Manifesto/01_ MOUVEMENT

Page 1

1 _________


2 _________


3 _________


4 _________


5 _________


6 _________


Pare. De um passo para trás. Agora corra. E salte. Movimente-se! A Manifesto/01 tem como base de ideal a sua reinvenção. Se descontruir e construir de novo. Buscar novos colaboradores, novas ideias, novos formatos. Estamos vivos! Somos um organismo, quase celular, e em constante movimento. E em nossa terceira edição, com meio ano de vida, decidimos parar, por alguns poucos segundos e observar o que se movimenta ao nosso redor. M O U V E M E N T é um registro silencioso do caos que gere nossas vidas, de fora pra dentro e depois pra fora de novo. Bem vindos a mais um capítulo do nosso manifesto sem fim.

7 _________


8 _________


9 _________


10 _________


11 _________


12 _________


13 _________


14 _________


15 _________


16 _________


Você já reparou no fogo? Existe algo de encantador no jeito como as chamas dançam entre os meus dedos. Ela se esvai. Eu a alimento com mais combustível, eu me deixo levar pela leveza dos movimentos. Eu sou atraída, eu me deixo levar. Eu me queimo. Como algo tão belo pode ser tão destrutivo? Espera. Eu tenho que me lembrar que estou no controle, ou pelo menos é o que eu gosto de pensar... Eu a privo de oxigênio, apenas o suficiente para que ela se torne uma centelha de luz, uma faísca. Eu a alimento com mais combustível, eu não estou pronta para deixá-la ir. Deixe-a ir. Eu abro os olhos. O fogo se foi, mas ele ainda queima. Eu posso sentir. Sabe aquela dor pungente? Ela permanece mesmo depois de não restar mais nada. Espera. Ainda resta alguma coisa. Ela vai te consumir, é o que ela faz, ela precisa do combustível. Espera. Eu ainda estou no controle. Eu corro. Você já reparou no seu corpo em movimento? Eu gosto de correr, correr livre assim, Forrest Gump, me dá a sensação de realmente estar indo a algum lugar. Eu gosto do meu corpo quando eu corro. Eu corro mais, corro até doer. Eu quero correr mais, mas a dor não deixa. A dor sufoca. Você já reparou na chuva? Esqueça sua meia molhada. A chuva dan-

17 _________


18 _________

ça em você, ela se adere. A chuva sempre consegue passagem, ela nunca foi tão bem-vinda. Eu me deixo molhar, eu me rendo. “God is in the rain.” Você já reparou nos pássaros? Eu tenho que chegar ao trabalho. Eu estou atrasada. O vento quer que eu me curve. Eu não vou me curvar. Eu paro minha bicicleta. Eu preciso respirar. Eu olho pra baixo. Respiro. Meu peito sobe e desce... Parece tão frágil desse ângulo. Eu olho pra cima. O céu. Nublado. Cinzento. Um pássaro costura o céu. Suas asas sobem e descem, mas ele não parece frágil daqui. Ele é livre Você já reparou? Estar em movimento não basta. É preciso um objetivo, é preciso seguir em frente. Você pode passar a vida correndo atrás da própria cauda, correndo dos próprios monstros. Ficar parado não é uma opção. O mundo vai te lançar em diferentes direções. Ele vai te desmontar e te montar outra vez. Mas algumas peças faltam. Sabe, o mundo não é dos mais atenciosos. Calma, algumas delas você recupera, outras você não consegue encontrar nunca mais e não há nada de errado nisso. Você consegue outras novas, você consegue. O que te move? O que te faz querer voar? Para onde você vai mover o seu mundo? Conta pra mim, por favor.


19 _________

por LetĂ­cia Daniel @ 2015


20 _________


21 _________


22 _________

– Esta é uma noite histórica. Hoje é o último dia de uma era. Amanhã, a esta hora, estaremos todos celebrando sobre o cadáver desse império que nos oprime há tanto tempo! O semblante sério dos companheiros deixava clara a atmosfera pesada de excitação mesclada com uma profunda preocupação. Três seletos membros do exército compunham a corte marcial. Apesar do tardar da noite, o sono não ousava incomodá-los.


A guerra seria decidia no entardecer seguinte. Para bem ou para mal: – Ok, então, vamos repassar a estratégia. Agente secreta Mata-hari, você e seu esquadrão precisam atrair o front inimigo para o check point. Precisamente e o mais rápido possível. É arriscado, nós sabemos do que eles são capazes, mas vocês são peça central. Estamos contando com isso para o sucesso da operação. – Pode deixar, comandante Carlos, senhor. – Tenente Hugo Palhares, a divisão de suprimentos está pronta? – Comandante, tivemos um pequeno imprevisto na logística – responde Palhares, ofegante – mas em poucas horas estará tudo pronto. – Não me decepcione, Palhares! Você é um dos membros fundadores desta resistência, o Movimento precisa disso o mais rápido possível! – Sim, senhor, senhor. – Capitão Alberto Gonçalves, você está responsável pelo comando da infantaria. Assim que o inimigo estiver posicionado, Mata-hari emitirá o sinal e você estará livre para abrir fogo com força total! Teremos pouco tempo até que se reorganizem, temos que derrubá-los em uma única investida. Eu lutarei ao seu lado. A esta altura, não podemos nos dar ao luxo de poupar combatentes. – Não se preocupe, senhor, temos os melhores preparados. Lançadores que esperaram a vida toda por este instante. Eles estarão honrados de estar com você em um momento tão importante. Cairão por nossa causa, se preciso for. A porta se abre em um solavanco. Major Pablo Rodriguez, responsável pela divisão de Comunicações, entra. Carregando um papel nas mãos trêmulas, ignora os olhares exasperados dos companheiros e prostra-se ereto à esquerda do comandante, aguardando permissão para falar: – Espero que nos traga boas notícias, Major. – Sim, senhor. Desculpe interromper, mas venho informar que os militantes dos Camisas Molhadas aceitaram os termos da aliança. Temos uma coalizão de ataque firmada para amanhã, no ponto de

23 _________


encontro, ao prumo solar, conforme o plano. Foi impossível conter um suspiro de alívio fraterno sincronizado entre os presentes. A vitória parecia um pouco menos improvável agora. – Bem, cavalheiros e dama, é isso. Que Deus guie nossos passos e que o sonho da liberdade preencha nossas almas. Agora, descansemos para que toda energia possível esteja em nós amanhã. Mas antes, bebamos um cálice para espantar de nossos ossos o frio desolador que habita lá fora... – o comandante pega o rádio comunicador e, depois de um segundo de hesitação, faz o requerimento. – QG, a corte marcial solicita quatro porções da bebida mais quente que tiveres na dispensa! Silêncio. – Porção de quê, Carlinhos? – a voz feminina reverbera pela garagem na meia luz. Huguinho, que enchia os últimos balões d’água, se aquieta. Beto desvia o olhar e tira o dedo do nariz. Alicinha segura o riso. E Pablito não sabe se continua em pé ou se já pode sentar porque as pernas estavam mesmo cansadas depois de correr tão rápido da rua debaixo até ali. O pequeno alto-falante do walk-talk a pilha volta a chiar. – E, vocês ainda estão acordados!? Amanhã não é a final do campeonato de guerra de balões do bairro? Vão dormir, crianças! – Chocolate quente, mãe... Eu já expliquei mil vezes... Bebida quente é cho-co-la-te-quen-te... pfff. – E qual é a palavrinha mágica? Frustrado, o comandante abaixa o tom de voz: – Por favor, mamãe... Por favor, quatro chocolates quentes... E para com isso. A senhora está me envergonhando na frente do pessoal.

24 _________


25 _________


26 _________

No iluminismo (século XVIII), as artes foram estudadas e classificadas pela primeira vez, sendo estas divididas em dois grupos específicos e singulares: arquitetura, escultura, pintura, gravura, música e coreografia (às quais o cinema se agruparia mais tarde) formavam o grupo das Belas Artes; já o outro grupo era composto por gramática, eloquência, poesia e literatura, formando a Belas Letras. Pela classificação disposta, eram consideradas artes as manifestações que tratavam da beleza sem função prática a não ser representar a própria beleza. No entanto, nem sempre foi assim. Na Antiguidade, os gregos e romanos consideravam arte e pintura, escultura, oratória, teatro, poesia, música e dança expressões artísticas. Porém, a arte acompanhou a História da Humanidade tradicionalmente moldando-se a suas novas perspectivas ideológicas, se é que é possível nomear a arte por tal viés. Não me cabe fazer um balanço de revi-


27 _________


são historiográfica sobre a arte, pois a mesma toma proporções inatingíveis a meu ver, seria necessário um espaço mais amplo para partir desse pressuposto. Minha intenção neste artigo é fazer considerações sobre a arte em constante movimento e como as artes em suas dinâmicas vertentes transformam espaços, relações sociais e abrangem o leque atual, uma vez que há novas técnicas, como a fotografia, as artes digitais e a arte moderna, que procuram por si só outras formas de provocar nas pessoas emoções que vão além da beleza. Pois bem, Leonardo da Vinci disse que “A arte diz o indizível, exprime o inexplicável, traduz o intraduzível”, e com total certeza diria que a arte transforma, invade e transcende, tem o poder de mudar e se manter em movimento constante, são braços e pernas, membro a membro construindo o mais belo dançar na poesia dos cânticos embalsamados pelos registros das lentes; a arte é um grito, uma invasão. Assim sendo tem o poder de modificar, romper, expor, transpor barreiras, causa rupturas, renasce a todo o momento a favor do belo, do novo, de novo e de novo. São muitos os seus poderes. No seu bailar entre um salto e outro, a arte engana o tempo, não morre, não sucumbe, não fica de lado nunca. Ela está estática em suas esculturas ou vibrante em suas cores nos quadros expostos nas galerias, acompanhados dos sonhos a se expor, a expulsar através da arte os nossos demônios. Ressalto a frase de Fredrich Nietzsche: “Temos a arte para não morrer de verdade”, e acrescento que a temos para não cair na tentação de vivermos apenas o caos, o tradicional, a mesmice, pois ela nos move a ver a vida com olhos emprestados de nossas almas, a ter sensações emocionais que vão além do nosso corpo. A arte é movimento, movimento esse que fez parte de mudanças no meio, nas relações sociais, na dinâmica política e até econômica de um espaço, mas, mais do que tudo isso, a arte é um movimento constante de revolução, movimenta-se no ritmo da dança proposta e pode ser, para alguns, ato de anarquia, para outros, o maior gesto transgressor. É um propósito, um encantamento. Por isso, mova-se, movimente-se, porque só perde nesse bailar quem ficar parado.

28 _________


29 _________


30 _________


31 _________


32 _________


33 _________


34 _________


35 _________


36 _________


37 _________


Naquele quarto havia um odor de mijo e remédio para enfermos. O suor escorria sobre as suas pernas marcadas por um passado aventureiro, fundindo-se com o líquido ácido e viscoso que advinha de seu sexo. Ela havia tentado. Por horas, havia tentado fazer amor com ele, seu amante. Em algum degrau dessa vertiginosa escadaria que era o seu pensamento, ao passo de que quanto mais galgava impetuosamente até o topo procurando por alguma solidez, mais amedrontada sentia-se de ser

38 _________

atirada sem dó nem piedade, agarrou-se à ideia de que ele, seu amante, mesmo após o derrame que por meses havia o derrubado, poderia levá-la à ilha do amor. Mas agora, sentada em seu cintilante divã, bebericando uma bebida de cor dourada como se bebericasse uma amarga frustração, sentia-se sujismunda e fatigada. Sim, ainda o amava. E há nove meses quando o almofadinha do Nicolai Shayovski, o artista russo, perguntou se Antônio conseguia compreender a filosofia do tempo após anos sem lançar um único ensaio acadêmico, como sentiu-se excitada com sua resposta cortês! Mas Sarabeth já não podia mais suportar o atual estado de invalidez do marido. Por mais que o amasse, essa invalidez a tornava estática feito tronco de uma árvore, assistindo sua vida escorrer por uma ampola e nada poder fazer a não ser choramingar sua amarga seiva. Não era culpa dele que todas as vezes em que pedia parar ler-lhe um conto de Fitzgerald, naquele exemplar de ouro que tanto admirava, mal conseguia ouvir até o derradeiro - seus olhos fechavam-se abruptamente. Mas ser mulher, refletia, enquanto levantava-se do divã e fitava-o, oh, uma saliva manava do canto de seu lábio, e a brisa outonal adentrava à janela, sepulcral, gélida, as cortinas dançavam com o seu beijo, percorria o quarto e acossava seus braços – não era isso, não era isso. Ser mulher, e novamente procurou pensar num final para a sua sentença, enquanto limpava o suor de sua testa, como Antônio encontrava-se conservado! Ser mulher, uma sentença interminável. Ele continuaria com as pálpebras fechadas até a alvorada, quando geralmente acorda e pede para que ela ligue o rádio para que ambos ouçam a canção da manhã. E ela desliga logo após as notícias do locutor, as desgraças, talvez mais uma vez sobre o ocorrido na França. Pode-se dizer qualquer coisa sábia, o locutor, mas as suas opiniões jamais são acatadas como verdades absolutas. E Antônio continua a descansar, pois, também – e coitado – havia sido cúmplice de sua teatral tentativa para reanimá -lo sexualmente. Nada aconteceu. Sarabeth entrou em seu closet, havia um vestido de seda decotado, vermelho vitoriano, bem ao fundo. Era o seu favorito. E ficou a fitá-lo na fren-


te do espelho, pois, em outras temporadas, ele já fora o vestido mais cobiçado por Betta e as outras gorduchas que prostravam-se no canto do salão para cochichar sobre a vida alheia. Aquele vestido a arrastava para dentro de suas lembranças. E alguma coisa mais a arrastava para dentro de suas lembranças, como uma onda que engole a arrasta para dentro de si qualquer coisa, sim, sabia bem o que era – nostalgia daquilo que havia vivido. A natureza de uma realidade que parecia ser constante e fora quebrantada por um terrível rúdigo do tempo. Era isso, era isso. O relógio tiquetaqueava, as estações transmutavam e o seu corpo continuava ali, pálido e já não tão conservado. Noites mal dormidas, sem sexo, masturbações ruins. Tudo permanecia ali, mofando como um quarto abandonado. Agarrou-se em vestido vermelho vitoriano, já não podia mais continuar mofando como aquele quarto abandonado. Cara pálida-pérola, lábios que desconhecem o tom de vermelho que combinaria com aquele vestido e os seus sapatinhos à francesa. Era isso, era isso. Sabia bem do que necessitava. Naquela noite, retornaria ao fluxo da vida. Não havia outra maneira a não ser passar pela Rua da Misericórdia para chegar à praia, onde os homens e mulheres festejam todos os finais de semana. Há muito, desde que Antônio havia tido o derrame, e desde que a Sra. Lourdes havia se suicidado em seu quarto, não frequentava a praia à noite. A Rua da Miseircórdia, a ruela mais grotesca que havia visto em sua vida. Sem poste para iluminação, de modo que, nas madrugadas, o parquinho com seus balanços e gangorras quebrados por vândalos da Rua Costa era tomado por um bando de arruaceiros drogados que papeavam tão alto que era necessário chamar a polícia, a ruela dava na escadaria de terra batida que levava à praia. No mar não havia ondas, era brando e a água, cálida. Mas podia-se ouvir o bramido da maré se caminhasse mais para a direita, onde um corredor íngreme de seixos levava à costa marítima – o subterfúgio dos amantes noturnos. Um desperdício andejar com os sapatinhos à francesa sobre essa avenida onde, entre a praia e as casas de veraneio, e o Kaffe logo na esquina da

Rua das Margaridas, nas inúmeras tendas erguidas, uma ao lado da outra, vendiam-se petiscos, bebidas ou caldos todos os finais de semana – a não ser a Sra. Eve que sempre permanecia com a sua pescaria embora não fosse junho, embora ninguém a não ser o jovem Marcos estivesse vestindo uma roupa à vaqueiro, tornava-se o local favorito para os pais que podiam deixar as suas crianças para mover os esqueletos possuídos pelo som da banda que tocava. É sabido que quase em todos os finais de semana, um instrumentista novo. Tomamos por exemplo hoje: podia-se avistar bem daqui, mas aquele com a gaita não era o Sr. Lee? Sim, o pequeno e generoso. E também não seria esdrúxulo se a sua ex-amante, Betta Caldas, estivesse em algum canto onde havia pessoas suficientemente feias para cuspir alguma coisa com as três gorduchinhas, ou bocejar até encontrar um homem com quem pudesse passar a noite. Talvez fosse por isso que quase ninguém na cidade a admirava. Ela era uma “daquelas mulheres”. Que horror! Acolá, seria Betta com o marinheiro José?! Não, não, seus cachos ruivos não eram tão belos assim. Mas quão aprazível era fitá-los! Ela veste um vestido branco, também decotado, de modo que torna-se visível a constelação de sardas em seu sulco intermamário. Ele possui cabelos negros e olhos esverdeados. Ele é um charme. Ela o fita, mas em seus olhos não habitam as três marias. A brisa o tempo todo toca seu vestido, seus cabelos também esvoaçam. Ele sorri. Ela é uma boneca. Seu corpo, pálido e moldado sutilmente pelas mãos do criador. Ela havia terminado de ler um exemplar de Joyce antes de vir à festa, mas ele prefere Guimarães Rosa ou Pessoa. Ela não gostou da tradução, não se fazem mais traduções com ardor. Ele sussurra algo em seu ouvido. À qualquer momento, entre uma canção alegre e uma canção melancólica, ele a ganhará em seu ombro. Sarabeth juntou-se com aqueles que dançavam próximo ao Kaffe, na esquina da Rua das Margaridas, que não fechava as suas portas sob circunstância alguma, só, sem par para acompanhá-la, pois uma mulher como essa não necessitava de um par. Ora ou outra formavam-se grupos que abriam rodas e davam os braços uns aos outros, movimen-

39 _________


tando-se para o lado e para o outro; uma senhorita era convidada à dançar no meio da roda enquanto homens faziam reverência como se elas fossem as suas amantes. A banda produzia aquele efeito, a sonoridade nadava até os seus corpos. Eles eram alimentos para a música e alimentados pela música. Era um caso de simbiose, pois sem a música não haveria corpos e sem os corpos não haveria a música. Isto é a vida, pensou Sarabeth, à medida em que o tamborilar dos tambores, o batucar dos batuques derretia-se dentro de si. Percorrer a estrada de seixos ou galgar sobre uma corda bamba, o importante é continuar a caminhada. É a arte que estará viva após todos aqui virarem alimentos aos decompositores. O momento estaria aqui nalgum lugar do passado, aqui, onde os pés movimentavam-se como se tocassem o fogo, em frente ao Kaffe, local em que os réprobos acendiam seus cigarros à noite, debatiam o caso do brasileiro que foi fuzilado na Indonésia, os jovens angustiados e os artistas falavam sobre Balzac, Watteau, Caio Fernando Abreu, Lispector, sim, onde encontrou-se com Antônio sobre a cálida noite de veraneio, um janeiro infernal, e conversaram sobre o futuro juntos. De repente, formaram-se pares. Os corpos movimentavam-se, agora unidos, para lá e para cá como uma nuvem numa tarde primaveril, excitados. Um homem aproximou-se, um marinheiro, e pôs as mãos em volta de seu corpo, tocando no vestido de seda decotado. Sarabeth o encarou, procurando afastar-se elegantemente daquele ser atrevido. “Oh, senhora, me permita essa dança!” “Muito obrigado, mas sinto-me bem dançando só.” “Mas bem que a senhora sabe, nenhuma mulher que se preze nesta cidade se sente bem dançando sozinha. E, tal como é, mulheres como você possuem sorte de homens como eu ainda fazerem gestos de caridade.” Mas que falta de respeito! Sarabeth sentiu-se envergonhada. O marinheiro afastou-se e foi a procura de outro par. Os rostos dos que dançavam não pareciam mais excitados com o calor do momento, mas, para ela, era como se aqueles rostos, aqueles corpos, revenciassem a sua vergonha. Partiu para longe do grupo que dançava próximo ao Kaffe,

40 _________

sentindo-se tão líquida que poderia esparramar-se no chão. Ou qualquer coisa como enfiar o rosto na areia da praia. Sua face começava a dialogar com o céu noturno, lúgubre e sem estrelas. Todos aqueles rostos que transpassavam na ruela, todos aqueles seres fitando a sua dor. E a banda começava a tocar uma outra canção, uma canção mais melancólica. Ambos, o marinheiro e a ruiva, sentados vislumbrando o mar. Ela põe a cabeça em seus ombros. Ele acalenta seus cachos ruivos. Talvez ele tenha a ganhado para toda uma vida. Talvez apenas uma noite. Tanto faz, tanto fez. É isso, é isso. Tanto faz, tanto fez. A Sra. Eve fechava a sua barraca com dificuldade. Oh, céus, havia perdido a noção do tempo enquanto vivia. Podia-se sapatear, podia-se sorrir, fitar gaivotas capturando peixes no mar, ouvir a canção da manhã, podia-se haver o movimento, mas, assim como a certeza da perfeição dos cálculos matemáticos, e a certeza da própria incerteza que rege as teorias físicas, no fim, apenas restaria o silêncio. Na volta para casa, Sarabeth não reparou os drogados na Rua da Misericódia. Estava esbaforida demais para fazê-lo. Segurava os sapatos em mãos como se eles fossem pequenas e elegantes desgraças. Do cinzento céu da alvorada, gotas de chuva começavam a capotar quando ela chegou em seu lar. Tudo estava em perfeita ordem. Havia deixado o rádio ligado na estação ao qual, por mais que o locutor dissesse algo interessante, suas palavras ainda não eram acatadas como verdades absolutas. E Antônio, seu amante, ainda adormecido, talvez em vias de acordar. Atravessou o quarto, corada, como se guardasse algum segredo entre as pernas, adentrou-se em seu closet e arrancou o vestido com tamanha voracidade. Pensou ter ouvido algo rasgar. Não, não, nada aconteceu. Ao retornar ao quarto, Antônio a fitava com os seus dois olhos azuis, fatigados e doentes. As lágrimas em seus olhos começaram a jazer à medida em que a canção da manhã começou a tocar.


41 _________


42 _________


43 _________


44 _________


45 _________


46 _________


47 _________


48 _________


49 _________


50 _________


51 _________


52 _________


53 _________


54 _________


55 _________


56 _________


57 _________


58 _________


59 _________


60 _________


61 _________


62 _________


63 _________


64 _________


65 _________


66 _________


67 _________


68 _________


69 _________


70 _________


71 _________


72 _________


73 _________


74 _________


75 _________


76 _________


77 _________


78 _________


79 _________


80 _________


81 _________


82 _________


83 _________


84 _________


85 _________


86 _________


87 _________


88 _________


89 _________


90 _________


91 _________


92 _________


93 _________


94 _________


95 _________


96 _________


97 _________


98 _________


99 _________


100 _________


1_________ 01


102 _________


1_________ 03


104 _________


1_________ 05


106 _________


1_________ 07


108 _________


1_________ 09


110 _________


111 _________


112 _________


1_________ 13


114 _________


1_________ 15


116 _________


1_________ 17


118 _________


1_________ 19


120 _________


1_________ 21


122 _________


1_________ 23


124 _________


1_________ 25


126 _________


1_________ 27


128 _________


1_________ 29


130 _________


1_________ 31


132 _________


1_________ 33


134 _________


1_________ 35


136 _________


1_________ 37


138 _________


1_________ 39


140 _________


1_________ 41


142 _________


1_________ 43


144 _________


1_________ 45


146 _________


1_________ 47


148 _________


1_________ 49


150 _________


1_________ 51


152 _________


1_________ 53


154 _________


1_________ 55


156 _________


1_________ 57


158 _________


1_________ 59


160 _________


Esse é um projeto que começou antes de eu pensar em um projeto – ou no acúmulo de coisas. Somente quando entrei no Parque Lage, mais especificamente em uma turma de fotografia da professora Denise, percebi que eu era o tipo de pessoa que adora guardar coisas e inventariá-las – sempre penso no carteiro do filme “Sacrifício” do grande Tarkovsky, quando ele se classifica como um colecionador de eventos extraordinários ou algo tipo, vindo a contar a história de uma foto com toda a estranheza que aquilo representava, é incrível, o tipo de coisa pra se ver – e talvez, justamente por isso, imersa em projetos que são novas desculpas para continuar a somar alguns novos megabytes de arquivos para o HD desse laptop velho. O que quero dizer sobre isso, é que começou em 2012 e ainda o considero inacabado. Levaram a minha câmera e ele está parado por um lado, fora que estou em um intercâmbio em Coimbra, o que facilitou a minha movimentação pela cidade – anda-se para tudo, ônibus só quando chove ou faz preguiça – e consequentemente me fez pará-lo, por outro lado. Então, talvez, só talvez mesmo, lembrando que de mãos dadas ao movimento há a espera, seja isso que eu quero dizer: não sei quando volto para ele e nesse estágio dele, entre platonismos, irritações e o dourado ora do Sol, ora dos postes, fico satisfeita com o trabalho conjunto de apresentação que será algumas das situações diagramadas pelo meu querido Luca, aqui, no coletivo A Caixa, mais um dos projetos que tive a sorte de acumular.

1_________ 61


162 _________

Minha mão procura estar encaixada naquele ferro do banco, ela procura segurá -lo com força. Mas eu não consigo, algo não deixa que eu a encaixe ali. E essa rejeição por parte do banco me preocupa, só quero estar em um local estreito e essa mão livre sendo empurrada para fora me angustia até que ao virar para trás um senhor ri, pede desculpas e tira a mão dele. Eu rio, sou uma boba. Peço desculpas também e desisto de segurar o banco com a mão agora que posso, mesmo agora, que o senhor simpaticamente disse: “calma menina, o ferro é todo seu”. Desculpa desdenhar, é que fazia um bom tempo que eu não chorava tanto.


A perimetral fechou, a perimetral fechou e eu estou presa no fundão, todo mundo reclama “mas desde que a perimetral fechou” porque antes essa cidade tinha o quê: bebedouro de Nesquik e Alfredo pra subir até o sétimo andar levando papel higiênico duplex na bandeja. Merda de ponte do Saber, continuo presa nessa merda, merda. A fila não anda e essa cidade me cansa. Essa cidade não me quer mais e eu durmo com a cara amassada no banco da frente que nesses 43°C cola no suor da minha testa. Olha a chuva, graças a Deus, a chuva. Acordo em pleno rebuliço: é chuva. É cada gotão na minha cara, é lindo de se ver, é cada gotão grosso que dói. Gelado. Nunca fui mão de vaca, mas pagar R$3,10 pra ir da Uruguaiana para Cinelândia? Eu, nasci-

1_________ 63


164 _________

da e criada em Cascadura, vir a pagar R$3,10 para ir daqui até ali depois de comer tanto sacolé de Nesquik caminhando destemida pela Suburbana? Por isso, eu ignoro o trevo de três folhas que tenho em mãos e sigo andando feliz de paralelepípedo em paralelepípedo achando tanto cômico, tanto trágico, os vendedores recolhendo as barracas, achando tanto cômico, tanto trágico, minha sandália prendendo nas brechas de paralelepípedo em paralelepípedo. O pé escorrega e o couro ou pseudo-couro fica com uma textura rugosa que roça nos calcanhares, um incômodo só, porque eu sou chata, mas tão chata. Ouvi sexta passada que a cidade está sitiada. “Isso aqui até parece faroeste”, foi o que ouvi. Minha sandália trava de paralelepípedo em paralelepípedo, e estou sitiada. Sitiada na minha própria liberdade, imersa em pânico, dor, obsessiva nesse assunto de cair no vazio, desespero, estou é angustiada, é isso, angustiada. Sempre fui orgulhosa, nas raízes mais pejorativas do adjetivo. Não dou o braço a torcer. Não vou gastar R$3,10 pra ir apertada daqui-ali. Não vou gastar R$15,00 em um guarda-chuva produzido no subterrâneo da China por two cents. E quando a chuva aperta, eu nem penso mais, agora é só procurar uma marquise até parar em qualquer lugar para comer qualquer coisa e reparar que às 17 horas todos comem sozinhos; uma pessoa por

mesa e quatro cadeiras. Não há mais quem nos acompanhe para o lanche da tarde nessa cidade. E mesmo sem companhia para a ópera, eu amo essa cidade. Porra, eu amo essa cidade. Esses dias, esbarrei com um mineiro de Montes Claros e ele estava horrorizado: “cheguei aqui e nunca vi tanta mulher berrando palavrão, toda hora era um ‘puta que pariu’, toda hora era um ‘caralho’ e ‘porra’ então, ‘porra’ nem se fala”. Nós somos palavrentas nessa cidade. Algumas até arrotam todos os palavrões à mesa, mas infelizmente nunca consegui aprender a fazer isso. Procura-se companhia para ensinar a arrotar. Quero tirar essa merda de aparelho e ver se reaprendo a assobiar, era divertido assobiar. Poderia caminhar na chuva e assobiar. Como ia ser bom, no meio dessa cidade, andar na chuva, com a minha sandália derrapando de poça em poça e assobiar.


1_________ 65


166 _________

“Não perde noite de sono não porque isso daí você não tem como recuperar. Ah, eu nunca fui de perder noite de sono mesmo, até quando me arrumaram um emprego pra trabalhar de noite, numa boa, lá em numa fábrica em Magé, eu não quis. Sono, isso eu não perco: você não é de perder não né? Outra coisa, guarda o teu dinheiro, não gasta em bebida. Eu, graças a Deus, nunca fui de chapar.” Milton, ilustríssimo exemplo de ser humano – perspectivas – distribuindo conselho no 409 depois de xingar a esposa de filha da puta no telefone, afirmar que ela merece uns sopapos e dele aquela esperta não arranca um vintém, sendo assim, ele não ia comprar remédio nenhum pra ela não. Antes de compartilhar sua sabedoria para com moi, ele discorreu um pouquinho sobre o quanto a pena de morte deve ser implementada rapidamente, ainda mais nesses tempos de manifestação, “porque tem é que matar mesmo” pra depois terminar brilhantemente o seu monólogo com uma gossip quentíssima de que ele está traindo a esposa com a chefe que é uma viúva – loira também, “porque essas sim, essas são um perigo”. Finalmente em casa, penso em Milton: metade do copo com gin, completa a outra com água tônica e enfia uma rodela de limão para garantir a vitamina C.


Maldita espinha, está exatamente no centro do meu queixo. Uma dorzinha leve, mais parece uma picadinha de mosquito, dói tão discretamente que até penso ser psicológico, apenas o meu cérebro ansioso querendo se ocupar de eliminar uma pobre bolinha de nada. Sinto sono, mas não durmo por causa dela, passo meu dedo áspero por ela, trata-se de uma pele tão fina que até parece à parte. Estou descuidada e áspera, por isso tenho espinhas, por isso sinto sono nos momentos errados e como demais, por isso me atolo em ansiedad, e, principalmente, marco minha pele com a unha inutilmente, porque já tem tempos que sei que essa porra de dor interna não vai passar.

Depois de dez horas de viagem no trecho Inhotim-Rio de Janeiro, com paradas para comprar ora cachaça, ora coxinha, com o corpo pedindo ora festa, ora preguiça, acho que minha sonolência esses dias acaba sendo normal. Meus ideais de descanso são sequelar com o sacolejo do banco meio solto e sonhar

1_________ 67


168 _________

com um banho quente em casa pra deixar a água cair sobre as costas como se fosse massagem. Desabo de cara no banco da frente mesmo sabendo que vou marcá-la, avermelhá-la. Sem querer, meu corpo é jogado para a senhora do lado que faz uma cara de merda, me desconforta e olho para rua: já estou no Centro. Olha só quanta gente atravessando quando o sinal deixa, eles estão desesperados com passos largos e apressados. As eternas executivas de saltos altos a caírem nos buracos e os funcionários públicos de blusa social e calça jeans. Os engravatados que são contadores, economistas e advogados a respirarem o mesmo ar de merda que os meninos que vagam pela Praça XV preparados para pedir as moedinhas que hoje não tenho. A cidade é democrática e o cheiro de merda está em qualquer lugar; na Praça XV, em Cascadura, no Fundão, no Jardim Botânico e na Praia Vermelha. Esse mesmo cheiro de merda a me perseguir com esses mesmos olhares de desaprovação. Os mesmos passos que me obrigam a correr para não ser pisoteada. Olho, cheiro e toco essa merda toda para só querer viajar de novo enquanto durmo por horas.


1_________ 69


170 _________


Olho para os seus dedos fazendo movimentos circulares no chaveiro da mochila, movimentos que não cessam porque sempre que as mãos parecem aptas a se desvencilhar da armadilha de elástico que está presa, é puxada de volta. A outra mão repousada no pano, se parece mais com as minhas, que estão repousadas e apáticas em cima da bolsa, um pulso por cima do outro, dedos mortos de medo de serem reconhecidos como ameaçados. Todo cachorro já sabe instintivamente o que demoramos anos para perceber, que o odor do medo é inconfundível, por isso ele senta ali com inúmeros outros lugares livres, conscientemente ou inconscientemente devia saber do medo que bate e acelera o coração, que tira a paz e nos deixa nus com a cabeça baixa, evitando encarar o nosso reflexo nos olhos um do outro. Find what you love and let it kill you, diria Bukowski.

1_________ 71


172 _________


1_________ 73


174 _________


1_________ 75


176 _________

Mudei minha playlist pela quinta vez esta semana. Mudei minhas coisas de lugar, desarrumei e arrumei tudo mais de uma vez, fiquei cinco horas s贸 para arrumar uma estante - que j谩 estava arrumada. Mudo minha vida inteira todas as semanas, mudo o 么nibus que vou pegar, a porta que vou usar. Mudo o jeito de arrumar a minha mochila. Me pergunto se todo mundo tem um prazo de validade como eu, procurando um


novo mundo para explorar; é como viver em um eterno desenho animado onde a personagem tem que achar seus pertences e seus caminhos. Só que eu não tenho um mapa falante e nem faço as crianças de idiotas. Quando conheço alguém, tudo em que consigo pensar é: “Nossa você é legal, mas em qual momento vou saber que não ligo mais para sua opinião? Que simplesmente não há mudanças o suficiente que me façam ficar?” Quando chego a um lugar novo, o mesmo pensamento me ocorre, e um momento doloroso que faço questão de atribuir à astrologia e a minha Lua em Escorpião, ninguém mandou nascer com a lua no seu inferno astral. É como nascer com um aviso, um post-it amarelo colado na testa que diz que algo não vai funcionar bem. No meu caso, é um aviso prévio de que posso viver sozinha pra sempre se eu não mudar. Mudar... Lá vem a necessidade de mudança com os dois pés na minha porta. Ela não avisa quando vai chegar, vem sorrateiramente, e de repente, está me cercando por todos os lados, observando para ter certeza que vai me pegar no momento certo, para poder jogar na minha cara que estou no mesmo ponto desde o começo do dia, que não mudei nada – a não ser a cor do cabelo- desde os quinze anos. Tento ver as coisas de uma forma otimista, mas me fogem as palavras para descrever como me sinto, então entendo que talvez não queira mudança nenhuma. Quero criar hábitos e manias, criar tradições e ter um lugar para onde possa voltar e fazer tudo igual de novo. Será que isso quer dizer que estou ficando velha? Que estou ficando madura demais para a vida que estou levando? Que finalmente vou começar a entender as mentes que um dia foram um completo mistério para minha mente?

1_________ 77


178 _________

Maratsafin @ Flickr, 2014

Talvez eu realmente tenha amadurecido sem nem perceber, as mudanças aconteceram sem eu nem assinar seus Termos de Uso, talvez tenha ocorrido enquanto esperava o metrô. Mas quando me olho no espelho ou vejo as anotações em minha agenda, vejo que sou a mesma, no mesmo lugar, sem tirar nem por. Então descido que, só por hoje, vou deixar passar essa vontade de mudança, vou deixar passar essa inquietação e todas as datas de validade possíveis. Vou continuar sendo a mesma de ontem por mais um dia e, quem sabe, pelo próximo também. Será que todos os jovens com seus quase vinte anos passam por isso? Essa falta de direção quando se sabe exatamente aonde se quer chegar? Ou será que sou a única pessoa do mundo que precisa dessa constante: a necessidade de se sentir em movimento e mesmo assim ser parte de algo? Talvez eu tenha que parar de culpar a astrologia por tudo, a final de contas, quantas pessoas sentem as mesmas coisas que eu e quantas delas também nasceram com a Lua nos seus infernos astrais? Minha última dúvida é se um dia vou conseguir encontrar um equilíbrio, um ponto onde possa conciliar a mudança constante em plena estagnação, mesmo já sabendo a resposta.


1_________ 79


180 _________


Gostariamos de agradecer ao Centro Cultural Ovidor 63 e ao Marcelo Ruivo, por nos ceder os espaço para os ensaios. Agradecer a todos os modelos envolvidos na produção dessa edição, a todos os nossos colaboradores e a vocês, nossos leitores.

1_________ 81


182 _________


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.