Parecer técnico sobre o Projeto de Lei Nº 3902/ 2004 que dispõe sobre a Política Nacional de Mudanças Climáticas PNMC
O CEBDS, em nome de suas empresas associadas,
Reconhecendo
o
mérito
dos
esforços
do
deputado
Ronaldo
Vasconcellos e do deputado Mendes Thame em ampliar o debate público sobre as questões relacionadas à mudança global do clima; Reafirmando
seu
compromisso
com
o
objetivo
principal
da
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) de estabilizar a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera em níveis que não interfiram perigosamente no sistema climático; Considerando os princípios da precaução, da eqüidade e da responsabilidade comum mas diferenciada como balizadores imprescindíveis das negociações relacionadas ao enfrentamento do problema do aquecimento global e Advogando que o paradigma do Desenvolvimento Sustentável – equilíbrio das dimensões econômica, social e ambiental - deve embasar todos os esforços de mitigação da mudança climática global,
Analisa o Projeto de Lei Nº 3902/ 2004 à luz de seus efeitos potenciais sobre alguns aspectos fundamentais do desenvolvimento nacional.
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Considerações iniciais: Diversos estudos conduzidos pelo Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática – IPCC, que assessora cientificamente a UNFCCC, demonstram que a tendência verificada de aumento da temperatura média da superfície do Planeta decorre da crescente concentração dos chamados gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera. Demonstram também que o aumento da concentração desses gases está correlacionado principalmente ao incremento do consumo de combustíveis fósseis, que, a partir do final do século XVIII, se consolidaram como a principal fonte de energia para as atividades antrópicas. Diante dessas evidências, a UNFCCC observa que “...a maior parcela das emissões globais, históricas e atuais, de GEE é originária de países desenvolvidos, que as emissões per capita dos países em desenvolvimento ainda são relativamente baixas e que a parcela de emissões globais originárias dos países em desenvolvimento crescerá para que eles possam satisfazer suas necessidades sociais e de desenvolvimento1”. O Artigo 3 da Convenção dispõe sobre os princípios que devem guiar os esforços relacionados ao alcance dos seus objetivos. No 1º Parágrafo desse artigo fica estabelecido que o sistema climático deve ser protegido pelas Partes da Convenção “... com base na eqüidade e em conformidade com suas responsabilidades comuns mas diferenciadas e respectivas capacidades2”. Ao reconhecer a correlação entre atividades antrópicas e o aquecimento global, ressaltar o princípio da eqüidade3 e da responsabilidade comum mas diferenciada, a Convenção do Clima estabeleceu uma divisão dos países signatários em dois grupos principais: um deles constituído pelos países desenvolvidos, principais responsáveis pelos distúrbios no sistema climático, incluídos no Anexo I à Convenção, e o outro pelos demais países, a partir de então designados como não-Anexo I.
1
UNFCCC (1992, p.2) UNFCCC (1992, p.6) 3 Proporcionalidade na distribuição dos custos conforme a responsabilidade de cada parte signatária para a ocorrência do fenômeno.(Princípio Poluidor-Pagador) 2
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Os países do Anexo I foram responsáveis por cerca de 63% das emissões de GEE no ano de 1990. Considerando-se as emissões per capita, o papel desses países no aumento da concentração de GEE na atmosfera da Terra fica ainda mais evidente: em 2000, cada cidadão americano foi responsável por uma emissão de GEE 6 vezes maior do que a provocada por um habitante da América Latina. Posteriormente, no âmbito do Protocolo de Quioto, foram atribuídas aos países do Anexo I metas de redução das emissões de GEE, não aplicáveis, no entanto,
aos
países
não-Anexo
I,
em
função
das
diferenças
de
responsabilidade identificadas pela Convenção.
Projeto de Lei Nº 3902/ 2004 Os comentários e observações constantes neste documento estão focados principalmente nos potenciais efeitos danosos sobre a economia e a competitividade do País decorrentes da aplicação dos mecanismos de compensação estabelecidos na Seção IV do PL em causa, que dispõe sobre a Política de Compensação pela Produção de Gás Carbônico Decorrente da Queima de Combustíveis Fósseis, e das Disposições Gerais relacionadas na Seção V do documento. São também apresentadas ressalvas a alguns aspectos pontuais de outras seções do PL 3902/ 2004. Em seu Artigo 2º, o PL afirma que “A PNMC traduz um esforço voluntário da República Federativa do Brasil ..., constituindo, assim, a contribuição brasileira para a minimização do aquecimento global e de outras mudanças climáticas indesejáveis, nos termos do Protocolo de Quioto ...” .Ora, tendo em vista a natureza das disposições incluídas no PL 3902/ 2004, tal afirmação revela-se, de certa maneira, incoerente, pois muitas de tais disposições não se alinham e até mesmo contrariam alguns dos princípios fundamentais daquele Protocolo, como demonstrado a seguir neste Parecer.
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No caput do Artigo 8º e em seu primeiro parágrafo é estabelecida a obrigatoriedade de adição de biodiesel ao diesel de origem mineral, no percentual mínimo de 3% a partir do ano seguinte ao da publicação da Lei, acrescido de no mínimo 2% para cada ano adicional. Tomando como base o consumo de óleo diesel no Brasil em 2003, que foi da ordem de 36,7 milhões de metros cúbicos, tais percentuais corresponderiam, respectivamente, a cerca de 1,1 e 0,7 milhão de metros cúbicos por ano. As estimativas de produção de biodiesel no Brasil em 2005 apontam, no entanto, para um volume potencial da ordem de 115 mil metros cúbicos, o qual corresponde a pouco mais de 10% da quantidade necessária para adição ao diesel de origem mineral em percentual de 3%. Evidencia-se assim a total impossibilidade de atendimento aos requisitos do PL 3902/ 2004, pelo menos nos prazos nele previstos. Acrescente-se que o Governo Federal, através do Ministério das Minas e Energia, vem anunciando o lançamento, no próximo mês de novembro, do Programa de Produção e Uso do Biodiesel, o qual, dentre outras disposições, autoriza a comercialização em 2005 de diesel contendo até 2% de biodiesel, percentual que pode chegar a 5% em 2009, valores conflitantes com os contemplados no PL 3902/ 2004. Outros aspectos considerados críticos no Projeto de Lei em questão são avaliados nos tópicos que se seguem.
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1) Desconsideração de princípios estabelecidos pela UNFCCC Apesar de ressaltado no Artigo 2º do PL 3902/ 2004, o princípio da responsabilidade comum mas diferenciada não é respeitado pelo presente Projeto de Lei, na medida em que este estabelece a obrigatoriedade de o Brasil compensar as emissões de GEE associadas à queima de combustíveis fósseis de forma análoga ao estabelecido pelo Protocolo de Quioto para os países do Anexo I, sem levar em conta o reconhecimento multilateral pelas Partes da UNFCCC de que os países desenvolvidos são os maiores responsáveis pelo aquecimento global e, portanto, também os maiores responsáveis pela sua mitigação. Não é coerente nem justo que o Brasil adote medidas unilaterais e voluntárias para compensar suas emissões, absorvendo parte dos custos globais relacionados ao enfrentamento do problema da intensificação do efeito estufa sem qualquer proporcionalidade com sua contribuição histórica ou atual para a ocorrência do fenômeno. O Brasil estaria assim, voluntariamente e sem a garantia de qualquer outra forma de compensação, abrindo mão da faculdade outorgada pela UNFCCC aos países em desenvolvimento no sentido de que os mesmos podem até mesmo aumentar sua emissão de GEE para alcançar níveis adequados de desenvolvimento econômico e social. Deve-se considerar ainda que os mecanismos de compensação instituídos pelas seções IV e V do PL em análise não levam em consideração a capacidade do Brasil de absorver os custos relacionados frente à capacidade dos outros países de fazê-lo. Desrespeita-se assim, também, o princípio da capacidade ressaltado no Artigo 3 da Convenção do Clima. É importante registrar-se também que o PL 3902/ 2004 é, de certa forma, mais rigoroso para com o Brasil do que o Protocolo de Quioto o é para com os países incluídos em seu Anexo I, na medida em que o Protocolo oferece a esses países a oportunidade de identificarem, através dos chamados “mecanismos de flexibilização” (Comércio de Emissões, Implementação
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Conjunta e Mecanismo de Desenvolvimento Limpo), alternativas de menor custo para redução ou compensação de suas emissões de GEE, enquanto o Projeto de Lei obriga a que tal compensação seja realizada através do reflorestamento com espécies nativas, justamente uma das alternativas de mais difícil implementação e controle e também de maior custo, estimado em cerca de US$ 1,000.00 por hectare.
2) Efeitos macroeconômicos A imposição de compensações à emissão de GEE associada à utilização de combustíveis fósseis induzirá ao aumento dos custos daqueles setores submetidos à adoção compulsória de tais práticas. Um raciocínio econômico estático permite constatar o potencial efeito perverso do ajuste macroeconômico decorrente da implementação dessa medida. O impacto nos preços dos setores afetados resultará na perda de competitividade no mercado doméstico frente a produtos importados e também no mercado internacional. Tal fato irá influenciar negativamente a balança comercial do País, com efeitos também negativos no equilíbrio das contas externas, o que pode repercutir internamente através de aumento da taxa de juros, redução do nível de atividade econômica e queda no nível de emprego. Um exemplo do setor siderúrgico ilustra o argumento acima. Os grandes altos fornos destas usinas utilizam carvão e coque como base de sua matriz energética. Considerando-se uma produção média de 5 MM ton/ano para cada grande usina brasileira – todas estão trabalhando na direção de viabilizar um aumento nos seus volumes de produção- são consumidos algo em torno de 4,8 MM toneladas por ano em combustíveis convertidos em equivalentes em óleo, (tomando por base o poder calorífico de cada um deles). Nestas circunstâncias, o PL 3902 implicará na obrigação de plantio de 32 mil ha/ano, todos os anos, para cada 5 milhões de toneladas de aço produzidas. Isso significa, na prática, aderir ao custo anual de cada grande
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usina siderúrgica brasileira todos os custos florestais anuais de uma empresa de celulose com capacidade de produção de 500 kton/ano, fora o custo da terra, impostos, depreciação florestal, etc. Neste sentido, aceitar a seção IV do PL como está formulada significará significativo impacto na estrutura de custos da siderurgia no País. A perda da competitividade relativa das empresas em função dos custos associados ao cumprimento de metas de redução da emissão de GEE é uma das principais preocupações dos países do Anexo I, levando a que alguns deles,
mesmo
sendo
reconhecidos
internacionalmente
como
grandes
responsáveis pelo aquecimento global, como os Estados Unidos ou a Rússia, se neguem ou relutem em ratificar o Protocolo de Quioto. O PL 3902/ 2004, além de desrespeitar os princípios fundamentais da Convenção, não demonstra, por outro lado, preocupação com os efeitos macroeconômicos do ajuste que o estabelecimento de mecanismos de compensação implicará para a economia brasileira. Os setores automobilístico, agropecuário e aqueles que utilizam intensivamente fontes energéticas de origem fóssil sofrerão um acréscimo em seus custos proporcional à compensação imposta, dando início a um processo de ajuste com efeitos bastante negativos para a economia nacional. Além disso, ao instituir a obrigatoriedade de prefeituras implantarem e manterem aterros sanitários com dispositivos de coleta e aproveitamento do gás metano, o PL pode ainda prejudicar as contas públicas de diversos municípios.
3) O problema da adicionalidade O ponto mais questionável do Projeto de Lei em pauta reside em sua natureza conflitante com o que vem sendo negociado pelo Brasil no âmbito da UNFCCC. Nesse contexto, deve-se destacar o efeito do PL sobre a possibilidade de utilização do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo como instrumento de promoção do desenvolvimento sustentável no Brasil e meio preferencial através do qual, segundo a Convenção, o País deve contribuir para
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o alcance do objetivo fundamental da mesma, pelo menos em um primeiro momento. Quando o Estado brasileiro determina por força legal a compensação das emissões de GEE associadas às atividades de alguns dos principais atores econômicos nacionais, está de fato estabelecendo um novo padrão de business as usual. Dessa forma, a adicionalidade em termos de redução de emissões proporcionada pelos projetos de compensação compulsória poderá ser contestada em uma eventual candidatura à obtenção de Reduções Certificadas de Emissão, fazendo com que o País deixe de aproveitar oportunidades oferecidas, por exemplo, pelo Mecanismo de Desenvolvimento Limpo.
4) Desrespeito aos princípios do Desenvolvimento Sustentável Apesar de destacar o tema em seu Artigo 2º, o PL 3902/ 2004 não está alinhado com os princípios do Desenvolvimento Sustentável, que pressupõem o equilíbrio das dimensões econômica, social e ambiental. Ao privilegiar mecanismos que visam ao alcance de objetivos ambientais – mitigação de emissões de GEE – sem considerar a dinâmica dos efeitos econômicos e sociais decorrentes dos mesmos, o Projeto de Lei, em nome de uma possível preservação do meio ambiente para as gerações futuras, prejudica as gerações presentes, colidindo assim com o conceito básico daquele paradigma de desenvolvimento.
Conclusões e sugestões O Projeto de Lei deve ser reformulado de modo a: • Não estabelecer mecanismos de compensação por emissão de gases de efeito estufa. • Alinhar-se com os esforços realizados até o momento pelo governo brasileiro no âmbito das negociações da UNFCCC, com a
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Resolução nº 1 e com outras diretrizes da Comissão Interministerial de Mudança do Clima; • Alinhar-se a outras iniciativas governamentais ou a dispositivos legais
nas
áreas
de
eficiência
energética
e
de
estímulo/
regulamentação do uso de fontes de energia renováveis; • Reconhecer
que
os
esforços
do
Brasil
relacionados
à
estabilização da concentração de gases de efeito estufa devem estar focados na geração de “créditos de carbono”, derivados de projetos que reduzam a emissão ou promovam a captura/ seqüestro de GEE, comercializáveis nos vários mercados de emissões que estão se estruturando em nível mundial; • Estabelecer marcos legais e mecanismos de fomento e capacitação capazes de estimular o setor empresarial nacional a desenvolver projetos capazes de gerar “créditos de carbono” com valor reconhecido nos diversos mercados de emissões.
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