Manifesto/01_Histeria

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O certo é certo, mas só quando é o meu certo. Sim, por pensar diferente de mim sua linha de raciocínio é falha, você é débil. Calma, não precisa se preocupar, está tudo bem agora. Eu estou aqui para tomar todas as boas e velhas decisões sensatas por você, qual jovem que adquire a tutela de alguém senil. Impeachment Já! Meu comportamento denuncia certa afetação, mas quem não se deixaria afetar por tamanho amadorismo? Exagerado, jogado aos pés da minha sacada enquanto vocifero insultos com minha imponente panela na mão, eu sou mesmo exagerado. Adoro essas manifestações inventadas. Volta pra Cuba! Posso ser taxado de neurótico extremista, mas, por desencargo de consciência, eu chamo aquele comunista de camisa vermelha de covarde enquanto ele atravessa o vão do MASP com sua filhinha nos braços. Eu sou incansável, sou aquele que se aglomerou em torno daquela mulher enquanto ela questionava a legitimidade do meu protestar para apontar dedos e bradar


palavras degradantes. Suas palavras de cúmplice não serão ouvidas, não aqui. Intervenção Militar! Defendo a separação do Brasil em Norte e Sul, que a Dilma governe só para aqueles que votaram nela. Pobres sanguessugas, só vivem de Bolsa Família, eu sustento todos eles. Também não é problema meu se aquele menino não teve a estrutura familiar/material que eu tive. É safado, tem que ir preso mesmo. Roubou, prendeu. Matou, morreu. Luto Brasil! Venha a nós o meu reino. Seja feita a minha vontade. Eu sou o sal da terra, sei disso enquanto visto minha camisa da seleção brasileira, faço check in na Linha Amarela e tiro foto com meus amigos policiais. Eu iria embora para Miami se já não tivessem me deportado.

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Que agonia pode surgir do momento em que Deus (ou deuses) nos tira a poesia? Orlando Mollica, o falecido artista plástico e meu primeiro professor de desenho, me disse uma vez que inspiração não existia; que essa coisa de precisar se inspirar para criar era mais uma invencionice romântica ou uma desculpa para a mediocridade de alguns. Mollica, bem como muitos outros artistas contemporâneos, acreditava que o importante no fazer arte era saber olhar. Porque muitas vezes poderemos enxergar através da pedra e outras vezes ela vai se mostrar impenetrável aos nossos olhos. Logo, o que coloca os artistas em


postura histérica e imóvel diante do desafio da criação? Quando o plano pictórico, ou plano ficcional, ou compositivo se tornam uma pedra opaca e intransigente à necessidade de criar? Se levarmos em conta a educação visual e as diversas formas de olhar o mundo, podemos afirmar que a visão (não necessariamente a física, mas a criativa/intuitiva) é o primeiro agente no processo compositivo. Logo, ver é criar um vocabulário de símbolos, conjuntos e elementos, e o exercício artístico decorrente desse vocabulário é o registro revisional do que foi apreendido. Bem como a composição ou criação de uma peça de arte é a necessidade de esvaziar de forma calculadamente desordenada tudo aquilo que foi revisto e exercitado. Claro que o bloqueio e a interrupção no processo criativo podem se apresentar como uma crise, mas é importante interpretar a forma como o processo ressoa e se expressa, como a pré-obra responde às investidas do artista. Por muitas vezes, a obra deve ser revisitada, uma performance deve ser readaptada, etc. A superfície material, ou temporal ou imagética em que os artistas depositam e sobrepõe os elementos de criação nunca está “seca”. Talvez a obra esteja sempre aberta e em progresso. Sendo assim, a crise do processo criativo passa por duas grandes dificuldades: a vontade de criar e não conseguir recolher ou organizar nada no glossário mental de referências; e a interrupção da obra por esvaziamento ou exaustão. Picasso costumava dizer sobre alguns quadros “Este aqui precisa descansar.”. O tempo de respiro da arte por muitas vezes é sufocado pela nossa ansiedade histérica de querer cortar caminhos ou pelas tentativas de reproduzir exatamente aquilo que você pensou e projetou de forma bem rígida. Talvez essa discussão de ser inteiramente fiel ao “projeto inicial” nem exista

mais depois do Modernismo e a maior preocupação com a liberdade da arte e não com a liberdade na arte. Comecei com o trecho da poesia da Adélia porque acho linda a possibilidade de criar com o vazio, discutir sobre a ausência de arte. Talvez Adélia acredite em uma inspiração e atribua a Deus essa intervenção criativa, mas acredito que o poema possa ser interpretado de outra forma, como se o maior desafio do artista e seu eterno estado de aprendiz tenha origem no ato de ver pedra e enxergar monólito.

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A “Um Copo de Cólera”, do Nassar. O meu colchão está cheio de buracos. Rememoro suas posições cada vez que, entre um sonho e outro, venho à realidade com a boca seca, dos lábios até o fundo, um oco. O gosto é horrível. Eu lavo a boca, bebo água e lá no fundo, bem no fundo, ainda sinto aquele gosto insistente. Penso em sair, em ir ao médico. Penso na poeira que os carros vão levantar, no cigarro que a minha mãe fuma com o banheiro fechado e o gosto que ficou espalhado pela casa misturando-se ao sabor da doença; eu odeio esse cigarro que ela fuma por todos os


cantos, sem perguntas, ela se tranca de cômodo em cômodo e o faz repetitivamente. Rotineiramente, eu reclamo e ela continua. Eu procuro na agenda o telefone de um médico otorrinolaringologista, a especialidade da minha infância, das noites de desespero e compressa gelada na testa, um ritual de boa noite. Estou irritada, sinto cheiro de infância, exatamente naquele instante em que essa mulher surge dourada e com cara de debochada para perguntar se eu não durmo. Não, eu digo, com uma boca que não quer abrir, sussurrando em desagrado que procuro um médico. Faz isso depois, você me atrapalha sentada na sala. Sinto mais dor, sinto o sol cerrar os meus olhos e sinto ódio daquele rosto que por anos parece atormentar os meus pensamentos – ela fareja tudo. Falo que não vou sair e que os incomodados que se mudem, que eu preferia estar sozinha. Ela mais uma vez diz que isso é insônia, que eu deveria ir ao neurologista, que viro noites, que eu só quero saber de farra e que estou doente porque o corpo não aguenta minha vida de zona, mas que ela, ela não, ela todo dia está com a vassoura na mão e presa em casa. Ela fala que brigou com meu pai porque ele não quer dar mais dinheiro, ela reclama do meu irmão que anda tão pão-duro, ela fala principalmente dela mesma até quando fala dos outros. Sinto dor, sua louca!, estouro. Ela rapidamente parece entender, como se sempre estivesse preparada para sair vitoriosa, como se conseguisse o que queria desde o princípio, por isso, em resposta rápida, ela berra Louca não!; piada, eu sinto que é tudo uma piada. Sinto que estou com tanta dor e raiva, que nada mais me para e é aí que meu peito es-

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tufa desordenadamente, nas proporções de um corpo doente que não aguenta; se digo assim é porque me toquei do ridículo enquanto falava com aquela mulher pequena e que eu já não via mais sentido em comprar briga desde a adolescência das inseguranças. Ela antes, tão altiva, minha matrona e do universo, a única capaz de segurar as pontas e resolver as coisas, que sempre me puxou nervosa e determinada como um comandante que afunda com o navio porque antes era grande demais seu poder, enquanto eu, nessa postura petulante, mais parecia uma galinha qualquer de natal, com asas que não voam, pés minúsculos que não suportam e uma irrealidade somente tragável caso ninguém questione, foi assim que eu, filha tosca com os berros enfatizadores das palavras finais, afirmei: Vá cuidar dos seus problemas mentais. Ela, mais cômica do que nervosa, meio sem palavras quando viu que eu não ia soltar aquele osso, foi para perto do quarto em que dormia o meu irmão, para palco qualquer coisa servia, nem que fossem os latidos da cachorra, e só pôde questionar, Ah é? É isso?, o que era nosso sinal inconsciente de arrego, uma espécie de momento para montar a autoimagem do nosso patético, para perceber o peso da grosseria e eu ali, Torre de Babel prestes a desmoronar, segui, com o mais alto que o meu tom rouco de voz pôde, reafirmei que sim, vá cuidar dos seus problemas mentais e foi o que repeti incansavelmente até minha voz daquela distância se sobrepor à dela. Bati a porta às minhas costas em busca de qualquer tremor nas paredes, para demonstrar com confiança avassaladora que para o espetáculo eu também chamo o público. Silêncio. Durmo pouco, não te-

nho nem tempo de notar os meus sonhos nesse torpor diurno. Sinto o calor de um recém-chegado verão que me força a pensar em todas as datas festivas, mas agora só sinto o cheiro do suor no lençol totalmente retorcido abaixo do meu corpo, que, pelos efeitos do sono, consegue se acalmar esporadicamente. Balanço as pernas e estou inquieta de novo, aquele cheiro que, embora eu não sinta por conta do nariz entupido, consigo perceber só de sentir a minha pele grudar. A garganta fechada me lembra de que cada vez mais se aproxima um dos meus maiores temores: o dia que perderei a minha voz. Desde criança, qualquer sereno a levava de mim; quando adolescente os estresses que eu julgava serem ocasionados pelas paixões, até o dia que percebi que mesmo os sentimentos aparentemente mais nobres são inventáveis pelo ócio; agora, ela está certa, são as farras. Minha voz não aguenta as farras. Estou paranoica e as palavras acotovelam-se na minha cabeça até o ponto de eu não conseguir mais seguir: a luz do meu quarto é inebriante, e meus olhos se fecham até abrirem mais uma vez com ela sentada ao meu lado e com o meu corpo que se agita com o tremor daqueles quilos a mais na cama. Ela passa a mão nos meus cabelos e pede ajuda para resolver um problema no celular, coisa boba. Ela coloca a mão no meu rosto, uma mão tranquila e que sabe o que faz, ela diz que eu pareço uma criança como o meu pai, ela se pergunta como é possível alguém largar a infância e ainda continuar frágil-frágil-frágil como uma criança: Eu não te entendo menina, você tem um baú nesse teu peito.


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Àquela altura da alvorada, o sol já não emergiria mais atrás da linha do horizonte. Por cima das colinas, podia-se avistar nuvens cinza-lilás dispersando-se languidamente, possuídas por uma preguiça quase obstinada, e encontravam-se com outras camadas cinza-negrume – a mensagem do céu era límpia, o dia, mais uma vez, permane-


ceria doente na cidade de Caratinga. Sobre o extenso campo da família Bartoli, o nevoeiro cobria, tal como um véu, a visão dos pôneis galopando livremente, assim como os cães, que, a revelia, escolhiam locais para as suas cagadelas e mijadelas; a relva dobrava-se por intermédio de uma brisa invernal, e, úmida, contrastava o seu divino verde com a brancura daquelas milhares de partículas dançantes feito almas penadas. Oh, mas veja bem! A sra. Dorote, com uma cutela em mãos, descortinava mais uma vez todo o silêncio da alvorada, escrutando o nevoeiro, correndo pra lá e pra cá – que risível! - atrás de um frango que fugira do galinheiro. E o maldito frango dava dois pulinhos pra lá e pra cá para fugir da velha alemã que parecia muito bem saber o que estava fazendo. Movendo-se através dos cães preguiçosos e dos pôneis, que agora comiam capim, a sra. Dorote, por fim, fatigada da perseguição à gato-raro, inclinou-se para frente, golpeando, com o cutelo, logo no pescoço do animal, e, num assalto, um galo cantarolou bem longe, dispersando-se no ar e tombando em silêncio, novamente entregando o posto ao murmúrio da brisa. So ein dummes Huhn!¹, pensou a sra. Dorote, segurando o corpo que ainda debatia-se, embora a cabeça sabe-se lá onde poderia estar, e jorrava sangue, tocando os seus braços pálidos, seu vestido decotado e em seus pés feios e sujismundos. Nada melhor do que três carros para buscar os convidados! - em sua habitual inexpressão ao acordar, sentada em sua cama com as pernas cruzadas e despida de qualquer traje (uma dama, diria qualquer impressionista), Ilda perguntava-se quantos carros seriam o suficiente para buscar os convidados do furtivo jantar que o capitão Bartoli daria à noite. Talvez por não haver algo de maior relevância para refletir naquele instante (quase terminara Austen à noite retrasada, e jamais ousara tocar nos livros políticos do capitão Bartoli, e o triunfo de Zé sobre Paulo Carijó nas eleições para prefeito jamais seria algo incerto, visto que ninguém melhor do que um Coronel para findar com a maré dionsíaca que assolava Carantinga), conta-

va, pela milhonésima vez, os convidados. Sim, Zé viria. E Alberto, do Rio de Janeiro, buscando o silêncio mental após escrever uma “fabulosa” tese sobre o regime atual – nada compreendia sobre este assunto – e os casais Amélia e Candido, vindos da Índia. Três, com certeza seriam três carros, assim o capitão Bartoli ficaria satisfeito. Três, e levantou-se, pois como estimava assistir a alvorada! E os pôneis sendo levados, após longas galopadas, por Rômulo Curcelli, mas um preto tem lá que ter um sobrenome?, ao celeiro. Oh, mas que inquietação, porquê três carros e não quatro? Argh, como detestava os números ímpares! O capitão Bartoli costumava, todas as manhãs, trancar-se em sua biblioteca, sentar-se em sua poltrona cor ebano, e ler o jornal diário. Naquela manhã, lia uma história qualquer sobre duas prostitutas comunistas presas, na tarde passada, em um boteco na cidade de Caratinga, quando ouviu, de súbito, o ranger da porta atrás de si. “Papa, andei pensando. Mas três carros seriam o suficiente para buscá-los!” Ilda fechou a porta atrás de si, dirigindo-se ao capitão Bartoli. “Mas que modo aborrecido de surgir, Ilda!”, disse o capitão, insípido, e aprumou-se na poltrona, cruzando as pernas, pois desaprovava esta conduta da filha que tanto lembrava a mãe – a incoveniência. “Desculpe-me, papa.” disse Ilda, dócil à censura do pai. “Mas é que há muito não temos um jantar...” “Que não se repita, Ilda”, anelou o capitão por um desfecho, buscando onde se perdera no jornal. Mas, de repente, um bafejo abriu a janela, dando margem à poeira adentrar, e Ilda apressouse em ir à janela para fechá-la, enquanto o capitão Bartoli prosseguia a sua leitura, indiferente ao ocorrido. O dia estava pálido, febril, mas as árvores muito revoltas, chacoalhando os seus ramos para todos os lados. “Ilda”, ouviu atrás de si a dominadora voz de seu pai, e virouse para olhá-lo, uma vez que ele não admitia que alguém estivesse de costas a ele enquanto proferia algo “trate de perguntar

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à Dorote ou à Cecília se irão precisar de algo mais, aquela velha e aquela mulata não vão estragar o meu jantar. Ah!...” e calou-se, como se quisesse avaliar o peso de uma decisão, pois, como um capitão, necessitava avaliar o peso das decisões, mesmo que elas fossem apenas sobre a mudança de horário de alimentar os pôneis, e baixou o jornal, pensativo, fitando-a “não... não diga nada ao preto. Vá, veja se tem algo a fazer e não me venha com nada que não contenha uma gota de telo.” A criadagem tomava café da manhã na cozinha – torradas baratas com requeijão velho e um café amargo feito pela sra. Dorote. Cecília Sant’Anna, sorvendo o café com os seus lábios tênues, comentava sobre a exuberância das praias cariocas à Rômulo Curcelli, com dosagens medianas de uma nostalgia, enquanto a sra. Dorote, concrentada, depenava o frango na pia. Mas que mulherzinha enfadonha!, pensou Rômulo, embora tentasse parecer gentil para com ela, mal sabia que as suas histórias o enleavam por demais! O problema das mulheres é a capacidade de matraquearem tanto e nada quererem ouvir quando é um homem que diz, argh, que Deus a leve para longe daqui – no entanto, no entanto, veja só o modo como ela sorve com café com os lábios, até um daqueles homens que escrevem frases bonitas e complexas veriam o quão dissimulados aqueles lábios são, e, sim, tinha lá sua... sua... No instante em que buscou, em seu acervo limitado de palavras, uma airosa para descrever Cecília Sant’Anna (inteligência, talvez?), tombou-se a sua linha de raciocínio ao avistar, no umbral, Ilda, portando-se, como de costume, hirta, e vestindo um quimono cor vinho. “O capitão Bartoli quer saber se tudo encontra-se nos eixos, não quer que o seu jantar seja estragado como da última vez.” “Posso assegurar-te que sim, sra. Bartoli.” respondeu a sra. Dorote, compenetrada em continuar depenando o frango. “Excelente, Dorote. Papa e eu não gostaríamos de ter infortúnios como da última vez, ainda mais se eles vierem da criadagem.” Rodou nos calcanhares, de maneira que emanava em si uma su-

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perioridade que lembrava por demais a sua mãe. Mulherzinha infeliz, cochichou Cecília, ajeitando os cabelos encaracolados enquanto ainda mastigava uma lasca de torrada. Podia-se dizer o que quisesse, ela. Insultava-nos e, como de costume, como um leão numa savana qualquer após deleitar-se com uma hiena, partia para nada fazer naquela sombria saleta. Via-os todas as manhãs, ela. E, após vê-los, todas as manhãs, emergia em si uma curiosidade – mas o que pairava em suas cabeças à seu respeito?! E sobre o que cochichavam tanto? Sim, poderia ser sobre papa, ou aqueles jovens que eram mandados para cá e sabe-se lá para onde se dirigiam depois. Oh, mas como adoraria saber também! Pensavam eles que possuía uma resposta por baixo de seu travesseiro, mas, não, não, indagava-se sempre o que escondia papa atrás das portas enquanto os seus amigos por lá encontravam-se? E brotou em si uma cólera, tão pequenina feito uma semente – Queria poder compartilhar de um segredo, um segredo, poder ouvir certas conversas não apenas por trás de portas, mas saber de coisinhas mínimas que ninguém mais poderia saber, ou poder segurar em suas mãos algo tão denso, sentir estar carregando algum tipo de verdade que, caso tombasse de suas mãos, desencadearia, tão logo, um efeito dominó, mas agora, da janela da sala de estar, avistando os cães brincando no sereno, travessos como crianças amantes de lama e mato, notava que os dias constituíam-se em seriados infindáveis de destilado marasmo. Sentada na poltrona de sua mãe, sempre lendo os clássicos, e nada mais nada menos. Sob o pretexto de que possuir amigos em uma cidade ao qual a ausência da moralidade já havia se tornado uma grande questão pública, o antro do diabo, como chamava os moradores de Miradouro, com todas as prostitutas em barzinhos noturnos transando com caminhoneiros terríveis para pagarem suas contas de luz, e comunistas pra lá e pra cá (mas todos falam destes homens, quem são?!), e nas ruelas não iluminadas alguém sempre esperando por algo, limitava-se em cuidar dos poucos afazeres domésticos em que viver num local onde há gover-


nanta e criada podem oferecer – feixes pálidos incidiam sobre o seu rosto, e os seus olhos assumiam uma tonalidade mel raramente vista, os cães ladravam lá fora também, e Aurora encontrou perdida uma cabeça de frango, ao qual os outros brigavam por -, mas as suas mãos, trêmulas novamente! Ah, Alberto a caminho, iria encontrá-lo à noite, e na manhã seguinte, uma vez que havia ganhado um prestígio, pelo que se sabe, escrevendo sobre o regime atual – nada se podia compreender sobre isto, como a Sra. Bartoli costumava inquirir entre os risinhos abafadinhos e o sorver de seu chá com as amigas. Era estúpida, uma hiena que sempre seria devoradas pelas leoas – apresentar-se à sociedade, ter um par para dançar? Mas que luxúria para uma menina que mal compreendia política – o sereno transmutou à gotículas mais espessas, e Rômulo Curcelli, ah, mas aquele preto!, tentava levar os cães para o celeiro dos cavalos com um cajado como se um fosse um pastor, pois papa destestava vê-los sobre a chuva -, e as ondas continham-se em si, mas logo eram impelidas, por outras mais revoltas, a avançar contra uma costa e lambê-la com toda voracidade que habitava em seu corpo. Suavemente andejou à poltrona que era de sua mãe, sentou-se e, languida, abrançou-se por uns minutos, buscando aquecer os seus pálidos braços daquele gélito hálito que adentrava todas as brechas daquela imensa sala de estar, e acossava o seu interior tenebrosamente. A chuva capotava em rajadas espessas sobre a relva, sempre ondulante. Ora ou outra, influenciadas pela brutalidade do vento, as gotículas pareciam mover-se para o lado e para o outro; desprendeu-se aqui uma goiaba carcomida por um morcego, capotou e, num súbito, como se por intermédio de um pontapé de um bebê de dois anos que mal sabe o que faz, rolou até uma poça d’água que formava-se aos poucos. A água adentrava no celeiro, por baixo da enorme porta sujismunda, e os cavalos relinchavam, assim como os cães, que, também turvos por conta do rosnar do céu, buscavam por esconderijos estratégicos. Ao alto, no teto, uma aranha parecia tecer a sua teia minuciosamente, com precisão e experiência de um tece-

lão. As horas galopavam, o relógio sempre tiquetaqueando. Ilda, em seu quarto, galgava em círculos até a janela para certificar-se se a chuva continuava intensa. Sim, continuava, porém o céu já não mais encontrava-se com suas camadas de nuvens negras, mas agora um pálido-pérola o cobria em totalidade. O capitão Bartoli também movia-se em círculos na sala de estar, nadando em seu próprio oceano de lembranças - Oh, mas aqueles dias chuvosos em que a Sra. Bartoli sentava-se ao seu lado com fumos e debatiam sobre inúmeros temas que interessava-o. Acreditava compreender Mussolini, Plínio Salgado, no entanto, sempre estava equivocada quanto aos assuntos políticos – embora nunca reclamou de suas reprimendas, sabia-se pôr em seu lugar, compreendia toda a supremacia masculina quando se tratava de política, mas admirava-a por querer compreender, ao contrário de sua prole, ao contrário de Ilda, que nada compreendia e nada queria compreender. Ouviu passos atrás de si, pesados. “O café da tarde, Senhor Bartoli.” era Dorote, com a sua trivial apatia, segurando a bandeija de café com um pote de açúcar, e dirigiu-se à mesinha de centro onde pôs a bandeija. “Mais alguma coisa?” hirta, à sua frente, adoraria poder proferir os seus insultos naturais àquela mulher que o criara, embora, agora, trabalhava-a para si como a sua criada. Ela era o reflexo de suas novas preocupações, pois estava velho, suas energias vitais feneciam aos poucos e era algo ao qual jamais poderia lutar contra. “Não, obrigado, pode se retirar.”, respondeu o sr. Bartoli. Aquela mulher havia o criado, ela. Mesmo assim, nada poderia ser considerado, era a sua criada, e, vendo-a partir com o rabo entre as pernas, ajeitando o seu velho vestido cor bege, notou que havia esquecido de dizer para preparar o seu traje para noite, uma vez que a chuva já cessara e os pássaros voltaram a cantarolar. As luzes externas foram acesas às 18:30, e a relva iluminada agora assumia um tom de verde sombrio, quase misterioso, sempre úmida e ondulante por intermédio da brisa. Podia-se avistar

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morcegos pairando para lá e para cá em torno das árvores frutíferas, que, afastadas de qualquer iluminação, pareciam guardar um nefasto segredo por entre os seus ramos balouçantes. Pois agora que a palidez do céu desmaiara, pensou Ilda, vislumbrando a soturna cena da janela de seu quarto, e um gato atravessava o seu campo de visão, era Mathus, sabia bem que o era, o gato da vizinha, e a noite emergia, sentia que tudo estaria entregue ao mistério das inifinitas possibilidades. Mas como adoraria penetrá-lo em seu mais airoso núcleo e roçar à vida - Pois viver, além do mais, é entregarse. Os convidados estavam a caminho. Amélia logo logo estaria à mesa, segurando a sua taça de vinho, proferindo qualquer coisa sobre a sua viagem, mas tão pouco ouviriam, pois os homens transmutavam o assunto para política numa celeridade insólita. E Alberto, ao seu lado, balbuciaria qualquer coisa como em confidência – não, teria de conterse novamente dessa vez, pois não podia pensar em sua imagem de outro modo senão na figura de um intelectual. Virou-se, calcorreando o quarto, dirigiu-se até a sua penteadeira, onde sentouse, encarando-se no grande espelho à sua frente. Não era terrível, mas havia em seu rosto qualquer coisa que a lembrava as tristezas juvenis. Oh, e percorrendo os olhos por entre os colares esparramados à sua frente, sim, seria aquele, aquele colar de rubi que fora entregue à sua mãe por sua tia-avó, quando a mesma partiu de uma Alemanha falida, uma Alemanha afogada em lavas de vergonha e desespero, e instalou-se aqui por não querer ser vista como um fracasso perante os seus amigos que ostantavam luxúria em um pomposo Rio de Janeiro. Por Deus, por Deus, e apressou-se à por a jóia, uma vez que buzinas agora eram ouvidas de modo estrídente e enfadonho. “Mas desde que Olívia faleceu, ah, como sentimos sua falta!” À media que descia escada, escorando-se no corrimão, conseguia ouvir a voz de Amélia vinda da sala de estar. Antes de descer o último degrau, respirou profundamente – algo

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murmurou em seu ouvido, como um sopro cálido, que seria uma longa noite. Adentrou a saleta. O campo de visão moldava-se como uma uma cena de um espetáculo terrível. Sentado na poltrona principal, o capitão Bartoli, segurando um copo de uísque com sua mão direita; logo ao seu lado, próximo à janela, Amélia fumava um cigarro de maneira teatral, enquanto, encostado à parede, Candido, com as mãos nos bolsos de sua calça; Zé, alheio aos outros, sentado no furtivo divã, parecia importar-se com os seus próprios devaneios – a eleição não encontrava-se muito distante; por fim, Alberto, ah, Alberto! Sentado à poltrona onde sua mãe costumava sentar-se nos dias chuvosos para tricotar ou ler ou debater qualquer coisinha mínima sobre política com o seu pai, de pernas cruzadas, com os seus olhares densos, de um verde escuro que transmitia a veemência da juventude boêmia, fitou o seu corpo sobre aquele vestido branco que combinava tanto com aquele colar de rubi. Ele admirava aquele corpo há muito, e os cabelos castanhos que, em ondulações tênues, caíam sobre as suas costas. A seiva de sua inocência pulsava por dentro daquele corpo pálido. “Mas as mulheres, sempre atrasando!” disse Candido, que, embora anelando ser cômico, sua voz grave mais parecia repreendê-la. “Oh, não seja muito duro, meu querido” disse Amélia, após tragar o seu cigarro, indo ao seu favor. “Está linda querida, nunca a vi tão linda como esta noite!” deu uma baforada de leve, que, suspendeu-se no ar por uns segundos e dissipou-se. “Pergunto-me sobre o que conversavam.” Atravessou a saleta e sentou-se ao lado de Zé, que, num assalto, voltou à terra. “Oh, falávamos sobre os vândalos cariocas que invadiram a casa de Olívia! Saquearam quase tudo! Oh, só chegarmos da Índia e recebemos uma tempestade de notícias ruins” respondeu Amélia, movendo-se sobre a saleta até chegar ao cinzeiro, que encontrava-se logo sobre a escrivaninha. “Creio que já cuidaram deles da maneira correta!” proferiu o capitão Bartoli.


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“Sem duvidas, Lorenzo. Eram uns militantes de sabe-se lá onde que frequentavam um barzinho de uma travesti imunda chamada Eva.” Ilda sentiu-se limitada. Nada compreendia sobre o que eles falavam, embora, sentia-se interessada pelo assunto, uma vez que, à medida em que o rumo da conversa mudava à política para combater os tais “militantes”, pensava aquilo tudo ser muito instigante. O Rio de Janeiro em chamas. Uma tal de linha dura. Óculos pretos, grande líder. Homens que mal podem voltar ao país. Queria saber de mais, mais. Amélia parecia compreender sobre qualquer coisa, quando fumava daquele modo teatral e conversava com os homens sobre política – um ar de domadora de leões, com a sua enorme chibata na cintura. Oh, e Alberto, um daqueles homens intelectuais que sabia bem o que dizia. Queria penetrar naquela conversa, poder falar de suas próprias convicções, mas quais? Não, Ilda ruborizou-se, pois agora Alberto a encarava, embora de relance. Queria ouvi-la dizer qualquer coisa sobre o que estavam falando. Sentia-se pressionada, pressionada, mas até que por fim Dorote adentrou a saleta, anunciando que o jantar já estava pronto, e todos começaram a retirar-se. Amélia veio ter com ela, segurou em seu braço, comentando qualquer coisa sobre sentar-se ao seu lado. Havia tempos que a sala de jantar não achava-se assim, tão limpa. Os convidados pareciam dar-lhe um aspecto vivaz, com os seus assuntos abafados sobre um tal de Emílio Médici, o êxtase do assunto parecia pairar sobre toda a sala. As multinacionais iriam investir no Brasil. Oh, mas isso não é incrível?, procurava uma boa expressão, sempre aos bons moldes de uma cordialidade, para concordar com qualquer um sobre qualquer assunto, embora nada compreendia. Havia aprendido com mama. E como ela adoraria este assunto! Amélia, ao seu lado, pareca captar as ondas de questionamento que vinha de si, mas Alberto, do outro lado da mesa, à sua frente, não encontrava-se satisfeito com o seu silêncio. Candido sempre parecia entre-

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gar um fôlego ao assunto, papa amava-o por isso, uma enzima para qualquer tipo de conversa, levava-os longe, mas como Zé parecia alheio! Cortava o seu frango com tamanha languidez, ouvia e concordava, comentava poucas coisas, mas a sua mente achava-se noutro local, distante. “Dou-lhe pratas para saber o que andas pensando, sra. Bartoli.” disse Alberto, de chofre, após bebericar um gole de seu vinho. “Oh, sim, adoraríamos saber o que ela anda pensando!” Amélia, com bastante veemência, virou-se para olhá-la. Sua face estava com bastante rubor, e não sabia o que dizer. “Oh, não, não! Dorote preparou-nos um frango delicioso para que seja deliciado com uma conversa aprazível. Os meus pensamentos são por demais desprezíveis! Continuem, continuem!” “Querida, não seja tão mórbida, conte-nos...” “Não vamos amolá-la, Amélia, Ilda não se interessa por política ou qualquer outra coisa como a sua filha, Clara. Creio que terei de mantê-la por aqui o resto de sua vida.” proferiu, com peso, o capitão Bartoli. Ilda corou, envergonhada e ao mesmo tempo melancólica. O capitão Bartoli voltou ao assunto que estava comentando, sobre alguma coisa quanto ao petróleo. E ninguém, a não ser Zé, notou, quando, de cabeça baixa, limpando os seus trêmulos lábios com o guardanapo, uma lágrima capotou. Mastigava o frango, a pálida carne, e lembrava-se do instante em que viu Dorote arrancarlhe umas penas com uma faca. O cheiro de morte parecia vir com o vento, o cheiro de rosa de cemitério, a mesma ao qual precisou jogar no túmulo de sua mãe – doendes verdes perseguiram o seu sono toda a noite, naquele dia terrível, ao qual não pode dormir ao lado de seu pai, pois ele uma mulher qualquer encontrava-se por lá. Havia os visto, eles, fazendo amor, pela greta da porta. Mas por quê os pensamentos pareciam emergir agora? Os dedos trêmulos escondidos entre os joelhos, e cada órgão de seu corpo parecia mover-se pra lá e pra cá, as-


sim como os seus nervos, que pareciam dilatar-se a todo instante. O asco quanto ao mundo, uma porta de entrada à loucura. Não, parecia ser algo mais, sempre algo mais, como se mergulhasse sempre no mais denso. Amélia e Candido eram um casal sempre sorridentes, havia os visto um dia antes de irem à Índia, mas, e agora o avistava, Candido, com o seu sorriso maroto, que sempre vistava o seu quarto às noites de verão parecia não importar-se com a sua esposa. Um belo falo, aliás. Sabiase bem que nada tinha de virginal, não, alma de vadia em pele de freira. Cale-se, dentro de si, cale-se já. Masturbar-se não seria uma má ideia, aqui, logo de frente. Queria os dedos de Alberto tocando o seu orifício anal. Não. Sim. O que?! Abruptamente, Ilda, impelida por algum tipo de força de sua própria natureza, levantou-se da cadeira, e berrou, berrou bem alto. Berrou com toda a voracidade que nem sabia existir em si. Todos se assustaram. Balbuciava algumas palavras inteligíveis, alguns palavrões que nem o capitão Bartoli sabia possuir conhecimento. Queria matar alguma mosca, engolir alguma serpente no meio do matagal, galopar feito algum tipo de pônei. Amélia levantou-se de sua cadeira, assustada, agarrou-se em Candido. O capitão Bartoli tentava agarrá-la com os seus fortes braços, mas Ilda debatia-se, debatia-se, e procurava arranhá-lo os braços, o rosto, cospia a todo instante. Zé afastou-se, buliçoso, assim como Alberto. O capitão Bartoli parecia lutar com a sua própria filha. Ilda, então, lascou-lhe uma mordida no rosto, que o fez afastar-se, dando tempo de Ilda empurrá-lo, fazendo-o cair sobre a mesa. Virou-se bruscamente e partiu da sala de jantar, deixando todos assustados e inquietos. O vasto campo achava-se turvo perante os seus olhos. O céu, de algum modo, movia-se rapidamente. Estrelas eram engolidas por nuvens a todo instante. A lua também parecia não possuir escapatória para a onda de partículas que vinha em sua direção. Ilda correu o mais longe possível matagal adentro, onde o silêncio parecia ser oblite-

rado apenas por vozes que chamavam o seu nome. Não viu o pedregulho à sua frente e capotou numa pequena poça de lama, mas a sujeira parecia não ser tão desagradável à si, tudo aquilo parecia causar-lhe uma sombria volúpia, de modo que reclinava-se, gargalhando nefastamente e tocando cada detalhe do seu corpo, pois sentia-se livre para ser, seja lá o que isso significasse.

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Já não me lembro aonde estou. Também não me lembro de como cheguei aqui, nem há quanto tempo me encontro neste lugar estranho, escuro e cheio de fivelas e mordaças. Eu me lembro dele. Do quanto eu o amava. Me lembro da minha casa. Também lembro de como eu tremia naquela noite que parece ter acontecido há tanto tempo que já perdi a conta de quanto... Meu rosto ainda arde, mas dessa vez é por causa de todos aqueles choques. Eu ainda tremo, mas dessa vez é por causa de todos aqueles comprimidos. Em meus sonhos, ele ainda me visita.


Em meus sonhos, eu ainda o empurro. Em meus sonhos, eu ainda grito tanto que perco o fôlego. Em meus sonhos, aquele médico ainda vem me buscar. Todos os dias ele vem me buscar e eu acordo neste lugar. Por um momento, durante aquela letargia rápida do primeiro despertar, eu consigo me lembrar onde estou. E por que estou aqui. Me chamaram de histérica.

de de água sobre as chamas da fogueira. Me encolhi e abaixei a cabeça. O caminho até a saída parecia interminável e eu podia sentir os olhos de todo mundo pinicando minhas costas. Histérica. Tudo porque eu estapeei o cara que apalpou minha bunda.

Me chamaram de histérica. Bem, se parar para pensar, realmente, era uma conclusão óbvia, já que o segurança precisou me levantar do chão. Mas eu lutei. Sacudi as pernas e gritei com toda força. Porque eu sabia o que tinha acontecido. E o cara de boné vermelho também. Só depois que ele, o tal do boné, foi embora, sumiu das minhas vistas ao cruzar a entrada da loja, o segurança me colocou no chão, exasperado. “Histérica do caralho!” Um sussurro, mas eu ouvi. As pessoas ao redor cochichavam e me olhavam com desaprovação. Dava quase para sentir as alfinetadas de suas palavras. Todas elas me chamaram de histérica pelo menos uma vez. Comecei a sentir a vergonha abrandando meu ódio, como um bal-

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Eu poderia dizer que entrei em colapso. Novamente. Mas não diria isso, pois até meus lapsos de colapsos são previsíveis. Dessa vez é diferente? Eu notei que aprendi, sozinha a manter minha sanidade. E não foi com ajuda de artifícios que corroem meu fígado e embrulham meu estômago ou com palavras e conselhos e consultas e etc., que também embrulham o estômago. Aprendi que a sanidade, que é indiscutivelmente relativa, somos nós que mantemos e exatamente do jeito que queremos, que conseguimos ou que tentamos. Só que tudo que um dia se mantém em outro se perde. Às vezes à longo prazo, às vezes em questão de segundos e também quando você nem imagina que um dia teve. Que é o meu caso. O alí-


vio, a sanidade e aquele tipo de felicidade que necessitamos para nos encaixar dentro do senso comum estão na rotina, estão em nossos vícios. Não é questão de estabilidade, e nem a rotina é tão furtiva se não estiver ligada a algum vício. Trabalho? Música? Álcool? Drogas. Qualquer coisa. Acredito que tais vícios não surgiram para uma fuga da realidade, um ponto de escape, mas sim para manter as pessoas sãs, dentro do propósito. Que na verdade é só um: o de não enlouquecer. Ainda me questiono se seria errado “enlouquecer”. Tenho boas dúvidas quanto a isso. Seria ótimo tirarmos todas as nossas máscaras e mostrarmos quem realmente somos... Mas, na verdade, nem sequer sabemos quem realmente somos. Se a “insanidade” não abrisse novas feridas ou mostrasse que as antigas ainda não foram cicatrizadas, quem sabe eu poderia largar meus vícios e me aceitar como eu realmente sou. Mas isso é doentio. Então ocupo minha mente com tudo que posso, só para não ter que pensar no “sentir” ou no simples pensar, e sigo em frente. Não por perseverança, coragem ou garra. Não por medo. Mas sim por tentar existir, não sobreviver, simplesmente existir. Voltando ao Colapso. Eu cego meus olhos e cerro minhas mãos para o colapso. Deixo a mente trabalhando e a vida em stand by. Mas quando chega o Ócio. Como eu sinto falta de aproveitar o Ócio. De aproveitar de forma única como se o tempo pertencesse só a mim e a mais ninguém. Mas agora, cada minuto de Ócio é tortura. Não posso parar. E que não digam que não tentei. Eu sempre tento, mas não consigo parar. Não é esperança, já disse. É fadiga. É uma insistência doentia, que bem nenhum irá trazer. Tortura. Mas ainda há quem goste de torturas. Há quem precise de torturas para viver. E torturar a si mesmo para que se sinta vivo.

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My ride is late. My phone is useless! My love waits for me at the end of the road. We have a scene planned. A new girl to play with for my king and I. Where is my fucking driver? Curse you iPhone! Now isn’t the time to have no service. I cry, frustrated. I throw my phone, angry. Uber arrives, late. My emotions flare. Of

Meu táxi está atrasado. Meu telefone já era! Meu amor espera por mim no final da estrada. Nós planejamos uma cena. Uma nova garota para brincar comigo e o meu rei. Cadê a porra do motorista? Maldito celular! Agora não é hora de ficar fora de área. Eu choro, frustrada. Eu arremeço meu celular, estou irada. O Uber chegou, atrasado. Minhas emoções estão a todo

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course they are unreasonable, but I can’t hold them back. I am a woman and sometimes we act...neurotic. I am fiery, full of passion, driven to get what I want: Him & her. We meet, the three of us, under the palm trees, bathed in moonlight.

She undresses. I hesitate. She’s so thin. Model thin. Every photo we take, she looks better. Does he see it too? I mean, if I could just lose this belly fat, would I look like her? I lose focus on them due to my maddened dysmorphia. In a fit, I distance myself. In my possessed self rage, I mask the beautiful skinny girl. I tear at her skin, rip at her tiny waist. I pull out my whips, my restraints. I see her, just as hysterical about her body as I. Two wild women, only to be tamed by comforting orgasm. Doctors used to treat hysteria with orgasm, the woman was hysterical due to her uterus, it’s biology begging to be filled by the juice of a strong man. Vibrators solved emotional disturbances. He plays doctor. Our distorted bodies become vessels of magic, pure beauty, pure humanity. Our uteruses satisfied, we accept who we are, the way we are shaped, down to each and every hair on our heads and pubis. We are hysterical wild women. We are satisfied because of our madness.

vapor. Claro que elas são insensatas, mas eu não consigo contê-las. Eu sou uma mulher e algumas vezes nós agimos... de maneira neorótica. Eu sou ardente, cheia de paixão, impulsionada por conseguir o que eu quero: Ele & Ela. Nós nos encontramos, nós três, sob as palmeiras, banhados pela luz da Lua. Ela está se despindo. Eu hesito. Ela é tão magra (magra tipo modelo). Em cada foto que tiramos, ela sai melhor que eu. Será que ele enxerga isso também? Assim, se eu perdesse essa gordura localizada aqui na barriga, será que eu iri parecer com ela? Eu perco o foco neles devido a minha dirofia insana. Em um outro eu, mais em forma. Em minha raiva de mim mesma, eu mascaro a linda garota magra. Eu rago sua pele, rasgo bem nos seus quadris minúsculos. Eu tiro meus chicotes, minhas algemas. Eu a vejo tão histérica com relação ao seu corpo quanto eu. Duas mulheres selvagens que serão domadas apenas por um orgamos reconfortante. Os médicos constumavam tratar histeria com orgasmos, a mulher era histérica por conta de seu útero. É a biologia implorando para ser preenchida pelo suco de um homem viril. Vibradores resolveram distúrbios emocionais. Ele brinca de médico. Nossos corpos distorcidos tornam-se veis de magia, pura beleza, pura humanidade. Nosso útero, satifeito. Nós aceitamos quem somos, o jeito como somos de cada fio da cabelo em nossas cabeças até cada pêlo em nosso púbis. Nós somos mulheres histéricas e selvagens. Nós estamos satisfeitas com nossa insanidade.


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