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entrevista

«O desenho é um vício»

CARLOS LARANJEIRA

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Faz do cartoon e da caricatura a sua profissão, mas tem pena de não ter mais trabalhos na área da ilustração. Com uma carreira com quase 30 anos, ajudou a desenhar os Guardiões de Almada e está a trabalhar num livro sobre a Constituição Portuguesa. Carlos Laranjeira gosta de dizer que «trabalha pró boneco».

«O CARTOON TAMBÉM É JORNALISMO»

Lembra-se quando começou a desenhar? Sempre gostei de desenhar, desde pequeno. A minha mãe diz que eu passava horas e horas a pintar e a desenhar. Mais tarde, tornei-me num grande fã do Francisco Zambujal (considerado um dos melhores cartoonistas e caricaturistas portugueses). Ainda hoje tenho cadernetas com caricaturas e recortes de jornais com cartoons dele. Quando ele morreu, o jornal A Bola lançou um concurso para encontrar um novo cartoonista. Eu adorava caricaturas mas nunca tinha feito, concorri e fiquei em segundo lugar. Quem ganhou foi o cartoonista que estava no Record. Ele saiu e eu fui para o Record.

E percebeu que aquele era o caminho a seguir? Percebi que era aquilo que gostava de fazer. Eu também fazia banda desenhada, mas chateava-me muito depressa porque aquilo demorava muito tempo. O cartoon tem a vantagem… tenho um tema, desenho, a história começa e acaba ali.

O que é para si um cartoon? É uma sátira, uma crítica, só que em vez de ser escrita é desenhada. O cartoon também é jornalismo. Aliás, eu tenho a Carteira de Jornalista.

É licenciado em Design de Comunicação, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. De que forma é que o curso ajudou o autodidata? O curso trouxe-me toda a componente teórica e deu-me também conhecimentos a outros níveis. E depois, há toda a bagagem estética que se adquire na faculdade e que é sempre muito importante.

Foi cartoonista no jornal Record desde 1990 e durante 24 anos, trabalha para o Correio da Manhã e SIC Notícias (Tempo Extra). Em que temas está mais à vontade? Estou muito à vontade no desporto… já foram milhares de desenhos e cartoons. Mas durante alguns anos também fiz alguns bonecos ligados à política e ao social.

No mundo do futebol e da política, quem é que dá uns bons «bonecos»? Os presidentes dos clubes. E este ano é um exemplo disso… são muitos os jogos de bastidores e de interesses. E tudo isto somado é ótimo para o cartoon. São eles que nos dão as boas ideias para partirmos para o desenho.

E como é que acontece o processo criativo? Enquanto estive no Record tive uma página, o Bate-Fundo, onde sempre tive liberdade total para fazer o cartoon que quisesse. No Correio da Manhã faço um cartoon que acompanha uma crónica da Leonor Pinhão, ela envia-me o texto e começo a desenhar a partir daí. Para o programa

Carlos Laranjeira reconhece que a transição do papel para o computador não foi fácil mas hoje em dia as novas tecnologias facilitam o trabalho

Tempo Extra (SIC Notícias), do Rui Santos, falo sempre com ele para saber o que se vai passar no programa. No fundo, com os meus desenhos eu procuro sempre dar um contributo para enriquecer a mensagem transmitida pelos textos ou temas abordados.

«UM DESENHO AINDA VALE POR MIL PALAVRAS»

Limita-se apenas a desenhar ou também escreve os diálogos que, por vezes, surgem nos cartoons? Sou eu que escrevo mas procuro, sempre que possível, não colocar diálogos, os chamados balões. Isso foi algo que eu aprendi, e aprendi muito com o João Marcelino, enquanto ele foi diretor do Record. Apenas recorro aos balões quando a mensagem que procuro transmitir é demasiado complexa e o diálogo ajuda o leitor a compreender. Uma imagem ou um desenho ainda valem por mil palavras. Continua a desenhar à mão ou as novas tecnologias são, hoje em dia, uma grande ajuda? Apenas é necessário ter inspiração e o processo criativo, seja em papel ou no computador, é idêntico. Quando desenhava diretamente em papel e me enganava, não tinha Ctrl + Z, ou seja, não podia voltar atrás, como acontece com os programas informáticos de desenho. Normalmente, um engano implicava recorrer à borracha ou começar do zero. Hoje em dia é tudo mais rápido. Existem ferramentas fantásticas para trabalhar nesta área do desenho e que permitem desenhar com mais qualidade. E depois, quando tenho de enviar, por email, algum trabalho, não se perde nada no que diz respeito, por exemplo, às cores. Mas também é verdade que eu continuo a gostar muito de desenhar recorrendo ao papel, às tintas e aos lápis. Estar a desenhar em papel é, para mim, mais expressivo… é mais libertador.

E essa transição do papel para o computador foi fácil? Eu fui adiando, mas tive que me render às evidências. Às vezes ainda faço o esboço no

Rodrigo Francisco no ensaio da peça O Timão de Atenas, em 2012, com o ator Luís Vicente | ©Cristiano Ronaldo em caricatura, do esboço ao desenho final © Carlos Laranjeira Rui Carlos Mateus

papel, digitalizo, passo para o computador e é aí que dou a cor.

Em quase três décadas de atividade como cartoonista/ilustrador já recebeu vários prémios e distinções? Ao longo destes anos já foram vários prémios. É uma forma de sentirmos que o nosso trabalho tem qualidade. Mostra que estamos no bom caminho e que as pessoas o reconhecem. Há quem goste e há quem não goste. Há quem aceite bem a crítica e a ironia e depois há quem não aceite isso tão bem. Já tive alguns processos em tribunal, todos ligados ao futebol, por causa de cartoons. É que o futebol tem também um lado obscuro e as pessoas ligadas a este meio têm muitos telhados de vidro. São os chamados ossos do ofício. Ainda bem que há liberdade de imprensa e temos direito a transmitir a nossa opinião e crítica.

A ilustração é também uma área onde está muito à vontade? Eu gosto muito de fazer ilustração, às vezes até para fugir um bocado ao cartoon e à caricatura… fazer uma coisa diferente. Os livros que ilustrei foram um bocado uma lufada de ar fresco. Deu para aplicar outras técnicas e fazer outro tipo de desenho. Na ilustração também temos de seguir a linha do texto e eu gosto sempre de falar, antes, com o/a autor/a, para saber, por exemplo, como é que ele/a visualizou a personagem quando estava a escrever a história.

Foi também o criador de todas as personagens e ambientes da série televisiva infantil Gombby? Foi, na altura, um projeto pioneiro em Portugal. Fui eu que criei e desenvolvi, a partir de conversas com o autor da série, todas as personagens e todos os ambientes do Gombby. Os desenhos eram depois enviados para outro departamento onde passavam os meus esboços para o formato 3D.

É verdade que, durante algum tempo, as embalagens da bebida Um Bongo tinham desenhos seus? É verdade e foi muito engraçado. O criador das embalagens veio ter comigo, na altura tinha

Os Guardiões de Almada também vão estar envolvidos nas comemorações dos 40 anos da Constituição da República Portuguesa

um ateliê, juntamente com a minha esposa que é designer, e disse-me que estavam a pensar remodelar o design gráfico e queriam que eu fizesse esse trabalho. Aceitei, com grande alegria, e desenvolvi todas as personagens, num estilo de ilustração diferente. E lá ficaram elas nas embalagens de Um Bongo e em todos os materiais de promoção, durante alguns anos. É algo que marca também a minha carreira.

Em 2005, os SMAS de Almada publicaram o livro AquaventuraemAlmada, com ilustrações do Carlos Laranjeira. Como foi participar neste projeto? Foi muito giro, sobretudo porque era sobre Almada, que é a minha terra de sempre. E depois foi muito interessante saber como é que a água chega às nossas torneiras e passar isso para desenhos.

«OS GUARDIÕES DE ALMADA FORAM MUITO BEM ACEITES»

Mais recentemente, esteve envolvido na criação dos Guardiões de Almada? A Câmara Municipal de Almada (CMA) pretendia ter algumas personagens para a Pasta Escolar e a Blue Rocket Factory, empresa da qual sou sócio, apresentou uma ideia, fez-se a adaptação tendo em conta aquilo que a autarquia pretendia e surgiram os Guardiões de Almada. Foi um grande trabalho de equipa, com divisão de tarefas, consoante as capacidades de cada um. Por exemplo, eu fiquei também responsável pelo design e construção do cenário para o espetáculo de Natal da CMA. É engraçado, porque os Guardiões de Almada foram muito bem aceites pelos alunos/as e acabaram por ser mais um elo de ligação entre a autarquia, as escolas e toda a comunidade escolar. Fomos muito felizes ao criarmos estas personagens. É muito gratificante ver que os mais jovens se identificam com os Guardiões.

A Constituição da República Portuguesa celebra 40 anos, em 2016. Está, a convite da CMA, a preparar uma edição ilustrada para crianças?

Carlos Laranjeira tem vários livros de caricatura e com ilustrações suas publicados

O nosso objetivo é tornar a Constituição da República Portuguesa mais apelativa para as crianças e jovens. E é por isso que vamos utilizar o mundo dos Guardiões de Almada. Está a ser muito interessante e acho que vão gostar do trabalho final.

O cartoon é também uma forma de intervenção? Claro que sim. É uma forma de darmos a nossa opinião sobre aquilo que nos rodeia, o que vai acontecendo no dia-a-dia e sobre as decisões que vão sendo tomadas e com as quais concordamos ou não. O cartoon é uma forma de expressão, um artigo de opinião, não escrito mas desenhado.

Como é que acompanhou os ataques terroristas à redação do Charlie Hebdo? Com uma grande tristeza, até porque conhecia uma das pessoas que foi assassinada. Tocou-me muito porque é a área em que eu trabalho. A religião é um tema muito sensível, mas também não pode ser intocável... mas depois existem todos estes radicalismos, o que torna tudo muito mais complicado. O Charlie Hebdo é apenas um jornal de sátira, nada mais. Nos tempos livres consegue colocar o papel e o lápis à parte? Não. Ando sempre com os blocos e os lápis atrás. Mesmo nas reuniões de trabalho, estou sempre a desenhar alguma coisa. O desenho é um vício.

«HÁ AINDA TANTA COISA PARA DESENHAR»

Ilustrador ou cartoonista? Em termos profissionais sou mais conhecido por ser cartoonista, mas gosto muito de ilustração e tenho pena de não fazer mais. Mas gosto muito de fazer cartoon e caricatura.

Falta-lhe desenhar alguém ou alguma coisa? Há ainda tanta coisa para desenhar. Gostava de desenvolver um filme de animação. Espero ter a capacidade de criar um projeto nessa área do princípio ao fim. A animação é uma área que me anima bastante… é muito enriquecedora.

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