Quando um muro nem sempre é um muro

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Santana Castilho regressa hoje à sua terra natal, Beja, para falar de educação nas págs. 6/7 SEXTA-FEIRA, 28 OUTUBRO 2016 | Diretor: Paulo Barriga Ano LXXXV, N.o 1801 (II Série) | Preço: € 0,90

Políticos, ambientalistas e agricultores de Castro Verde levaram “estepe cerealífera” à Unesco

Esteve na mira das celuloses hoje está à beira de ser Reserva da Biosfera RUI CAMBRAIA

Reportagem nas págs. 12/13

Saiba quantos são quanto custaram e quem mais beneficiou dos cursos pagos aos administradores da Ulsba pág. 9

O Boxerpa Team existe há cerca de seis anos. Começou num barracão perto de Serpa, como manda o basfond do boxe, mas depressa se mudou para o pavilhão dos desportos daquela cidade. Hoje também ali se praticam outras modalidades, mas é do boxe, através de programas de inserção inéditos em Portugal, que estão a despontar verdadeiros campeões. Dentro e fora do ringue. págs. 4/5 PUB

Três milhões para ajudar vítimas da seca pág. 8

António Costa passou esta semana por Beja pág. 10

Ele há murros que vêm por bem

Este é o fim de semana do Zambujo e do Araújo pág. 30


04 Diário do Alentejo 28 outubro 2016

“A forma como o Zé chegou ao Boxerpa, o facto de ele se ter adaptado rapidamente a tudo isto, ao seu ritmo, é claro, ao seu jeito… o Zé está completamente adaptado como qualquer outro dos jogadores de boxe que cá temos”. Carlos Gaspar

Tema de capa

Boxerpa Team tem em marcha inéditos planos de integração social através do desporto

Quando um murro nem sempre é um murro

O

Zezinho não sabe ver as horas. Houve tantas coisas na vida a que conseguiu dar a volta, com uma perna às costas, até. Mas isto de ver as horas pelo relógio nunca foi lá com ele. O mesmo não se poderá dizer acerca da “noção das horas”. Aí sim, não há relógio suíço que peça meças ao instinto natural de José Valentim, 45 anos, principalmente quando está em causa o início da sessão de treinos no Boxerpa Team. O que acontece de segunda a sexta-feira, a partir das

O Boxerpa Team existe há cerca de seis anos por iniciativa de Carlos Gaspar. A modalidade começou num barracão, perto de Serpa, como manda o basfond do boxe, mas depressa se mudou para um anexo do pavilhão dos desportos daquela cidade. Hoje também ali se pratica kickboxing e krav maga, mas é do boxe, nomeadamente por intermédio de programas de inserção inéditos em Portugal, que estão a sair verdadeiros campeões dentro e fora dos elásticos do ringue. Como é o caso de José Valentim e do seu treinador, vencedores em todas as categorias da amizade. Texto Paulo Barriga Fotos Rui Cambraia

18 horas, de acordo com o horário que está afixado na parede do ginásio, exclusivamente para alertar aqueles atletas que usam relógio. É o primeiro a chegar ao treino, de mala aviada, ténis, proteção para a cabeça e para os dentes, talvez, luvas... José Valentim não necessita de avisos. Aliás, por muita atenção que lhes preste, pouco ou nada retira das advertências que lá vêm inscritas. Tudo o que necessita de saber assim que entra no ringue atapetado é-lhe transmitido por um amigo que por ali


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fez vai para três anos, o Carlos Gaspar. “Agora baixas a cabeça, olhas para mim, olhos nos olhos, defende… contorna com o braço, e bate uma, duas, três vezes”, incentiva o instrutor, tentando aperfeiçoar não apenas as técnicas de defesa e de ataque inerentes ao jogo do boxe, mas também outra das lacunas deste seu “aprendiz tão especial”. O José Valentim também não sabe contar. E para aprender boxe mesmo a sério, como o fazem, ou, pelo menos como o tentam fazer os cerca de 30 atletas que frequentam o Boxerpa Team, é necessário memorizar umas tantas lengalengas que falam de não sei quantas com a esquerda, outras tantas com a direita e depois uma em cheio para derrubar, ou algo que o valha. “O Zé entrou aqui com a doença a um nível que nem sabia contar. Hoje, connosco, já conta até cinco, já faz três golpes de mão a contar e, neste momento, até já estamos a trabalhar quatro golpes de mão iguais, seguido de um diferente, a contar, o que é absolutamente fantástico”, entusiasma-se Carlos Gaspar. Tanto mais que ao longo de quatro décadas de sucessivos tratamentos, programas de inserção, inscrições em escolas específicas e em processos de ensino especiais, o José Valentim, com a doença de Síndrome de Down identificada aos sete meses de idade, em 1972, segundo a própria família, “nunca obteve melhorias assinaláveis”. Até ao instante em que lhe enfiaram nas mãos umas luvas de boxe. “O meu filho, desde que aqui está, é outra pessoa… eu não quero dizer mal das escolas, mas ele, através do boxe, fez-se um menino diferente, anda mais calmo, mais tranquilo, convive com as pessoas, preocupa-se com os colegas”, observa a mãe, Antónia Carrasco Valentim. Mas nem sempre assim foi. Aliás, a história de vida de Antónia e de José Valentim é uma espécie de consumação terrena da Lei de Murphy: se alguma coisa tiver de correr mal... José Valentim nasceu em 1972, no preciso ano em que o pai, taxista em Serpa, e o irmão mais velho, faleceram num acidente de viação. Apenas alguns meses após o acidente, o médico pediatra informou Antónia que o seu bebé, até então aparentemente “normal”, era portador de Trissomia do Cromossoma 21. Foram guinadas a mais para um mesmo despiste. Antónia foi

“Não posso chegar aqui um dia com o ar um pouco mais acinzentado, mais cabisbaixo. O Zé percebe logo. Até me pode não dizer nada no imediato, mas não demora que se chegue ao pé de mim e me dê um abraço”, conta o treinador: “Há no desporto ou na vida coisa mais gratificante do que isto?”.

obrigada a pegar no negócio do marido, a conduzir um táxi e a conduzir três filhas pela vida fora, ao mesmo tempo que ia acompanhando com “algum desespero” o desenvolvimento cognitivo e físico do Zezinho. “Senti-me muito triste, até custei a aceitar. Isto custou-me muito, muito”. “Ele há coisas que não têm explicação”. O que é que não tem explicação, senhor Carlos Gaspar? “Um dia entrou-me por aqui a dentro o padrasto do Zezinho, com uma atitude dura, quase de desespero, que só mais tarde percebi que era um pedido de auxílio… É que, pelos vistos, as instituições não gostavam de ter o Zé em lado nenhum, era difícil”. E o que para o instrutor “não tinha explicação” nem era tanto o desalento da família, coisa até bastante natural, mas antes “a forma como o Zé chegou ao Boxerpa, o facto de ele se ter adaptado rapidamente a tudo isto, ao seu ritmo, é claro, ao seu jeito… o Zé está completamente adaptado como qualquer outro dos jogadores de boxe que cá temos”. Mas não é apenas a angústia da família, nem a evolução “perfeitamente notável” do Zézinho

ao nível dos treinos, que carece de uma melhor explicação para aclarar as ideias do instrutor Carlos Gaspar. É algo mais forte e de difícil enunciação. “Não sei, mas acho que a relação entre nós acabou por ficar muito forte e muito íntima”. Quem os observar a saltitar entre as cordas improvisadas do ringue do Boxerpa Team consegue imaginar que há, de facto, algo que terá nascido com a prática desportiva, mas que amplamente a transcende. “É meu amigo, é boa pessoa, gosto muito dele”, mostra José Valentim aquilo que sente pelo mestre. O mestre é Carlos Gaspar, já o sabemos. O que desconhecíamos é que também ele tem 45 anos e que também ele navegou nas vagas da lei de Murphy até chegar a Serpa, vai para seis anos, para montar um clube de boxe que se preocupasse com a modalidade olímpica em si, mas que não deixasse de integrar todas as vítimas de processos de exclusão que à sua porta fossem bater. “O que posso dizer sobre o que está a ser feito no Boxerpa, todas estas tentativas para ajudar nos problemas concretos dos outros, vem tudo da minha história de vida”,

reforça Carlos Gaspar. A “história de vida” de Carlos Gaspar começou no bairro das Marianas, em Carcavelos, um daqueles tugúrios de destroços e de lixo onde foram realojados milhares de refugiados negros durante o desatino da descolonização. “Como pode imaginar, a minha infância passou por um processo atribulado, por um processo agitado”. Sem querer pormenorizar nem entrar em detalhes, Carlos Gaspar apenas gosta de salientar que está a incrementar programas de apoio social através do desporto em Serpa, “porque eu não estive apenas próximo, eu estive lá”. Esteve lá mas sempre tentou fugir a sete pés. Primeiro para o corpo de Paraquedistas, onde aprendeu as primeiras lutas com regras e, necessariamente, o boxe, e depois para a Legião Estrangeira, onde combateu ao lado das forças francesas em guerras como a do Chade, Costa do Marfim ou Somália. “Isto até pode parecer mentira, mas voltei de lá com a mente mais aberta. Quando hoje falo em boxe, em praticar boxe, o que me interessa é andar à procura daquilo que há de bom nos outros, é tirar deste desporto qualquer coisa de bom, como aconteceu entre mim e o Zezinho”. É incrível que duas pessoas com histórias de vida tão distintas, embora nascidas no mesmo ano, “tenham tanto em comum e tanto para dar”, reconhece Carlos Gaspar. “Repare bem”, prossegue o instrutor, “eu sou aquilo a que se pode chamar uma exceção. Eu já estive do lado de lá no que toca a tudo o que é marginalidades num dos piores bairros de Lisboa. Estive do lado de lá, mas agora estou do lado de cá. Ninguém me pode dizer a mim que existem coisas impossíveis de alcançar”. Como a amizade profunda e sincera que em torno do boxe se estabeleceu entre um miúdo de bairro e um portador de Trissomia 21. “Não posso chegar aqui um dia com o ar um pouco mais acinzentado, mais cabisbaixo. O Zé percebe logo. Até me pode não dizer nada no imediato, mas não demora que se chegue ao pé de mim e me dê um abraço”, conta o treinador: “Há no desporto ou na vida coisa mais gratificante do que isto?”. Talvez não haja. E tu o que achas, Zezinho: “O que mais gosto mesmo é de saltar à corda”.


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