ESTÓRIAS DO MÊS - AGOSTO 2020 "O IMPERADOR MARCUS AURELIUS E O REI MOURO"

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ESTÓRIAS DO MÊS

Para quem trabalha em arqueologia, nomeadamente durante os trabalhos de campo, é expectável e diremos normal, encontrarem-se vestígios arqueológicos inéditos, sejam eles ruínas de antigas estruturas, objetos inteiros ou fragmentados (quase sempre prevalecem estes últimos). Os materiais móveis, pela natureza de condições favoráveis, contingências diversas e mesmo com acidentes de percurso vão chegando até aos nossos dias. Se os mesmos ainda se integram no contexto em que foram criados, usados, desperdiçados e abandonados, essa relação é ótima para se apurarem elementos imprescindíveis para o conhecimento do local, como sejam a cronologia, os usos e costumes das pessoas que criaram e deram forma aos utensílios, ferramentas, espaços de habitação, de trabalho e de lazer. Já não é, de todo, normal, aquando dos trabalhos de prospeção arqueológica de superfície, depararmo-nos com uma moeda. Encontrar alguma representa o mesmo do célebre ditado popular “encontrar uma agulha num palheiro”. Pois tal ocorreu no dia 23 de outubro de 1995, nos trabalhos de campo

na designada “Zona D – Navens Ferreira/ Poio, Freguesia de S. João Baptista” e na zona mais a norte da área antes indicada. Esses trabalhos da SACMCV tinham por intuito a atualização da Carta Arqueológica do Concelho e, neste caso em concreto, entrava-se na última fase para o conhecimento integral da referida freguesia. Há dias de sorte, porquanto nessa ocasião, ao estarmos no Monte do Vale Calcinhas ou de Santa Luzia - onde se verificam vestígios da presença romana [ali recolhemos e identificámos vários objetos cerâmicos (taças e pesos de tear) e materiais líticos (moinhos manuais graníticos)], foi surpresa

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Design: António Manso / fotos: Secção de Arqueologia de Castelo de Vide e colaboração de Patrícia Martins

O IMPERADOR MARCUS AURELIUS E O REI MOURO


Fotografia e desenho de J.Magusto - (SA CMCV)

e satisfação encontrar uma moeda romana de prata, cunhada pelo Imperador Marcus Aurelius. O inusitado do acontecimento teve, também, a ver com a forma como tal ocorreu. Ao baixar-me, fleti um joelho e apoiei-o no solo para verificar algumas porções de cerâmicas que me pareciam ter algum interesse em termos arqueológicos. Ao levantar-me, reparei que no lugar onde me tinha apoiado, e à superfície, estava uma pequena chapa escura mas com algum brilho metálico. Foi fácil, logo no local, identificar o dito achado, o que o torna único nas diversas prospeções de superfície realizadas por este Serviço Municipal nas diversas zonas do concelho. O António Pita e o Nuno Félix não queriam acreditar…. Dificilmente tal voltará a ocorrer. Como se sabe, os numismas são peças-chave por excelência, ou “fóssil director”, para a atribuição de cronologias aos contextos de onde são provenientes. E com um só exemplar – como é o caso – é correto enunciar

uma data precisa para a ocupação do local? Data precisa não, mas conjugando o estudo, a análise e tipologia de outros elementos móveis, com alguma segurança diremos que já no séc. II d.C. ali existia uma pequena estrutura (casal rústico!!?) de povo romanizado, cujo acesso ao local se fazia por vias secundárias (por exemplo, de acesso ao vicus existente na margem esquerda da atual Barragem de Póvoa e Meadas e com ligações para noroeste e sudeste). Estas ligar-se-iam a outras mais importantes, que por sua vez davam acesso aos grandes centros do poder, como era o caso da cidade de Ammaia. Ensejo para dizer da necessidade de um estudo pormenorizado sobre a rede viária antiga para solucionar, se possível, um conjunto de interrogações que persistem, e conhecer a “teia” que possibilitava a deslocação das populações, agora que se vão conhecendo e demarcando melhor os lugares onde a presença humana se faz notar.

Fotografia de António Pita e desenho de J.Magusto - (SACMCV)

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Fotografia e desenho de J.Magusto - (SACMCV)

Simulação de tear manual com respectivos pesos

Aproveitamos, igualmente, para lavrar algumas curiosidades no âmbito do projeto de prospeção na zona setentrional da Freguesia de S. João Baptista. Por exemplo, o facto de numa área relativamente pequena existirem os topónimos Rei Mouro, Tapada dos Mourões e Monte da Mourela, indiciando essas antigas designações (que passaram a nome de prédios rústicos) para locais onde existem/existiram assentamentos humanos que a arqueologia vai desvendando. Foi possível identificar nestes prédios vestígios de povoamento do período romano. Não sendo exclusivo da região de Castelo de Vide, não deixa, contudo, de ser interessante que até há poucas décadas – e ainda no presente, por que não dizê-lo - tudo aquilo considerado antigo e em ruínas era designado como sendo “do tempo dos mouros”. A transmissão de o ouvir dizer, as lendas associadas e o imaginário popular foram procurar reminiscências de antigos contos. Atendendo ao

pouco conhecimento sobre a antiguidade desses vestígios por parte da maioria das pessoas que habitavam o campo, muitos deles analfabetos, era fácil transmitir aquilo que já tinham ouvido dos seus pais e avós. Por exemplo, a indicação “covas dos mouros” é quase sempre relativa a sepulturas abertas na rocha, e “casa dos mouros” quando respeita a antas. Mas, também dizer, porque justo, que a grande maioria dessas pessoas são os principais conhecedores e defensores do património numa relação de respeito que, por vezes, vem de há várias gerações. Reconhecemos isso quando visita(va)mos os monumentos e sítios arqueológicos e falávamos com proprietários, rendeiros, pastores, vizinhos… e avaliar o estado de conservação desses locais quando se identificam gravuras e fotografias antigas. Castelo de Vide, 17 de agosto de 2020. J. Magusto CMCV

Fotografia de António Pita e desenhos de J.Magusto - (SACMCV) Estória do Mês - O IMPERADOR MARCUS AURELIUS E O REI MOURO - agosto de 2020 3


Nc Rei Mouro

Monte de Santa Luzia ou do Vale de Calcinhas

Monte da Mourela

Mapa cadastral realizado em 1995 aquando dos trabalhos de prospecção arqueológica realizados por António Pita, João Magusto e Nuno Félix (Secção de Arqueologia).

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