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JUNHO 2020
Entre Nós ENTREVISTA | JOÃO RODRIGUES
“O desenho é a minha voz” O
seu universo artístico é marcado por figuras, muitas vezes, disformes e, quase sempre, com um ar melancólico. Aliás, a melancolia e o amor andam de mãos dadas nas suas ilustrações, desenhos, murais e aguarelas. João Rodrigues, 44 anos, criou um universo muito próprio e perfeitamente identificável como seu. O desenho é a sua voz. A voz daquilo que sente. A sua forma de passar mensagens e de mostrar a sua visão do mundo. Quando a sua voz chega por intermédio das mãos, João Rodrigues desenha. Desenha porque é a forma de exprimir aquilo que sente: “sempre gostei de desenhar. Por volta dos 23 anos, o desenho começou a interessar-me mais como forma de expressão, de tornar visível o que sentia. Ainda, hoje, os meus trabalhos são muito pessoais. Os bonequinhos que faço sou eu, na maior parte das vezes”. São, exatamente, estes bonequinhos, figuras muitas vezes de anatomia disforme, que são a imagem de marca do trabalho de João Rodrigues. Muitas vezes podem parecer desenhos e ilustrações infantis, mas refletem uma densidade de sentimentos do próprio autor. Timidez. Solidão. Esperança. E, sobretudo, amor e melancolia. “Quando és tímido, mesmo que os outros não achem, encontras outras formas de dizer o que sentes. A minha foi através do desenho. Diziamme sempre que desenhava muito bem. Sei que sou bom, mas tenho limitações e fiz delas as minhas forças. Os meus bonequinhos têm a cabeça grande, muitas vezes um braço maior que o outro, porque percebi que nunca ia conseguir desenhar figuras anatomicamente perfeitas”, conta. O amor. A procura esperançosa de amar alguém. A tristeza e a melancolia de um amor que acabou ou que era impossível. Esta é a base para boa parte dos trabalhos de João Rodrigues. Mas existem, também, os pormenores de uma visão muito própria do mundo. É, por isso, que em muitas das suas obras há flores. Há a Lua ou nuvens. Detalhes, coisas do dia-a-dia, que talvez passem despercebidas à maioria, mas que são fonte de inspiração: “estou sempre a olhar para as nuvens. Parece que o céu é uma tela e que quem está lá em cima, todos os dias, se sente motivado a pintar um desenho diferente. Pode parecer cliché, mas quase tudo à minha volta me inspira a desenhar”. O surrealismo de Magritte e Dali são algumas das suas influências. Tal como os grafitters brasileiros Os Gémeos. A principal de todas, até porque na adolescência ser músico era o principal sonho, foi e continua a ser o grupo The Smashing Pumpkins e o álbum Mellon Collie and the Infinite Sadness, um dos mais importantes discos da banda de Chicago. “Desde sempre que gostei de desenhar, mas o que
gostava mesmo muito era de música. Na altura dos Smashing Pumpkins ouvia as letras, aquilo dizia-me e muito e comecei a ter vontade de exprimir o que me faziam sentir as músicas. Como não tinha jeito para a música, foi através do desenho”, afirma. Audoditada, “já em criança era muito isolado, vivia no meu mundo, a fazer desenhos, a brincar com plasticina”, ao talento que nasceu consigo, João Rodrigues junta a curiosidade: “gosto muito de descobrir.
mais visível nas ruas do Montijo. Na cidade existem três obras da sua autoria, na Rua Almirante Cândido dos Reis e no Centro Cívico do Esteval. Também já participou em exposições promovidas na Galeria Municipal e na Biblioteca. Atualmente, tem em mãos a produção de um mural para uma escola de surf na Ericeira e a ilustração de um segundo livro da cadeia de supermercados Pingo Doce. “Tenho, também, alguns projetos pen-
Tudo o que sei fazer no desenho, murais, aguarelas, ilustração digital é por descoberta. Sou curioso e isso ajuda-me a manter sempre o jogo vivo. Sempre fui assim. Se vejo algo e meto na cabeça que vou fazer, pesquiso, aprendo, experimento e faço”. Há mais de uma década que o desenho e a arte são a sua profissão. “Quando comecei tive um trabalho enorme para a NOS. Fiz o NOS Kids, que eram mascotes da operadora e isso, na altura, deu-me motivação. Tenho tido sempre trabalho. A vida de freelancer não é fácil. Há sempre meses difíceis e depois outros com muito trabalho, mas tem estado a correr bem”. Nos últimos anos, o seu trabalho tornou-se, ainda,
sados que quero propor à câmara e ando a trabalhar num livro infantil escrito e ilustrado por mim. É uma aposta e um dos meus sonhos. Tenho mostrado a amigos e o feedback é muito positivo. Quero avançar com uma edição de autor e espero que as pessoas realmente leiam e gostem”. Nele, certamente, vai encontrar os tais bonequinhos de cabeça gigante, que são uma versão, dizemos nós, mais livre do próprio autor. Aliás, muitos deles usam capacete de astronauta. Talvez estejam lá em cima, no céu, a olhar de forma leve e etérea para o mundo. Quem sabe até senão são eles, os responsáveis por pintar as nuvens que servem de inspiração à arte de João Rodrigues.