores, fato exposto numa carta (datada de 26 de janeiro de 1928) a 23

Desiludida com o seu terceiro casamento, triste por ter tido dois abortos involuntários, sofrendo pela morte do irmão querido e excessivamente debilitada por uma doença de “nervos”, é aconselhada por isso a ficar de repouso absoluto. 24 O periódico se encerra em 1935, n.o 65, com o último volume dedicado à memória da filha da fundadora da revista, Maria Amélia Teixeira (Filha), que morre abruptamente. Entendemos que foi tal fato trágico o motivo do seu encerramento. 25 Em junho de 1930, n.o 5. 26 Datado de julho de 1930, n.o 6. 27 “Noite de chuva”, “Nós dois” e “Nostalgia”, publicadas com uma foto da poetisa que dedica ao Portugal Feminino, em maio de 1930, no n.o 4. “O meu condão”, em agosto de 1930, n.o 7; “Vão orgulho”, em outubro de 1930, n.o 9; “Crucificada”, em novembro de 1930, n.o 10. Saíram póstumos: “Nostalgia” (com letra de Júlia Oceano), “Sou eu”, “A um moribundo” e uma breve homenagem de Guido Battelli em janeiro de 1931, no n.o 12. Ainda saíram “Versos de Orgulho”, com música da Condessa de Proença-a-Velha, em janeiro de 1932, n.o 24. Em 19 de fevereiro de 1928 é publicada uma carta inédita de Florbela a José Amaro Emídio.

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José Emílio de Amaro que tinha alterado o soneto “Charneca em Flor” por isso o poema teria sido “um bocado mal tratado”28 . Destacamos também a interessante observação que Beatriz Weigert faz ao notar uma certa simbologia no percurso de publicação desses textos em Portugal Feminino: Florbela Espanca publica seus textos em sete números da revista Portugal Feminino. Aparentemente nove títulos, pois em Maio saem três sonetos. Contudo, se observarmos bem, veremos que o conto do mês de Março se escreve à margem de um soneto e por causa do soneto se perfaz o décimo texto. Esse apontamento vai marcado de números simbólicos: o sete da criação do mundo, conclusão do Cosmos. O nove da gestação, conclusão do ser humano. O dez da totalidade, completude de conjunto: leis do Senhor: decálogo.29

Podemos concluir que a intenção da autora com as publicações em 1916 em Modas & Bordados serviu para ela revelar ao público suas produções poéticas e ver como seriam recebidas, principalmente pelo público feminino. A partir do momento em que vieram críticas positivas, a escritora cada vez mais se aventura no mundo da poesia, publicando vários textos. Também podemos considerar que, apesar de não ter sido uma feminista, mesmo participando de um periódico como Portugal Feminino, a poetisa ajudou à quebra de certos paradigmas perante uma inquietação crítica. Por isso, Óscar Lopes e António José Saraiva, na História da Literatura Portuguesa, dizem que Florbela tenta romper “pateticamente com a imensa frustração feminina das nossas opressivas tradições patriarcais”30 . 28

Obras Completas de Florbela Espanca, Vol. VI, Cartas (1923-1930), recolha, leitura e notas por Rui Guedes, Lisboa, Dom Quixote, 1986, p. 89. 29 “Os textos de Florbela em Portugal Feminino: Derradeiras Publicações em Vida da Escritora”, in A Planície e o Abismo (Actas do Congresso sobre Florbela Espanca realizado na Universidade de Évora, de 7 a 9 de dezembro de 1994), Évora, Vega, 1997, p. 180. 30 António José Saraiva e Óscar Lopes, “Florbela Espanca”, in António José Sa-

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Anexo:

raiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, 17.a ed., Porto, Porto Editora, 2001, p. 967.

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Bibliografia DAL FARRA, Maria Lúcia, “Estudo introdutório, estabelecimento do texto e notas – A pré-história da poética de Florbela Espanca [1915-1917]”, in Florbela Espanca, Florbela Espanca Trocando Olhares (Biblioteca de autores portugueses), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994, pp. 9-141. I DEM, “Estudo introdutório, apresentações, organização e notas”, in Florbela Espanca, Afinado Desconcerto (contos, cartas, diário), São Paulo, Iluminuras, 2002. E SPANCA, Florbela, “Espólio Florbela Espanca”, Biblioteca Nacional de Lisboa, Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea, Lisboa, cop. 2003, disponível em http://purl.pt/272, acesso em 7 de maio de 2007. I DEM, Obras Completas de Florbela Espanca, Vol. V, Cartas (1906-1922), recolha, leitura e notas por Rui Guedes, Lisboa, Dom Quixote, 1986. I DEM, Obras Completas de Florbela Espanca, Vol. VI, Cartas (1923-1930), recolha, leitura e notas por Rui Guedes, Lisboa, Dom Quixote, 1986. I DEM, “Rosas”, in Modas & Bordados, n.o 236, Lisboa, 16 de agosto de 1916.


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I DEM, “O teu olhar”, in Modas & Bordados, n.o 237, Lisboa, 23 de agosto de 1916. I DEM, “Junquilhos”, in Modas & Bordados, n.o 248, Lisboa, 8 de novembro de 1916. I DEM, “À margem dum soneto”, in Portugal Feminino, n.o 2, Lisboa, março de 1930, pp. 21-22. I DEM, “Noite de chuva”, in Portugal Feminino, n.o 4, Lisboa, maio de 1930, p. 7. I DEM, “Nós dois”, in Portugal Feminino, n.o 4, Lisboa, maio de 1930, p. 7. I DEM, “Nostalgia” (com foto e dedicatória ao Portugal Feminino), in Portugal Feminino, n.o 4, Lisboa, maio de 1930, p. 7. I DEM, “Carta da herdade”, in Portugal Feminino, n.o 5, Lisboa, junho de 1930, p. 8. I DEM, “Os mortos não voltam”, in Portugal Feminino, n.o 6, Lisboa, julho de 1930, pp. 19-22. I DEM, “O meu condão”, in Portugal Feminino, n.o 7, Lisboa, agosto de 1930, p. 2. I DEM, “Vão orgulho”, in Portugal Feminino, n.o 9, Lisboa, outubro de 1930, p. 2. I DEM, “Crucificada”, in Portugal Feminino, n.o 10, Lisboa, novembro de 1930, p. 2. I DEM (com música de Júlia Oceano Pereira), “Nostalgia”, in Portugal Feminino, n.o 12, Lisboa, janeiro de 1931, p. 14.

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Fabio Mario Silva

I DEM, “Sou eu”, in Portugal Feminino, n.o 12, Lisboa, janeiro de 1931, p. 19. I DEM, “A um moribundo”, in Portugal Feminino, n.o 12, Lisboa, janeiro de 1931, p. 19. I DEM, “Versos de orgulho” (com música da Condessa de Proença-a-Velha), in Portugal Feminino, n.o 24, Lisboa, janeiro de 1932, pp. 16-17. I DEM, “Uma carta inédita de Florbela Espanca a José Emídio Amaro”, in Portugal Feminino, n.o 24, Lisboa, janeiro de 1932, p. 19. M ATIAS, Liliana Maria Rodrigues Queirós, Poesia, Errância e Mito em Florbela Espanca, dissertação de Mestrado, Porto, Universidade do Porto, 1998. S ARAIVA, António José; L OPES, Óscar, “Florbela Espanca”, in António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, 17.a ed., Porto, Porto Editora, 2001, p. 967. “Uma Festa no Portugal Feminino” (foto de Florbela com as colaboradoras do periódico), in Portugal Feminino, n.o 8, setembro de 1930, pp. 14-15. S ILVA, Fabio Mario da, Da metacrítica à psicanálise: a angústia do “eu” lírico na poesia de Florbela Espanca, João Pessoa, Editora Ideia, 2009. W EIGERT, Beatriz, “Os textos de Florbela em Portugal Feminino: Derradeiras Publicações em Vida da Escritora”, in A Planície e o Abismo (Actas do Congresso sobre Florbela Espanca realizado na Universidade de Évora, de 7 a 9 de dezembro de 1994), Évora, Vega, 1997, pp. 177-181.

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As “Senhoras” do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro Nathália Macedo1 Cláudia Costa Pereira2 Solange Cardoso3

O Projeto Senhoras do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro reflete uma iniciativa do Grupo de Investigação 6 do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL), que é coordenado pela Professora Doutora Vania Chaves, em parceria com o grupo Letras de Minas, coordenado pela Professora Doutora Constância Lima Duarte e vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais, no Brasil. O Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro nasceu em Paris, em 1850, mas foi editado apenas no ano de 1851. O Almanaque de 1854 foi o primeiro a exibir textos de autoria feminina confirmada, contudo o índice deste ano e da edição seguinte apresentavam uma lista de textos e não de autores, somente no Almanaque de 1856 surgiu um índice 1

Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 2 Universidade Federal de Minas Gerais. 3 Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


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Nathália Macedo, Cláudia Costa Pereira, Solange Cardoso

divido entre “Senhoras” e “Cavalheiros”, e isto foi mantido até a edição de 1872, momento em que o Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro passou a ser denominado Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. Neste ano, o índice apareceu dividido entre “Senhoras” e “Autores”, e esta divisão foi mantida até a última edição do Almanaque em 1932. Esta delimitação sugere de imediato uma básica questão: o que faz de um homem um “autor” e de uma mulher uma “senhora”? A distinção existia, como é sabido, porque a mulher do século XIX não deveria ter voz senão para o trato da casa e cuidado dos filhos. O sexo feminino nada mais era do que um simples instrumento. Contudo, algumas mulheres da burguesia culta e informada aproveitaram a modernidade de uma Europa mais progressista e deram início à emancipação feminina, conquistando pouco a pouco um certo espaço público como tradutoras, professoras e também como escritoras. A escrita era a ferramenta para escapar do silêncio e da invisibilidade de uma sociedade incrivelmente machista. Ao longo do século XIX, as mulheres fizeram da imprensa periódica a sua eloquência, exprimiam ideias, discutiam problemas e tentavam encontrar soluções. Escrever se tornava afirmação de uma independência sonhada e querida, a inicial utopia de liberdade da vida presa ao lar. Na primeira metade do mesmo século, várias se escondiam atrás de pseudónimos, mas na segunda metade muitas assumiam sem preconceito as suas identidades, fundando e dirigindo revistas e jornais com ideias emancipadoras relativamente à educação e ao direito de exercer uma profissão com a finalidade de uma aguardada autonomia financeira. Em 1849, A Assembleia Literária, era o primeiro jornal fundado e dirigido por uma mulher, Antónia Gertrudes Pusich, uma das senhoras do Almanaque. Nos anos seguintes, surgiram periódicos femininos que apostavam na defesa dos direitos das mulheres e na mudança da mentalidade e comportamento social da época. As mulheres do Almanaque de Lembranças estão associadas ao princípio da emancipação feminina. O projeto do Grupo de Investigação 6 do CLEPUL, As Senhoras do Almanaque de Lembranças Luso-

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As “Senhoras” do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro

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-Brasileiro parte da ideia de resgate dessas senhoras que foram além das tarefas de casa, do papel de mãe e de esposa, senhoras que ousaram escrever quando supostamente não deviam e que por isso merecem todo respeito e admiração. O objetivo deste trabalho é não deixar que as “Senhoras” do Almanaque caiam no esquecimento, para isso o estudo biobibliográfico dessas mulheres é fundamental, tal como a análise dos seus textos e a avaliação da sua representatividade frente ao universo masculino. A pesquisa que vem sendo desenvolvida pelo Grupo 6 do CLEPUL recai em 83 almanaques, ou seja, no período compreendido entre os anos de 1854 a 1932. Desse estudo, pode-se apontar alguns resultados que, como é sabido, irão sofrer alterações na medida em que a pesquisa avançar. Por hora, foram encontradas 1391 mulheres que publicaram no Almanaque de Lembranças, algumas tiveram uma produção bastante representativa. É o caso, por exemplo de Albertina de Lucena que contribuiu durante 24 anos (de 1907 a 1931) com prosa e poesia para o Almanaque ou de Maria Amália Vaz de Carvalho, que colaborou por mais de 50 anos (de 1867 a 1932), também escrevendo prosa e poesia. A investigação realizada até agora mostrou que dessas 1391 mulheres, 702 são brasileiras, oriundas de diversas partes do Brasil, 456 são portuguesas, 44 vem de África, 5 são europeias e o restante delas, ou seja, 189, aparecem sem indicação de localidade. É importante ressaltar que estes números não são definitivos. Isso porque, há uma variação muito grande em relação aos locais, se tornando difícil em alguns casos afirmar com precisão a nacionalidade e até mesmo a naturalidade da escritora. Pode-se tomar como exemplo a escritora Edith P. M. Cardoso que assina seus textos tanto de Amadora – Portugal, como de Lourenço Marques – antiga denominação de Maputo, capital de Moçambique; ou ainda o caso da escritora Edwiges de Sá Pereira com trabalhos realizados no Rio de Janeiro e em Pernambuco. Como ambas aparecem com duas referências de local, é possível trabalhar com as seguintes hipóteses: Edith P. M. Cardoso pode ser africana e ter estado por certo período em Portugal, período este em que também contribuiu com o

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Almanaque, ou pode ser uma portuguesa que esteve em África. Quanto a Edwiges de Sá Pereira, a mesma linha de raciocínio é possível de ser aplicada: a escritora pode ser pernambucana ou carioca, quiçá até mesmo baiana ou mineira. Como afirmar com precisão se essas mulheres fincavam como árvores as suas raízes num determinado lugar? Essa problemática ora exposta só poderá ser desfeita na medida em que a pesquisa avançar mais em relação ao levantamento dos dados biobibliográficos das nossas mulheres, que neste momento, encontra-se em andamento, em fase inicial. O projeto já possui um modelo de ficha biobibliográfica que será utilizada para esse efeito. Nela constará o nome completo da escritora, de acordo com a pesquisa realizada, seguido do nome da senhora no Almanaque, ou seja, como ela assinava os seus textos. Também será apresentado o seu período de produção no Almanaque; uma lista completa de seus textos no mesmo, tal como o género da sua obra; dados biográficos e as respectivas fontes para realização da pesquisa serão apresentados no último ponto. A produção literária dessas mulheres residia nos seguintes géneros: prosa, poesia e passatempos (denominados charadas, enigmas, logogrifos, metagramas, entre outros). A produção em prosa soma um total de 525 textos, já o número de poesias encontradas é bastante expressivo, 1085. No grupo de poetisas, pode-se destacar Maria Rita Colaço Chiappe, que contribuiu com seus versos em 22 edições do Almanaque (de 1854 a 1888), publicando prosa em apenas duas edições. Observa-se abaixo um excerto de uma das suas poesias, duas estrofes de Canto ao Amanhecer, publicada no Almanaque de 1854.

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Quanto aos passatempos foram publicados um total de 2271, assim distribuídos: 1311 charadas, 391 enigmas, 553 logogrifos e 16 metagramas. Levando em conta o número significativo de passatempos produzidos pelas mulheres no Almanaque de Lembranças, pode-se afirmar o seguinte: nos quatro primeiros anos (de 1854 a 1857), não foi encontrado nenhum passatempo. O primeiro foi publicado no ano de 1858, de maneira ainda muito tímida, apenas uma charada. Até 1865, eles são publicados em números menores, não passando de cinco, muitas vezes. A partir de 1868, os passatempos começam a aparecer em números mais significativos. Os metagramas no Almanaque são encontrados, por exemplo, somente nos anos de 1888. O anagrama reproduzido abaixo é de Febronia Neves:

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Nathália Macedo, Cláudia Costa Pereira, Solange Cardoso

As charadas representam maior número dentro dos passatempos, esta que se vê abaixo é de 1894 e é da autoria de Josefina B.:

Seguindo as charadas, tem-se os logogrifos, que não chegam a metade delas, mas que ultrapassam os 500, como já foi mencionado. Este logogrifo de 1918, que aqui está reproduzido é de Carmelitana de Arantes:

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Os enigmas também são numerosos, este que se segue foi publicado em 1900 e é de Etelvina Almeida.

Para os leitores que eventualmente não conseguissem decifrar os passatempos, nas edições seguintes dos Almanaques as soluções dos mesmos eram sempre divulgadas. A solução deste enigma apresentado, por exemplo, é: “Ave Maria, teu nome abençoado é de nós venerado”. Para finalizar, convém esclarecer que toda essa pesquisa está a passar por uma revisão, onde alguns textos foram incluídos e outros retirados por não possuírem de facto autoria feminina. O levantamento inicial realizado revelou alguns problemas, somente a leitura de todos os almanaques poderá eliminar qualquer dúvida que reste, pois os índices dos próprios almanaques apresentam falhas e erros, alguns textos e algumas senhoras podem não constar no índice, mas podem constar no interior do Almanaque. Esta revisão foi recentemente concluída e com o seu término os números aqui apresentados sofrerão certamente alguma modificação, mas nada que fuja de forma excessiva ao que foi mencionado.

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Perfil da presença brasileira no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro Laile Ribeiro de Abreu1 Maria Inês de Moraes Marreco2 Maria Lúcia Barbosa3

Ao iniciar a pesquisa sobre a presença das escritoras brasileiras no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro nos deparamos com um número bastante elevado de nomes, se considerarmos a época em que tais publicações foram efetuadas. Como sabemos, o referido almanaque teve início em meados do século XIX, mais precisamente em 1851, período em que as mulheres no Brasil enfrentavam enormes preconceitos e restrições tanto da Igreja, como do Estado, para abrir seu espaço de participação na sociedade e na literatura. Surpreendeu-nos a constatação de que, apesar de todas as dificuldades e do preconceito dominante, tantas escritoras espalhadas por uma grande extensão territorial, tenham conseguido fazer com que suas palavras atravessassem o oceano e alcançassem as terras portuguesas, contribuindo com seus textos nos periódicos de além-mar. 1 2 3

Universidade Federal de Minas Gerais. Universidade Federal de Minas Gerais. Universidade Federal de Minas Gerais.


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Laile R. de Abreu, M. Inês M. Marreco, M. Lúcia Barbosa

É, pois, significativo que, nesta época, apesar das dificuldades do acesso a informações culturais, e o Brasil contar com considerável número de analfabetos, em especial dentre a população feminina, tantas mulheres tenham se revelado no Almanaque. Embora nossa pesquisa encontre-se em estágio inicial, chegamos a algumas conclusões dignas de serem mencionadas: a) Na listagem que recebemos somamos, ao todo, 677 nomes de brasileiras distribuídas por regiões do país que participaram do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro; b) Desse total de 677 nomes, em 131 deles não foi mencionado o ano de publicação nem o tipo de texto que teriam levado essas mulheres a pertencer ao Almanaque, restando-nos, pois, 546; c) Dentre os 546, 47 autoras escreveram somente poesias, 26, somente prosa e 4, poesia e prosa, perfazendo um total de 77 autoras nesses dois gêneros. Donde se conclui que, se subtrairmos essas 77 autoras de poesias e prosas, teríamos 469 que se dedicaram apenas às charadas, adivinhações e quadrinhas dentre outros entretenimentos. Nossa surpresa aqui seria ao fato de encontrarmos inúmeros nomes de escritoras e jornalistas brasileiras que, apesar de já terem uma obra consistente no Brasil, tenham se limitado a enviar charadas para o Almanaque. Entretanto, segundo a professora Vania Chaves, elas eram solicitadas a enviar textos curtos. As poesias e os textos longos eram destinados à cesta de lixo; d) Vale destacar ainda que 19 delas escreveram poesias e charadas, 10, prosas e charadas e 12, prosas, poesias e charadas; e) Outro aspecto notável foi a significativa presença de mulheres das regiões Norte e Nordeste. Embora saibamos que essas regiões não tinham a conotação de regiões menos privilegiadas que têm hoje, levando em consideração serem essas áreas de menor acesso político, econômico e cultural. Somente no Estado da Bahia, por exemplo, tivemos 151 autoras, seguidas de Pernambuco, com 89; f) Da cidade do Rio de Janeiro, ou seja, onde ficava a corte, encontramos 97 nomes. Já no Estado do Rio de Janeiro, são 117 nomes,

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Perfil da presença brasileira no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro

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sendo que vinte deles espalhados pelas cidades de: Barra Mansa, Cabo Frio, Campos, Macaé, Niterói e Resende, dentre outras. Tínhamos atribuído esse número ao fato de ser o Rio de Janeiro a sede da corte. Nisso também as palavras da professora Vania foram esclarecedoras, ao se referir a um agente que enviava os textos das brasileiras para Portugal; g) A diversidade de regiões brasileiras presente no Almanaque, com certeza provocou significativas diferenças entre as contribuições das escritoras que devem ter oferecido aos leitores detalhes do seu cotidiano, de suas vivências líricas, ou de episódios burlescos, como lendas e mitos fundadores que conheciam. Para fazer uma rápida apresentação das brasileiras que contribuíram com texto para o Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, vamos destacar algumas. Como Rosa Albertina Figueiredo, do Rio de Janeiro, autora do poema “O carvalho e o vime”, em 1858, que foi a única mulher brasileira a fazer parte do Almanaque na sua primeira década de existência. Na década de 60, quatro nomes foram encontrados: 1 – Adélia Jozefina de Castro Rabello, da Bahia, em 1861, que escreveu a poesia “A aurora brasileira”; 2 – Maria de Azevedo, do Rio de Janeiro, também em 1861, que publicou o texto em prosa “A igreja da cruz no Rio de Janeiro”; 3 – Maria Emygdia, de Pernambuco, que em 1864 publicou o texto “Saudade”, em 1865 voltou ao Almanaque, com uma charada e, em 1870, com uma poesia; 4 – Maria da Glória, de Pernambuco, que colaborou com charadas em 1868. A partir de então, o número só aumentou. Na década de 70, constatamos a presença de dezesseis escritoras: quatro do Rio Grande do Sul, cinco da Bahia, três do Rio de Janeiro, duas de Pernambuco, uma de Alagoas e outra do Piauí. Dentre as mais conhecidas, estavam: Adélia Josefina de Castro Fonseca e Maria José de Castro Fonseca, da Bahia; Adelina Lopes Vieira e Narcisa Amália, do Rio de Janeiro; Ana Alexandrina Cavalcanti d’Albuquerque, de Pernambuco; Anália Vieira do

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Laile R. de Abreu, M. Inês M. Marreco, M. Lúcia Barbosa

Nascimento e Henriqueta da Cunha Galvão, de Porto Alegre e Minervina Lima, de Maceió. Dando continuidade a este panorama observamos que, na década de 1880 ocorreu um crescente número na participação feminina, que subiu de 16 para 132 nomes de mulheres. E que na década de 1890 este número subiu mais um pouco, para 156. Mas nas seguintes décadas ocorreu o inverso, registra-se uma queda no número de nomes femininos brasileiros participando da publicação. Assim, em 1900 a soma dos nomes de mulheres totalizou 145; em 1910, decresceu para 104; em 1920, para 61 nomes, até atingir apenas 17 nos últimos anos de publicação do Almanaque, isto é, de 1930 a 1932. Dentre estes últimos, alguns eram bem conhecidos do público brasileiro, mas outros, nem tanto, como Carmen Silva e Jacy Bonfim, da Bahia e Stela Maris e Maria das Dores de Paiva, de Minas Gerais. Resta-nos um questionamento: como justificar tal declínio? Poder-se-ia argumentar que, nas primeiras décadas do século XX, as escritoras brasileiras já haviam conquistado mais espaço para publicar suas obras no país, e que havia, inclusive, diversos periódicos dedicados exclusivamente à discussão e à publicação de matérias literárias de autoria feminina. Mas esta resposta ainda não satisfaz. É preciso investigar bem mais profundamente para chegarmos a alguma conclusão satisfatória. Com os dados que temos em mãos, e após realizar este ligeiro levantamento, concluímos que não será tarefa fácil, talvez nem mesmo possível, conhecer um dia a totalidade das senhoras brasileiras que publicaram no Almanaque. E por diversas razões, principalmente pela dificuldade em identificar as que assinaram seus trabalhos com pseudônimos, como: “Duas irmãs”, “Normalista”, “Sensitiva”, “Caçadora”, “Flor de Ouro” e “Violeta”, ou usando apenas prenome, como: Natércia, Hermengarda, Edith e Ivette, ou a abreviatura de seus nomes, assinalados só com iniciais, como: E. O. de Castro, C. C., ou L. S.; ou ainda as que assinaram seus trabalhos usando apelidos que

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Perfil da presença brasileira no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro

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remetem para as regiões de origem, como: “Audaz Alagoana”, “Sensitiva do Recife”, “Uma Terezinense”, “Matuta Fluminense”, entre outros. Ainda assim, mesmo diante de tantas dificuldades, vamos tentar identificar as senhoras brasileiras que romperam seus limites e lograram publicar em um importante periódico de além-mar. Elas também são página importante de nossa história, ou seja, da história intelectual da mulher brasileira.

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Do Nordeste para o além-mar: a presença feminina no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro Helga M. Lima da Costa1 Kelen Benfenatti Paiva2 Maria Imaculada Angélica Nascimento3

A presença predominante de mulheres nordestinas entre o elenco de autoras brasileiras que publicaram no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro foi para nós uma grata surpresa. E a partir dessa constatação, algumas questões se colocaram para nosso grupo como desafio. Além do desejo de conhecer quem foram essas mulheres, o que produziram em sua trajetória literária, qual a história de suas vidas, que dificuldades enfrentaram para publicar e ter seus textos reconhecidos no meio intelectual, nos deparamos com o desafio de tentar entender o motivo dessa participação nordestina que se destaca em meio ao número de brasileiras. 1 2 3

Universidade Federal de Minas Gerais. Universidade Federal de Minas Gerais/CNPq. Universidade Federal de Minas Gerais.


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Helga M. Lima da Costa, Kelen Benfenatti Paiva, M. Imaculada A. Nascimento

Vejamos os números. Dentre as 677 brasileiras, 327 são nordestinas, sendo 151 oriundas da Bahia. Tal participação talvez se deva a um fator histórico. Berço de importantes nomes da literatura brasileira, o Nordeste teve papel importante na economia do século XIX e no intercâmbio cultural com a Europa, quer pela localização geográfica de fácil acesso, quer pelo fluxo de imigrantes vindos de Portugal para as regiões nordestinas. E tal intercâmbio está plenamente exemplificado nas páginas do Almanaque. Entre os nomes de nordestinas que aí figuram, o quadro é bastante diversificado. Encontramos, por exemplo, nomes completamente desconhecidos, se consultamos os manuais de historiografia literária brasileira. Certamente, isso nos traz possibilidades de pesquisas que apontam para dois caminhos: o primeiro e mais evidente se deve à constatação de uma prática muito comum em relação aos almanaques, jornais e revistas do século XIX, a contribuição das leitoras com o envio de charadas, poemas ou textos em prosa, assinados com pseudônimos4 ou com seus próprios nomes; o segundo caminho apontado por esse mapeamento inicial se refere à possibilidade de encontrarmos entre as “Senhoras” do Almanaque, escritoras que não tiveram seus nomes registrados nos compêndios de literatura brasileira. Nossa sincera torcida é para que o segundo caminho apontado pela pesquisa nos revele nomes de autoras que, embora não tenham sido lembradas pela historiografia nacional, tenham produzido e publicado em seu tempo. Se a hipótese aqui esboçada for comprovada no andamento da pesquisa, certamente, teremos um intenso trabalho de resgate pela frente. Estamos cientes de que o tipo de investigação a que nos propomos não é tarefa fácil, mas sabemos que pode ser imensamente instigante. Além de trazer à cena literária nomes pouco (ou nada) conhecidos, será possível ainda conhecer um pouco mais as escritoras que 4

“Mulata Bahiana”, “Pastorinha”, “Uma Analfabeta”, “Uma Bahiana”, “Uma Vivandeira”, “Caçadora Cearense”, “Caçadora Bahiana” e “Anônima” são alguns dos pseudônimos utilizados pelas leitoras ao enviarem textos para o Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro.

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aí publicaram, bem como compararmos sua participação com a produção conhecida e divulgada no Brasil. Nos índices do Almanaque encontram-se nomes de mulheres que tiveram papel importante em seu tempo, e que, através da imprensa, da literatura e da educação, realizaram o “feminismo possível”, ou seja, se manifestaram – dentro das limitações de sua época e de suas crenças – em prol da participação da mulher no espaço letrado, cultural e público. Entre elas, lembramos as baianas Ana Ribeiro de Góes Bittencourt (1843-1930) e Amélia Rodrigues (1861-1926); a cearense Ana Nogueira Baptista (1870-1967); e a alagoana Rosália Sandoval (1876?-1956), para citar apenas algumas. Cada uma, à sua maneira, destacou-se no cenário cultural de sua região, e lograram se fazer ouvir – através de seus escritos – para além das fronteiras do território brasileiro. Vejamos cada uma delas, ainda que de forma sucinta.

1. Ana Ribeiro Bittencourt: enclausuramento e sacrifício feminino Romancista, contista, cronista e figura notória no meio social e cultural baiano, Ana Ribeiro Bittencourt5 participou ativamente, ao lado do marido, de reuniões e torneios literários, em Salvador. Muitas de suas poesias e crônicas foram publicadas na Gazeta de Notícias, em A verdade e no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. Neste último, colaborou com sete textos em prosa, além de poemas, charadas e logogrifos, entre os anos de 1880 e 1887. Em 1882, publicou o primeiro romance – A filha de Jephte, inspirado numa tragédia de Racine, que, por sua vez baseou-se no episódio bíblico no qual Jephte é obrigado a oferecer a própria filha em sacrifício 5 Nascida no município de Itapicuru, Bahia, em 31 de janeiro de 1843, Ana Ribeiro Bittencourt faleceu em Salvador em 21 de dezembro de 1930.

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a Deus. Com essa obra ela desenvolveu a temática do sacrifício feminino para a continuidade da ordem patriarcal que recalcava a expressão dos desejos das mulheres. Em outro romance, O anjo do perdão (1883), ela acrescenta um caráter histórico à narrativa, e constrói uma narrativa sem pieguismo ou intenção moralizante, ainda que dirigida às mulheres. Assim, Anna Ribeiro vai se inserir enquanto romancista, no nascente campo da escritura feminina, num momento em que o espaço destinado às mulheres ainda estava restrito à leitura ou ao papel de musa inspiradora. A produção de textos escritos por mulheres para mulheres, tornou-se quase uma estratégia para driblar o meio literário masculino dominante. No caso da produção ficcional de Anna Ribeiro, o foco era sempre a figura feminina, o espaço era o doméstico, com a diferença de contar com a emergência da voz feminina para além da leitura ociosa dos romances escritos pelos autores. Em sua busca identitária, outros três romances de Anna Ribeiro – Helen, Dulce e Alina e Suzana – cujos títulos são nomes de mulheres, trazem também a temática do enclausuramento feminino e as enfermidades daí advindas, fruto do falocentrismo ocidental, que ofereceu ao homem as prerrogativas identitárias enquanto que para a mulher foi dado o papel do seu outro, isto é, sua alteridade, e em relação de dependência6 . Embora suas personagens femininas lembrem representações de protótipos de mulher na cultura patriarcal, a autora, nos limites do possível para a época, dava voz, desejos e anseios às personagens. Nos artigos que publicou na imprensa – principalmente em A Paladina, O Mensageiro da Fé e A voz da Liga das Senhoras Católicas, a escritora manteve-se fiel à tradição, à Igreja e à preservação da família, assumindo um tom doutrinário e a favor de novas possibilidades da mulher na sociedade.

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Nancy Rita Vieira Fonte, A bela esquecida das letras baianas: a obra de Anna Ribeiro, Salvador, UFBA, Dissertação de Mestrado, 1998.

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Apesar de ter escrito sete romances e inúmeros contos, sua obra encontra-se hoje praticamente inédita e ainda dispersa. Como, aliás, a de tantas escritoras suas contemporâneas.

2. Amélia Rodrigues: de mulher para mulheres Professora, autora de romances, contos, crônicas, poemas e peças teatrais, Amélia Rodrigues7 inicia sua carreira literária publicando poemas em jornais de Santo Amaro, interior da Bahia, em 1879. Três anos depois, publicou, em folhetim, o romance O mameluco, seguido de A promessa (1896) e Mestra e mãe (1898) e Um casamento à moderna (1924). É de 1883 a edição de seu primeiro livro Filenila, composto por um único poema. Nos anos seguintes, continua a publicar, peças teatrais, peças sacras, livros infantis, poemas e contos, além de muitos artigos e conferências. Dividindo seu tempo entre a educação, a literatura e o jornalismo, Amélia Rodrigues, convicta de seus valores éticos e morais católicos, dedica-se à luta em favor da educação de meninas e meninos, de mulheres e de moças pobres. Em 1910, com mais duas companheiras – Maria Elisa Valente Moniz de Aragão e Maria Luiza de Souza Alves – funda a primeira revista feminina na Bahia, intitulada A Paladina, que circula até 1917. Funda, ainda, em Salvador, o periódico A voz da Liga das Senhoras Católicas, que circula de 1913 a 1920; e a revista Luz de Maria, em Niterói, em 1919. Em substancioso artigo publicado em Escritoras brasileiras do séc. XIX, Ivia Alves aponta os avanços e recuos do pensamento de Amélia Rodrigues sobre a emancipação feminina e sua crescente participação na vida pública. Pode-se dizer que a mentalidade burguesa da escritora 7

Nascida em Santo Amaro em 26 de maio de 1861, Amélia Rodrigues faleceu em Salvador, em 22 de agosto de 1926.

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e seus fundamentos católicos, que direcionavam a mulher para as tarefas do lar e a educação dos filhos, se contrapõem paradoxalmente, à sua defesa pela instrução feminina, o que, ao longo da história, vai permitir à mulher inserir-se na esfera pública.

3. Ana Nogueira Baptista: o lugar da fala De família abolicionista, órfã e criada por uma escrava, a poeta, educadora e jornalista Ana Baptista Nogueira8 fundou, em 1903, juntamente com Úrsula Garcia, Amélia Beviláque e Edwiges de Sá Pereira, também importantes poetisas, a revista O Lyrio, de grande valor para a divulgação da produção feminina da época, e defensor da educação das mulheres. Sua participação na imprensa foi expressiva, mas parte dessa produção permanece esparsa. No Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, publicou o poema “Sobre ondas”, em 1899. Sua literatura é romântica, sentimental, e são frequentes os amores infelizes, os modelos de vidas perfeitas e as crianças que se assemelham a anjos. A presença tardia da atmosfera lírica do Romantismo em sua obra, e na de tantas escritoras das últimas décadas do século XIX, deve-se, com certeza à censura que não permitia às mulheres explorar em seus escritos temas realistas e naturalistas, que então se impunham como padrão literário. A poesia foi para Ana Nogueira e também para outras mulheres o lugar da fala, no qual o sujeito se constrói, o meio pelo qual o silenciamento dá lugar à voz, à alegria do dizer, de se inserir no mundo através do seu eu lírico nos múltiplos sujeitos possíveis, driblando os preconceitos que imperavam sobre as mulheres que se atreviam enveredar pelo viés da escrita. Apesar de não ter publicado nenhum livro em 8

Ana Baptista Nogueira nasceu em Icó (Ceará), em 22 de outubro do ano de 1870 e faleceu na capital cearense no ano de 1964.

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vida, Ana Nogueira esteve presente em salões e saraus da alta burguesia nordestina, através de seus versos líricos e apaixonados.

4. Rosália Sandoval: à margem dos círculos acadêmicos Rosália Sandoval nasceu em Maceió (1876?/1956) e, apesar de sua extensa produção intelectual, que se estende por quase meio século, pouco se sabe sobre sua vida. Nas palavras de um ilustre conterrâneo, o escritor Graciliano Ramos, ela estaria fora da “panelinha acadêmica”, daí seu apagamento da história literária. Em Alagoas, a última notícia que se teve, pouco antes de sua morte, ocorrida em 1956, foi o reconhecimento de um livro com poemas de diversos escritores estrangeiros, traduzidos por ela, e intitulado Versos alheios (1930). Devido à repercussão desta obra, a escritora foi enfim incluída no Dicionário literário brasileiro. Rosália Sandoval colaborou em jornais e revistas de vários Estados brasileiros, enfrentando o público desatencioso em relação à produção feminina. Assim como outras escritoras do Nordeste, Rosália Sandoval também sofreu discriminações por parte de uma sociedade que considerava a mulher inferior, ou improdutiva intelectualmente. Entretanto, ela “não só driblou o público acadêmico ao abordar temas comuns de seu cotidiano e ao produzir livros didáticos, como também conquistou seu espaço [. . . ] de assumir-se mulher, poeta, solteira, pobre e mestiça, sobrevivendo, assim, à custa de seu trabalho [. . . ], projetando em sua escrita os conflitos que revelam seus desejos e expectativas de mulher”,

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Helga M. Lima da Costa, Kelen Benfenatti Paiva, M. Imaculada A. Nascimento

conforme afirma Luciana Fonseca Lemos, no texto “Rosália Sandoval – histórias de um resgate”9 .

Pelo breve percurso nas histórias de vida das autoras aqui mencionadas, é possível se ter uma ideia da participação dessas mulheres no cenário das letras nordestinas. Por um lado, é admirável, se nos damos conta de suas produções, e lembramos as inúmeras dificuldades que tinham que enfrentar. Por outro, é lamentável constatar, que, apesar disso, nenhuma delas é hoje conhecida, ou tem sua obra reeditada. Quanto à participação no Almanaque, algumas, como Ana Ribeiro Bittencourt e Rosália Sandoval, tiveram uma produção realmente expressiva, e condizente com a que realizavam em seu país. Mas outras, como Ana Nogueira Baptista e Amélia Rodrigues, apesar da intensa participação na imprensa e na vida social e cultural de suas regiões, tiveram uma presença pífia no Almanaque, com a publicação de apenas um único texto cada. Mas tal contradição não ocorreu apenas com estas escritoras. Temos nos surpreendido em constatar quantos nomes desconhecidos no Brasil, estiveram intensamente presentes no periódico de além-mar; como o contrário, escritoras com uma obra vasta que pouco, ou quase nada, ali publicaram. Mas muitas outras nordestinas publicaram no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, deixando registrados seus versos e suas prosas como Luísa Amélia de Queirós10 , que é considerada primeira poetisa piauiense, e cujo lirismo foi usado como instrumento de defesa da emancipação feminina; e Adélia Josefina de Castro Fonseca11 , considerada pela crítica de sua época a melhor poetisa baiana, para citar apenas mais duas. 9

Luciana Fonseca Lemos, “Rosália Sandoval” in Retratos à margem: antologia de escritores das Alagoas e Bahia (1500-1950), Alagoas, Ed. EDUFAL, 2002. 10 Luiza Amélia de Queirós Nunes Brandão nasceu em Piracuruca – PI, em 26 de dezembro de 1838 e faleceu na Paraíba, em 12 de novembro de 1898. 11 Nascida em 24 de novembro de 1827 na Bahia e falecida em 9 de dezembro de 1920, no Rio de Janeiro.

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Mas sejam elas mulheres que tiveram destaque em seu tempo, sejam autoras que não foram reconhecidas, algumas das nordestinas do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro fizeram da palavra poética, da literatura, o lugar do dizer feminino.

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Bibliografia C OELHO, Nelly Novaes, Dicionário crítico de Escritoras Brasileiras (1711-2011), São Paulo, Escrituras, 2002. F ONTES, Nancy Rita Vieira, A bela esquecida das letras baianas: a obra de Anna Ribeiro, Salvador, UFBA, Dissertação de Mestrado, 1998. F ONTES, Nancy Rita Vieira; A LVES, Ívia, “Ana Ribeiro” in Escritoras Brasileiras do Século XIX: antologia, 2.a ed., Florianópolis, Editora Mulheres, Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 2000, pp. 384-391. F ONSECA, Luciana, “Rosália Sandoval: histórias de um resgate” in Izabel Brandão (org.), Boletim do GT A Mulher na Literatura, Maceió, EDUFAL, 2000. L EMOS, Luciana Fonseca, “Rosália Sandoval” in Retratos à margem: antologia de escritoras das Alagoas e Bahia (1500-1950), Alagoas, Ed. EDUFAL, 2002. L UPINNACCI, Zahidé Muzart, Escritoras brasileiras do século XIX: antologia, 2.a ed., Florianópolis, Editora Mulheres, Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 2000.


Três escritoras especiais: Ignez Sabino, Narcisa Amália e Júlia Lopes de Almeida Iara Christina S. Barroca1 Isabella F. Pessoa2

Antes de iniciar esta pesquisa, em torno das escritoras brasileiras que publicaram no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, não o conhecíamos, nem tínhamos ideia de sua importância na consolidação da produção literária feminina de nosso país. Ao permitir o acesso das mulheres em suas páginas, o Almanaque tornou-se um espaço não apenas de formação e consolidação da leitura, mas também e principalmente da escrita, como bem demonstra a larga participação de escritoras portuguesas e estrangeiras. Dentre as centenas de nomes femininos brasileiros – aproximadamente seiscentos e cinquenta – vamos destacar neste momento apenas três, dentre as mais produtivas, que aí colaboraram ao longo de vários anos com poemas, charadas e textos em prosa. São elas: Narcisa Amália, Ignez Sabino e Júlia Lopes de Almeida.

1 2

UFV/PUCMinas. Universidade Federal de Minas Gerais.


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Iara Christina S. Barroca, Isabella F. Pessoa

1. Comecemos, pois, com Narcisa Amália. Poetisa, professora e jornalista, ela nasceu em São João da Barra, Rio de Janeiro, no dia 3 de abril de 1852, filha de um poeta e uma professora primária. Aos 14 anos casou-se com João Batista da Silveira, um artista ambulante, separando-se após 5 anos. Em 1872 publicou seu primeiro e único livro de poesias – Nebulosas – que obteve ampla repercussão nos meios literários devido à elaboração sofisticada, original e erudita. Seus poemas exaltavam o amor, a natureza, a pátria e a infância, bem de acordo com a estética romântica de seu tempo. Dentre seus últimos poemas destaca-se um, intitulado “Resignação”, de onde tiramos os seguintes versos: Hoje escalda-me os lábios riso insano, É febre o brilho ardente de meus olhos: Minha voz só retumba em ai plangente, Só juncam minha senda agros abrolhos. Mas que importa esta dor que me acabrunha, Que separa-me dos cânticos ruidosos, Se nas asas gentis da poesia Eleva-me a outros mundos mais formosos?!. . .

Em 1880, Narcisa casou-se novamente, desta vez com o proprietário de uma panificadora, e passou a residir na cidade de Resende. E, mesmo trabalhando ao lado do marido, promovia animados saraus e recebia importantes literatos em sua casa, como Raimundo Correa, Luís Murat e Alfredo Sodré. Aliás, até mesmo o imperador Dom Pedro II, em visita à cidade de Resende, fez questão de conhecer a poetisa e seu importante salão. Mas também o segundo casamento fracassou, tendo em vista as diferenças intelectuais que separavam o casal, e provavelmente os conflitos de interesses. Narcisa transfere-se então para o Rio de Janeiro, a principal cidade do Império, onde nova vida a aguardava. Lá, dedicou-

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Três escritoras especiais: Ignez Sabino, Narcisa Amália e Júlia Lopes de Almeida

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-se ao magistério e passou a colaborar intensamente na imprensa, passando a viver de seu trabalho, e sendo considerada, posteriormente, uma das primeiras mulheres no Brasil a se profissionalizar como jornalista. Em seus incontáveis artigos, ela divulgou ideias vanguardistas contra a escravidão e favoráveis ao regime republicano, enfatizando a condição subalterna imposta ao gênero feminino pela sociedade conservadora. Em sua luta a favor da mulher, em 1884, foi editora de A Gazetinha, de Resende, periódico literário voltado para o público feminino, cujo subtítulo era precisamente “folha dedicada ao belo sexo”. Acometida de uma doença que a deixou cega e paralítica, Narcisa Amália morreu em 24 de junho de 1924, aos 72 anos, deixando inúmeras poesias esparsas em jornais e revistas do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Resende, e até de Portugal. Dentre suas contribuições no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, estão os poemas: Amor de violeta (1874), Violeta morta (1888) e Saudades (1910). Narcisa Amália foi uma grande escritora brasileira e quem se dispuser a pesquisá-la vai descobrir, com surpresa, que ela está incluída nos mais importantes estudos da literatura nacional, como uma das mais expressivas e notáveis escritoras do século XIX.

2. A segunda escritora brasileira que apresentamos é Ignez Sabino, nascida em Salvador, Bahia, em 31 de dezembro de 1853, e falecida no Rio de Janeiro, em 13 de setembro de 1911. Sua trajetória literária foi rica e diversificada, pois inclui desde romances, poesias, crônicas e contos infantis, a textos memorialistas, ensaios e pesquisas histórico-literárias. Neste último gênero produziu um de seus mais importantes trabalhos: o livro Mulheres ilustres do Brasil, publicado em 1899, que reúne bibliografias de uma centena de mulheres que se destacaram na cultura brasileira. No prefácio, ela informa que seu propósito era “ressuscitar no presente as mulheres do passado, que jazem obscuras, (. . . ) tirando-as da barbárie do esquecimento”.

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Ignez Sabino deixou evidente, em sua obra, uma especial preocupação com o lugar que a mulher – principalmente a intelectual – devia ocupar na constituição da sociedade. Para ela, a mulher brasileira precisava assumir a missão de combater os erros da sociedade; ser útil à família, à pátria e à humanidade; e ser a responsável pela educação da infância e da juventude. Vale registrar que seu feminismo não era o de reivindicações políticas, mas o de uma mulher burguesa e bem comportada. Dessa forma, sua luta se inscreve no ainda incipiente movimento feminista por atribuir, à mulher intelectual, a tarefa de combater os erros da sociedade, sendo ao mesmo tempo útil à família, à pátria e à sociedade, conforme o catecismo positivista de Auguste Comte. Esse cenário, em que a mulher intelectual se ocupa de múltiplas tarefas está muito bem representado no romance Lutas do coração, de 1898. Nele, Ignez Sabino concretiza a intenção de examinar a mulher brasileira à luz de sua contribuição na formação da sociedade. Apesar de manter a visão essencialista própria de sua época – “A organização da mulher. . . e a do homem. . . , como faces distintas do espírito humano, seguem caminhos distintos” –, demonstra ousadia ao enfrentar assuntos polêmicos, tanto na ficção como na vida real. E essa faceta se revela das mais importantes em sua contribuição às letras nacionais: sua visão franca e sensível em relação às possíveis razões pelas quais certas mulheres se mostram incapazes de se enquadrarem nas normas sociais. Para nós, leitores de hoje, o que deve importar são as reflexões que ela nos legou acerca da sociedade hegemônica, que considerava, incontestavelmente, responsável pela subjugação feminina. Dentre as inúmeras obras que publicou, lembro: Rosas pálidas (poesia), 1886; Impressões (poesia), 1887; Contos e Lapidações (contos e poesia), 1891; Noites brasileiras (contos), 1897; Lutas do coração (roman-

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Três escritoras especiais: Ignez Sabino, Narcisa Amália e Júlia Lopes de Almeida

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ce), 1898; Mulheres ilustres do Brasil (biografias), 1899; Alma de artista (romance histórico); Esboços femininos; Através de meus dias (memórias).

3. Por fim, trazemos Júlia Lopes de Almeida, que nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1862, e lá faleceu em 30 de maio de 1934. Sua obra também é vasta, e abrange diversos gêneros literários, como o romance, o conto, a crônica, o ensaio, a poesia e o teatro, além de refletir as transformações históricas, econômicas e sociais ocorridas na sociedade brasileira, desde os últimos anos do Império, à Proclamação da República, até à instauração do regime Vargas. É importante realçar que essas fases correspondem, respectivamente, às três épocas distintas na vida de Júlia Lopes, que compreendem sua infância no Rio de Janeiro e a adolescência em Campinas, a mudança para São Paulo, e os anos de amadurecimento como escritora e mulher, vividos no Rio de Janeiro e na Europa. De acordo com o estudo de Peggy Sharpe, o trabalho de Júlia Lopes de Almeida conseguiu ultrapassar as fronteiras nacionais, chegando a ser conhecido em países da América do Sul, como Argentina e Uruguai, e na Europa, especialmente em Portugal e França. A relevância da obra de Júlia Lopes, dentre outros fatores, deve-se também por ter sido considerada a “primeira escritora do país”, nas palavras da literata portuguesa Guiomar Torresão, em artigo publicado na revista A Mensageira, de 1899. Se consideramos que, naquele momento, ainda eram raras as escritoras que se assumiam como tal, e que o máximo da expectativa da educação feminina era formar leitoras, o fato de ser reconhecida como importante escritora de seu país representou prestígio para Júlia Lopes, tornando-a uma figura pública, cuja pena era disputada pelos principais jornais do Rio de Janeiro. D. Júlia, como era carinhosamente chamada pela sociedade carioca da época, foi também considerada a “primeira dama” da belle époque brasileira.

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Iara Christina S. Barroca, Isabella F. Pessoa

Como outras de sua geração, soube responder criativamente à resistência que encontrava, por parte de alguns colegas, no exercício do jornalismo, escrevendo textos que privilegiavam assuntos voltados para o público feminino, mas que não deixavam de tratar, também, de temas polêmicos, como a abolição da escravidão, o acesso das mulheres à educação, e o exercício simultâneo dos papéis de escritora, intelectual, mãe e esposa. Júlia Lopes de Almeida se apossou do ideal da mulher inteligente e de sucesso do século XX: em 1922, participou da Comissão de Relações Internacionais e Paz do I Congresso Internacional Feminista promovida pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Em julho de 1931, quando essa mesma Federação promoveu o II Congresso Internacional Feminista, no Rio de Janeiro, e as mulheres se organizavam para obter o direito do voto, o discurso de abertura da solenidade coube a ela – a mulher de maior prestígio no meio cultural, em todo o país. O sucesso da obra de Júlia Lopes de Almeida teve o efeito de minimizar as tensões vivenciadas por ela, como mulher e como escritora, numa sociedade que ainda via com desconfiança a ousadia das que ultrapassavam os limites da esfera doméstica e privada. Para ela, “a educação adequada às mulheres estaria ligada ao bem estar social da família, e, por extensão, à bem sucedida consolidação dos ideais republicanos. A desarmonia do lar era vista como resultado das várias restrições impostas pela sociedade às mulheres que, por sua vez, eram expostas somente ao seu limitado mundo doméstico e barradas no mercado de trabalho”3 . Por essa razão, Júlia acreditava que uma educação feminina adequada resultaria em lares harmoniosos e em práticas maternais mais saudáveis. Percebia, assim, que a emancipação da mulher fortaleceria não só a família, mas salvaguardaria as futuras leis do Código Civil.

3

Peggy Sharpe, “Júlia Lopes de Almeida” in Zahidé Lupinacci Muzart (org.), Escritoras brasileiras do século XIX, Florianópolis, Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 2004, vol. 2, p. 204.

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A obra de Júlia Lopes de Almeida foi, portanto, um marco na história da Literatura Brasileira de autoria feminina, que ousou transgredir e discutir as limitações dos marginalizados e suas representações no imaginário social da última metade do século XIX e início do século XX. A leitura das múltiplas vozes femininas de sua obra nos permite ter acesso a uma reflexão atenta sobre o papel da mulher enquanto sujeito de seu próprio percurso, e ao que tem sido historicamente denominado como “o feminino”. Dentre suas obras, lembro alguns títulos: Memórias de Marta, 1889; A família Medeiros, 1892; A viúva Simões, 1897; A falência, 1901; A intrusa, 1908 (romances); Ânsia eterna, 1903; Histórias da nossa terra, 1907 (contos); Quem não perdoa, Doidos de amor, e Nos jardins de Saul (peças teatrais, de 1917). E ainda os livros de crônicas: Livro das noivas, 1896; e Livro das donas e donzelas, 1906, entre outros, muitos outros.

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Bibliografia B ORGES, Célia, Resende Histórica II – Narcisa Amália, pioneira no jornalismo e na poesia disponível em <http://www.amulhernaliteratura .ufsc.br/catalogo/narcisa_vida.html>, acesso em 2 de junho de 2011. C OELHO, Nelly Novaes, Dicionário crítico de escritoras brasileiras, Rio de Janeiro, Escrituras, 2002. L AJOLO, Marisa; Z ILBERMAN, Regina, A formação da leitura no Brasil, São Paulo, Ática, 1996. M UZART, Zahidé Lupinacci (org.), Escritoras brasileiras do século XIX: antologia, Florianópolis, Editora Mulheres, Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 2004, 2 vols.. PAIXÃO, Sylvia, Narcisa Amália de Campos, disponível em <http://m inhaaldeiaglobal.blogspot.com/2008/03/resende-histrica-ii-narcisa-am lia.html>, acesso em 2 de junho de 2011. S HARPE, Peggy, “Júlia Lopes de Almeida” in Zahidé Lupinacci Muzart (org.), Escritoras brasileiras do século XIX, Florianópolis, Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 2004, vol. 2, pp. 188-238.


Josefina Álvares de Azevedo: uma jornalista polêmica Aline Alves Arruda1 Cristiane F. R. de Araújo Côrtes2

A biografia da jornalista e dramaturga Josefina Álvares de Azevedo nos chama a atenção já pela presença do sobrenome, o mesmo do importante poeta do Romantismo brasileiro, seu primo. Nascida em Recife, em 1851, a escritora tem vasta produção, embora seus dados biográficos como a data e o local de morte, além de como e com quem viveu, ainda sejam desconhecidos. Contudo, o parentesco com o poeta deixa de ser um chamariz quando nos aprofundamos na escrita de Azevedo. A escritora tem uma ampla produção, inclusive na diversidade de gêneros: poemas, dramas, artigos jornalísticos, contos, traduções. Além do mais, o engajamento e militância engendrada eram aspectos presentes em toda a sua obra. A escritora viveu em Recife até 1877, quando foi para São Paulo e fundou o jornal A Família, transferido para Rio de Janeiro pouco depois e publicado até 1897. O jornal tem um papel fundamental na história 1 2

UFMG/IFSULDEMINAS. CEFET/MG.


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Aline Alves Arruda, Cristiane F. R. de Araújo Côrtes

da luta pelos direitos das mulheres, desde o incentivo à produção intelectual até as discussões sobre o sufrágio ou acerca da ascensão das mulheres na sociedade. A primeira fase de A Família teve um caráter mais didático, pois objetivava facilitar às mães de família uma literatura que as iniciasse nos deveres domésticos. Já no Rio de Janeiro, após a Proclamação da República, o jornal passa a advogar pela causa da emancipação da mulher. Interessante ressaltar que A Família foi, dos jornais femininos, o que teve maior duração (1881-1897) e também o que registrou o maior número de colaboradoras escritoras. Seus temas feministas abrangeram o “direito de voto” e o de terem profissões até então exclusivamente masculinas, como médico, professor e advogado. A Família contava com a colaboração de várias intelectuais brasileiras, a ressaltar, Júlia Lopes de Almeida, que escrevia também no Almanaque. Essas escritoras acreditavam que somente com o acesso à educação completa é que a mulher poderia mudar sua condição diante da sociedade, inclusive fora do lar. Tal discussão comunga com os ideais levantados por Virgínia Woolf na Inglaterra dos anos 30, século XX, publicados em Um teto todo seu, reunião dos textos lidos por ela para a Sociedade das Artes, numa conferência em 1928. A autora também acreditava que ter “um teto todo seu” influencia diretamente na produção artística das mulheres, pois permite que a escritora construa uma obra que passe a discutir as condições de vida das mulheres e suas reais possibilidades como artistas numa sociedade notadamente patriarcal e desigual. A postura de vanguarda de Azevedo se evidencia a partir do momento em que vamos compreendendo seu engajamento. Para ela a educação sólida e desenvolvida era fundamental e devia ser um direito de toda a mulher. Seu discurso apoiava a postura da mulher que podia ser digna e leal companheira do homem e tão capaz de desempenhar altas

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Josefina Álvares de Azevedo: uma jornalista polêmica

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funções do estado, como as secundárias obrigações que lhe competem na família, tal qual afirma em texto publicado no jornal A Família: Até hoje têm os homens mantido o falso e funesto princípio de nossa inferioridade. Mas nós não somos a eles inferiores porque somos suas semelhantes, embora de sexo diverso. [. . . ] Portanto, em tudo devemos competir com os homens – no governo da família, como na direção do estado [. . . ]3 .

Sua postura ativista pode ser comparada a outras grandes figuras da intelectualidade feminina brasileira como a sufragista Maria Lacerda de Moura, contemporânea de Josefina Azevedo (1887-1945) que começou a dar aulas particulares e a colaborar na imprensa operária e anarquista brasileira e internacional. Escreveu no jornal A Plebe (de São Paulo) artigos que envolviam principalmente pedagogia e educação, publicou também ensaios questionando e criticando a sociedade machista da época, como Em torno da educação (1918); A mulher moderna e o seu papel na sociedade atual (1923); Amai e não vos multipliqueis (1932). Temos ainda outro bom exemplo de jornalista brasileira engajada: a militante comunista Patrícia Rehder Galvão (1910-1962), que participou do movimento modernista brasileiro, foi casada com o escritor Oswald de Andrade e com o jornalista Geraldo Ferraz. Pagu, como ficou conhecida, escreveu romances, contos policiais e traduziu grandes autores para o teatro como James Joyce e Octavio Paz. A personalidade incisiva de Azevedo, assim com a de Moura, imputava-a a conflitos diretos com autoridades que desrespeitavam os direitos das mulheres, como em 1890, quando o Ministro dos Correios e Instrução, Benjamim Constant, vetou o acesso feminino às escolas de nível superior, ela o atacou frontalmente, recriminando a doutrina positivista que o inspirava. Sobre episódio, Josefina escreveu em A Família: O decreto do ministro dos correios e instrução fechou às senhoras brasileiras as portas das academias, desses verdadeiros tem3

Josefina Álvares de Azevedo, A Família, 12 de janeiro de 1889, p. 1.

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Aline Alves Arruda, Cristiane F. R. de Araújo Côrtes plos da ciência, em que a religião do progresso faz a crença de todos os espíritos ávidos de saber. Esse fato equivale a condenar-nos à mais completa ignorância, a retrogradarmos muito além dos tempos históricos, pois que já na antiguidade as Hipatias floresciam no Egito, as Safos e as Corinas na Grécia [. . . ]. Por uma veleidade, talvez da monarquia aniquilada, foram admitidas à matrícula nas academias, onde entretanto poucas iam ilustrar o seu espírito. [. . . ]. Triste contingência a da mulher neste país, a permanecer de pé e intacta a legislação reformada pelo tredo positivismo do governo!. . . 4 .

Com a proclamação da república A Família passa a reivindicar para as mulheres também o direito de intervir nas eleições, de eleger e ser eleitas, como os homens, em igualdade de condições. A partir desse momento, o jornal se transforma em veículo de propaganda do direito ao sufrágio feminino. Sobre esse tema polêmico, a escritora escreveria um texto teatral, O voto feminino em 1890. Segundo a pesquisadora Valéria Andrade Souto-Maior, colocando em cena um conflito criado a partir da possibilidade de efetivação legal do direito eleitoral das mulheres, Josefina trata de explicitar em O voto feminino não apenas o ridículo da resistência masculina em aceitar a participação das mulheres nas questões políticas da nação, mas também a confiança que, apesar de tudo, as mulheres podiam e deviam depositar nos congressistas, cuja reunião em Assembléia Constituinte para discutir e aprovar o novo texto constitucional do país estava anunciada para o semestre seguinte.5 4

Josefina Álvares de Azevedo, A Família, 30 de outubro de 1890, p. 1. Valéria Andrade Souto-Maior, O florete e a máscara: Josefina Álvares de Azevedo, dramaturga do século XIX, Florianópolis, Editora Mulheres, 2001, p. 74. 5

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Apesar do sucesso da comédia em relação ao uso das técnicas de dramaturgia – seus diálogos têm vivacidade, suas personagens são convincentes, seu humor é afiado e inteligente –, é forçoso admitir sua ineficácia em relação aos seus objetivos, já que as brasileiras tiveram que esperar até 1932, ou seja, quase meio século, antes de exercerem seus direitos políticos. Importa, contudo, reconhecer sua relevância como obra literária que ajudou a abrir as trilhas da dramaturgia de autoria feminina e da justiça social em nosso país.

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Bibliografia A ZEVEDO, Josefina Álvares de, A Família, 12 de janeiro de 1889. I DEM, A Família, 30 de outubro de 1890. S OUTO -M AIOR, Valéria Andrade, O florete e a máscara: Josefina Álvares de Azevedo, dramaturga do século XIX, Florianópolis, Editora Mulheres, 2001.


Presciliana Duarte de Almeida Maria de Fátima Moreira Peres1 Vera Lúcia Godói2

Dentre as importantes escritoras brasileiras registradas no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, destacamos nesse momento Presciliana Duarte de Almeida. Esta escritora nasceu em Pouso Alegre, Minas Gerais, em 3 de junho de 1867, e faleceu em São Paulo, onde residia, no dia 13 de junho de 1944, aos 77 anos. Era filha de Joaquim Roberto Duarte, tenente-coronel da Guarda Nacional, e de Rita Vilhena de Almeida. Era prima das reconhecidas escritoras Júlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira. Em 1892 casou-se com o primo Sílvio de Almeida com quem teve três filhos. Após o casamento mudou-se para São Paulo onde fundou, em 1897, uma revista identificada com o pensamento feminista e dedicada à mulher, intitulada A Mensageira, que circulou até 1900. Em 5 de outubro de 1909 participou da fundação da Academia Paulista de Letras onde ocupou a cadeira n.o 8 cuja patrona era a poetisa Bárbara Heliodora. Presciliana publicou vários livros, entre eles, Rumorejos, de 1890, com prefácio da prima Adelina Lopes Vieira; Sombras (1906), Pági1 2

PUCMinas. Universidade Federal de Minas Gerais.


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Maria de Fátima Moreira Peres, Vera Lúcia Godói

nas infantis (1.a ed., 1908; 2.a ed., 1910), O livro das aves e Vertiver (1939). E colaborou em diversos periódicos, como O Lutador, Almanaque Brasileiro Garnier, A Estação, Rua do Ouvidor, A Semana, e o Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. Publicou ainda nas revistas Educação, A Alvorada, e do Grêmio Literário do Ginásio Sílvio de Almeida, em 1909. Apesar de tantas e variadas publicações, Presciliana Duarte de Almeida tornou-se conhecida no mundo literário como poetisa infantil, ao lado de Olavo Bilac, Zalina Rolim e Francisca Júlia. Sem dúvida, alguns poemas nos revelam que Presciliana foi uma mulher excepcional, e mãe zelosa que queria uma boa educação para os filhos, um novo modelo de família, além de ser uma mulher capaz de se posicionar diante de uma sociedade machista, como um ser de elevado intelecto. Em A Mensageira, Presciliana revela sua maturidade intelectual através dos muitos artigos e poemas que publica, e por disponibilizar um precioso espaço para as mulheres e homens que comungavam dos mesmos pensamentos de igualdade entre os sexos. A Mensageira era uma revista quinzenal, que pretendia abrir os olhos das mulheres para o estado de submissão em que viviam, encorajando-as a lutar para ampliar seu espaço na sociedade. Júlia Lopes de Almeida, prima de Presciliana e uma das colaboradoras mais atuantes da revista, também sempre lutou, junto com a escritora, pelo reconhecimento e desenvolvimento intelectual das mulheres. Seu marido, Sílvio de Almeida, aplaudia a iniciativa da esposa, e reconhecia os direitos delas de ultrapassar os limites impostos pelo comportamento masculino da época. É importante lembrar que o Brasil até a metade do século XIX era um país muito atrasado e com uma economia baseada exclusivamente no trabalho escravo. Nas últimas décadas, uma parcela significativa da sociedade ainda trazia arraigada princípios e valores de comportamentos que já não estavam mais sendo compartilhados por uma expressiva faixa sócio-econômica-cultural da época. A partir deste momento, pós-Abolição e pós-Proclamação da República, o país começa a passar por

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Presciliana Duarte de Almeida

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várias transformações sociais, como a consolidação do capitalismo, o desenvolvimento econômico e tecnológico da vida urbana e o fortalecimento de ideais burgueses, que recebia forte influência européia e eram responsáveis, em grande parte, pela organização familiar, incluindo-se aí os papéis atribuídos a cada membro da sociedade. As mulheres, ainda que restritas ao desempenho de tarefas e trabalhos considerados de sua atribuição exclusiva, já despontavam como agentes de transformação social. É nesse período, também, que toma novo fôlego o movimento feminista brasileiro. Na edição de número 33 de 1899, Presciliana publicava, nas páginas de A Mensageira, o artigo intitulado “O Feminismo”, e assinado por Anacleto Pacifico: O Diário Popular acaba de assentar praça nas fileiras do feminismo; e por esse arrojo, não regateamos applausos à ponderada folha vespertina. O caso da Dra. Myrthes da Campos trouxe para o terreno dos factos a questão abstracta dos direitos da mulher. E o Dr. Veveires de Castro mostrou-se, mais uma vez, coherente consigo mesmo. Abrir também ao bello sexo a funcção da advocacia constitúe um simples corollario da liberdade profissional, que a constituição da Republica sabiamente consagrou. Nem seria congruente que as nossa patrícias podessem, como podem, conquistar nas academias um diploma scientifico e ficassem, ao mesmo tempo, privadas da efficacia desse diploma, tão duramente conquistado. Com que fundamento vedaríamos à mulher o campo da actividade honesta, si a nossa péssima organização social não a póde muitas vezes salvar dos horrores da miséria ou das especulações do vício? A este respeito, o Dr. Garcia Redondo tem publicado no rodapé do Diário Popular uma serie de brilhantíssimos artigos. Como estudo completo do feminismo, é o primeiro trabalho literário que até hoje conhecemos na língua portuguesa. O mais que temos lido só se encontra na Revista Encyclopedica Larrousse, muito pouco vulgarisada em nosso meio.

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Maria de Fátima Moreira Peres, Vera Lúcia Godói Apenas um defeito notamos nos escriptos do Dr. Garcia Redondo – que elle escolhesse para orgam das suas bellas theorias a bocca envenenada de uma mundana, quando podia pôr aquillo mesmo nos lábios respeitáveis de uma boa mãe de família, ou de um typo de virtudes. A doutrina, sendo a mesma, torna-se-ia mais sympathica. (Da Carta de S. Paulo para a cidade de Campinas)

Presciliana mostrou, através de sua revista, a todo Brasil e até para intelectuais de outros países, do que as mulheres eram capazes. Belos poemas, crônicas, artigos e cartas que indicavam um movimento em direção a grandes mudanças no cenário cultural e social não só do Brasil, como de várias partes do mundo. Em “Pequenas Notas”, na edição 35, Presciliana destaca: A literatura feminista na exposição de 1900. “É com desvanecimento que registramos o honroso pedido que nos dirigiu de Amsterdam a illustre Doutora Aletta H. Jacobs solicitando a colleção da Mensageira para figurar na exposição de Paris em 1900”. Na edição de número 32, a editora publica outras notas muito significativas do reposicionamento da mulher na nova sociedade. Uma de Nova York, intitulada “Administração de mulheres”, onde se lia o seguinte: De alta significação é a seguinte noticia, extrahida de uma correspondência de Nova York: “O povo da cidade de Beattie, no Kanser Septentrional, enjoado com a corrupção de sua administração municipal, não quis mais eleger homens para Ella. A Sra. Totton, esposa de um rico negociante do logar, foi eleita Maire. O Secretário da Prefeitura e a maioria dos membros de Conselho Municipal pertencem também ao bello sexo. Todo o pessoal administrativo foi mudado e substituído em grande parte por mulheres.

No último editorial escrito em 15 de janeiro de 1900, a escritora de Pouso Alegre comemorava o “grande triumpho no terreno de suas irrefragáveis reinvidicações com o acto do Supremo Tribunal Federal, www.clepul.eu


Presciliana Duarte de Almeida

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reconhecendo o direito das senhoras exercerem a advocacia”. Presciliana manteve o compromisso, durante o tempo de existência de sua revista, de incentivar e elevar a condição da mulher brasileira, fazendo chegar até elas informações de todas as partes do mundo de suas conquistas. Além de excelente editora e jornalista, Presciliana não deixou de lado seu talento enquanto escritora e poeta. Em inspirados poemas, revelou o sofrimento com a perda de um filho, sentimentos de amor, e mesmo a transformação de uma condição social por um grande amor. Publicando em livros, jornais ou revistas, esta escritora foi um exemplo de mulher moderna para sua época.

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Bibliografia A LMEIDA, Presciliana Duarte de, De noite, disponível em http://www. blocosonline.com.br/literatura/arquivos.php?codigo=p00/p000288.htm &tipo=poesia, acesso em 6 de outubro de 2006. I DEM, Sombras (1890-1906), São Paulo, Typographia Brazil, Rothschild & Co., 1906. C OELHO, Nelly Novaes, A Emancipação da Mulher e a Imprensa Feminina (séc. XIX – séc. XX), disponível em http://kplus.cosmo.com.br, acesso em 7 de outubro de 2006. C OSTA, Suely Gomes, Movimentos feministas, feminismos, disponível em http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/10221, acesso em 7 de dezembro de 2006. Enciclopédia Literatura Brasileira, “Presciliana de Almeida”, disponível em http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_lit/in dex.cfm?fuseaction=biografias_texto&cd_verbete=5322&cd_item=35 acesso em 6 de outubro de 2006. K AMITA, Rosana Cássia, “Revista ‘A Mensageira’: alvorecer de uma nova era?”, Revista Estudos Feministas, Vol. 12, Florianópolis, setembro/dezembro de 2004, disponível em http://www.scielo.br/scielo.php? pid=S0104-026X2004000300018&script=sci_arttext, acesso em 6 de dezembro de 2006. REVISTA A MENSAGEIRA, Edição fac-similar, IMESP/DAESP, 1987. vols. 1 e 2.

São Paulo,


Mini-Currículos Aline Alves Arruda Doutoranda em Literatura Brasileira pela UFMG, Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG, e Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais, Campus Inconfidentes. É membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade (NEIA). Tem experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: memória, literatura feminina e literatura afro-brasileira. Email: alinearruda10@bol.com.br

Ana Paula Bernardo Mestre em Estudos Românicos, na variante de Estudos Brasileiros e Africanos. Investigadora do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL), da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, do Grupo de Investigação 2 – Literaturas e Culturas Africanas de Língua Portuguesa. Tem trabalhos publicados no âmbito das Literaturas Brasileira e Africanas de Língua Portuguesa. Membro da equipa do projeto Literatura e Pedagogia, desenvolve também, atualmente, um projeto de investigação sobre a poetisa angolana Alda Lara.


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Laura Areias; Luís da Cunha Pinheiro (coord.)

Anna Faedrich Martins Doutoranda em Letras – Teoria da Literatura, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, bolsista do CNPq. É Mestre pela mesma instituição e sua Dissertação de Mestrado trata da autora carioca Albertina Bertha, seu romance de introspecção intitulado Exaltação (1916) e o seu apagamento das Histórias de Literatura Brasileira. Atualmente, pesquisa sobre o conceito teórico de autoficção e participa do grupo de pesquisa “Escritas do Eu: perfis e consolidação do romance de introspecção no Brasil”, coordenado pela Prof.a Dr.a Ana Maria Lisboa de Mello (PUCRS).

Cláudia Gomes Dias Costa Pereira Pós-doutora em Letras pela Universidade de Lisboa; Doutora e Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais e Especialista em História Social da Linguagem pela Universidade Federal de Ouro Preto. Possui experiência docente nas Universidades Federal de Ouro Preto (como substituta) e UNIPAC Mariana; no IFET Ouro Preto e em várias escolas de Ensino Médio e Fundamental. Integrou as equipes pedagógicas da Secretaria de Educação de Ouro Preto e do Museu da Inconfidência, na mesma cidade, além de ter participado da elaboração e implementação de diversos projetos e eventos relacionados à Literatura, Leitura, Educação e Cultura em geral. Pesquisadora constante das áreas de Língua Portuguesa, manuscritos, acervos literários e textos de autoria feminina, é Investigadora integrada aos grupos Letras de Minas (UFMG) e CLEPUL, GI6 (Universidade de Lisboa).

Constância Lima Duarte Graduação em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1973), Mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), e Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo

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(1991). É professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Atua principalmente nos seguintes temas: literatura de autoria feminina, crítica literária feminista e história da mulher. Email: constancia@ufmg.br

Cristiane Felipe Ribeiro de Araujo Côrtes Graduada em Letras, Especialista em Educação e Africanidades pelo CEAD, da Universidade de Brasília, Pesquisadora de literatura feminina e afro-brasileira do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade da UFMG; mestre em Teoria da Literatura pela UFMG, e professora de Língua Portuguesa e Literatura do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, CEFET MG. Email: crisletrascortes@yahoo.com.br

Fabio Mario da Silva Doutorando em Literatura pela Universidade de Évora e bolseiro da FCT. É Membro colaborador do CEL (Centro de Estudos em Letras da Universidade de Évora). Também faz parte, como membro integrado, do CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Já lecionou, na Universidade de Varsóvia (Polónia), como Professor Convidado, as disciplinas de Literatura Brasileira, Portuguesa e Africana em Língua Portuguesa. Atualmente dirige, em conjunto com a Professora Cláudia Pazos Alonso, a edição anotada das Obras Completas de Florbela Espanca pela Editora Estampa. Tem publicado a obra Da metacrítica à psicanálise: a angústia do “eu” lírico na poesia de Florbela Espanca, João Pessoa, Ideia, 2009. Email: famamario@gmail.com

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Laura Areias; Luís da Cunha Pinheiro (coord.)

Helga Maria Lima da Costa Graduada em Letras pela Universidade do Estado de Minas Gerais (2002). Pós-graduada em Língua Inglesa e Inspeção Escolar. Atua como Diretora da Escola Estadual Presidente Juscelino Kubistchek de Oliveira, e ainda como Coordenadora dos projetos Acelerar para vencer, Escola de Tempo Integral e do Projeto Memória, Escola e Comunidade. É pesquisadora voluntária da Fale/UFMG. Email: helgamlc@hotmail.com

Iara Christina Silva Barroca Professora Assistente II do Magistério Superior da Universidade Federal de Viçosa – UFV, atuando nas áreas de Língua Portuguesa e Língua Inglesa. É doutoranda na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC MINAS, com pesquisa sobre a obra de Lya Luft. É membro de grupos de pesquisa na UFMG, e também na PUC MINAS. Email: iarabarroca@uol.com.br

Isabella Fernandes Pessoa Bacharel e licenciada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, especialista em Revisão de Textos pelo Programa de Pós-Graduação Lato Sensu da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professora de Língua Portuguesa do ensino fundamental e intérprete de italiano/português. Atualmente pesquisa a questão da autobiografia e da escrita como fuga na obra da escritora portuguesa Florbela Espanca e desenvolve pesquisas em arquivos mineiros de escritoras mineiras. Email: divahera@gmail.com

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Kelen Benfenatti Paiva Graduada em Letras, licenciatura Português/Espanhol (2003), mestre em Literatura Brasileira (2006) e doutoranda em Estudos Literários, com bolsa do CNPq, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente desenvolve pesquisa sobre os arquivos literários, a epistolografia e a obra de Henriqueta Lisboa, e literatura de autoria feminina. Email: benfenatti@bol.com.br

Laile Ribeiro de Abreu Graduada pelo Instituto Superior de Ensino e Pesquisa – INESP, Especialista em Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Patrocínio, e Mestre em Letras/Literatura Brasileira pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, da UFMG. É professora de Português e Literatura Brasileira na rede pública de ensino de Minas Gerais e na rede particular em parceria com a Rede Pitágoras de Ensino. Email: laileabreu@netsite.com.br

Maria de Fátima Moreira Peres Jornalista formada pela Universidade Federal de Minas Gerais; e atualmente mestranda em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUCMinas. É editora do jornal MULHERES EM LETRAS e redatora/jornalista da revista Gôndola, da Associação Mineira de Supermercados. Email: fatima.peres@gmail.com

Maria Imaculada Angélica Nascimento Graduada em Letras com Licenciatura em Português (2002) e Espanhol (2004), pela Universidade Federal de Minas Gerais; Mestrado em Estudos www.lusosofia.net


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Laura Areias; Luís da Cunha Pinheiro (coord.)

Literários (2007), atuando principalmente nos temas: literatura e memória. É doutoranda em Literatura Comparada, pela UFMG, com pesquisas na área da tradução de poesia. É professora de português para o ensino médio, técnico e superior. Email: imaculada.a@gmail.com

Maria Inês de Moraes Marreco Graduação em Letras Português/Inglês pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, (2001), especialização em Inglês (2003), e Mestrado em Literaturas de Língua Portuguesa (2005) pela mesma instituição. Atualmente é doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, e doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais. É membro da Academia Feminina de Letras, Cadeira n.o 16; e membro da Arcádia de Minas Gerais, Cadeira n.o 23. Email: mimarreco@yahoo.com.br

Maria Lúcia Barbosa Graduação em Letras pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (2005), especialização em Literaturas de Língua Portuguesa pelo Programa de Pós-Graduação Lato Sensu da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2009), e mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (2010). É professora de Língua Portuguesa e Literatura em escola da rede Estadual de Belo Horizonte – MG. Email: luciabarbosa02@hotmail.com

Vanda Anastácio Vanda Anastácio é Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É membro integrado do Centro de Estudos Clássicos da

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Universidade de Lisboa e colabora regularmente com outros Centros de Investigação em Portugal e no Brasil. Integra a equipe que prepara a edição crítica da correspondência e da obra da Marquesa de Alorna com o apoio da Fundação das Casas de Fronteira e de Alorna. Realizou edições críticas de autores portugueses dos séculos XVI a XVIII. Entre as obras que publicou contam-se Visões de Glória (Uma introdução à Poesia de Pêro de Andrade Caminha), 2 vols. (1998), a edição e estudo de uma obra do Cavaleiro de Oliveira (Viagem à Ilha do Amor, 2001), as Obras de Francisco Joaquim Bingre, em 6 vols. (2000-2005) o Teatro Completo de Camões (2005), a edição da correspondência trocada entre a Marquesa de Alorna e a Condessa do Vimieiro durante o período em que aquela esteve encerrada no mosteiro de Chelas (Cartas de Lília e Tirse (1771-1777) (2007). Em 2008 publicou no Brasil Os Sonetos da Marquesa de Alorna e, em 2009 em Portugal, a colectânea de ensaios A Marquesa de Alorna (1750-1839) Estudos.

Vania Chaves Vania Chaves é licenciada em Português-Literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1969. Na Universidade de Lisboa, fez o Mestrado e o Doutoramento, centrados na obra poética de José Basílio da Gama. Esses estudos foram publicados pela editora da UNICAMP, com os seguintes títulos: O Uraguai e a Fundação da Literatura Brasileira (1997) e O Despertar do Gênio Brasileiro (2000). O ensino de disciplinas que abarcam o amplo espectro da Literatura e da Cultura Brasileiras não lhe permitiu fixar-se num autor, período ou aspeto em particular, o que se evidencia no conjunto de suas publicações e comunicações, sobre matérias diversificadas. Atualmente coordena o Grupo de Investigação 6 do CLEPUL (Brasil-Portugal. Cultura, Literatura e Memória), onde trabalha em parceria com investigadores de várias Universidades brasileiras. Desde 2008, partilha com a Professora Doutora Maria Eunice Moreira a edição da revista Navegações (Porto Alegre, PUCRS).

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Laura Areias; Luís da Cunha Pinheiro (coord.)

Vera Godói Graduada em Comunicação Social pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Belo Horizonte (1978). Repórter fotográfica e professora de fotojornalismo do curso de Comunicação Social, desde 1978. Fez várias viagens internacionais, como a Cuba, Índia e Antártica, que resultaram em exposições de fotografia. Tem trabalhos publicados em jornais e revistas especializadas como free lancer na área de fotojornalismo e publicidade. Atualmente, trabalha em projetos autorais e pesquisa os temas “Manipulação de Imagens e Direito Autoral nas Imagens” como membro da APIJOR e do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais. Email: veragodoybr@yahoo.com.br

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Laura Areias é licenciada em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pós-graduada em Pedagogia Int. e Estudos de Desenvolvimento pela Universidade de Copenhaga, e Doutorada em Português pela Tulane University of Louisiana. Iniciou a sua atividade docente em 1973, no Liceu Normal de Pedro Nunes, em Lisboa; entre 1984 e 2000 foi leitora de Português em Budapeste, na Universidade Eotvos Lórand, na Universidade de Copenhaga, na Tulane University of Louisiana em New Orleans; foi consultora para o ensino básico e secundário na diocese de Baucau, Timor Leste (2005), e visiting profesor na Universidad de Puerto Rico (2010/2011). Áreas científicas e de interesse: humor, insularidade. É autora de livros e artigos publicados nessas áreas (Ilhas riqueza, ilhas miséria – uma representação literária da insularidade num triângulo atlântico lusófono, Lisboa, Novo Imbondeiro, 2002). Tem apresentado várias comunicações na Europa, América do Norte, Central e do Sul e Nova Zelândia. É Membro Fundador da International Society for Luso-Hipanic Humor Studies (Philadelphia, 1996) e membro da Associação Internacional de Lusitanistas desde 1999. Foi organizadora da XIII Conference of the International Society for Luso-Hipanic Humor Studies (Lisboa, 2012).


Luís da Cunha Pinheiro é licenciado em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL). Investigador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CLEPUL), do qual integra a sua direção desde março de 2012, e membro colaborador do Centro de História de Além-Mar (CHAM) da FCSH-UNL. Foi técnico superior da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP), bem como responsável, em colaboração e sob a coordenação do Doutor António Frazão, pelo tratamento arquivístico e pela incorporação do fundo Ernesto Melo Antunes na Direção Geral de Arquivos, colaborou ainda na catalogação do fundo Maria de Lourdes Pintassilgo à guarda da Fundação Cuidar o Futuro e foi secretário-geral do projeto “Enciclopédia Açoriana”.


Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto “PEst-OE/ELT/UI0077/2014”



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