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ViagensQueNãoEsquecem
VARIAÇÕES SOBRE UM MESMO TEMA
ANTÓNIO F. LOBO
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O PARA-RAIOS
Alguns fenómenos, acontecimentos, rituais, crenças ou tradições têm a mesma expressão em distintos locais do nosso planeta, embora tenhamos a ideia de que essa ocorrência seja um exclusivo desta ou daquela região, deste ou daquele protagonista. Estas memórias nascem dessa ubiquidade. Tive a oportunidade, privilégio, se preferirem, de assistir a um ritual, mistura de praxe e prazer mórbido de brincar com a ingenuidade de quem é novato e em início de carreira, obediente a qualquer ordem emanado de níveis superiores da cadeia de comando. A bordo do butaneiro Cidla, em pleno Golfo da Biscaia, fazia-se, então, rumo a Roterdão, o porto de mar mais movimentado da Europa, casado com a cidade do mesmo nome: atractiva e acolhedora. Seriam, pois, atributos quanto baste para seduzir embarcadiços à sua visita não houvera a cidade dos seus sonhos, das luzes vermelhas e das montras de meninas: Amesterdão! “Le Port de Amsterdam”, de Jacques Brel. Comandante Paião, imediato Batista, radiotelegrafista Viriato, chefe de máquinas Machado, terceiro piloto Âmbar. A borrasca com surriada de mar de vaga grossa já se fazia anunciar à passagem do Cabo Finisterra, quando nos afastavamos da costa da morte, por uma depressão cavada que fazia o seu percurso para leste, teimosamente interessada em interceptar a nossa proa, ventando fortemente e agoirando forte balanço, mesmo capa, mantendo-nos acordados, compelidos a profanar o canto Gregoriano. Os dias eram ainda raquíticos e o crepúsculo da tarde estava aí. Começavam então a visualizar-se os primeiros relâmpagos e as ameaças sonoras do martelo de Thor. Viriato, rádio-operador da estirpe de um George Parker, era um tripulante avisado, experiente e de um profissionalismo sem precedentes, com afinidades para o matraquear da chave de Morse a fazer inveja ao melhor baterista de jazz. Nunca posou com cachimbo, nunca deixou medrar a barba na face magra e luzidia, nunca beberricou mais que um roubado copo de três. Este emblemático tripulante, pendurava na antepara da sua estação de comunicações, voltado para a sua posição habitual de operador radiotelegrafista, um bizarro caixilho de madeira mal alinhado, que emoldurava um enigmático retrato de uma cadeira aparentemente de madeira. Soube, após ter conquistado a sua confiança e amizade, que essa cadeira era a réplica daquela donde o ditador partira os cornos, dizia, quando dela caíra desamparadamente ao chão, atingido por redentora trombose cerebral. Com a crescente ira dos elementos da natureza, Viriato temia estragos no equipamento que impedissem o fluxo de informações à sua estação de radiocomunicações e, com isso, a perda de ajuda à navegação e salvaguarda da vida humana no mar. Pediu, em jeito de ordem, ao elo mais fraco: Âmbar, para ir colocar o para raios no mastro do navio, a meia nau. Isto porque, segundo Viriato, era uma tarefa que competia ao terceiro piloto. Âmbar, nem pestanejou, nem recalcitrou. Apenas perguntou: “que tenho que fazer”. “Vai”, disse Viriato educadamente, “à casa da máquina, com cuidado ao descer e ao subir, pede ao chefe (de máquinas) o para-raios, trá-lo para o convés, sobe ao mastro e aplica-o no topo. Ponha arnês e tenha cuidado com o balanço”. Bom, o paciente Âmbar estava agora no convés exercitando hula-hoop e impregnando o corpo e mente de adrenalina para subir ao mastro com um saco cheio de matraquilhos com a tara aproximada de 50 quilogramas. Por coincidência, o comandante apareceu na casa do leme para observar o estado do mar e as condições de navegabilidade, presenciando a atitude de Âmbar disposto a cumprir a tarefa de que tinha sido incumbido. Paião, com cara a tope mal dissimulada, perguntou o que é que o terceiro piloto fazia ali no convés com aquela ondulação. Após esfarrapadas explicações, o autor da ordem tentou desdramatizar o quadro com um sorriso maliciosamente envergonhado dizendo: “esta brincadeira não é nada comparada com os tempos das caravelas em que os tripulantes eram mandados pro caralho”, isto é, para o pequeno e penitencioso cesto da gávea. Paião perdoava tudo porque também se divertia, chamou pessoalmente Âmbar, dizendo-lhe para dar a tarefa por terminada, justificando que já não era preciso tal recurso inerente a tácticas de mau tempo, porque a meteorologia melhorava…! Âmbar, com as entranhas em crescente reboliço e eminente humidade na roupa interior, pese embora o impermeável que vestia, poupou-se à acrobacia tendo, no entanto, que devolver o para raios à casa da máquina, sem o ter aberto, e sem aparente laivo de suspeita.