Artigo Descentralização - Jornal Porto. Nº 7

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Do Infarmed ao Tribunal de Contas ou a tragédia de um país centralista O Governo quer descentralizar o País. O Porto apoia a ideia. Mas, à última hora, ps e psd assinaram um acordo que não descentraliza nenhuma competência política e pode prejudicar as contas municipais. Rui Moreira não aceita e levantou a voz em vários palcos. Ao Presidente da República falou do Tribunal de Contas e do Infarmed. AGOSTO 2018 • PORTO


D O I N FA R M E D AO T R I B U N A L D E C O N TA S O U A T R AG É D I A D E U M PA Í S C E N T R A L I STA • D E S C E N T R A L I Z AÇÃO

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Porto tem tido, nos últimos anos, uma relevância cultural, económica, social e política considerável. Isso resulta da dinâmica da iniciativa privada associada ao empreendedorismo dos cidadãos e da aposta política na afirmação internacional da cidade através da cultura, potenciando a renovação acelerada da cidade do ponto de vista urbano. A reabilitação urbana e a cultura, por outro lado, são alicerces do programa de governação da cidade do Porto. O papel da Porto Vivo, SRU na gestão urbanística e na reabilitação urbana do Centro Histórico é fundamental, sendo a sociedade partilhada pelo Estado (60%) e pela Câmara Municipal do Porto (40%). Há quatro anos que o Estado pretende sair da sua gestão e participação, deixando-as entregues ao Município que as quer assumir. Para isso, o Estado e o Município assinaram um acordo, em 2015, para a transferência de capital e de competências. Mas não bastou a vontade de dois sucessivos primeiros-ministros, as resoluções de dois Conselhos de Ministros, as deliberações dos órgãos autárquicos em dois mandatos sucessivos, já que o entendimento do Tribunal de Contas sobrepõe-se sucessivamente à vontade dos eleitos do país e da cidade, deixando a sociedade de reabilitação numa situação insustentável. Também no caso da cultura se assiste

a um processo semelhante. A decisão da criação de uma empresa municipal foi anunciada antes das eleições autárquicas e aprovada pelos dois órgãos municipais. Foi uma decisão que, face aos desafios que a contratação pública e a gestão de eventos e equipamentos coloca, dotaria o Porto de um instrumento legal, previsto, regulamentado: uma empresa municipal. Porque a legislação em vigor no período de intervenção externa limitava os rácios financeiros das empresas municipais, tornando este tipo de empresa inviável, o Porto esperou que Governo e Assembleia da República legislassem para excecionar as empresas de cultura e também as de reabilitação urbana desse espartilho financeiro. E M P R E SAS M U N I C I PA I S DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS

Essa legislação serviu para viabilizar empresas municipais que estavam em incumprimento noutros Municípios e onde, aparentemente, o Tribunal de Contas nunca exerceu o seu poder no sentido de decretar o encerramento das mesmas. Mas ao Porto não é agora possível aplicar, com equidade, a mesma regra legal para criar uma empresa com as mesmas características à luz do cumprimento da lei. Ou seja, a lei serviu para tornar legal o que era ilegal mas não serve para que o Porto possa ter exatamente o mesmo instrumen-

to, mesmo que tenha estado sempre legal. Ora, segundo Rui Moreira, beneficia-se o infrator e penaliza-se o cumpridor. Mesmo que o cumpridor seja exemplar nas outras empresas municipais sob sua gestão, onde o endividamento é zero e onde sempre se cumpriram os rácios impostos durante o período de intervenção. Isto é, as decisões do Tribunal de Contas dizem-nos que há dois tipos de municípios: os que incumprem – e para os quais se fazem leis à medida para tornar legal o que era manifestamente ilegal – e os que, cumprindo continuadamente as leis, se veem privados de privilégios a la carte. Para Rui Moreira, “quando o Tribunal de Contas invoca a não retroatividade de uma Lei para não viabilizar o que é novo, mas cauciona a sua aplicação ao que, já existindo, era manifestamente ilegal; quando a vontade democrática e as decisões políticas de Governos e Órgãos Autárquicos, legitimadas pelas urnas, não podem ser cumpridas, alguma coisa está errada”. Mas a forma como o Tribunal de Contas e as Leis têm evitado que o Porto possa cumprir o seu programa de governo quanto à reabilitação urbana e cultura, não são casos únicos de centralismo e discriminação. O N D E PA R A M O S F U N D O S ?

No anterior mandato, o presidente da Câmara do Porto levantou cedo a sua voz contra a forma como foi gerido o acordo

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de parceria para o Quadro Comunitário de Apoio, que está em execução, e quanto à reversão da privatização da tap. Rui Moreira chamou a atenção quando, em 2013, o Estado Português negociava com a União Europeia “um mau acordo de parceria”, em que voltava a “incorrer nos erros do passado e desprezava o papel do poder autárquico na aplicação dos fundos de coesão, concentrando decisão e criando desorçamentação do Orçamento de Estado à custa dos fundos estruturais”. Cinco anos depois e a ano e meio de encerrar o quadro comunitário, pergunta-se se “o País está melhor estruturado e mais coeso do ponto de vista territorial”; se se “esbateram as assimetrias entre litoral e interior”; ou se “estão criadas as infraestruturas capazes de equilibrar Norte e Sul do ponto de vista social e da competitividade económica”. Na verdade, a resposta às questões do presidente da Câmara do Porto têm resposta: se houve um impulso na reabilitação urbana, na coesão social e na economia de cidades como o Porto ou de outras no Interior, nomeadamente no Centro e no Norte, isso deriva da conjuntura, do esforço do poder autárquico em matéria de competitividade e da iniciativa privada. Não do investimento do Estado ou da boa aplicação de fundos comunitários, que para pouco mais têm servido do que para desorçamentar competências do Estado. O CASO DO LICEU ALEXANDRE HERCULANO

Caso paradigmático do que aponta Rui Moreira quanto à forma de gestão de fundos foi o do Liceu Alexandre Herculano, com o Estado Central a mandar inscrever nos fundos estruturais do Portugal 2020 uma verba de 6 milhões de euros para a reabilitação de uma escola sua, em nome da autarquia, sem qualquer consulta ao Município. Perante a pré-ruína do edifício, o mesmo Estado que negligenciara o seu património atirou para as costas da Câmara Municipal do Porto um projeto de obras que orçava os 15 milhões de euros e uma dotação de verbas comunitárias de menos de metade, inscritas em seu nome e apontando-lhe a responsabilidade pública de assumir a titularidade de uma operação. Uma operação para a qual a Câmara Municipal não tinha competência e sobre a qual nada tinha decidido. Assim, desonerou-se o Orçamento de Estado, alijou-se uma responsabilidade. Foi possível, ainda assim, com boa vontade das partes, reduzir o valor a investir, criar condições legais para que a Câmara do Porto pudesse ter intervenção como dona de uma obra que não lhe competia e avançar com a empreitada, assumindo a autarquia parte de um investimento que não deveria ser seu. A alternativa seria


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nada fazer e deixar o liceu cair. Neste caso paradigmático a obra será feita, prejudicará as contas municipais, aliviará o Orçamento do Estado e, no final, a verba de fundos comunitários aplicada numa escola pública do Estado será contabilizada como tendo sido usada em coesão territorial pela Câmara Municipal quando, na verdade, a decisão foi tomada de forma centralista. I N FA R M E D , S I M O U N Ã O ?

Rui Moreira revelou numa entrevista como soube da transferência do infarmed para o Porto. Foi através de um telefonema do primeiro-ministro a que se seguiu um outro do ministro da Saúde, comunicando-lhe que “o Governo tinha decidido transferir o infarmed para o Porto”. Em declarações recentes à sic e ao Observador, questionou o presidente da Câmara: “o que se pede, nessa situação, que o autarca do Porto faça? Que negue competências na sua cidade, quando os estudos realizados nos meses anteriores apontavam o Porto como a localização mais apropriada para a instalação de uma agência europeia do medicamento? Claro que a posição do presidente da Câmara, que nunca pediu que o infarmed viesse para o Porto, foi a de colaborar na transferência, sobretudo através do mapeamento que os serviços municipais têm do edificado disponível, das redes de transportes e dos impactos locais da transferência”. Mas, aquilo que parecia ser uma decisão política assumida e anunciada, rapidamente se tornou no novo objeto de ataque de caráter à cidade do Porto. A decisão assumida pelo Governo passou a ser uma decisão dependente de um relatório de um Grupo de Trabalho. E, ainda antes que esse grupo – nomeado em Conselho de Ministros e em que a Câmara Municipal do Porto não tinha qualquer representação – tivesse produzido qualquer resultado, já a presidente do infarmed desferia públicos ataques à sua tutela, pondo em causa resoluções do Conselho de Ministros e a palavra dada pelo primeiro-ministro e pelo ministro da Saúde ao País. Entretanto, veio a público, através do presidente do Grupo de Trabalho nomeado pelo Governo, que o Conselho Diretivo do infarmed, durante o processo de avaliação para que estava mandatado, não colaborava na disponibilização de dados ou fornecia informações erradas aos peritos. Mais uma vez, foi a máquina do Estado que, em desobediência à tutela, pôs em causa decisões políticas superiores, conseguindo, ainda assim, manter-se em funções até ao final do processo. Para Rui Moreira, “a catástrofe para a saúde pública mundial anunciada com alarmismo por uma funcionária não será nunca escrutinada porque, tal como no caso da tap, quando o Porto tiver razão, o assunto será esquecido”.

DESCENTRALIZAÇÃO O U TA R E F I Z A Ç Ã O ?

O processo de descentralização anunciado pelo primeiro-ministro para a presente legislatura foi visto com muito bons olhos pela cidade do Porto, que colaborou ativamente no trabalho realizado pelas Áreas Metropolitanas de Porto e Lisboa, respondendo ao repto do Governo, que pretendia levar a cabo uma descentralização a sério na presente legislatura. Os 35 municípios, que fazem parte dessas duas áreas que concentram especificidades urbanas distintas do resto do País e onde moram e trabalham mais de 40% dos portugueses, puseram-se de acordo e assinaram um conjunto de propostas que entregaram ao primeiro-ministro numa cimeira que decorreu no Palácio de Queluz, com a presença do Presidente da República. Mas, aquilo era um trabalho sério acerca

das verdadeiras competências desejadas pelos municípios, algumas que nem impacto financeiro tinham mas que representavam a aproximação do decisor e da decisão ao eleitor, foi subitamente esquecido. Sem consultar os seus próprios autarcas, ps e psd aprovaram entre si um acordo de descentralização que, em boa verdade, mais não é do que um conjunto de afirmações genéricas e aparentemente inócuas. Só que, partindo desse acordo, esqueceu-se todo o trabalho realizado. E foi pelos jornais que as autarquias, mal representadas pela Associação Nacional de Municípios Portugueses (anmp), ficaram a saber que essa associação, dominada pelos mesmos partidos em causa, já estava comprometida com uma nova Lei das Finanças Locais e que o Governo, afinal, até já sabia quanto valia a transferência daquilo a que chama competências, mas que não passam de meras tarefas, sem que fiquem garantidos,

A TAP dois anos depois da asneira Outro exemplo de centralismo é o da tap. A reversão de parte da privatização, em 2016, deixou nas mãos dos parceiros privados a sua gestão comercial, sem qualquer garantia de o Estado, detentor de 50%, poder defender o seu interesse, que é o serviço público. Tal decisão foi contemporânea do anúncio da companhia em deixar grande parte da sua operação no Porto, processo que apenas acelerou uma política seguida há anos e não sustentada em fatores de procura. Política que vinha esgotando artificialmente o Aeroporto de Lisboa e que, com o desvio de passageiros do Norte para a capital, através de uma ponte-aérea, apenas poderia agravar a situação dos aeroportos nacionais. O Estado, que voltava a investir em capital da tap e avalizava dívida, era o mesmo que se abstinha de garantir os correspondentes direitos económicos na companhia, se economicamente o negócio corresse bem, lavando as mãos quanto à garantia de um serviço público e das necessidades de mobilidade. E foi contra isto que Rui Moreira levantou a voz, nomeadamente através de um livro. O Porto, como então escreveu, é tão Portugal como Lisboa e não é suportável admitir que os dinheiros públicos sejam usados numa empresa privada sem a contrapartida, ao menos, de um serviço público mínimo que garanta os interesses dos cidadãos. Se a decisão de privatização foi polémica, porque Portugal perdia capacidade de decisão estratégica quanto à sua companhia de bandeira, então a reversão não podia ser uma operação de cosmética e tinha de ter uma contrapartida de serviço, que não teve.

Foi para isso que o presidente da Câmara alertou, a tempo de evitar uma má decisão. Hoje, já ninguém pode negar os resultados e ninguém pode iludir as notícias que diariamente chegam, por exemplo, da Região Autónoma da Madeira, onde o Governo Regional alerta para as graves limitações de mobilidade que estão impostas aos seus cidadãos ou para a forma como muitos portuenses ficam pelo caminho nas suas ligações à Europa, presos na garantia de uma ligação que não existe. Rui Moreira também previu que o mercado, no caso do Porto, se encarregaria de resolver os problemas de ligações áreas fundamentais à Europa deixadas pela tap. Tinha razão. Mas tal apenas comprova o erro da tap, 50% detida pelo Estado, que nunca poderia ter lavado as mãos das suas obrigações públicas. E do exemplo da tap passa-se à prática noutras áreas do transporte público. Se a companhia aérea pôde suprimir serviços essenciais, a CP também pode – como fez – acabar com o seu comboio rápido da manhã, um dos mais fundamentais para a competitividade profissional e económica de muitos cidadãos e empresas, somando-se ao desrespeito da sua congénere e atirando milhares de passageiros para a rodovia, em retrocesso civilizacional. E se a tap e cp o podem fazer, a ip pode – como fez – alterar limites de velocidade na vci, a via com maior tráfego do país e que constitui o maior problema de trânsito de uma Região, sem dar qualquer explicação à Câmara Municipal da cidade que atravessa, ignorando simultaneamente os graves problemas de manutenção de que padece a Ponte Luís I.

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de forma duradoura, os recursos correspondentes. Ora, o Porto não se revê nas posições e decisões do Conselho Diretivo da anmp, não concordou com os mapas de valores que foram, à última hora, enviados para validação e que resultariam num descalabro financeiro para uma autarquia de boas contas e, numa moção aprovada em reunião de Executivo, comunicou que não confere àquela associação o direito de negociar com o Governo um processo de descentralização fechado pelos dois partidos políticos do “centrão”. De tão mal feitas estavam as contas que bastou o alerta do Porto, secundado pelos restantes 16 municípios da Área Metropolitana do Porto, para que, pelo menos nas notícias, os 900 milhões de euros anunciados para as transferências se transformassem em 1,2 mil milhões de euros em poucos dias. Para Rui Moreira, “é grave que se esteja não apenas a perder a oportunidade anunciada e todo o trabalho realizado mas, sobretudo, se a Assembleia da República, pressionada pelo consenso político e interesse de calendário de dois partidos, legislar à revelia dos municípios um pacote de medidas que, a prazo, coloca em causa a capacidade de atuação de futuros Executivos Municipais. E é grave que dessa forma se esteja a enfraquecer o Estado Social, por desorçamentação na delegação de competências”. Numa entrevista à rtp, o presidente da Câmara alertou ainda que “estas medidas, que podem ser um alívio temporário para autarquias excessivamente endividadas, não agradam aos cumpridores que querem responder ao que foi sufragado em eleições e não serem transformados em meros tarefeiros do Estado”. Mais, a transferência de tarefas no âmbito do “Estado Social” para as câmaras, sem a correspondente contrapartida financeira ou de receita e por imposição do Parlamento, ainda que num calendário variável, fará com que sejam os órgãos do poder local os responsabilizados, no futuro, pela inevitável degradação em serviços públicos desorçamentados. “Em futuros mandatos, os municípios ficarão com o ónus da degradação do Estado Social, que o Estado central não tem tido capacidade para reformar. E tudo isto sem que os municípios tenham qualquer poder efetivo, cabendo-lhes, apenas, ser os portadores das más notícias”, afirma Rui Moreira. O Porto, recorde-se, tem hoje autonomia financeira para cumprir as suas tarefas graças às suas boas contas. Tem também dinâmica cultural, social e económica para definir quais os caminhos que prossegue. Mas não tem abdicado de ter as correspondentes competências políticas e nem aceita – nem hoje nem para o futuro – tarefas menores que nem sequer são justamente remuneradas.


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