ENCONTRO DE INVESTIGADORES EDUM 2018
Escola de Direito da Universidade do Minho
ENCONTRO DE INVESTIGADORES Escola de Direito da Universidade do Minho
2019
FICHA TÉCNICA
TÍTULO DA PUBLICAÇÃO Encontro de Investigadores da Escola de Direito da Universidade do Minho 2018 COMISSÃO CIENTÍFICA Centro de Investigação em Justiça e Governação COMISSÃO ORGANIZADORA Larissa Coelho Ana Carolina Cohen Maria João Lourenço Raphaela Toledo DATA DE PUBLICAÇÃO Julho de 2019 EDIÇÃO Escola de Direito da Universidade do Minho PAGINAÇÃO E DESIGN DE CAPA Pedro Rito ISBN 978-989-54194-7-0
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SUMÁRIO
PREFÁCIO
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APRESENTAÇÃO
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Os subsídios fornecidos pela filosofia das ciências para a formação da convicção do julgador na apreciação da prova no âmbito civil Ana Carolina Trindade Soares Cohen
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O poder constituinte vivo (Parte 2). O caso latino-americano e seu contributo para a teoria do poder constituinte André Ribeiro Leite
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Comércio internacional e imposição tributária justa. As importações e as exportações no contexto de um sistema fiscal coerente: desenvolvimentos investigatórios recentes Andreia Isabel Dias Barbosa
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A vulnerabilidade do trabalhador diante da interatividade digital Ângela Barbosa Franco
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A origem da planta municipal em Portugal. O exemplo dos concelhos do distrito do Porto Barbara Luize Iacovino Barreiros
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O “BREXIT” e os BRICS no cenário do mundo financeiro globalizado - Perspectivas e contradições Cláudia Ribeiro Pereira Nunes / Fernando Rangel Alvarez dos Santos
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Gestação de substituição. Quais as alternativas? Diana Sofia Araújo Coutinho
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Meios alternativos e eficientes de resolução de litígios que envolvem créditos da Administração Pública portuguesa: em que medida podem ser transplantados ao Brasil? Ines Querubina Ceni
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O constitucionalismo para o século XXI Larissa A. Coelho
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Panorama atual da investigação jurídica sobre os movimentos migratórios internacionais Maria Hylma Alcaraz Salgado
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O regime da prova pericial no ordenamento jurídico português: domínio pelos peritos dos processos judiciais? Maria João Lourenço
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A corrupção e o branqueamento de capitais em Moçambique: uma relação simbiótica e anormal Miguel Mussequejua
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O desenvolvimento sustentável e a aplicação da política nacional de resíduos sólidos: o uso de bagaço, palha e pontas da cana de açúcar na cogeração de energia Priscila Elise Alves Vasconcelos / Paulo Sérgio Vasconcelos
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A ideia de “abandono dos métodos” na formação do convencimento do magistrado e o caráter de cientificidade da fundamentação das decisões judiciais Raphaela Sant´Ana Batista Toledo
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Os excessos da língua utilizada nos tribunais como um obstáculo ao acesso à justiça Ricardo Russell Brandão Cavalcanti
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PREFÁCIO
As atas que agora se publicam correspondem aos trabalhos apresentados no Segundo Encontro de Investigadores em Ciência Jurídicas que decorreu na Escola de Direito da Universidade do Minho, no dia 10 de julho de 2018. O referido encontro pretendeu reunir investigadores doutorandos e de pós-doutoramento da Escola de Direito, para que estes tivessem a oportunidade de apresentar o estado das respetivas investigações. Além da apresentação das investigações em curso, o referido encontro permitiu também o diálogo e a discussão com outros investigadores, o que constituiu uma forma de aperfeiçoamento dos trabalhos científicos apresentados. Foram variadas as temáticas abrangidas no âmbito deste encontro e que refletem a pujança e diversidade da investigação levada a cabo na Escola de Direito. A obra que agora se publica é testemunho desta diversidade e qualidade de investigação. Os trabalhos apresentados abrangeram temáticas desde o domínio da prova e do Direito Processual Civil, do Direito Constitucional, do Direito Tributário, do Direito Administrativo, do Direito Penal, do Direito da Família e questões jurídicas referentes aos movimentos migratórios. O trabalho de investigação em Direito é solitário e os encontros de investigadores são uma oportunidade de diálogo, de partilha e, muitas vezes, permitem ultrapassar dúvidas e bloqueios na investigação. Espera-se, por isso, que estes encontros mantenham a sua missão de apoio aos investigadores, apresentando-se estes encontros, de futuro, integrados na Escola de Investigadores do Centro de Investigação em Justiça e Governação (Jus-Gov). Deseja-se que o rigor, o trabalho, a originalidade e a criatividade continuem a nortear a investigação dos doutorandos e alunos de pós-doutoramento da Escola de Direito, para que possam contribuir para a projeção da Escola, tanto no plano nacional como no plano internacional. Da parte da Escola de Investigadores do Centro de Investigação Jus-Gov, assume-se o compromisso de melhorar continuamente as condições de investigação e de criar novas oportunidades para os seus membros. Esta é a missão axial da Escola de Investigadores e só assim se justifica a sua existência.
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Uma última palavra de agradecimento para a Comissão Organizadora do Segundo Encontro de Investigadores em Ciência Jurídicas, composta pelas Mestres Larissa Coelho, Ana Carolina Cohen, Maria João Lourenço e Raphaela Toledo, que generosa e abnegadamente dinamizaram o evento e a publicação da obra que agora se apresenta. Anabela Gonçalves, Vice-Presidente da Escola de Direito para a área da investigação e
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Diretora da Escola de Investigação do Centro de Investigação Jus-Gov
APRESENTAÇÃO
Pelo segundo ano consecutivo a Escola de Direito da Universidade do Minho abriu as suas portas para receber investigadores seniores e juniores no 2º Encontro de Investigadores em Ciências Jurídicas da Universidade do Minho, subordinado ao tema O estado da arte da pesquisa em Direito, que decorreu no dia 10 de julho de 2018 no edifício da EDUM. O evento, que tem por objetivo registar o estado da arte da pesquisa jurídica em andamento nesta Escola, desta vez alargou o seu campo de atuação, contando novamente com o contributo dos investigadores internos, e sendo enriquecido com as colaborações de investigadores provenientes de universidades de Espanha e do Brasil. Seguindo com a habitual apresentação dos resumos expandidos, de autoria individual ou em coautoria, com vista à discussão de investigações em andamento e os comentários de investigadores seniores, o evento contou também com a intervenção inicial da Diretora do Curso de Doutoramento em Ciências Jurídicas e Presidente da Escola de Direito, Profª Doutora Clara Calheiros, a quem dirigimos o nosso agradecimento pelo apoio e incentivo à continuidade deste projeto. Nesta segunda edição, foram ainda apresentados os projetos de pesquisa que se encontravam em desenvolvimento no Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov), sendo apresentados pela Profª Doutora Anabela Gonçalves os objetivos da Escola de Investigadores e o projeto C.L.A.S.S.4EU (4 EU Training Sessions on Family Law Regulations for Cross-border Lawyers and Social Services). À Profª Doutora Sophie Perez, por sua vez, coube a explanação do projeto INTEROP (EU Digital Single Market as a Political Calling: Interoperability as the Way Forward). Por fim, dialogou-se com a Profª Doutora Patrícia Jerónimo sobre os projetos TRASMIC (Transnational Migration, citizen shipand the Circulation of Rights and Responsibilities), MPF Action (Support for the Mol-
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dovan Call Centre for Migrants) e Inclusive Courts (Equality and Cultural Difference in the Practice of Portuguese Courts: Challenge and Opportunities for an Inclusive Society). O encerramento foi feito pelo Prof. Doutor Mário Monte. A investigação em ciências jurídicas, assim como nas demais ciências, pauta-se pelo esclarecimento do mundo através do método científico. Uma descoberta que nos pode remeter ao passado para projetar o futuro, mas que, sobretudo, se prende na busca de soluções para os problemas jurídico-sociais concretos e com a rutura de paradigmas, sempre através de um olhar experimental. Assim, os trabalhos que agora se apresentam por escrito permitem-nos acompanhar a descrição de modelos e a discussão de resultados, que, com o desenvolvimento de investigações doutorais, possibilitam a exposição do salto qualitativo e da profundidade teórica dos estudos em progresso. Além disso, possibilitam a interação com novos temas, o que reafirma a multidisciplinariedade temática e a abrangência sempre crescente dos problemas aos quais o Direito deve responder. Nas páginas a seguir encontraremos observações sobre os meios alternativos para resolução de litígios; o método e a linguagem utilizados pelos tribunais; a relação entre a ciência e a prova pericial; o papel da pesquisa jurídica e a sua importância em temas como o das migrações internacionais; a corrupção e o branqueamento de capitais; os tributos em sede de comércio internacional; o debate sobre os blocos político-económicos e o impacto no sistema financeiro internacional; a organização territorial dos municípios; o referendo para fins constitucionais em situação de instabilidade política; o desenvolvimento de um constitucionalismo para o século XXI; a gestação de substituição; os direitos do trabalhador e a tecnologia; a energia e o desenvolvimento sustentável. O experimento e a teoria, ao serviço da evolução da ciência, permitem-nos aprender, duvidar, colaborar e ensinar. Por essa razão, agradecemos a todos os investigadores seniores e juniores que contribuíram na realização deste projeto. Braga, janeiro de 2019 A Comissão de Organização
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OS SUBSÍDIOS FORNECIDOS PELA FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS PARA A FORMAÇÃO DA CONVICÇÃO DO JULGADOR NA APRECIAÇÃO DA PROVA NO ÂMBITO CIVIL Ana Carolina Trindade Soares Cohen1
1. Considerações introdutórias Não é novidade que o juiz tem o dever de julgar, não podendo se abster de seu mister, ainda que lhe subsistam dúvidas. Sobre a matéria de fato, decide de acordo com a sua convicção, o que não lhe exime de justificar os fundamentos do que decidiu. Na análise da matéria de fato, objetiva conhecer o que se passou, não obstante essa busca pelo conhecimento seja apenas uma etapa do processo decisório, haja vista que não se trata de um fim em si mesmo, mas de um meio para atingir uma finalidade, “a justa composição do litígio”2.
1 Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidade do Minho. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Mestre em Direito Público pela UFAL. Professora do Curso de Direito do Centro Universitário Tiradentes - UNIT. É membro colaborador do Grupo de Direitos Humanos do Centro de Investigação de Justiça e Governação - JUSGOV da Escola de Direito da Universidade do Minho. Advogada. 2 REGO, Margarida Lima, Decisões em ambientes de incerteza: probabilidade e convicção na formação das decisões judiciais, Revista Julgar, n. 21,(2013), p. 121.
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Encontro de Investigadores da Escola de Direito da Universidade do Minho 2018
Dentre os diversos aspectos controvertidos que envolvem a temática da decisão judicial, vem ganhando relevo o problema da apreciação das denominadas questões de fato. Aliás, antes que se discuta propriamente o exame de tais questões, discute-se, ainda, a superação da dicotomia questão de fato versus questão de direito. Entendemos que não existe uma rígida cisão entre o que se convencionou chamar questão de fato e questão de direito, mas uma predominância de uma ou de outra em determinado caso. Esta dicotomia trata-se de uma ficção extremamente útil no âmbito do sistema processual civil, mas não é possível afirmar que existam questões puramente de fato ou puramente de direito, pois o Direito “não ‘acontece em abstrato para se acoplar à realidade”3. Outro aspecto de relevo que permeia o estudo do atuar jurisdicional acerca da análise das questões de fato é o de como é realizado o exame das provas e de como é exposta a convicção do julgador. Neste cenário, o presente estudo visa analisar a possibilidade de uma definição estática de tais graus de convicção, bem como se é possível cogitar da existência de regras específicas que o julgador possa e deva manejar quando da formação e exposição de sua convicção. Além disso, analisa a viabilidade de padronização desta atividade; tudo com vistas a prevenir o agir arbitrário do julgador, e a controlar a subjetividade e o arbítrio, que são inerentes ao processo decisório.
2. Análise crítica da prova e metodologia para a decisão da matéria de fato Verificados os fatos provados e os não provados, procederá o julgador à análise crítica da prova, a qual é de grande relevância do ponto de vista da fundamentação de fato, “pois é através dela que os fundamentos e razões da decisão são exteriorizados e explicitados”4. Para tanto, ainda que se afirme da impossibilidade de estabelecimento de uma metodologia da decisão, ou de um único critério decisivo para a formação da convicção do juiz, é consenso a insuficiência da mera referência aos meios de prova para o cumprimento do dever de análise crítica. As vagas referências “ao depoimento da testemunha X” ou “à perícia realizada no dia Y”, não oferecem um fio condutor entre a decisão da matéria de fato 3 SCHMITZ, Leonard Ziesemer, Fundamentação das decisões judiciais – A crise na construção de respostas no processo civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2015, p. 144. 4 CABRITA, Helena, A fundamentação de facto e de direito da decisão cível, 1ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2015, p. 182.
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Os subsídios fornecidos pela filosofia das ciências para a formação da convicção do julgador na apreciação da prova no âmbito civil
e os meios de prova que foram utilizados na formação da convicção do juiz; uma vez que, para tanto, faz-se imprescindível a demonstração dos motivos substanciais que o levaram à determinada decisão. Entendemos que não existem fórmulas infalíveis para se proceder à análise da prova, pois a dinâmica dos fatos e a consequente variabilidade dos casos concretos e, por conseguinte, dos diversos meios de prova, impedem que se consagrem estruturas absolutas de julgamento. Todavia, se o juiz ou tribunal se convenceu por meio de determinado elemento probatório, foi porque o considerou credível, cumprindo, nesta medida, esclarecer as razões pelas quais concluiu acreditar nele e tê-lo por verdadeiro5. Para este efeito, um dos critérios que vem sendo amplamente invocados, sobretudo quando se trata da prova pericial, é o critério da razão da ciência, buscando-se subsídios fornecidos pela filosofia das ciências para formar e justificar a convicção do julgador na valoração de determinados meios de prova.
2.1 O recurso à filosofia das ciências como subsídio para a formação da convicção do julgador O trabalho realizado pela filosofia das ciências no âmbito da investigação científica, consistente, em linhas gerais, em estabelecer fatos e as relações existentes entre eles, vem sendo bastante utilizado como subsídio para a formação da convicção do julgador, cogitando-se, inclusive, da possibilidade de definição de uma metodologia da decisão da matéria de fato fundada no raciocínio fornecido pelos métodos desenhados pela filosofia da ciência6. O recurso a estes subsídios é flagrante, por exemplo, na definição de critérios de admissibilidade e valoração da prova pericial nos Estados Unidos da América, no caso Daubertvs. Merrell Dow Pharmaceuticals, no qual a Suprema Corte norte-americana estabeleceu requisitos7 de admissibilidade do testemunho de peritos em juízo, recorrendo, para tanto, a uma síntese do método científico para a obtenção de conclusões, com base na teoria da falsificabilidade das 5 CABRITA, cit., p. 190. 6 Alberto Augusto Vicente Ruço, por exemplo, na obra Prova e formação da convicção do juiz, Coimbra, Almedina, 2016, p. 312, trata de uma metodologia para a decisão da matéria de fato com base no trabalho crítico realizado pela filosofia das ciências. 7 Susan Haack, ao tratar da experiência norte-americana com relação ao testemunho de peritos, elenca os denominados fatores Daubert: “whether the theory or technique can be (and has been) tested; whether the theory or technique has been subjected to peer review and publication; the known or potential rate of error, and the existence and maintenance of standards controlling the operation of the technique in question; whether the theory or technique has gained widespread acceptance in its field”. HAACK, Susan, The Expert Witness: Lessons from the U.S. Experience, Humana Mente: Journal of Philosophical Studies, vol. 28, (2015), p. 51.
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ciências como critério de validade do conhecimento científico, desenvolvida por Karl Popper. Para Popper, o cientista deve examinar a sua teoria de modo crítico. Segundo o filósofo, “o progresso na ciência, ou a descoberta científica, depende da instrução e da selecção: de um elemento conservador, tradicional ou histórico, e de uma utilização revolucionária de tentativa e eliminação de erro pela crítica, que inclui exames severos ou testes empíricos”, com o objetivo de tentar examinar a fundo as possíveis fraquezas das teorias e tentar refutá-las8. Popper defendeu que a abordagem indutivista não permite obter progressos no conhecimento, pois “opera com a noção de instruções a partir de fora, ou do ambiente”9. Sustentou que não há instruções de fora da estrutura ou a recepção meramente passiva de um fluxo de informação registrada por meio dos nossos órgãos dos sentidos, mas que “todas as observações estão impregnadas de teorias”, de modo que não existe observação pura, desinteressada ou isenta de teorias. Aliás, salientou que “para alcançar a objectividade, não podemos confiar numa mente vazia. A objectividade funda-se na crítica, na discussão crítica e na análise crítica das experiências”10. Assim, não seria pela observação de uma série de regularidades empíricas que chegaríamos às leis explicativas dos eventos, mas por meio da imaginação; e colocando hipóteses explicativas acerca da realidade. Além disso, os resultados seriam alcançados se estas hipóteses explicativas da realidade e as implicações empíricas deriváveis delas fossem refutadas ou confirmadas pelos dados empíricos. Daí se extrai, como observa Vicente Ruço, a designação de método hipotético-dedutivo, porque a partir da observação dos fenômenos, “o cientista formula hipóteses acerca do funcionamento da realidade […] e, depois, deduz a partir da hipótese conjeturada consequências verificáveis empiricamente, ou seja, implicações de natureza factual que serão corroboradas ou refutadas pelos dados da experiência”11. Se, por sua vez, a hipótese explicativa deduzida for refutada, a conjectura deve ser abandonada ou aperfeiçoada, a fim de superar a refutação anterior; sendo novamente submetida a testes de falsificabilidade, de modo que o processo é sucessivamente renovado.
8 POPPER, Karl, O mito do contexto – Em defesa da ciência e da racionalidade, tradução portuguesa de Paula Taipas, Lisboa, Edições 70, 1993, p. 32. 9 POPPER, cit., p. 33. 10 POPPER, cit., p. 33-34. 11 RUÇO, cit., p. 315.
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Os subsídios fornecidos pela filosofia das ciências para a formação da convicção do julgador na apreciação da prova no âmbito civil
Salienta Vicente Ruço que a ideia que se retira desta metodologia reside na “importância ou valor da explicação dos fatos como instância geradora da convicção no sentido da hipótese colocada corresponder à realidade”, restando, pois, em seu entender, claro que é “apropriada ao julgamento da matéria de facto por parte do juiz”12. Argumenta-se, portanto, que para se chegar a critérios de decisão aceitáveis, o melhor caminho a ser seguido é o apresentado pela filosofia das ciências, procedendo-se às adaptações necessárias à realidade do processo judicial. Não se pode cogitar, deste modo, que a utilização de recursos da filosofia das ciências como parâmetros para o estabelecimento de critérios para a decisão judicial seja tarefa das mais fáceis, especialmente porque no processo judicial, consoante já assinalamos, o juiz lida com a realidade do processo. O julgador não tem acesso aos fatos tais como eles se verificaram, mas apenas aos fatos tais como resultaram das provas constantes dos autos. Como juízo histórico que se apresenta, “o juízo de convicção do julgador da matéria de facto não é mais do que um juízo de probabilidade sobre a verdade ou falsidade de certas proposições”. Assim, “quando o juiz dá como provado um determinado facto, isso significa, no nosso ordenamento jurídico, que, com os meios limitados à sua disposição e a imperfeição inerente à natureza humana, atingiu a ‘certeza subjetiva’ da veracidade da correspondente afirmação de facto”13. Neste cenário, a descoberta judiciária não é idêntica à descoberta científica, “pois no primeiro caso não há a possibilidade de criar e renovar a experiência”. Nada obstante, a realidade judiciária partilha com a realidade científica “a lógica da descoberta, da formulação de hipóteses explicativas, da corroboração e refutação e da resistência à refutação”14. Aliás, esta lógica é muitas vezes seguida na prática sem que os sujeitos processuais ou o próprio juiz se apercebam. Quando, por exemplo, as partes estão em busca das provas de suas alegações, nada mais fazem do que buscar corroborá-las, ou, ao revés, refutá-las. Da perspectiva do julgador, a formação de sua convicção acerca da matéria de fato no ambiente do processo civil, por meio dos instrumentos da ciência até aqui resumidamente expostos, seria alcançada considerando a lógica da prova, no sentido de que cada dado probatório se acomode a premissas explicativas 12 RUÇO, cit., p. 315. Destaca o autor que, inclusive, este método é proposto por Luigi Ferrajoli no âmbito judicial da matéria de fato na seara criminal, mas que o mesmo seria igualmente aplicável no processo civil. 13 REGO, cit., p. 121. 14 RUÇO, cit., p. 319.
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que o conformem ao que fora afirmado. “A plausibilidade e grau de probabilidade da hipótese submetida a prova vai aumentando à medida que é corroborada por dados probatórios que a confirmem [...]”15. Por outro lado, a sua refutação, e bastaria um só caso, demonstraria a sua inaceitabilidade. Além do recurso ao método hipotético-dedutivo, propõe-se ainda o recurso ao método abdutivo, por meio do qual se busca a formação de uma hipótese explanatória, que preste conta dos fatos e mostre-se adequada à explicação dos fenômenos. Este raciocínio tem por objetivo obter uma regra que explique a existência de determinado fato ou fenômeno: “conjeturada uma explicação que dê conta do facto A, como sendo este uma sua instância, isto é, construída uma regra ou lei da qual se possa inferir dedutivamente A, o passo seguinte consiste em testar a lei para verificar ou refutar pelos dados empíricos implicados pela hipótese explicativa conjeturada”16. Caso a hipótese explicativa seja refutada, deve ser abandonada ou reformulada, e o processo repetido. Caso seja confirmada, adquire-se a convicção de que a regra explicativa corresponderá à realidade. A utilização destes recursos para a formação da convicção do julgador, consoante já assinalado, é muitas vezes utilizada de forma irrefletida, todavia, há quem defenda a possibilidade do estabelecimento de um método para a análise crítica da prova e, consequentemente, para a formação da convicção do julgador nas denominadas questões de fato.
3. A razão da ciência como método para a decisão da matéria de fato? À guisa de conclusão Quando o juiz exerce a função estatal de resolver os conflitos, assim o faz com base em normas gerais que o indicam como deve proceder, quais critérios deve utilizar na hora da decisão, e de que forma esta deve ser redigida: “las leyes procesales determinan con pormenor el procedimiento que han de seguir tanto el juzgador como las partes, pero se trata fundamentalmente de normas de trámite de carácter más bien garantista, aunque su trascendencia sobre el fallo sea indudable”17. Todavia, não obstante a lei estabeleça os pormenores acerca dos procedimentos que o julgador deve observar quando da tomada de uma decisão, não prevê regras materiais que este deva utilizar como subsídio para tanto. 15 RUÇO, cit., p. 318. 16 RUÇO, cit., p. 318-319. 17 NIETO, Alejandro, El arbítrio judicial, Barcelona, Ariel, 2000, p. 75.
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Entendemos que este silêncio se deve ao fato de que a decisão judicial não se trata de uma operação mecânica “o susceptible de alcanzarun ideal absoluto de predefinición a partir de una metodologia hermenéutica o argumentativa sofisticada”18, especialmente por que, com frequência, o que realmente se exterioriza em uma decisão judicial não é o que, de fato, levou o juiz a decidir, mas a justificativa, a posteriori, de uma decisão tomada antes, e por razões que, por vezes, não são explicitadas. E disso decorre a preocupação sempre presente em se delimitar um método que sirva de baliza para a formação da convicção do julgador. A aplicação das ciências para estes fins não é um fenômeno novo. Há muitas décadas já são utilizados os métodos científicos para a averiguação de fatos que são objetos de controvérsias. As discursões mais recentes, por sua vez, giram em torno da definição de um método apto a subsidiar o juiz na análise crítica da prova e na consequente formação de sua convicção. Vicente Ruço, por exemplo, entende que, não se tratando a atividade jurisdicional de um labor irracional e arbitrário, devem ser aperfeiçoadas as regras, dirigindo-se à definição de uma metodologia. Em seu sentir, tais regras, que respeitam a reconstituição da realidade histórica, e partem dos subsídios fornecidos pela filosofia das ciências, devem articular: a) a realidade onde os fatos nascem, se transformam e extinguem; b) a causalidade reinante na natureza; c) a intencionalidade que governa as ações dos agentes; d) a reflexibilidade das coisas e das ações dos agentes; e) a explicação causal, quase-causal e teleológica, relativas à gênese e existência dos fatos; f) a razão pela qual um fato é prova de outro; e g) os sintomas de verdade19. Salienta que no julgamento da matéria de fato não é necessário seguir a ordem dos critérios acima referida. Ademais, a depender do caso que esteja sendo apreciado, é possível que nem todos estes fatores se mostrem relevantes e necessários. A nosso ver, em se tratando de decisão acerca da matéria de fato, a busca pela definição de métodos com base em critérios científicos revela, além do anseio pela necessidade de controle da decisão judicial, uma evidente busca pela verdade dos fatos, por se acreditar que a técnica permite estabelecer de modo mais confiável a verdade.
18 CALVO GARCÍA, Manuel, Los fundamentos del método jurídico: una revisión crítica, Madrid, Tecnos, 1994, p. 11. 19 RUÇO, cit., p. 322-323.
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Todavia, “eso presupone, precisamente, que la corroboración de la verdad sea considerada como una de las finalidades fundamentales del proceso”20, bem como é necessário questionar acerca de qual tipo de verdade se está a perseguir, especialmente em se tratando do processo civil, onde muitas demandas dizem respeito a direitos disponíveis, e onde, em regra, se trabalha com a teoria estática do ônus da prova. A referência à ciência por parte de muitos juristas frequentemente se baseia na ideia ingênua de que o científico corresponde ao confiável, e de que ciência é sinônimo de verdade, exercendo, como bem salienta Maria Clara Calheiros21, um verdadeiro fascínio sobre o jurista. E tanto é assim, que Vicente Ruço defende tratar-se de um “modelo ideal” para a análise crítica das provas. Em seu entender, na reconstituição da realidade, “onde terá sido gerada a hipótese factual sob prova, o juiz valorará positiva ou negativamente as provas disponíveis consoante se encontrem ou não cobertas por regras se (sic) experiência e sintomas de verdade”22. De ver-se, portanto, que na comunidade jurídica existem vozes no sentido de ser suscetível à tarefa judicial a descoberta da verdade por meio de critérios científicos, formadores da convicção do juiz; havendo, por outro lado, consoante adverte Clara Calheiros, outros que “acreditam-na radical e insuperavelmente específica e única”23. Em nosso entender, é uma realidade inafastável o recurso ao conhecimento científico no ambiente processual, inclusive como forma de instrumento útil para a formação da convicção do julgador no âmbito do julgamento da matéria de fato. Todavia, embora tais elementos sejam úteis em determinadas demandas, a imposição de um pretenso método científico de apreciação destas matérias, a pretexto de uma maior possibilidade de sindicância da decisão judicial, tornaria demasiado vinculado o atuar decisório do juiz, que é naturalmente discricionário.
Referências bibliográficas CABRITA, Helena, A fundamentação de facto e de direito da decisão cível, 1ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2015. 20 TARUFFO, Michele, Verdad, prueba y motivación en la decisión sobre los hechos, México, Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación, 2013, p. 66. 21 CALHEIROS, Maria Clara, Para uma teoria da prova, 1ª ed., Coimbra, Coimbra, 2015, p. 119. 22 RUÇO, cit., p. 325. 23 CALHEIROS, cit., p. 123.
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CALHEIROS, Maria Clara, Para uma teoria da prova, 1ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2015. CALVO GARCÍA, Manuel, Los fundamentos del método jurídico: una revisión crítica, Madrid, Tecnos, 1994. HAACK, Susan, The Expert Witness: Lessons from the U.S. Experience, Humana Mente: Journal of Philosophical Studies, Vol. 28, (2015), p. 39-70. NIETO, Alejandro, El arbítrio judicial, Barcelona, Ariel, 2000. POPPER, Karl, O mito do contexto – Em defesa da ciência e da racionalidade, Trad. Paula Taipas, Lisboa, Edições 70, 1993. REGO, Margarida Lima, Decisões em ambientes de incerteza: probabilidade e convicção na formação das decisões judiciais, Revista Julgar, n. 21,(2013), p. 119-147. RUÇO, Alberto Augusto Vicente, Prova e formação da convicção do juiz, Coimbra, Almedina, 2016. SCHMITZ, Leonard Ziesemer, Fundamentação das decisões judiciais – A crise na construção de respostas no processo civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2015. TARUFFO, Michele, Verdad, prueba y motivación en la decisión sobre los hechos, México, Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación, 2013.
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O PODER CONSTITUINTE VIVO (PARTE 2). O CASO LATINO-AMERICANO E SEU CONTRIBUTO PARA A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE André Ribeiro Leite1
No decorrer do 1.º Encontro de Investigadores em Ciências Jurídicas da Universidade do Minho, realizado no ano de 2017, apresentaram-se os resultados concernentes ao 1.º ano de trabalho investigativo para a elaboração de tese perante o programa de Ciências Jurídicas Gerais da Escola de Direito, cujo tema é “O Poder Constituinte Vivo: o caso latino-americano e seu contributo para a teoria do Poder Constituinte”. Conforme ali se apontou, o estudo teve origem em recente fenômeno de reforma dos textos constitucionais em diversos países da América Latina através de consulta popular - em regra pela via do referendo -, que em grande parte dos casos constitui pressuposto de validade para que a redação de reforma ou revisão, após o regular trâmite formal perante os pertinentes órgãos legislativos, ingresse no ordenamento jurídico com a natureza de norma constitucional, munida de todas as características que lhe são intrínsecas, a exemplo da validade, da obrigatoriedade e da eficácia. Tal como se apresentou quando do 1.º Encontro, o objeto específico da 1 Aluno do doutoramento em Ciências Jurídicas, vertente Ciências Jurídicas Gerais, pela Universidade do Minho, Mestre em Direito Judiciário por essa mesma instituição e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. É Procurador do Município de Nossa Senhora do Socorro, Estado de Sergipe, Brasil.
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investigação seria identificar se esse fenômeno de reformas constitucionais através de mecanismos de democracia direta representaria nova leitura ou mesmo ramificação da teoria do poder constituinte. Após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Conselho Científico da Escola de Direito da Universidade do Minho no dia 25 de Maio de 2017, procedeu-se a amplo levantamento bibliográfico sobre o objeto de estudo, seja pela importação de livros, seja pela aquisição de material de estudo em campo, o que se deu através de viagens a alguns países do continente latino-americano, que se fizeram necessárias em razão da pouca oferta de textos, relatórios e doutrina específica na rede mundial de computadores, assim como nas livrarias virtuais. Empreendeu viagens à Bolívia, Equador, Peru, Colômbia, Paraguai, Chile, Argentina e Uruguai, que se demonstraram proveitosas para a aquisição de material e permitiram a redação do primeiro capítulo destinado à análise do direito constitucional positivo desses países. Para tanto, utilizou-se da metodologia de direito comparado, com enfoque no estudo da microcomparação entre os sistemas, em que foram selecionados pontos comuns, como a titularidade da soberania, a organização das formas e sistemas de governo, a repartição dos poderes ou funções do poder soberano e, por fim, dos mecanismos de reforma constitucional, sobretudo daqueles pertinentes à democracia direta, a exemplo dos plebiscitos e referendos. Após o primeiro ano de trabalho investigativo, ainda persiste a preocupação quanto à identificação do possível viés democrático desse fenômeno, a representar o contínuo e direto exercício geracional dos titulares do Poder Constituinte em relação a sua própria soberania. Naquele primeiro ano, acreditava-se que a participação popular nos processos de reforma constitucional seria instrumento de grande valia para evitar a estagnação do texto constitucional pela possível submissão de gerações futuras aos desejos remotos de legisladores constituintes do passado. Sobre esse assunto citou-se, inclusive, a lição de Canotilho, segundo a qual A domesticação jurídica do poder constituinte veiculada pelo estabelecimento de limites ao poder constituinte derivado ou poder de revisão originará, por sua vez, outros momentos de perplexidade jurídica e política. Referimo-nos ao chamado paradoxo da democracia: como “pode” um poder estabelecer limites às gerações futuras? Como pode uma constituição colocar-nos perante um dilema contramaioritário ao dificultar deliberadamente a “vontade das gerações futuras” na mudança das suas leis? Revelar-se-á, assim, o constitucionalismo de uma antidemocraticidade básica impondo à soberania do povo “cadeias para o futuro” (Rousseau)?”2.
2 CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 8.ª reimp., Coimbra, Almedina, 2010, p. 74.
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Esse ponto de interrogação ainda persiste, embora com diferente amplitude, sobretudo em razão da realidade imposta pelas descobertas resultantes do processo investigativo. Afinal, ao contrário de países como os Estados Unidos, cuja Constituição data de 1787, circunstância que serviria, por si só, para justificar tal preocupação, a grande maioria dos países da América Latina é regida por textos constitucionais jovens, posteriores a 1980, salvo pequenas exceções, a exemplo do México e do Uruguai, cujas Constituições datam, respectivamente, de 1917 e 1967, não obstante hajam sofrido diversos processos de reforma ao longo dos anos. Nos demais países de ascendência latina, em especial na América do Sul, o texto constitucional mais antigo em vigor, excluído por obviedade o uruguaio, é o do Chile, vigente desde 1980. A ele se seguem as Constituições do Brasil (1988), Colômbia (1991), Paraguai (1992), Peru (1993), Argentina (1994), Venezuela (1999), Equador (2008) e, por fim, da Bolívia (2009). Como se percebe, não há interregno geracional suficiente o bastante para gerar conflitos de valor entre os desejos dos constituintes originários e a atual geração que titulariza o poder soberano do país. Não fosse suficiente, a investigação igualmente revelou que a adoção de consultas populares para a promoção de reformas constitucionais não é acontecimento inédito aos textos vigentes. A Constituição chilena de 1925, ao tempo da reforma constitucional patrocinada no ano de 1970, já possuía a previsão de referendo em seu art. 109. Previsão de natureza plebiscitária também foi encontrada na Constituição venezuelana de 1967, em seu art. 246, n.º 4. Por fim, à semelhança dessas, a penúltima Constituição do Equador, promulgada no ano de 1998, em seu art. 280, autorizava a reforma constitucional via iniciativa popular, apesar de sua vigência ser contemporânea ao fenômeno de reformas constitucionais via mecanismos de democracia direta, que, conforme referido, é o fator catalisador da presente investigação. Todavia, certo é que o uso desses mecanismos de consulta popular jamais foi tão frequente como nos últimos trinta anos, a representar característica comum aos países que adotaram essa sistemática durante o período de redemocratização, à exceção do Chile e Peru, cujas Constituições vigentes não foram promulgadas em período de transição para um regime democrático, mas ao contrário, durante período de reafirmação autoritária, quando, respectivamente, esses países se encontravam sob a égide dos regimes políticos conduzidos por Augusto Pinochet e Alberto Fujimori. Nesse particular, no que pertine à aludida frequência de consultas, conforme se reportou no último encontro dos investigadores, no ano de 2003 realizou-se referendo na Colômbia para a alteração de quinze artigos da Constituição, cujo resultado apenas possibilitou a reforma de um, pertinente à proibição de que pessoas condenadas por delitos de corrupção se candidatassem a cargos públicos ou firmassem contratos com o Estado. Posteriomente, no ano de 2007, foi realizada consulta popular na Venezuela, cujo objeto consistia na aprovação ou rejeição das emendas propostas pela Presi-
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dência da República e pelo Congresso para a alteração de quarenta e seis artigos da Constituição. O conjunto da reforma constitucional foi votado em dois blocos identificados sob as letras “A” e “B” e, entre os assuntos tratados, discutiu-se a redução da idade mínima para votar, a redução da jornada de trabalho, o fim da autonomia do Banco Central e o controle da política econômica conduzida pela Presidência da República. Todas as propostas foram rejeitadas à época. O mesmo não ocorreu no ano de 2009, quando foi realizada nova consulta popular via referendo, através da qual restou aprovada a possibilidade de reeleição ilimitada a todos os ocupantes de cargos populares no país, como a Presidência da República. Outro referendo teve lugar no Equador, no ano de 2008, que resultou na ratificação do texto constitucional esboçado pela Assembléia Constituinte após anterior referendo que autorizou sua convocação para o ano de 2007. Por fim, aludiu-se ao referendo realizado na Bolívia, no ano de 2016, para confirmar reforma constitucional que permitisse maior número de reeleições do Presidente da República, cujo resultado foi pela rejeição da proposta. Essa frequência do uso dos mecanismos de consulta popular ou democracia direta, caracterizado pelo regular e constante processo de participação ativa dos titulares do poder soberano na alteração da norma ápice do ordenamento jurídico de seus países, decerto ainda representa indício sobre a possibilidade de o poder constituinte originário permanecer vivo, haja vista se manifestar para além do momento fundacional do sistema normativo desses Estados. Não se pode ignorar, contudo, outra vertente revelada pela quase totalidade das atuais constituições dos países latino-americanos. No transcurso deste último ano de pesquisa, percebeu-se que esses textos constitucionais não apenas privilegiam os referidos mecanismos de democracia direta, como também buscam promover, inserir e consolidar a maior participação de seus povos no processo político, em especial, no próprio governo. Sobre esse último ponto, em particular, identificou-se que o movimento de redemocratização vivido por significativo número desses países após a segunda metade da década de setenta do século XX, com alguns momentos de contrafluxo em diferentes graus ocorridos no Chile, Peru e, mais recentemente, Venezuela, demonstra que, ao menos no continente sul-americano, há corrente progressiva de fortalecimento do princípo democrático, sobretudo através de sua vinculação a outros valores sociais, que também foram gradual e consecutivamente galgados e afirmados enquanto princípios fundamentais por esses Estados. Nesse sentido, aferiu-se evidente aprimoração normativa constitucional do princípio do pluralismo político, que se desdobrou para a multiculturalidade e, por fim, culminou na afirmação da plurinacionalidade, que nos dizeres de Lima, consiste na 14
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(...) supone una compresíon de la sociedad como un entramado en el que se interaccionan los diferentes grupos sociales, situados en un plano de igualdad, grupos que responden a la própria libertad del ser humano y que, a la par, proporcinan a éste la posibilidad de desarollar libremente y en plenitud su personalidad; (...)3.
Trata-se de dinâmica suficiente o bastante para já ser possível traçar, ainda que de maneira incipiente, classificação desses Estados em cinco grupos. Sob esse contexto, restou identificado, por conseguinte, um primeiro grupo de países, cujos integrantes reconhecem o pluralismo político, mas não permitem a reforma constitucional via consulta popular, que basicamente será circunscrita à atuação do legislativo. Cita-se como integrante desse grupo o Brasil, cuja Constituição de 1988, embora reconheça o pluralismo político como princípio fundamental em seu art. 1.º, V, não prevê a possibilidade de reforma constitucional via consulta popular. Segundo integrante seria a Argentina, cuja Constituição de 1994 afirma, em seu art. 1.º, que a soberania reside na nação, apesar de ainda albergar normas que mitigam o principio do pluralismo, a exemplo do art. 22, segundo o qual o povo não delibera nem governa, senão através de seus representantes. Outro dispositivo que fragiliza o pluralismo é o art. 2.º, que ao determinar suporte ao culto apostólico romano pelo Estado, finda por lhe prestar certa primazia em detrimento das demais manifestações religiosas. Por fim, o art. 30, da Constituição argentina, não prevê a possibilidade de sua alteração via consulta popular, cujo procedimento apenas poderá ocorrer no todo ou em parte via trâmite parlamentar. O segundo grupo seria formado pelos países que também reconhecem o valor do pluralismo político enquanto princípio fundamental do Estado, mas que permitem a reforma constitucional total ou parcial de seu texto via referendo, a exemplo da Constituição do Chile, de 1980. De acordo com esse documento fundamental, além de se reconhecer o pluralismo em seu art. 19, através de art. 129 se prevê a possibilidade de reforma constitucional via consulta popular, muito embora de maneira subsidiária, que ocorrerá apenas para ratificar projetos advindos do poder legislativo em dadas circunstâncias. Nesse grupo ainda se insere o Uruguai, cuja Constituição de 1967, reestebelecida pela reforma ocorrida no ano de 1983, em seu art. 331 prevê a possibilidade de reforma total ou parcial de seu texto constitucional, apesar de, à semelhança do que ocorre na Argentina, conceder privilégio à Igreja Católica em seu art. 5.º, nesse caso patrimonial. Terceiro grupo é formado pelos países que não apenas autorizam a reforma constitucional via consulta popular, mas que, além de consagrarem o pluralismo enquanto princípio constitucional fundamental do Estado, agregam a esse rol o princípio da multiculturalidade, sobretudo pelo reconhecimento de que grupos indígenas exerçam autogoverno, além de sua própria jurisdição, cujas decisões, apenas quando 3 LIMA, Juan Carlos Vargas, El Nuevo Derecho Constitucional Boliviano, Tomo I, La Paz, Academia Boliviana de Estudios Constitucionales, 2016, p. 19.
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não conflitantes com os princípios fundamentais do Estado, deverão ser respeitadas pelas autoridades ordinárias. Nesse rol, insere-se a Colômbia, cuja Constituição de 1991, em seu art. 378, admite a reforma parcial de seu texto via referendo, assim como - muito embora apenas reconheça de forma implícita o princípio o pluralismo -, garante o exercício da jurisdição indígena em seu art. 246, norma afirmativa da multiculturalidade. Também o Peru integra esse grupo, cuja Constituição de 1993, em seu art. 32, permite sua reforma parcial via referendo, como também consagra a multiculturalidade pela autorização de exercício da própria jurisdição pelos indígenas, conforme assim determina o art. 149, apesar de igual e contraditoriamente enfraquecer esse princípio ao reconhcer a importância de Igreja Católica para a formação do país, para assim determinar a colaboração do Estado para com ela em seu art. 50. Quarto grupo seria integrado pelos países que não apenas autorizam a reforma parcial do texto constitucional, mas que implicitamente também regulamentam o exercício do poder constituinte originário e, por conseguinete, a total substituição da Constituição em vigor, com a possibilidade de consulta da população via referendo, obrigatória ou não a depender da matéria. Esses países ainda agregariam para si, como princípio fundamental, a multiculturalidade, sobretudo pelo reconhecimento do exercício da jurisdição indígena, cujas decisões também são obrigatórias perantes as autoridades ordinárias quando não violarem os direitos fundamentais consagrados nos respectivos textos constitucionais. Por momento, apenas foi inserido nesse grupo o Paraguai, cuja Constituição de 1992 prevê a possibilidade de sua reforma total pela convocação de uma Convenção Nacional Constituinte em seu art. 291. Já a reforma parcial de seu texto, com a possibilidade do uso do referendo para algumas matérias, encontra previsão no art. 290. A Constituição paraguaia também reconhece a jurisdição indígena em seu art. 63, não obstante igualmente mitigue o pluralismo albergado em seu art. 124 pelo reconhecimento do protagonismo da Igreja Católica em seu art. 82, norma que lhe confere deferência em relação às demais manifestações religiosas. Por fim, no quinto grupo de países, percebe-se a consagração do valor da plurinacionalidade enquanto princípio, assim como da regulamentação dos processos de reforma constitucional, sempre com a necessária consulta popular via plebiscito ou referendo, além de se normatizar o exercício do poder constituinte originário e, por conseguinte, não apenas a reforma parcial da Constituição, mas também sua total substituição. Nesse grupo, o primeiro país a adotar, mesmo que implicitamente, o princípio da plurinacionalidade, foi a Venezulea, cuja Constituição de 1999, além de reconhecer o exercício da jurisdição indígena em seu art. 260, através de seu art. 186 obriga a presença de três representantes indígenas na Assembléia Nacional. A reforma constitucional é prevista pelo art. 340, enquanto o poder constituinte originário é regulamentado em seu art. 347, segundo o qual “el pueblo de Venezuela es el depositario del poder constituyente originario. En ejercicio de dicho poder, puede
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convocar a una Asamblea Nacional Constituyente con el objeto de transformar el Estado, crear un nuevo ordenamiento jurídico y redactar una nueva Constitución”. Em um ou outro caso, conforme dito, a consulta popular é obrigatória. O segundo país a integrar esse rol é o Equador, cujo texto constitucional de 2008 prevê a jurisdição indígena em seu art. 171, além de fazer alusão expressa ao conceito de plurinacionalidade em seu art. 1.º, assim como regulamentar o poder constituinte originário através de seu art. 444, ao delinear o procedimento para a convocação de uma Assembléia Constituinte para fins de reforma total da Constituição. A reforma parcial, por sua vez, é regulamentada pelos arts. 441 e 442. Ambos os processos não prescindem da realização de consulta popular. Por fim, o último país a integrar esse grupo é a Bolívia, primeiro Estado a expressamente se declarar como Estado plurinacional, conforme verifica-se da redação de seu art. 1.º. A jurisdição indígena é referida pelo art. 179, enquanto a representação de indígenas junto ao poder legislativo encontra guarida nos arts. 26, 2, IV e 146, IV. Acrescente-se, ainda, a obrigatória presença de indígenas na composição do Tribunal Constitucional pelo art. 197. Todos esses dispositivos revelam o que aparece ser o cerne da plurinacionalidade, em que se almeja expressar que a nação, enquanto individualidade, é formada pela união de diversas outras, embora não consideradas como subnações, mas sim coletividades detentoras de identidade incapazes de galgar a soberania por si, mas que a atingem quando unidas para a composição de um povo. Essa acepção, que rompe com a ideia de unicidade entre povo e nação, implica a exigência da participação dos membros de todas as nações formadoras do povo nas diversas esferas de governo, algo que transpassa a mera possibilidade ou potencialidade de representação, para se materializar na efetiva presença desses segmentos na composição do governo. Por fim, registra-se que o poder constituinte originário, na Bolívia, é afetado por regulamentação do artigo 411. Toda essa reportada aparente falta de observância - ou mesmo negação - à ordem natural dos acontecimentos que durante dado período caracterizou a tradicional teoria constitucionalista, mormente pela total autonomia e liberdade de atuação que deveria identificar o poder constituinte originário, sem submissão a limites normativos, em verdade aparenta revelar que o constituinte dos países que adotam a acepção plurinaiconal reconhecem a possibilidade de uma transição constitucional que proteja o povo dos diversos traumas que eventual ruptura política abrupta tende a gerar. Almejam, deste modo, salvaguardar a nação, sobretudo de forma a evitar que uma futura nova manifestação do poder constituinte originário subtraia a soberania conjunta das diversas nações formadoras de seu povo, de forma a preservar os valores democráticos e representativos que lhe são fundamentais, materializados pelos efeitos da plurinacionalidade. Não é por outra razão, aliás, que o direito de resistência se faz presente em vários desses textos constitucionais. Explicitamente ou não, ele é reconhecido pelas constituições do Chile, (art. 6.º), Paraguai (art. 138), Peru (art. 46), Venezuela (art.
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333), Uruguai (art. 330), Equador (art. 98), que chegam a declarar nulas quaisquer disposições que façam regredir os valores consagrados em seus textos. Do que se observou até o presente momento, há prováveis reflexos entre o exercício do poder constituinte por seus titulares declarados na Constituição - em regra o povo – para a formação e mesmo integração com o Governo. Isso ocorre, sobretudo, através de elo consistente não apenas no estabelecimento de regras de democracia direta - a exemplo do referendo -, mas também pela obrigatoriedade ou permissividade de representação, nas diversas esferas dos poderes constituídos ou órgãos de soberania - o Executivo, o Legislativo e o Judiciário -, de todas as etnias que compõem o povo em cada um desses Estados. Essa complexa interligação, acredita-se, aparenta demonstrar que o poder constituinte seria continuamente exercido por seus titulares ao longo do tempo, o que ocorreria, em maior ou menor amplitude, justamente pelo reconhecimento da possibilidade de interferência direta na Constituição via meios democráticos, a lhe implicar alterações redacionais ou interpretativas – reformas explícitas ou implícitas -, o suficiente para corroborar que o poder constituinte permaneceria vivo, manifestando-se para além do momento de deflagração do processo constituinte. De igual modo, a plurinacionalidade revela que, não obstante os elementos formados do Estado, - povo, território e soberania -, sejam aparentemente rígidos, a natureza do povo não o é. Este é plural, transmuta-se ao longo do tempo e, por essas razões, deve ser representado no Governo, de forma a legitimar, aplicar e mesmo promover a mutação da Constituição, eis que em democracias apenas o povo titulariza a soberania e o poder constituinte democrático.
Referências bibliográficas CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra, Almedina, 2010. LIMA, Juan Carlos Vargas, El Nuevo Derecho Constitucional Boliviano, Tomo I, La Paz, Academia Boliviana de Estudios Constitucionales, 2016.
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COMÉRCIO INTERNACIONAL E IMPOSIÇÃO TRIBUTÁRIA JUSTA. AS IMPORTAÇÕES E AS EXPORTAÇÕES NO CONTEXTO DE UM SISTEMA FISCAL COERENTE: DESENVOLVIMENTOS INVESTIGATÓRIOS RECENTES Andreia Isabel Dias Barbosa1
1. Introdução Os presentes escritos servem o propósito de partilhar, especialmente com a comunidade académica, o estado da arte da pesquisa que, no concreto domínio do Direito Tributário (e, mais especificamente, em sede de tributação no comércio internacional), tenho vindo a concretizar. Procurar-se-á, resumidamente, expor os principais desenvolvimentos merecedores de referência, com base numa seleção assente no impacto que o estudo diário teve e tem na construção principiologicamente orientada de um sistema fiscal coerente, essencialmente no domínio da tributação indireta que recai sobre as transações comerciais internacionais de mercadorias.
1 Doutoranda em Ciências Jurídicas Públicas, Mestre em Direito Tributário e Fiscal e Licenciada em Direito, pela Escola de Direito da Universidade do Minho. Assistente convidada na Escola de Direito da Universidade do Minho. Consultora fiscal na Deloitte Portugal.
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A investigação concretizada conta, neste momento, com dois anos e tem vindo a crescer o empenho no desenvolvimento da construção jurídica a que se reconduz o objeto da minha dissertação de doutoramento – o que se espera que se consiga aqui refletir.
2. Objetivos A concreta definição da rede de princípios e do modelo de relação jurídica que se pretende propor com a dissertação em curso tem vindo a ser essencial para dar concretização a um dos objetivos que me parece ser dos mais desafiadores para um investigador: estreitar o objeto de estudo, selecionando o conhecimento. Com efeito, é intuitivo reconhecer-se que só depois de serem definidos os concretos aspetos que merecem e que devem ser abordados e densificados é que ficarão reunidas as condições para a construção do pensamento jurídico. E este constituiu um dos mais importantes feitos assinaláveis da investigação que me encontro a fazer, que se reconduzia a uma preocupação já assinalada no primeiro ano e que procurei atenuar nesta fase. Por esse motivo, é fiel à realidade dizer-se que o primeiro objetivo desta fase de investigação foi o de decidir de uma forma clara e tendencialmente definitiva os concretos contornos do objeto de estudo, descartando-se questões de índole essencialmente técnica (muitas delas, inclusivamente, de cariz contabilístico) que apesar de serem aquelas que me permitem, em grande medida, dar concretização prática às soluções jurídicas criadas, não justificam o seu tratamento aprofundado numa dissertação de doutoramento. Foi também essencial assumir uma posição no que toca ao papel que a tributação deve assumir no domínio do comércio internacional. Na verdade, a necessidade de tomada de posição quanto a este aspeto fazia-se sentir desde o início da investigação e parecia-me que o pensamento jurídico não se poderia desenvolver de uma forma adequada sem uma prévia resposta (não necessariamente de “sim” ou de “não”) a uma questão parece ser prejudicial de todas as outras: o comércio internacional de mercadorias deve ou não ser tributado? Note-se que esta questão não deve ser confundida com aquela que será a mais importante da investigação e cuja resposta se reconduz ao principal objetivo reservado para o seu culminar: o que é que torna o sistema fiscal do comércio internacional de mercadorias coerente? A propósito do papel que a tributação tem no comércio internacional, a primeira ideia que é divulgada pelos (poucos) autores que se dedicam ao estudo destas matérias assenta na visão negativa que as obrigações tributárias têm sobre as operações de importação e de exportação de mercadorias, assente essencialmente no impacto financeiro que de tais obrigações surge na específica esfera dos respetivos operadores económicos. A rejeição da tributação no comércio internacional é essencialmente baseada na necessidade de manter o padrão co-
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mum de consumo entre os povos que foi trazido pela globalização. Trata-se de uma ideia reiteradamente partilhada mas que me parece, na maior parte das vezes, desprovida de uma análise crítica e juridicamente sustentada. O meu objetivo foi, assim, o de aferir que outro tipo de finalidades é que estão subjacentes à tributação no comércio internacional e qual é a sua efetiva importância, apurando não só os efeitos negativos que a essa tributação têm vindo a ser apontados, mas identificando também os aspetos positivos a ela associados. A propósito desta questão foi também um objetivo desta fase da investigação a qualificação jurídico-tributária dos direitos aduaneiros, aferindo-se se se tratam ou não de impostos, desde logo porque o reconhecimento de finalidades essencialmente extrafiscais associadas à respetiva cobrança os poderia afastar da figura do imposto. A qualificação dos direitos aduaneiros foi imperiosa para a definição coerente das terminologias adotadas ao longo da dissertação e para o apuramento do completo regime jurídico. Evidentemente que este segundo ano de investigação se iniciou também com o propósito de densificação das bases principiológicas que servem para sustentar a coerência do sistema fiscal a cujo estudo me dedico, o que mais não é do que a exposição escrita da mesma. Trata-se do desenvolvimento que me parece adequado qualificar como sendo natural de uma investigação que começou por exigir, numa primeira fase, o aprofundamento dos conhecimentos eminentemente técnicos das imposições tributárias implicadas – em concreto e especialmente, os direitos aduaneiros e o imposto sobre o valor acrescentado (IVA). Assim, esta fase da investigação foi também iniciada com o estudo do arsenal de princípios selecionado, de acordo com os desenvolvimentos doutrinais já conseguidos e provenientes dos vários ramos do Direito, com a consequente transposição e modelagem às especificidades do concreto domínio da minha dissertação de doutoramento, numa tarefa que ainda se encontra a ser concretizada.
3. Metodologia A sensibilização para a importância do princípio da praticabilidade das soluções jurídicas só parece poder ser apurada quando são efetivamente compreendidos os especiais contornos de aplicação prática dos respetivos regimes jurídicos. Por esse motivo, no primeiro ano, o esforço investigatório foi canalizado essencialmente para a questão técnica dos aludidos tributos, num estudo eminentemente teórico e individual, de base legal, doutrinal e jurisprudencial. Porém, em maio de 2017 ingressei na consultoria fiscal, mais concretamente na consultoria no âmbito da tributação indireta, dedicando-me especialmente aos direitos aduaneiros, aos direitos anti-dumping e ao IVA. Por esse motivo, o contacto com o tecnicismo subjacente aos aludidos tributos não se centrou apenas no primeiro ano de investigação, tendo acontecido de uma forma muito 21
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proveitosa ao longo deste último ano, numa adaptação da metodologia que se pretendia seguir inicialmente e que não contemplava o contacto com a prática e com a dimensão que o mesmo acabou por assumir. Pode dizer-se, assim, que o exercício profissional da consultoria, precisamente no domínio da minha investigação de doutoramento, tem vindo a ser aproveitado como um auxílio para a concreta concretização dos objetivos definidos. Desde logo, o contacto com a realidade dos operadores económicos, com a forma como as importações e as exportações são efetivamente concretizadas e com toda a gestão que as mesmas implicam – nomeadamente ao nível logístico, financeiro, contabilístico e informático –, tem vindo a influenciar o pensamento e tem servido para alargar as fontes de informação. O estudo não está a ser feito apenas através das vias clássicas, mas também através da própria realidade. E foi essa mesma realidade que me permitiu dar concretização de uma forma mais segura e consciente dos respetivos efeitos práticos ao objetivo assinalado de tomar uma posição no que concerne à essencialidade ou não de as transações comerciais internacionais de mercadorias serem tributadas. No que concerne ao objetivo de qualificação jurídico-tributária dos direitos aduaneiros, a lecionação da unidade curricular de Direito Fiscal aos alunos do segundo ano da licenciatura em Direito, para além de todos os ganhos provenientes de tão enriquecedora experiência, permitiu atentar em desenvolvimentos doutrinários basilares, estruturantes das soluções legais vigentes e que sobre os quais ergui a posição que neste âmbito assumo. Por outro lado, e seguindo a metodologia adotada desde o início – assente na consideração de que não existem momentos estanques de leitura, de escrita e de revisão ao longo de uma investigação –, apesar de ter já exposto por escrito uma parte significativa da componente principiológica da dissertação, foram já também desenvolvidos outros temas. A este propósito, cumpre assinalar que a participação em eventos de partilha de investigação assumiu-se também como uma forma de sedimentação dos conhecimentos, influenciando o próprio rumo da pesquisa e da forma como a mesma é concretizada, por implicar não só a abordagem de assuntos cujo tratamento não estava pensado na concreta fase em que acabou por ser feito e por implicar também o alargamento da base bibliográfica inicialmente proposta, desde logo por força de idas a bibliotecas que não se encontravam na trajetória programada no início da investigação (como foi o caso, por exemplo, das bibliotecas da Universidad Autonoma de Madrid e da Universidad Rey Juan Carlos, em dezembro de 2017).
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Comércio internacional e imposição tributária justa. As importações e as exportações no contexto de um sistema fiscal coerente: desenvolvimentos investigatórios recentes
4. Discussão O principal objetivo que me parece estar subjacente a uma dissertação de doutoramento – e que se reconduz ao de contribuir para o desenvolvimento do pensamento jurídico – não parece ser plenamente concretizável se a investigação que tem vindo a ser feita não for alvo de partilha e de discussão. A sujeição à crítica permite desenvolver o pensamento, apurando-o, solidificando-o e sedimentando-o. Por esse motivo, a participação em espaços de partilha de conhecimento tem sido uma constante ao longo da investigação, tendo sido também várias as publicações já feitas. Em concreto, foram levados à discussão e/ou publicação temas que me parecem ser (ou suscetíveis de o vir a ser) mais controversos doutrinal e jurisprudencialmente. Passo a elenca-los: • •
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A jurisdição aduaneira – (des)autonomização da jurisdição fiscal?; A autonomia privada e a neutralidade na tributação do comércio internacional; A União Aduaneira: uma ilha em construção?; A digitalização na tributação aduaneira – razões, manifestações e desafios; O reembolso ou a dispensa de pagamento dos direitos de importação ou de exportação com fundamento em equidade no Código Aduaneiro da União; A tributação no comércio internacional – abordagem prática em sede de direitos aduaneiros, direitos anti-dumping e IVA; O direito à dedução do IVA; O impacto do Brexit na tributação no comércio internacional.
A par da participação, como oradora, em congressos, conferências, seminários e workshops, tive a oportunidade de moderar e de assistir a eventos dedicados à discussão de temas inseridos no domínio do Direito Tributário.
5. Resultados Em conformidade com aquele que era o meu plano inicial de investigação, o conteúdo escrito da dissertação de doutoramento reconduz-se a questões que não assentam, na sua totalidade, aos objetivos reservados para este segundo ano e que supra identifiquei. Na verdade, já pensei e já escrevi sobre aspetos particulares do objeto de estudo que extravasam as questões basilares assinaladas, mas em relação aos quais fiz um estudo aprofundado que me permitiu o respe-
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tivo desenvolvimento na dissertação. Não obstante, em prol de uma exposição clara, mas necessariamente sucinta, dos resultados obtidos neste segundo ano de investigação – e com ligação aos objetivos indicados nos presentes escritos –, passo a expor as mais importantes conclusões chegadas, algumas das quais resultantes das intervenções/exposições indicadas no ponto anterior.
i) A essencialidade da tributação no comércio internacional
A circunstância de o comércio internacional se encontrar, atualmente, facilitado e regulamentado de forma tendencialmente harmoniosa não significa que os limites ou os obstáculos ao comércio tenham deixado de existir. O comércio inteiramente livre, desonerado de imposições tributárias, parece ser uma utopia. E assim permanecerá enquanto à tributação no comércio internacional forem reconhecidas finalidades que extravasam a arrecadação de receita e que se reconduzem a finalidades essencialmente intervencionistas2. As imposições tributárias que nesta sede destacamos – direitos aduaneiros e IVA – funcionam, na verdade, como instrumentos de política económica, prosseguindo uma dupla finalidade: concretizar compromissos de Direito Internacional Público e regular a introdução ou a extração de mercadorias do território aduaneiro para benefício do mesmo. Ademais, a eliminação da tributação no comércio internacional, por si só, não seria suficiente para afastar os entraves ao comércio livre, que se reconduzem também a problemas procedimentais e processuais, assentes na «complexidade normadora», na «complexidade administrativa», na «excessiva litigiosidade» e na «inadequação da organização judiciária e do iter processual»3. Por outro lado, o aludido estatuto de «utópico» poderá ser reforçado se, eventualmente, se constatar que à cobrança imposições tributárias enquanto forma de arrecadação de receita poderá ser atribuída uma maior relevância, sobretudo em contextos de crise económica. Com especial relevância, cumpre-me assinalar o papel que a tributação no comércio internacional assume na garantia de que as forças de coesão da União Europeia não são fragilizadas, unindo os cidadãos europeus na manutenção do projeto de União – ainda que reconstruído. Ou seja, à tributação no comércio internacional parece-me ser possível atribuir uma nova finalidade (de índole extrafiscal): a de garantir a coesão do próprio mercado único.
2 RIBEIRO, João Sérgio, Fiscalidade, in Direito da União Europeia – Elementos de direito e políticas da União, Alessandra Silveira, Mariana Canotilho, Pedro Froufe (coords.), Coimbra, Almedina, 2016, p. 616. 3 ROCHA, Joaquim Freitas da, A justiça tributária como obstáculo à internacionalização, in II Congresso de Direito Fiscal, Porto, Vida Económica, 2012, p. 100 e seguintes.
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Comércio internacional e imposição tributária justa. As importações e as exportações no contexto de um sistema fiscal coerente: desenvolvimentos investigatórios recentes
ii) A tripla dimensão dos princípios que enformam a tributação no comércio internacional Constatei que a construção de uma base principiológica verdadeiramente completa impõe uma análise assente numa tripla dimensão: internacional, europeia e nacional. Com efeito, o elenco de princípios selecionados como basilares ao tema conhece enquadramentos e, inclusivamente, interpretações e efeitos, distintos em função da amplitude com que são perspetivados. Ainda que levantados sob os mesmos alicerces, as ramificações que conhecem em função do espectro em que valem são, necessariamente, diferentes. A título de exemplo, o princípio da cooperação, numa dimensão internacional, é aferido relativamente às autoridades públicas que, em cada país, exercem competências no domínio da tributação do comércio internacional e em relação à globalidade dos operadores económicos envolvidos, com a influência de princípios de comércio e tributação internacional. Já na dimensão europeia, é essencialmente assente na relação de cooperação estabelecida entre as instituições da União Europeia e os operadores económicos, movida e enformada por outros princípios de Direito da União Europeia. Por fim, na dimensão nacional, o princípio da cooperação deve refletir-se na relação mais direta entre a Autoridade Tributária e Aduaneira e os contribuintes, sob a égide dos princípios do procedimento tributário e do procedimento administrativo, e com o necessário enquadramento constitucional.
iii) A (des)autonomização da jurisdição aduaneira e a qualificação jurídico-tributária dos direitos aduaneiros A meu ver, nem todo Direito Aduaneiro é Direito Fiscal, mas parte do Direito Aduaneiro é Direito Fiscal, e os direitos aduaneiros são impostos. Neste âmbito, e sabendo que “la fronteire qui sépare la matiére douanière de certaines autres législations manque parfois netteté”4, a questão a que procurei dar resposta foi a seguinte: deve ser a jurisdição aduaneira autónoma da jurisdição fiscal? A resposta foi negativa, pelo menos num momento presente, em que essa autonomia não existe. É certo que o regime jurídico-normativo aduaneiro se encontra criado e está, inclusivamente, codificado. Mas todo o invólucro mais teorético parece estar ainda por construir ou, pelo menos, a construção existente não está (ainda) suportada pelos alicerces mais robustos, sobretudo quando os comparamos aos que sustentam outros ramos do Direito. O reconhecimento de uma eventual desautonomização do Direito Aduaneiro face ao Direito Fiscal pressuporia toda uma nova construção erigida em seu torno, e que se reconduz à indicação, a título de exemplo, das fontes de Direito Aduaneiro; dos princípios 4 BERR, C.; TRÉMAU, H., Le Droit douanier Communautaire et national, Paris, Economica, 1997, p. 2.
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Encontro de Investigadores da Escola de Direito da Universidade do Minho 2018
de Direito Aduaneiro; da relação jurídico-aduaneira; e dos tribunais aduaneiros. O reconhecimento da autonomização do Direito Aduaneiro face ao Direito Fiscal, pelo menos na parte em que é possível essa autonomização, poderia levar à conclusão, então, de que dever-se-ia falar numa jurisdição aduaneira, autónoma da jurisdição fiscal. Porém, a autonomização não é total, atentos os pontos de irremediável ligação ao Direito Fiscal. Por outro lado, e partindo da conceção clássica de imposto, sou do entender – e baseando-me na Teoria da Finalidade Secundária Invertida – que as finalidades extrafiscais que aos direitos aduaneiros se encontram subjacentes não lhes retiram a natureza jurídica de impostos. Assim, ainda que o critério subjacente ao pagamento dos direitos aduaneiros não assente apenas na capacidade contributiva, mas também na oportunidade e conveniência das medidas reclamadas pela política comercial externa, e ainda que se possa admitir uma maior maleabilidade à respetiva disciplina jurídica (com impacto na perceção do princípio da legalidade), entendo que os direitos aduaneiros são impostos5,6.
iv) A autonomia privada e a neutralidade na tributação no comércio internacional A simbiose entre o princípio da autonomia privada e o princípio da neutralidade estabelecida permitiu apurar que deste último, no que respeita à tributação das operações comerciais internacionais, poderão não decorrer os efeitos que a si, tradicionalmente, estão subjacentes. Com efeito, o princípio da neutralidade constitui uma das traves-mestras mais importantes do IVA, assumindo a função de garantir a existência de um verdadeiro mercado interno no território fiscal da União. Como decorrência do princípio da neutralidade, o IVA não condicionaria os produtores a alterar o seu processo produtivo nem a criar distorções na concorrência. Pelo contrário, os direitos aduaneiros não se encontram imbuídos pelo espírito da neutralidade. O legislador europeu consagrou soluções capazes de influenciar verdadeiramente os termos em que as transações de mercadorias além fronteiras são concretizadas, atentas as finalidades subjacentes a este tipo de tributação. Consequentemente, ainda que os operadores económicos não sejam influenciados pelo IVA a pagar, já o serão pelos direitos aduaneiros e demais obrigações que das atividades de importação e de exportação possam decorrer (como por exemplo, direitos 5 No mesmo sentido, vide FERREIRO LAPATZA, Juan José; MANTÍN FERNÁNDEZ, José Javier; MÁRQUEZ, Jesús Rodríguez; TOVILLAS MORÁN, José Maria, Curso de Derecho Tribuatio (Parte especial. Sistema tributario. Los tributos en particular), 4.ª ed., Madrid, Marcial Pons, 2009, p. 362-363. 6 Em sentido contrário, vide NABAIS, José Casalta, Direito Fiscal, 9.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, p. 91-93.
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Comércio internacional e imposição tributária justa. As importações e as exportações no contexto de um sistema fiscal coerente: desenvolvimentos investigatórios recentes
anti-dumping). Prova disso mesmo é o elenco alargado de opções de planeamento que assistem aos operadores económicos. Assim, ao contrário do que sucede no IVA, em sede de direitos aduaneiros os operadores económicos contam com um elenco alargo de manobras de planeamento fiscal – num quadro de plena legalidade, tanto de meios, como de fins – as quais influenciam as suas decisões. Em concreto, quando um operador económico se vê na obrigação de pagar IVA e direitos aduaneiros, a neutralidade que estava associada à primeira das imposições tributárias poderá ficar aniquilada pelo pagamento das segundas. Poder-se-á dizer, pois, que não existirá neutralidade (pelo menos, em termos absolutos) em sede de IVA nas importações, sempre que para além do IVA sejam também devidos direitos aduaneiros.
6. Conclusão A concretização da dissertação de doutoramento proposta tem sido uma tarefa desafiante, mas muitíssimo enriquecedora, que se espera que culmine no próximo ano. Não só porque os desafios profissionais assim o recomendam/exigem, mas também porque – numa constatação que, apesar de existir desde o início, só recentemente é que assumiu contornos claríssimos – se tornou num dos grandes objetivos pessoais. De facto, a concretização de uma dissertação de doutoramento, para além de exigir um esforço eminentemente intelectual, de trabalho, de aquisição constante e aprofundada de conhecimento, implica também (e em grande escala) um compromisso pessoal, a dedicação individual ao estudo, num esforço de abdicação de tantas coisas mundanas, mas que se torna numa opção feliz quando se encara a construção científica conseguida como uma (humilde) epifania intelectual, capaz de contribuir para aquele que me parece ser o principal propósito de um investigador em Direito: o desenvolvimento do pensamento jurídico.
Referências bibliográficas BERR, C.; TRÉMAU, H., Le Droit douanier Communautaire et national, Paris, Economica, 1997. FERREIRO LAPATZA, Juan J.; MANTÍN FERNÁNDEZ, J.; RODRÍGUEZ MÁRQUEZ, Jesús; TOVILLAS MORÁN, José Maria, Curso de Derecho Tribuatio (Parte especial. Sistema tributario. Los tributos en particular), 4.ª ed., Madrid, Marcial Pons, 2009. NABAIS, José Casalta, Direito Fiscal, 9.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016.
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RIBEIRO, João Sérgio, Fiscalidade, in Direito da União Europeia – Elementos de Direito e Políticas da União, Alessandra Silveira, Mariana Canotilho, Pedro Madeira Froufe (coord.), Coimbra, Almedina, 2016. ROCHA, Joaquim Freitas da, A justiça tributária como obstáculo à internacionalização, in II Congresso de Direito Fiscal, Porto, Vida Económica, 2012.
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A VULNERABILIDADE DO TRABALHADOR DIANTE DA INTERATIVIDADE DIGITAL Ângela Barbosa Franco1
1. Introdução A sharing economy é fruto do consumo colaborativo e destaca-se pelo acesso a bens e serviços adquiridos ou ofertados por pessoas através da internet. Adstrita a essa cultura do compartilhamento, despontam-se várias terminologias, como on-demand, gig economy e crowdsourcing, as quais englobam diferentes formas de trabalho que podem ser desenvolvidas on line, de maneira sustentável, mas nem sempre com traços de ampla liberdade e autonomia pelos sujeitos participantes. Atualmente, a inserção de diversificadas tecnologias da informação e de comunicação (TICs) permite maior controle do tomador de serviços sobre a cadeia produtiva e apresenta-se cada vez mais emergente nas relações de trabalho. Frente ao contexto socioeconômico do compartilhamento, a prestação de serviços harmoniza-se, às vezes, à presunção de existência de um contrato de trabalho. Isso tem causado polêmicas discussões pelos aplicadores do Direito do Trabalho, não apenas quanto à identificação da subordinação jurídica, mas também das regras inerentes àqueles que possuem um contrato de trabalho cuja interatividade digital soma-se à ausência física da entidade credora do trabalho. 1 É doutoranda em Ciências Jurídicas Privatísticas na Universidade do Minho/Portugal. Leciona a disciplina de Direito do Trabalho na faculdade Univiçosa nos cursos de graduação e pós-graduação. Na pesquisa, suas áreas de interesse são em Direito e Literatura, Direito do Trabalho e Mediação.
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Diante desse contexto, há o trabalhador autônomo como também aquele que desempenha serviços sem organização própria ou discricionariedade. Definidos como teletrabalhadores, a ligação funcional, por meios telemáticos de comunicação e informação, pode obstar a identificação da hierarquia entre prestador e tomador de serviço. Em virtude disso, dá ensejo, por oportunismo do beneficiário da atividade, à contratação de autônomos ou de parassubordinados. A problemática norteadora do trato intermediado pela tecnologia entre prestador e o credor da atividade resulta do descompasso entre a clássica definição da relação de emprego delineada pelo Direito do Trabalho e as novas formas de arranjo da economia capitalista da era digital. Ademais, independente ou não da existência de um contrato de trabalho, as tecnologias de informação e de comunicação, principalmente a internet, permitem o tomador de serviços aceder a todo o tipo de conhecimento que lhe seja útil e viabilizam um controle igual ou até mais intrusivo em comparação ao que é realizado dentro do espaço físico da empresa. Nesse aspecto, é preciso atentar para o fato que os recursos tecnológicos permitem o monitoramento ou o conhecimento de informações pessoais e, por isso, colocam em risco a intimidade e a vida privada do prestador de serviços. Estas representam um bem maior que não pode ser suplantado pelo direito de livre iniciativa do tomador de serviços ou beneficiário da atividade. Outro desafio inerente ao trabalho da era digital são os riscos físicos ou psíquicos vivenciados pelo trabalhador em decorrência da inexistência de medidas adequadas para garantir segurança no ambiente de trabalho.
2. Objetivos Este artigo teve como objetivo ressaltar que a força de trabalho assente no crowdsourcing é diversificada e nem sempre evidencia uma plena liberdade e autonomia na interatividade existente entre o prestador de serviços e o credor ou beneficiário do trabalho. O estudo também ressaltou a vulnerabilidade vivenciada pelo teletrabalhador por assumir os custos de transação do tomador de serviços, enfrentar a intrusão telemática em sua vida pessoal e se encontrar desprovido de efetiva proteção em matéria de saúde e segurança no trabalho.
3. Metodologia A partir do método hipotético dedutivo, cotejado por fontes bibliográficas, o estudo aborda uma realidade vivenciada no mundo do trabalho telemático.
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A vulnerabilidade do trabalhador diante da interatividade digital
4. Discussão A era digital oferta diversificadas tecnologias da informação e da comunicação para o cumprimento de tarefas laborativas, executadas com presteza e a qualquer momento, sem o contato direto ou presencial entre prestador e beneficiário da atividade. Nesse contexto, o cenário laborativo dissocia-se, cada vez mais, da ideia de empresa como “centro jurídico, físico e social de produção que agrega um coletivo de trabalhadores”2 e torna crescente a demanda por trabalhadores remotos: os teletrabalhadores. Para a empresa, essa modalidade de trabalho possibilita a contratação de prestadores de serviço sem a necessidade de ofertar um espaço físico adequado e com a isenção dos ônus inerentes à manutenção do trabalhador na empresa. Assim, reduzem-se os custos de transação e aumentam-se os lucros. Para o teletrabalhador, pode ser um meio de autodisponibilidade ampliador de laços familiares ou sociais, redutor do stress do trânsito, das condições climáticas, da falta de segurança nas vias públicas e, inclusive, facilitador para a admissão de deficientes3. Sucede, porém, que os riscos inerentes ao teletrabalho nem sempre compensam os benefícios anteriormente ressaltados. O mais evidente é a degradação da dignidade humana no trabalho com a forçosa transferência dos custos e da responsabilidade laboral para o prestador de serviços. Isso decorre da tentativa de se fraudar a efetiva existência de um contrato de trabalho, ante a imprecisa concretização da subordinação jurídica no teletrabalho. Nem sempre é possível identificar a prestação de serviços subordinados, quando simplesmente atada aos elementos topográfico (trabalho realizado à distância) e instrumental (utilização da telemática). Na verdade, constata-se o uso de tecnologia e a prescindível presença física do trabalhador no núcleo da empresa, contudo, inexiste a nítida compreensão do trabalho como subordinado ou autônomo. Outros inconvenientes também se despontam do teletrabalho como o isolamento do trabalhador, com a perda da dimensão coletiva e solidária proveniente do contato físico e diário entre colegas de serviço4. São preocupantes esses reflexos naqueles que desempenham o labor apartado das vicissitudes do local onde um conjunto de trabalhadores se agrupam e compartilham experiências. Afinal, muitas oportunidades profissionais e afetivas são tolhidas, em virtude do afastamento do prestador do contato direto com um grupo de indivíduos vinculados ao mesmo meio empresarial. Ainda não se pode deixar de ressaltar, como mais um fator de risco ao trabalho da era digital, a intrusão telemática na vida privada do trabalhador. 2 REDINHA, Maria Regina Gomes, O teletrabalho, Questões Laborais, Coimbra, Ano VIII, n.º 17 (2001), p. 88. 3 AMADO, João Leal, Contrato de Trabalho, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 120-121. 4 Idem, p. 121.
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Essa pode potenciar o tempo à disposição do trabalho e, consequentemente, os conflitos familiares pela absorção dos períodos de desconexão do trabalhador, além da exaustão física e psíquica. A inobservância de medidas inerentes à saúde e à segurança no trabalho, os acidentes de trabalho e o afastamento dos direitos tradicionalmente garantidores e fomentadores do bem-estar social também fazem parte dos riscos. O teletrabalho desvela-se em múltiplas modalidades. Quando se analisa o local onde o serviço é executado, a espécie mais comum é o teletrabalho em domicílio, executado no próprio lar do prestador de serviços ou do cliente5. Outra forma organizacional é o teletrabalho itinerante, “mediante o qual o trabalhador trabalha ou a partir de um hotel ou numa viatura (v.g. exercendo a sua atividade de forma irregular durante um ou dois dias por semana)”6. Nesse, os instrumentos tecnológicos portáteis viabilizam a ligação entre o trabalhador e a empresa. O teletrabalho offshore, por sua vez, consiste em uma modalidade de terceirização de serviços, na qual se tem a “subcontratação de tarefas para países com mão de obra barata e especializada, com fusos horários diferentes”7. Telecentro ou telecottage8 é “uma estrutura partilhada por teletrabalhadores sem relação entre si, telematicamente ligados a diversas empresas”9. Também existe o escritório satélite onde trabalhadores da mesma empresa executam atividades remotas, que representa “uma unidade física, apartada da sede ou localização central da empresa, onde vários teletrabalhadores partilham o espaço e equipamento necessário para sua atividade”10. Ante a essa variedade, nota-se a existência de trabalhadores com contrato de trabalho ou independentes. Ocorre que, quando se trata de teletrabalho, um fator importante é observar como se dá a trela eletrônica. Essa se evidencia de diversificadas maneiras. One way line é quando a “conexão substancia-se num fluxo de dados ou informações do computador periférico para o central sem que haja possibilidade de retorno”11. Outra forma é o teletrabalho off line que não estabelece uma comunicação informática entre “quem trabalha e quem recolhe o resultado do trabalho”12. Se houver um diálogo constante e instantâneo entre prestador e benefi5 REBELO, Glória, Teletrabalho e privacidade: contributos e desafios para o direito do trabalho, Lisboa, RH, 2004, p. 6. 6 Idem, p. 6. 7 REDINHA, cit, p. 95. 8 Idem, p. 97. 9 Expressão utilizada por AMADO, cit, p. 122. 10 REDINHA, cit., p. 97. 11 Idem, p. 99. 12 REDINHA, cit., p. 99.
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ciário, mais fácil é a identificação da existência ou não do trabalho subordinado. Tem-se, assim, o teletrabalho two way line. Nesse, “o computador externo está inserido numa rede de comunicações eletrônicas (intranet), o que permite um diálogo interativo constante, em tempo real, não só com o computador matricial, mas com todos os terminais da rede”13. A maneira como são explorados os recursos de tecnologias de informação e comunicação pode promover a consagração de uma dependência jurídica entre os sujeitos da relação ou não. A dependência econômica por parte do prestador em relação ao beneficiário da prestação e a inserção em processo produtivo pertencente ao beneficiário despertam a existência de um contrato de trabalho. Em outra perspectiva, os recursos de tecnologias de informação e comunicação ensejam a autonomia do prestador, sem dependência econômica de um único sujeito, com a possibilidade de conectar-se ou relacionar-se diretamente e com um número indeterminado de clientes. Assim, o prestador assume os riscos do trabalho, aufere o lucro que lhe é proveniente e classifica-se como um trabalhador independente. Além disso, o teletrabalho ainda sugere a configuração de uma parassubordinação na medida em que há uma coordenação entre os sujeitos da relação laborativa em decorrência de medidas propostas por ambas as partes para se alcançar um objetivo comum14. Em decorrência dessa imprecisão, muitos teletrabalhadores prestam serviços informalmente ou, mesmo quando formalizados, não possuem, necessariamente, isonomia de tratamento em comparação aos trabalhadores comuns. A ausência física relacional entre os sujeitos da relação laborativa facilitam a concretização de esquemas negociais destinados a iludir a aplicação da legislação trabalhista. Em vista disso, o teletrabalhador se encontra às margens de uma “economia paralela”15, além de conviver com a promiscuidade profissional e familiar, sem a reserva de sua privacidade. Assim se apresenta a realidade que atualmente norteia o trabalho da era digital. A internet permite que o controle do tomador de serviço seja cada vez mais invasivo na vida dos trabalhadores. Quando utilizada, além de deixar vestígios das informações acessadas e do tempo conectado, também desvela os hábitos e as preferências de quem executou o trabalho, como seu perfil político, 13 Idem, p. 99. 14 Trata-se de um trabalho pessoal, prolongado no tempo, previsível e voltado para o interesse dos sujeitos contratantes. É irrelevante o fato da prestação não ser desempenhada exclusivamente para o mesmo tomador de serviços. A parassubordinação também tem um caráter colaborativo pelo fato da atividade do prestador ser nuclear para que o tomador possa atingir seus fins sociais e econômicos. Cfr. PERSIANI, Mattia, Autonomia, Subordinazione e Coordinamento nei recenti modelli d collaborazione lavorativa, Il Diritto del Lavoro, Roma (1998), p. 204. 15 Expressão utilizada por AMADO, cit., p. 127.
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religioso e social, inclusive, sua saúde física e mental ou seus projetos de vida em relação ao seu futuro laborativo16. Essa usurpação da privacidade não pode se pautar no direito de propriedade do tomador de serviços, já que os direitos de personalidade se tornam um bem maior a ser protegido. Se sob um ponto de vista, o tomador de serviços, como responsável por seu empreendimento, pode protestar seu direito de propriedade e, por isso, fiscalizar as atividades que lhe beneficiam; em outra perspectiva, a intrusão à privacidade do prestador, facilitada pelos meios tecnológicos, é uma prática que não pode se sobrepor à dignidade do trabalhador. Consideram-se condutas ilegítimas tanto o fato de atos pessoais do trabalhador, atados à sua vida íntima, serem observados pelo tomador de serviços, quanto o uso de instrumentos de coleta personalizada de informações do prestador de serviços, em especial, quando adquiridas clandestinamente17. Não se pode olvidar que há mecanismos para controlar os meios telemáticos sem violar a privacidade dos trabalhadores, como delimitar as quotas de disco, adotar sistemas de alarme e registro de tentativas de intrusão no site da empresa, inserir anti-cookies e as firewalls18. Em vista disso, mesmo diante dos direitos de propriedade e da livre iniciativa do empregador, esses não podem sobrepor ou ser priorizados em detrimento à intimidade e à vida privada dos trabalhadores. Em análise às facilidades disponibilizadas pela era digital para a execução das atividades laborais, o princípio da primazia da realidade sobre a forma deve atuar como um comando norteador da identificação do teletrabalhador e de sua subordinação perante o tomador de serviços. Dessa forma, não se pode adotar uma interpretação meramente gramatical do contrato. “Isto significa que, em matéria trabalhista, importa o que ocorre na prática mais do que as partes pactuarem, em forma mais ou menos solene ou expressa, ou que se insere em documentos, formulários e instrumentos de contrato”19. A presunção de que o regime de teletrabalho decorre da ausência de controle do empregador necessita de análise fática. Identificada a relação de empre16 MOREIRA, Teresa Alexandra Coelho, A privacidade dos trabalhadores e o controlo electrónico da utilização da Internet, in Estudos de Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2016, p. 88-89. 17 MOREIRA, cit., p 122. Ver também MOREIRA, Teresa Alexandra Coelho, The Electronic Control of the Employer in Portugal, Labour & Law Issues, V. 2, n.º 1 (2016), [consult. 17 abr. 2017], disponível em: https://labourlaw.unibo.it/article/view/6009/5792. 18 GUERRA, Amadeu, A privacidade no local de trabalho. As novas tecnologias e o controlo dos trabalhadores através dos sistemas automatizados. Uma abordagem ao código do trabalho, Coimbra, Almedina, 2004, p. 395. 19 PLÁ RODRIGUEZ, Américo, Princípios de direito do trabalho, Tradução Wagner Giglio, São Paulo, LTr, 1978, p. 53.
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go, independente de como o contrato esteja formalizado, o intérprete deve se atentar para os meios telemáticos utilizados pelas partes na dinâmica laboral. Precisa, também, averiguar em que medida esses meios permitem ao empregador uma efetiva noção do tempo à disposição do empregado para o trabalho, bem como a intervenção ou determinação de quando o labor deve ser prestado. Mais grave ainda é a identificação de uma fiscalização por parte do tomador de serviços que transcenda às naturais prerrogativas do poder intraempresarial, ao permitir o conhecimento de características pessoais do trabalhador. Quando o empregador remotamente investiga os sites visitados pelo teletrabalhador, suas pesquisas e opções na web, ou tem acesso aos seus perfis, ele passa a conhecer as opções políticas, religiosas, sexuais e o ambiente familiar do empregado. Tal conduta desvela total afronta à intimidade e à vida privada do trabalhador20. Perante a era digital e a flexibilidade das relações laborais, a força de trabalho assente no crowdsourcing é significativamente multifária, assim como os locais em que pode ser desempenhada. Essa peculiaridade sugere vulnerabilidade do prestador de serviços em matéria de segurança e saúde. O trabalho remoto não tem medidas eficientes para garantir que as condições e o ambiente de trabalho sejam seguros. Perturbações de ordem física ou psicológica podem acometer o prestador de serviços. Quando é firmado um contrato de trabalho, compete ao empregador avaliar o risco e tomar as medidas adequadas para garantir a segurança no ambiente de trabalho, mas no trabalho independente, o risco é do próprio trabalhador. A ergonomia é uma das questões essenciais para se evitar problemas musculoesqueléticos e essa, em ambientes domésticos ou espaços públicos, normalmente é negligenciada. Muitas vezes, os assentos e as mesas utilizadas não têm a altura correta ou comprometem a postura adequada. Ambientes mal iluminados, ruidosos, poluídos, sobrelotados, sem conforto térmico, longas jornadas somada à pressão para atingir metas de trabalho ou finalizar tarefas obrigam um ritmo de trabalho acelerado, sem pausas, que pode adoecer o trabalhador21. As plataformas e os aplicativos on line necessitam humanizar seu modelo para que não coloque em risco os direitos dos trabalhadores. O contrato deve garantir condições justas aos trabalhadores da gig economy. O trabalho virtual
20 MOREIRA, cit., 2016, p 105. 21 EUROPEAN AGENCY FOR SAFETY AND HEALTH AT WORK, Análise sobre o futuro do trabalho: bolsas de trabalho on-line ou externalização aberta «crowdsourcing»: implicações para a segurança e saúde no trabalho, Bruxelas, EU-OSHA, 2015 [consult. 08 jun. 2018], disponível em: https://osha.europa.eu/en/tools-and-publications/publications/future-work-crowdsourcing/view, p. 02-04.
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necessita ser uma modalidade digna de trabalho e não um artifício para manter trabalhadores independentes e exploráveis, sem proteção formal e estabilidade22. O jurista precisa ser prudente para não destroçar direta ou indiretamente direitos relativos à saúde e à segurança do trabalhador no âmbito das relações trabalhistas, bem como à tutela da privacidade. Encontrar um equilíbrio e identificar as formas de intervenção suscetíveis de reduzir os riscos, incentivando simultaneamente a criação de oportunidades, torna-se um desafio para o Direito do Trabalho da economia conectada. É preciso adaptar os regulamentos existentes para se garantir direitos trabalhistas fundamentais.
5. Considerações finais O mercado encontra-se tomado pelo trabalho conectado em diversificadas modalidades e profissões. Esse fenômeno desvela a existência de um prestador de serviço fragilizado pela ausência de efetiva proteção normativa. Nota-se que a era digital fomenta a prestação de serviços informais, ante a imprecisa concretização da subordinação jurídica em que o trabalhador assumi os custos e a responsabilidade laboral para si. Além disso, o isolamento inerente ao perfil do teletrabalho provoca a perda da dimensão coletiva e solidária do prestador de serviços, a tolerância da abusiva intrusão telemática em sua vida privada, além de ignorar as medidas inerentes à saúde e à segurança no trabalho. Compete ao Direito do Trabalho da era digital tutelar os direitos tradicionalmente garantidores e fomentadores do bem-estar social. A mera virtualidade não pode permitir a presunção da existência de trabalhadores independentes e, ainda que isso fique configurado, não pode ensejar a exploração do labor de maneira exorbitante e sem proteção formal. Afinal, a tecnologia deve estar sempre voltada para o desenvolvimento do homem e da sociedade e, assim ser utilizada para o aprimoramento das condições de trabalho e não para desumanização do trabalhador.
Referências bibliográficas ALOISI, Antonio, Commoditized Workers: Case Study Research on Labor Law Issues Arising from a Set of “On-Demand/Gig Economy” Platforms, Comparative Labor Law&Policy Journal, Vol. 37, No. 3, (2016), [consul. 14 mar.
22 ALOISI, Antonio, Commoditized Workers: Case Study Research on Labor Law Issues Arising from a Set of ´On-Demand/Gig Economy` Platforms, Comparative Labor Law & Policy Journal, Vol. 37, No. 3, 2016, [consult. 14 mar. 2017], disponível em: https://cllpj.law.illinois.edu/access?returnurl=https://cllpj.law.illinois.edu/archive/vol_37/, p. 684.
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A vulnerabilidade do trabalhador diante da interatividade digital
2017], disponível em: https://cllpj.law.illinois.edu/access?returnurl=https://cllpj.law.illinois.edu/archive/vol_37/. AMADO, João Leal, Contrato de Trabalho, Coimbra, Almedina, 2016. EUROPEAN AGENCY FOR SAFETY AND HEALTH AT WORK, Análise sobre o futuro do trabalho: bolsas de trabalho on-line ou externalização aberta «crowdsourcing»: implicações para a segurança e saúde no trabalho, Bruxelas, EU-OSHA, 2015 [consult. 08 jun. 2018], disponível em: https://osha.europa.eu/ en/tools-and-publications/publications/future-work-crowdsourcing/view. GUERRA, Amadeu, A privacidade no local de trabalho. As novas tecnologias e o controlo dos trabalhadores através dos sistemas automatizados. Uma abordagem ao código do trabalho, Coimbra, Almedina, 2004. MOREIRA, Teresa Alexandra Coelho, A privacidade dos trabalhadores e o controlo electrónico da utilização da Internet, in Estudos de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2016. MOREIRA, Teresa Alexandra Coelho, The Electronic Control of the Employer in Portugal, Labour & Law Issues, V. 2, n.º 1 (2016), p. 1-27 [consult. 17 mar. 2017], disponível em: https://labourlaw.unibo.it/article/view/6009/5792. PLÁ RODRIGUEZ, Américo, Princípios de direito do trabalho, Tradução Wagner Giglio, São Paulo, LTr, 1978 PERSIANI, Mattia, Autonomia, Subordinazione e Coordinamento nei recenti modelli d collaborazione lavorativa, Il Diritto del Lavoro, Roma, v. 72, n. 4/5, (1998), p. 203 - 211. REBELO, Glória, Teletrabalho e privacidade: contributos e desafios para o direito do trabalho, Lisboa, RH, 2004. REDINHA, Maria Regina Gomes, O teletrabalho, Questões Laborais, Coimbra, Ano III, n.º 17 (2001), p. 87-107.
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A ORIGEM DA PLANTA MUNICIPAL EM PORTUGAL. O EXEMPLO DOS CONCELHOS DO DISTRITO DO PORTO Barbara Luize Iacovino Barreiros1
1. Introdução O título do nosso projeto de tese é “A Organização Territorial dos Municípios em Portugal – Razões para uma reforma”. A nossa investigação pretende identificar e compreender as razões pelas quais em Portugal existem, atualmente, 308 municípios – 278 municípios no continente, 11 na Madeira e 19 nos Açores; enquanto em alguns países da Europa, França e Espanha, por exemplo, este número é, proporcionalmente, muito superior. Por outro lado, diversos países do Norte da Europa, Bélgica e Dinamarca por exemplo, durante o século XX, efetuaram profundas reformas territoriais no sentido de reduzir significativamente o número dos seus municípios enquanto Portugal já tinha procedido a uma reforma territorial neste sentido há mais de 100 anos. Assim, importa desde logo compreender a razão por que em Portugal existem 308 municípios e por que razão seguimos esta linha de orientação no sentido da redução do número de municípios. Para conseguirmos perceber os motivos, iniciamos o nosso estudo pela evolução histórica da planta municipal portuguesa a partir da Revolução Liberal de 1820 e durante todo o século XIX. Para o efeito, procedemos ao levantamento 1 Investigadora JusGov e advogada. Doutoranda em Ciências Jurídicas Públicas. Mestre em Direito das Autarquias Locais pela Escola de Direito da Universidade do Minho e Pós-graduada em Estudos Europeus pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
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da legislação, debates parlamentares e os mapas anexos referentes à divisão territorial, nomeadamente, mapa anexo ao Decreto n.º 23 de 16 de maio de 1832; mapa n.º 2, anexo ao Decreto de 18 de julho de 1835; e o mapa anexo ao Decreto de 6 de novembro de 1836. Ao estudarmos a evolução histórica, comparando os referidos mapas, verificamos que os alicerces da atual organização territorial dos municípios em Portugal, remontam a 1836.2 Em linhas gerais, a nossa planta municipal atual é fruto da reforma elaborada e introduzida por Passos Manuel através do Decreto de 6 de novembro de 1836. Este decreto procedeu à divisão do território em Distritos, Concelhos e Freguesias, e à redução significativa do n.º de municípios portugueses de mais de 800 para cerca de 3513. Posteriormente à reforma de Passos Manuel, a planta municipal em Portugal sofreu alterações pouco significativas (algumas alterações com o Código de Costa Cabral em 1842 e respetivas alterações através dos decretos de 31 de dezembro de 1853 e 24 de outubro de 1855, do Código de Rodrigues Sampaio em 1878, e do Decreto de 15 de janeiro de 1898)4. Dedicamos o presente estudo aos antecedentes, com o objetivo de compreender o contexto em que se insere a reforma, e, sobretudo à reforma de Passos Manuel por ter sido esta a reforma que alterou significativamente a planta municipal portuguesa. Por fim, a título de exemplo, analisamos os concelhos que fazem parte do distrito do Porto. Partimos dos atuais municípios, consultamos o mapa anexo ao referido Decreto de Passos Manuel, e tentamos identificar quais os municípios que foram extintos, criados ou permaneceram inalterados após a reforma.
2. Os antecedentes da reforma de Passos Manuel A revolução liberal em Portugal teve início em 1820, mas só após a guerra civil de 1832-1834 foram criadas as condições para a consolidação do liberalis-
2 OLIVEIRA, António Cândido de Oliveira, Direito das autarquias locais, 2ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 27 e 257. 3 OLIVEIRA, cit., p. 22 e FIGUEIREDO, Fausto J. A., A reforma concelhia de 6 de novembro de 1836, O Direito, ano 82, (1950), p. 257 e seguintes. O Decreto de 6 de novembro de 1836 encontra-se publicado sem o mapa na Colleção de Leis e outros documentos Oficiais publicados desde 10 de setembro até 31 de dezembro de 1836, 6ª Série, Lisboa, 1837, p. 112 e 113. 4 Não incluímos a reforma de Martens Ferrão porque apesar de ter versado sobre a reorganização territorial dos municípios, tendo suprimido os concelhos de 291 para 159 no continente; esta reforma só esteve em vigor cerca de 15 dias, porquanto foi contestada resultando na revolta da Janeirinha.
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mo em Portugal. Com esta revolução iniciou-se um novo ciclo na administração do país com o objetivo de tornar a gestão do território mais eficaz5. O contexto socioeconómico à época era muito crítico. No Relatório acerca do Estado Público de Portugal6, da autoria de Fernandes Tomás, lido perante as Cortes Constituintes, reunidas pela primeira vez, em 1821, lê-se que “males de toda a ordem se experimentavam em todos os ramos da economia particular do Estado” e apela à reforma das leis judiciárias e administrativas. Em 1822 entrou em vigor a primeira Lei fundamental portuguesa, consubstanciando-se na primeira tentativa de pôr fim ao absolutismo e inaugurar em Portugal uma monarquia constitucional. No entanto, esta teve curta duração vindo a ser substituída pela Carta Constitucional de 1826 de cariz mais conservador7. Entre progressos e retrocessos, em 1827 foi discutido o projeto n.º 150 sobre a divisão do território apresentado à Câmara dos Deputados em 20 de março de 18278. Já nesta data, através deste projeto se salientava a importância da racionalização do território português, onde se lê que “atendendo à comunidade dos povos, é necessário que as divisões administrativas, cada uma em sua espécie, não sejam demasiado grandes, por outra parte, a economia da Fazenda, a boa proporção dos ordenados, a capacidade dos funcionários públicos, e a facilidade no desempenho dos seus deveres nos obriga a dar-lhes uma certa extensão”. Neste projeto, considerava-se que a reorganização dos concelhos era de todas a mais extensa e mais complicada, e em que eram indispensáveis informações mais exatas acerca das localidades. O primeiro embaraço que nesta divisão se oferecia era a disposição do artigo 133º da Carta Constitucional, que estabelecia que em todas as Cidades e Vilas ora existentes, e nas mais que para o futuro criarem, haveria Câmaras. Contudo, as Câmaras eram eletivas e compostas pelo número de Vereadores designado por Lei, e só poderiam ser Vereadores aqueles que, pelo menos, tivessem cem mil réis de renda líquida. Pelo que, os concelhos pequenos, com menos de 200 fogos, não conseguiriam formar Câmaras eletivas9. 5 V. MAGALHÃES, J. Romero, O poder concelhio – das origens às cortes constituintes, Coimbra, CEFA, 1986. 6 Relatório feito às Cortes Gerais e Extraordinárias de Portugal, Secções de 3 e 5 de fevereiro de 1821, pelo deputado Manoel Fernandes Thomás durante o tempo da Junta Provisional de Governo Supremo, Lisboa, Imprensa Nacional, 1821, página 4 e 30. 7 OLIVEIRA, cit., p. 14. 8 CAETANO, M., Os Antecedentes da Reforma Administrativa de 1832 (Mouzinho da Silveira), Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XXII, (1968-1969), p. 7 e seguintes. 9 Projeto n.º 150 sobre a Divisão Administrativa do Território Apresentado à Câmara dos Deputados em 20 de março de 1827 e publicado no Diário da Câmara dos Deputados, 1828, vol. II, página 161.
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Seguiu-se a reforma de Mouzinho da Silveira, com o Decreto n.º 23 de 16 de maio de 1832, através do qual o território ficou dividido em 8 Províncias, 40 Comarcas e cerca de 800 Concelhos10. Muito embora estes Decretos tenham constituído a base da construção do Estado Moderno, não o pormenorizamos, neste estudo, porquanto Mouzinho não procedeu com o referido Decreto à reorganização dos municípios, mantendo-se como referimos atrás, os 800 municípios do antigo regime11. Posteriormente, a Carta de Lei de 25 de Abril de 183512 autorizou o Governo a proceder à divisão administrativa do território assente em Distritos, Concelhos e Freguesias13. Os concelhos passaram, portanto, a ser a entidade administrativa intermédia situada entre os distritos e as freguesias. Foi criada uma Comissão para propor com urgência a organização administrativa do território que se regularia pelos seguintes dados: deveria haver no continente 17 distritos administrativos que seriam divididos segundo o mapa apresentado em 1827, ou seja, manter-se-iam os cerca de 800 municípios do antigo regime14. Pelo Decreto de 18 de julho de 1835 foi elaborada a divisão administrativa tendo por base as instruções transmitidas, e que constam do mapa de 1835 anexo ao referido Decreto15. Só em 1836, houve a coragem de se iniciar uma reforma da divisão dos concelhos. Assim, logo de imediato, pelo Decreto de 17 de maio, foram convocadas extraordinariamente as Juntas Gerais do distrito, que deveriam ter um papel ativo na formação de um projeto de divisão dos concelhos e julgados do seu distrito. Nestes termos foram enviados projetos com o mapa da divisão dos concelhos de cada distrito às Juntas Gerais do respetivo distrito, para que estas o adotassem ou sugerissem modificações. Na tomada de posição, as Juntas Gerais deveriam ter em consideração que os concelhos a manter deveriam contar com número suficiente de cidadãos hábeis para os empregos eletivos e bastantes meios de sus10 Conforme referido Decreto e mapa anexo a este Decreto. 11 V. MANIQUE, Pedro, Mouzinho da Silveira – Liberalismo e Administração Pública, Lisboa, Editora Horizonte,1989. 12 Colleção de Legislação promulgada em 1835, 1º Caderno, Lisboa, 1835. 13 Através do Decreto de 5 de Maio de 1835 foi criada uma Comissão para propor um sistema de administração e através do Decreto de 18 de Julho de 1835, o Reino e as Ilhas adjacentes passaram a estar divididos em Distritos administrativos. Os distritos subdividiam-se em concelhos, os concelhos compunham-se de duas ou mais freguesias. 14 Cf. Artigo 3º, do Decreto de 5 de maio de 1835. 15 O referido mapa de 1835 indica os 17 distritos e antigos concelhos classificados em províncias segundo a antiga divisão. Os distritos eram os seguintes: Viana, Porto, Vila Real, Bragança, Aveiro, Lamego, Guarda, Castelo Branco, Leiria, Santarém, Lisboa, Portalegre, Évora, Beja e Faro.
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tentar os encargos municipais; combinando esta circunstância tanto quanto possível com as distâncias e trânsitos de uns a outros lugares e em relação à capital do concelho e do julgado, assim como as comunicações e hábitos dos moradores. Para o efeito, as Juntas a todo o tempo de reunião extraordinária, ou seja, até ao dia 30 de junho de 1836, poderiam corresponder-se mutuamente sobre os concelhos e julgados limítrofes, e seus arredondamentos, a fim de que os projetos de cada uma se achassem na devida concordância, bem como, poderiam requisitar esclarecimentos a quaisquer autoridades eclesiásticas, judiciais ou administrativas. No final, entregariam o resultado dos seus trabalhos ao Governador Civil, para serem remetidos ao Governo16. Aparentemente, as Juntas Gerais do Distrito não teriam tido tempo suficiente e provavelmente não teriam tido vontade, na sua maioria, para elaborar um projeto devidamente fundamentado. Extraímos esta conclusão da prorrogação de prazo que lhes foi concedida17, no qual se lê que houve dificuldade das Juntas a satisfazerem cabalmente aos trabalhos que lhes foram incumbidos e da Portaria de 29 de setembro de 1836, através da qual a Rainha acabou por constituir uma Comissão composta pelo Coronel Franzini, Passos José (irmão de Passos Manuel) e Joaquim Leal, para propor, sem perda de tempo, um projeto para a divisão administrativa do território.
3. A reforma de Passos Manuel Decorrido pouco mais de um mês, pela referida Comissão foi elaborado um relatório18. Este é um dos documentos mais importantes a reter19, na medida em que de forma muito simples e sintética, nele foram indicadas as dificuldades que os membros da Comissão foram obrigados a ultrapassar para propor uma reforma para os concelhos, o procedimento adotado para elaborar a proposta, e, sobretudo, as razões da proposta que serviu de base à reforma de Passos Manuel elaborada através do Decreto de 6 de novembro de 183620. A Comissão concluiu desde logo que, “Sendo o concelho uma unidade integrante da divisão administrativa, foi logo reconhecido que a primitiva organização ainda existente destes concelhos não podia de maneira alguma satisfazer os fins para os que foram instituídas estas agregações municipais, muitas das quais nasceram debaixo da antiga influência feudal”. Com efeito, constatou que existia um grande número 16 Artigo 5º, 6º e 8º do Decreto de 17 de Maio de 1836; e Decreto de 15 de junho de 1836. 17 Pelo Decreto de 15 de Junho de 1836. 18 Relatório de 3 de Novembro de 1836. 19 OLIVEIRA, cit., p. 23. 20 Colleção de Leis e outros documentos officiaes publicados desde o 1º de janeiro até 9 de dezembro de 1836, 6ª Série, Lisboa, 1837.
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de pequenos concelhos, alguns dos quais com menos de 20 fogos e ainda menos e que os recursos morais e materiais destes era nulo. Os elementos obtidos junto das Juntas Gerais eram insuficientes, e mostrava-se necessário obter a topografia e estatísticas do Reino, as simpatias, prevenções e interesses dos povos locais, e ter em consideração a ilustração dos habitantes para exercer os numerosos cargos eletivos. Serviu de elemento fundamental para a elaboração da proposta de reorganização dos concelhos, cinco mil mapas e outros documentos descritivos de todas as paróquias do Reino, reunidas no Arquivo Militar e elaboradas e organizadas por obra do Coronel Franzini desde 1822. Dada a urgência na elaboração da proposta, a Comissão não inseriu no relatório uma análise circunstanciada dos motivos que induziram a alterar ou modificar alguns dos projetos enviados pelas Juntas Gerais de distrito. Tendo tido no geral, em consideração o seguinte: por um lado, teve em conta as necessidades eleitorais, no sentido de que os concelhos deveriam ter população suficiente com capacidade eleitoral passiva suscetível de aceder aos cargos eletivos previstos pelo sistema representativo; teve ainda em conta que municípios muito pequenos não têm capacidade para empregar as suas receitas em obras de utilidade pública porque as despesas permanentes da administração consomem-nas na totalidade. Por outro lado, a proposta teve em atenção a extensão do território, dificuldades de comunicação e população relativa. A Comissão não pode deixar notar a grande desigualdade que a respeito da população relativa se observava nas diversas províncias do Reino. Assim a população portuguesa à data rondava os 3.100.000 de habitantes distribuídos de forma desigual pelo território que tinha uma extensão de 3.150 léguas quadradas. Por exemplo, os distritos mais densamente povoados eram Lisboa e Porto e a população da Província do Alentejo estava de 1 para 9 comparada à do Minho. Em síntese, os critérios a ponderar para a elaboração da proposta eram essencialmente dois: população e território. Tendo por base o supra descrito relatório, Passos Manuel decretou provisoriamente, através do Decreto de 6 de novembro de 1836, que o território continental do Reino ficaria dividido em 17 distritos, compostos por 351 concelhos, designados nos mapas anexos ao referido decreto21. Esta reforma que se diz ser provisória e dinâmica, marcou o início do caminho da reorganização dos municípios em Portugal. De fato, até à reforma elaborada por Passos Manuel através do Decreto de 6 de novembro de 1836 existiam em Portugal mais de 800 concelhos. Com a entrada em vigor da referida reforma foram extintos mais de 450 concelhos, mas foram também criados novos concelhos, conforme vamos verificar mais à frente no estudo do exemplo do Distrito do Porto. As povoações que se julgassem injustiçadas poderiam remeter as suas representações ao Administrador Geral, que depois de ouvir o Conselho de Distrito, dirigiria um parecer 21 V. FIGUEIREDO, cit.
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à Secretaria de Estado para que o Governo pudesse apreciar a reclamação; e, as Juntas Gerais de distrito poderiam remeter para apreciação das Cortes gerais, melhoramentos que se poderiam fazer na divisão administrativa do território22. A diretriz introduzida por este decreto permaneceu e ao longo do século XIX o número de concelhos foi ainda diminuindo, aproximando-se do número atual, que é de 278 concelhos no continente. Seguiram-se assim alterações em 1842, em 1853 e 1855, em 1878. Em 1867 pela reforma de Martens Ferrão foram extintos ainda mais concelhos e também freguesias, passando o mapa municipal a contar com um número muito inferior à metade do n.º de concelhos e freguesias. No entanto, esta reforma foi alvo de uma revolta popular, a “Janeirinha”, tendo tido uma vida muito curta, não estando por isso na origem da nossa planta municipal. Em 1898 foram restaurados cerca de 50 concelhos que envolviam os distritos de Aveiro, Beja, Braga, Bragança, Castelo Branco, Coimbra, Évora, Faro, Guarda, Leiria, Lisboa, Portalegre, Santarém, Viana do Castelo, Vila Real, Viseu, Funchal e Horta.
4. O exemplo dos concelhos do Distrito do Porto A 30 de novembro de 1836, foi expedida pelo Ministério do Reino à Administração Geral do distrito do Porto, a Portaria Circular para que fosse dada execução ao Decreto de Passos Manuel, na qual foram enviados um exemplar do referido decreto e os mapas da organização administrativa. Em virtude do aumento de população nos concelhos que sofreram alterações, era indispensável proceder-se à eleição das Câmaras Municipais dos novos concelhos e à eleição dos magistrados administrativos. Antes da reforma, o Distrito do Porto contava com 53 concelhos, alguns dos quais tinham uma população com menos de 200 fogos: Aboim e Codeço, Barboza, Cette, Frencemil, Rebordões, Taboado, e Villa Cahiz. Todos estes concelhos foram extintos.23 Outros, tinham menos de 500 fogos: Amarante, Aveleda, Baltar, Barbosa, Bustelo, Cova, Frazão, Lagae, Leça do Balio, Louredo, Meinedo, Melres, Negrelos, Ovelho do Marão, Pendorada, Porto Careiro, e Roriz.24 Destes, apenas Amarante se manteve. No entanto, configuração de Amarante foi alterada, tendo-lhe sido anexado território e população de três concelhos extintos, passando a contar com cerca de 6000 fogos. Outros 7 concelhos com menos de 1000 fogos25: Anade, Avintes, S. João da Foz, Leça do Balio, Mancellos, Pedroso e Rio Tinto. Também estes concelhos foram extintos. 22 Artigo 4º do Decreto de 6 de novembro de 1836. 23 Ver mapa anexo ao Decreto de 1835. 24 Idem. 25 Idem.
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O distrito do Porto passou então a compor-se em 1836 por 19 concelhos que se seguem: Amarante, Baião, Barrozas, Bemviver, Bouças (Matosinhos), Santa Cruz, Gaia, Gondomar, Maia, Paredes, Paços de Ferreira, Penafiel, Porto, Póvoa de Varzim, Soalhães, Santo Tirso, São Tomé de Negrelos, Valongo e Vila do Conde. Estes concelhos tinham em média a população de 3000 fogos cada um, com execepção de Amarante que contava com cerca de 6000 fogos, Penafiel com 7000 e o Porto com mais de 17000 fogos. Compulsando-se o mapa de 1835 com o mapa de 1836, verificamos que para além da extinção de concelhos, procedeu-se à criação do concelho de Valongo – por desmembramento do concelho da Maia; contava com cerca de 2000 fogos. Atualmente, o distrito do Porto conta com 18 concelhos: Amarante, Baião, Felgueiras, Gondomar, Lousada, Maia, Marco de Canaveses, Matosinhos, Paços de Ferreira, Paredes, Penafiel, Porto, Póvoa de Varzim, Santo Tirso, Trofa, Valongo, Vila do Conde e Vila Nova de Gaia. Comparando a planta municipal atual do distrito do Porto com a planta obtida com a reforma de Passos Manuel, verificamos as seguintes correspondências: Amarante, Baião, Matosinhos, Vila Nova de Gaia, Gondomar, Maia, Paredes, Paços de Ferreira, Penafiel, Porto, Póvoa de Varzim, Santo Tirso, Valongo e Vila do Conde. Ou seja, 14 dos concelhos que existem atualmente no distrito do Porto têm correspondência com os que existiam em 1836. Não existiam em 1836 os atuais concelhos de: Felgueiras, Lousada, Marco de Canaveses e Trofa. Foram criados com a reforma de 1836: Valongo, Paços de Ferreira e Paredes. Também os concelhos de Vila do Conde, Póvoa de Varzim e Amarante passaram a ter a configuração atual a partir desta reforma, pois até então contavam apenas com uma freguesia. Felgueiras e Lousada foram extintos em 1836, integrando o concelho de Barrozas, mas tornam a reaparecer no mapa de 1847 anexo ao Código de Costa Cabral. Por sua vez, o Decreto de 31 de dezembro de 1853 indica que Barrozas deixou de ser concelho em 30 de julho de 1852 e Bemviver deixou de ser concelho com decreto de 28 dezembro de 1852. Por sua vez, foi criado em meados de 1852 o concelho de Marco de Canaveses por anexação dos concelhos de Bemviver, Canaveses, Soalhães e Portocarreiro. O Concelho de Amarante terá sido composto pela anexação dos extintos concelhos de Gestaçô, Gouvêa, Ovelha do Marão e algumas freguesias do extinto concelho de Felgueiras. O concelho de Paredes teve origem na anexação dos extintos concelhos de Aguiar de Sousa, Louredo, Baltar, Cete e Sobroza. A Trofa é o único dos atuais concelhos que teve a sua origem mais recentemente. Foi criado em 1998 pela Lei n.º 83/98 de 14 de dezembro. Tornou-se município autónomo em 19 de novembro de 1998, por desanexação do vizinho concelho de Santo Tirso (em simultâneo com o município de Odivelas, criado na mesma altura, por desanexação de Loures). 46
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5. Conclusões A reforma de Passos Manuel foi a mais importante reforma do mapa municipal português. De fato, se é certo que após a reforma de Passos Manuel seguiram-se algumas modificações ao mapa municipal, não podemos negar que a reforma de Passos Manuel foi o marco na viragem da reorganização dos concelhos e parece corresponder à origem da nossa planta municipal atual. Conforme se verificou da leitura do Decreto de 6 de Novembro de 1836, pretendia-se que a organização dos municípios sofresse os reajustes que se mostrassem necessários tendo em conta o bem da população e cumulativamente sendo possível retirar todas as vantagens que devem resultar da organização de um bom sistema administrativo. As razões da reforma foram a tomada de consciência de que municípios muito pequenos e sem população não são capazes de executar as suas atribuições. Assim, podemos verificar no exemplo dos concelhos do Distrito do Porto. Os concelhos foram reorganizados de forma a ter mais população. Dois critérios foram tidos portanto em conta na reforma de Passos Manuel: a população e o território. A reforma teve também o cuidado de verificar a população relativa bem como as distâncias e comunicação que existia entre os concelhos existentes. Da análise do exemplo dos concelhos do distrito do Porto, que serviu apenas como uma amostra, do trabalho que temos vindo a desenvolver, foi possível demonstrar que a Reforma de Passos Manuel suprimiu uma grande quantidade de concelhos, sobretudo os que têm menor n.º de fogos, não apenas através da extinção mas também pela anexação de pequenos concelhos, é o caso da criação do município de Paredes. Outros concelhos já existiam, é o caso de Amarante e Vila do Conde, no entanto, foram-lhe anexadas freguesias de concelhos extintos ou desmembradas de outros concelhos de forma a aumentar a extensão de território e de população. Pudemos também verificar que a grande maioria dos concelhos atuais adotaram a sua atual configuração com a reforma de Passos Manuel. Pelo exposto, podemos afirmar que a planta municipal atual tem a sua origem na planta municipal elaborada pelos irmãos Passos. Através deste artigo pretendeu-se apenas demonstrar um pouco da investigação que tem sido desenvolvida no âmbito do estudo para a elaboração da tese de doutoramento. O estudo elaborado para este artigo é uma pequeníssima parte do que tem vindo a ser desenvolvido. Conhecer a evolução histórica e os mapas da divisão territorial portuguesa é essencial para conseguirmos perceber as razões que levaram os seus autores a proceder às referidas modificações. Este estudo tem muito interesse pois, infelizmente, muitas vezes são efetuadas reformas sem o necessário estudo prévio. Não pretendo com isto afirmar que o nosso mapa territorial necessite de reforma. Esta seria uma conclusão muito precipitada. Pretendo apenas chamar a atenção para o facto de que se mostra necessário conhecer com pormenor a razão de ser da organização da planta municipal 47
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portuguesa. Só assim será possível prever a (des)necessidade de alterar o mapa territorial dos municípios em Portugal.
Referências bibliográficas CAETANO, M., Os Antecedentes da Reforma Administrativa de 1832 (Mouzinho da Silveira), Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXII, (1968-1969). Colleção de Legislação promulgada em 1835, 1º Caderno, Lisboa, 1835. Colleção de Leis e outros documentos officiaes publicados desde o 1º de janeiro até 9 de dezembro de 1836, 6ª Série, Lisboa, 1837. FIGUEIREDO, Fausto J. A, “A reforma concelhia de 6 de Novembro de 1836”, O Direito, ano 82, (1950). MAGALHÃES, J. Romero, O poder concelhio: das origens às cortes constituintes, CEFA, Coimbra, 1986. MANIQUE, Pedro, Mouzinho da Silveira: Liberalismo e Administração Pública, Lisboa, Editora Horizonte, 1989. OLIVEIRA, António Cândido de, Direito das Autarquias Locais, 2ª ed., Coimbra, Coimbra Editores, 2013. Relatório feito às Cortes Gerais e Extraordinárias de Portugal, Secções de 3 e 5 de fevereiro de 1821, pelo deputado Manoel Fernandes Thomás durante o tempo da Junta Provisional de Governo Supremo, Lisboa, Imprensa Nacional, 1821, página 4 e 30.
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O “BREXIT” E OS BRICS NO CENÁRIO DO MUNDO FINANCEIRO GLOBALIZADO - PERSPECTIVAS E CONTRADIÇÕES Cláudia Ribeiro Pereira Nunes1 Fernando Rangel Alvarez dos Santos2
1. Introdução Desde que Jim O’Neill segmentou o bloco dos BRICS nos anos 2000, o crescimento e a influência dos seus membros no cenário internacional vêm impactando no mundo econômico e, principalmente no sistema financeiro internacional. Paralelamente, a saída do Reino Unido da União Europeia segmenta um bloco político e econômico coeso, mas não se destacam nas análises os impactos no sistema financeiro internacional. Desde a decisão pela saída do bloco europeu (2016) outros fatores têm acontecido no mundo econômico e jurídico que não isolam o ato da saída em si, mas que deixam de lado sua análise. Pode-se citar a eleição de Donald Trump 1 Doutora e Mestre em Direito (UGF/RJ). Visiting Fellow at Yale University (2018-2019). Co-coordenadora do Grupo de Pesquisa: GGINNS - Global Comparative Law: Governance, Innovation and Sustainability. Pesquisadora e Coordenadora do NUPES-DIR do IESUR/FAAr – Instituto de Ensino Superior de Rondônia/Faculdades Associadas de Ariquemes. Advogada e Consultora, emails: crpn1968@gmail.com e claudia.ribeiropereiranunes@yale.edu. 2 Doutorando do PPGD da Universidade Veiga de Almeida (Bolsista PROSUP/CAPES) – PPDG-UVA. Pesquisador do GGINNS. Mestre em Direito e Especialista em Direito Civil e Processual Civil (2001), pela UNESA e em Direito Corporativo pelo IBMEC (2015). Advogado, e-mail: frangel2005@gmail.com
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para a Casa Branca, uma sensível virada nos práticas políticas internacionais, desde ataques militares (Síria) até mesmo aproximação com ‘inimigos’ antigos (Coreia do Norte), mas o que se percebe em termos econômicos é o crescimento da economia norte-americana3, com a consequente valorização do dólar norte-americano e as tentativas de rupturas diplomáticas, a exemplo do Acordo do Transpacífico, a fim de destacar o emblemático papel do Estados Unidos da América do Norte na liderança do cenário, não só econômico, mas político e diplomático internacional. Neste contexto, a formação e consolidação do bloco dos BRICS vem avançando. Os países que compõem o bloco dos BRICS representam 46% da população mundial, seus territórios compõem 26% da área terrestre do planeta e tem participação de 19,6% do PIB mundial4. Tal imponência do bloco no contexto econômico mundial também se reflete no sistema financeiro internacional, tendo destaque para Novo Banco de Desenvolvimento que iniciou suas atividades em 20165.
2. Objetivos A pesquisa teve por objetivo principal investigar as consequências da saída do Reino Unido da União Europeia e seus consectários face à globalização do sistema financeiro internacional em frente à posição que os BRICS vêm assumindo após o BREXIT, como também após a entrada do Novo Banco de Desenvolvimento no cenário do sistema financeiro. Por objetivos secundários, questiona-se: 1) o papel de uma instituição financeira multilateral de fomento, em momento paralelo com a saída do Reino Unido da União Europeia e; 2) a 3 O produto interno bruto norte-americano chegou a crescer 2,9% no último trimestre de 2017 segundo dados do U.S. Bureau of Economic Analisys, disponível na página eletrônica https://www. bea.gov/newsreleases/national/gdp/gdpnewsrelease.htm [consult. 27 mai. 2018]. 4 Temos ainda os seguintes dados do Bloco referentes aos produtos internos brutos e ao comércio internacional: PIB - US$ 15,76 trilhões; participação no PIB mundial: 19,8%; população 2,998 bilhões de habitantes; participação na população mundial: 41,6%; exportações totais (2012): US$ 3,19 trilhões; participação nas exportações mundiais: 17,7%; importações originárias do mundo (2012): US$ 2,95 trilhões; participação nas importações mundiais: 16,1; intercâmbio comercial (2012): US$ 6,14 trilhões; participação no intercâmbio comercial mundial: 16,9%; saldo comercial (2012): US$ 244 bilhões. Para mais ver a página eletrônica Brics Policy Center, disponível em: http://bricspolicycenter.org [consult. 19 mai. 2018]. 5 O Novo Banco de Desenvolvimento é uma instituição financeira multilateral formada pela capitalização dos países membros dos BRICS e foi internalizado na legislação brasileira após o Tratado firmado em Fortaleza em 2014 e por meio do Decreto nº 8.624 de 29 de dezembro de 2015. Segundo tal Decreto o NBD “terá um capital subscrito inicial de US$ 50 bilhões e um capital autorizado inicial de US$ 100 bilhões.” BRASIL, Poder Executivo, Decreto nº 8.624 de 29 de dezembro de 2015, Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 30 dez. 2015 [consult. 24 jan. 2016], disponível em: http://www.in.gov.br/.
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O “BREXIT” e os BRICS no cenário do mundo financeiro globalizado - Perspectivas e contradições
soberania jurídica no cenário da internacionalização do capital financeiro e ao poder econômico do citado sistema financeiro.
3. Metodologia A abordagem metodológica é a revisão da literatura integrada visando conhecer os conceitos da doutrina jurídica sobre soberania, além de outros relacionados com a interface entre Direito e Economia, bem como, a análise dos dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico sobre o Reino Unido e dados sobre os BRICS e o Novo Banco de Desenvolvimento. Todos em sites oficiais de cada uma das instituições. O método é o estado da arte visando entender as suas consequências.
4. Resultados Os resultados apontam para um processo disruptivo da soberania face aos avanços da globalização financeira, com consequências para o Reino Unido, que poderiam configurar outro resultado do plebiscito realizado em 2016, que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia e, ainda, a influência cada vez maior do polo financeiro asiático no sistema financeiro internacional.
4.1 BREXIT, soberania e sistema financeiro A saída do Reino Unido da União Europeia foi muito discutida em vários aspectos: migratórios; de comércio internacional; econômicos (especificamente em relação ao PIB britânico e sua possível variação), mas não foram destacadas, ao menos inicialmente, as consequências para o sistema financeiro internacional com tanta veemência quanto os outros aspectos. Para tratarmos dos impactos do BREXIT no sistema financeiro internacional, primeiramente, descrever-se-á uma breve trajetória do sistema financeiro, o conceito de globalização financeira e, posteriormente, o exercício da soberania nos dias atuais.
4.1.1 Impactos do BREXIT Antes da saída do Reino Unido da União Europeia6 já havia um processo de união financeira de mercados em curso, não só iniciado pela adoção do 6 A participação do Reino Unido no sistema financeiro europeu, em especial, é extremamente significante. O congregado financeiro da City of London tem recursos da ordem de bilhões de libras esterlinas conforme dados do Dados do Banco da Inglaterra. Para mais ver página eletrônica do Bank of England, disponível em: http://www.bankofengland.co.uk/statistics/Pages/iadb/ notesiadb/capital.aspx [consult. 28 mai. 2018].
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padrão monetário euro nos anos 2000 (mesmo não tendo sido adotado pelos britânicos), mas por força do Sistema Europeu de Supervisão Financeira regido pelos Regulamentos EU nºs 1.092, 1.093, 1.094 e 1.095 de 2010. Ocorre que a saída do Reino Unido tem não só consequências financeiras como jurídicas. Dentre as consequências mais imediatas, destacam Fábio da Silva Veiga e José Vieira dos Santos: Esta drástica alteração também envolverá as instituições financeiras britânicas, que deixarão de ter acesso ao Passaporte Europeu, limitando assim o seu âmbito territorial de investimento. A desaplicação do Regulamento Europeu de Insolvência também implicará um desincentivo às reestruturações transfronteiriças que envolvam o Reino Unido. Neste âmbito, o Reino Unido terá que adoptar medidas mais atrativas ao comércio para evitar a deslocalização das instituições financeiras e das empresas para Frankfurt ou para Amsterdão, ou mesmo para Hong Kong ou Singapura, já que as decisões judiciais britânicas não terão a mesma exigibilidade fora da União Europeia7.
Ou seja, existe um risco elevado de fuga de capitais financeiros do Reino Unido, desmontando assim o poderio econômico da City of London. Para se estabelecer uma melhor apreciação da perspectiva atual, tem-se que voltar à formação do sistema financeiro internacional, sua consolidação até o momento da globalização financeira8.
4.1.2 Sistema Financeiro Internacional – evolução e estágio atual Antes mesmo do fim da Segunda Guerra Mundial, em junho de 1944, reuniram-se em Bretton Woods representantes de 44 países (incluindo o Brasil) com o objetivo de reorganizar o cenário econômico mundial para o período do pós-guerra. Foram traçadas diretrizes para a nova ordem econômica. No cenário descrito, foram instituídos os seguintes organismos: 1) na vertente financeira, criava-se o Banco Mundial, cuja missão era o desenvolvimento9 e o Fundo Monetário Internacional, que sustentaria paralelamente a estabilidade monetária 7 VEIGA, Fábio da Silva; SANTOS, João Vieira dos, O impacto do BREXIT na União Financeira Europeia, Revista de Direito da Empresa e dos Negócios, v. 1, n.º 2, (2017), p. 101-102. 8 A globalização no seu aspecto econômico é explicada por Carvalho, ressaltando-se que tal fenômeno perpassa pelo viés financeiro: “Globalização significa unificação de espaços. Em termos de economia, essa definição traduz-se na unificação de mercados, a princípio, segmentados nacionalmente em um único espaço integrado”, CARVALHO, Fernando J. Cardim de; SICSÚ, João (orgs.), Economia do Desenvolvimento. Teoria e Políticas Keynesianas, Rio de Janeiro, Elsevier, 2008, p. 15. 9 A missão do Banco Mundial foi atualizada para “a diminuição da pobreza e a globalização inclusiva e sustentável” ver página eletrônica do Banco Mundial, disponível em: http://www. bancomundial.org/es/about/history [consult. 23 mai. 2018].
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e o sistema de pagamentos internacional; 2) na vertente comercial, criou-se o G.A.T.T. que se configurava na embrionária tentativa de organizar o comércio entre os Estados soberanos, que seria posteriormente estabelecido pela Organização Mundial do Comércio em 1994. O sistema cresceu e se diversificou em outras organizações financeiras internacionais (Banco Interamericano de Desenvolvimento, Banco Asiático de Desenvolvimento, e, mais recentemente o Novo Banco de Desenvolvimento – Banco dos BRICS). Luís Carlos Bresser-Pereira destaca a passagem que o chamado capitalismo desenvolvimentista migrou para o “capitalismo-rentista”10. Ou seja, o poder econômico que obteve o sistema financeiro induziu alguns países a adotar um modelo em que a opção pelo rendimento do investimento financeiro é mais importante do que o investimento capitalizado na produção de bens e serviços. Deste modo, os “solavancos” no bloco do euro e na economia mundial com o fenômeno do nacionalismo revigorado estaria caracterizando um processo de “desglobalização”? Esteve até aqui o processo de globalização econômica ultrapassando os limites da soberania estatal? Tais questionamentos são respondidos em seguida em itens específicos.
4.2 A “Desglobalização” Primeiramente a “desglobalização” acima mencionada não é a proposta elaborada por Walden Bello que relaciona tal processo, direcionando-o à produção para o mercado interno, que dentre outras consequências, preconiza tal autor: “re-encaixar a economia na sociedade, ao invés de deixar a sociedade ser conduzida pela economia”11. Sem adentrar no mérito da tese levantada por Walden Bello, o presente estudo não vislumbra possibilidade de se intervir com tamanha eficiência no capital financeiro internacional, tamanha é a sua volatilidade, diante das sofisticadas formas de transferência de capital e de fuga dos mesmos de suas matrizes de produção. A “desglobalização” a que se refere o presente estudo seria carac10 Bresser-Pereira analisa a evolução do sistema destacando o período pós-guerra, explica ainda que houve um “nacionalismo conservador e autoritário: ´Durante os Anos Dourados do pósguerra, foi um nacionalismo social-democrático. Nos últimos quarenta anos esse capitalismo desenvolvimentista entrou em crise e deu lugar ao capitalismo financeiro-rentista. [...] Mas um nacionalismo conservador e autoritário. O mundo que desde 2008 estava em crise econômica, em 2016 entrou em crise política`”, cf. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos, Depois do capitalismo financeiro-rentista, mudança estrutural à vista?, Novos Estudos, v. 36.01, n.º 107, março (2017), p. 137. 11 BELLO, Walden, Desglobalização: ideias para uma nova economia mundial, Petrópolis, Editora Vozes, 2003, p. 146.
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terizada pelo processo de isolamento e nacionalismo das empresas, sem a tão destacada transnacionalidade atual. Respondendo ao item indagado anteriormente, em relação ao capital financeiro não se vislumbra, nenhuma sombra de nacionalização do mesmo, até porque o capital financeiro tem esta característica de poder migrar. Outra questão que responde é que a crise econômica de 2008 teve seus rebatimentos em instituições financeiras sólidas (Banco Lehman Brothers, por exemplo) o que traz de volta o valor mais relevante pelo qual o sistema financeiro se impõe: a confiança. É o crédito no sistema financeiro que faz com o que o rentista continue no mercado e não invista na produção, pois o mecanismo do crédito, se sustenta na confiança recíproca.
4.2.1 A soberania estatal e a globalização financeira Não se faz necessário retroagir até aos conceitos clássicos de soberania de Jean Bodin, ou mesmo de J.J. Rousseau, mas é deste último autor que se extrai a noção de vontade geral para a soberania: “Assim como a natureza dá a cada homem poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, recebe, como ficou dito, o nome de soberania”12. Contudo, já no século XX, Jürgen Habermas questiona os limites da soberania entre a política interna e a externa, ou seja, diz o autor: “De outro lado, a globalização coloca em questão os pressupostos essenciais do direito internacional clássico: a soberania dos Estados e as nítidas distinções entre política interna e externa”13. A soberania como elemento essencial para a existência do Estado, tendo por característica a imposição de limites de sua jurisdição e de território do Estado soberano não corresponde mais às funções atribuídas na sua formação, nem mesmo à vontade geral, quando trata especificamente do capital financeiro, pois a soberania é uma categoria histórica, ou seja, está em plena evolução, e por isso, pode vir a ser alterada no seu exercício, nas suas condições e características, bem como na imposição de normas e limites. Não se está mais a questionar os modelos econômicos impostos pelo Fundo Monetário Internacional aos países menos desenvolvidos quando aqueles recorriam a tal instituição, mas sim ao Poder que um determinado Estado pode ter em relação aos capitais que podem entrar e sair de países rentistas, deixando assim, os rumos econômicos (crescimento e desenvolvimento) ao sabor das variáveis do sistema econômico (variação cambial, nível de reservas, avaliação de risco, etc.). Em outras palavras, à guisa de exemplo, a taxa de juros tem que ser elevada para tornar-se atrativa ao capital estrangeiro; a entrada e saída de 12 ROUSSEAU, Jean Jaques, O Contrato Social, (tradução Antonio de Padua Danesi), 36º ed., São Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 39 (tradução livre). 13 HABERMAS, Jürgen, La inclusión del outro: estudios de teoría política, (traductor: Juan Carlos Velasco Arroyo), Barcelona, Editora Paidós Ibérico, 1999, p. 156 (tradução livre).
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capitais influencia direta e imediatamente na taxa de câmbio, fazendo com que a importação possa vir a ser mais onerosa em determinados momentos. Enfim, pergunta-se: onde está o poder imantado na soberania estatal? Os poderes constituídos nos Estados soberanos não encontram capacidade de respostas para tal indagação. No contexto financeiro apresenta-se, em seguida, o papel do Novo Banco de Desenvolvimento e a tendência do “pêndulo” tender mais para o polo financeiro asiático, e, assim, enfraquecer mais o polo financeiro europeu frente ao norte-americano.
4.2.2 O papel do Novo Banco de Desenvolvimento no sistema financeiro internacional Antes mesmo de explicar o papel da instituição financeira, é necessário traçar as características do bloco econômico dos BRICS. Trata-se de bloco econômico, mas não é institucionalmente uma organização internacional. Os regimes políticos e os matizes ideológicos e culturais são os mais diversos possíveis, entretanto, o bloco vem se mantendo unido em termos econômicos. O Novo Banco de Desenvolvimento surgiu do tratado firmado na reunião de cúpula de Fortaleza em 2014. A inserção definitiva do citado Banco no ordenamento jurídico brasileiro foi feita por meio do Decreto nº 8.624 de 29/12/2015 que regulamentou o Decreto Legislativo nº 131/2015. A instituição iniciou suas atividades efetivamente em 2016. Foi autorizada pelo tratado a subscrição de capital do referido Banco em US$ 50 bilhões pelos países do bloco a ser integralizado em anos subsequentes. O que interessa em termos técnicos do Novo Banco de Desenvolvimento, não é exatamente a sua pujança creditícia14, mas sim dois instrumentos, a saber: 1) o desembolso dos financiamentos em moeda local, ou seja, dispensa-se a intermediação do dólar norte-americano para o crédito das operações; e 2) a instituição do Arranjo Contingente de Reservas que se constitui numa “plataforma de apoio, por intermédio de instrumentos preventivo e de liquidez, em resposta a pressões de curto prazo, reais ou potenciais, sobre o balanço de pagamentos”15. Tal “plataforma” funciona de forma semelhante ao Fundo Monetário Internacional em relação aos financiamentos concedidos pelo Banco Mundial. Os mecanismos acima citados, principalmente, a concessão em moeda local, representam uma quebra de paradigma em um sistema financeiro em que impera o padrão “dólar” desde a Conferência de Bretton Woods. Associado a 14 O BNDES somente em 2014 desembolsou mais de 50 bilhões de dólares norte-americanos, ver informação na página eletrônica www.bndes.gov.br [consult. 27 mai. 2018]. 15 Artigo 1 do Decreto nº 8.702. BRASIL, Poder Executivo, Decreto nº 8.702 de 01 de abril de 2016, Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 01 abr. 2016, [consult. 18 abr. 2016], disponível em: http://www.in.gov.br/.
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este fato, temos a acumulação de capital na China, cujas reservas internacionais giram em torno de 3.125 trilhões de dólares norte-americanos16. Ou seja, o polo asiático inicia o seu “voo” rumo a uma possível divisão de liderança no sistema financeiro, até então, preso no eixo Estados Unidos-Europa. Acrescente-se o fato de que o Novo Banco de Desenvolvimento já está em plena operação, tendo em projetos cerca de 3,4 bilhões de dólares de 2016 até o presente momento. Questiona-se o seguinte fato, por que motivo a China com reservas tão elevadas recorre a uma instituição financeira nova, capitalizada ela mesma para financiar projetos? Talvez o interesse não esteja restrito ao custo do crédito em si, mas ao poderio que pode ser exercido pela potência econômica, política, militar, comercial e, porque não, financeira que assume tal país.
5. Conclusão Da hipótese formulada e diante dos dados e conceitos apresentados, temos as seguintes considerações: 1 a soberania, mesmo que inerente à existência estatal, nos dias atuais, possui contornos muito maiores do que o seu conceito jurídico estrito; 2 a organização e o dinamismo do sistema financeiro internacional influenciam a atividade econômica mundial de forma quase que irresistível, não havendo resposta do Direito para tanto. Talvez não seja nem o caso de haver tal resposta; 3 Em termos da proteção do direito internacional para blocos que ainda não são formalizados, não se percebe tal necessidade quando as organizações funcionam a contento; 4 O BREXIT gerou diversos impactos, principalmente na União Europeia, mas como visto, não é causa isolada na configuração de quebra de poderio de polos tradicionais no sistema financeiro internacional, contudo pode criar condições para tanto; 5 A saída de um Estado soberano de uma organização internacional ocorrida em momento de propulsão, ainda que inicial, do nacionalismo, cria um disfarce para o truque da importância do local em relação ao mundial, servindo como argumento, de que o indivíduo habita o local, e serve para outros interesses, que não o tal interesse, mas sim, a repercus16 Informações disponíveis na página eletrônica Trading Economics, https://pt.tradingeconomics. com/country-list/foreign-exchange-reserves [consult. 24 mai. 2018].
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são geral, pois o sistema se serve da folga para reiniciar o processamento de reprodução do capital; 6 A inserção no sistema financeiro internacional de uma nova instituição estruturada por um bloco “não formalizado” pode assumir papel mais destacado no sistema, pelos novos instrumentos mencionados no item 2.2, mais do que pelo seu destaque no volume de desembolsos, pois alicerça novas relações, todas no seio do próprio sistema; 7 As estruturas de poder instituídas pelos Estados e dotadas pela soberania, necessitam encontrar alternativas às propostas normativas clássicas, mesmo as firmadas por meio de tratados que, na hipótese de não serem cumpridos, nada ocorre com seus signatários, quando não há um interesse prejudicado. A alternativa da tributação pode não ser a mais adequada, quando, por vezes, afugenta capitais, mas a ação dos Estados em bloco, a exemplo do que tem feito os BRICS, ou seja, em conjunto, sem estarem formalizados, pode ser uma alternativa, isto é, inserir-se no sistema, sem intervir como agente externo, mas “participar por dentro”.
Referências bibliográficas BELLO, Walden, Desglobalização: ideias para uma nova economia mundial, Petrópolis, Editora Vozes, 2003. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos, Depois do capitalismo financeiro-rentista, mudança estrutural à vista?, Novos Estudos, v. 36.01, n.º 107, março, (2017), p. 137-151. VEIGA, Fábio da Silva; SANTOS, João Vieira dos, O impacto do BREXIT na União Financeira Europeia, Revista de Direito da Empresa e dos Negócios, v. 1, n.º 2, (2017), p. 87-106. CARVALHO, Fernando J. Cardim de; SICSÚ, João (orgs), Economia do Desenvolvimento. Teoria e Políticas Keynesianas, Rio de Janeiro, Elsevier, 2008. HABERMAS, Jürgen, La inclusión del outro: estudios de teoría política, Traductor Juan Carlos Velasco Arroyo, Barcelona, Editora Paidós Ibérico, 1999. ROUSSEAU, Jean Jaques, O Contrato Social, Tradução Antonio de Padua Danesi, 36º ed., São Paulo, Martins Fontes, 2002.
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GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO. QUAIS AS ALTERNATIVAS? Diana Sofia Araújo Coutinho1
1. Introdução A nossa investigação tem como objeto o estudo dos desafios e das problemáticas em torno da gestação de substituição. Para o 2.º Encontro de Investigadores em Ciências Jurídicas, optamos por centrar a nossa comunicação nas eventuais alternativas à gestação de substituição pelas razões que passamos a explicar infra. Em primeiro lugar, ponderamos abordar a recente decisão do Tribunal Constitucional (TC): o acórdão n.º 225/2018, de 7 de maio2. O TC veio pronunciar-se no sentido da inconstitucionalidade de algumas normas da lei da gestação de substituição (e da procriação medicamente assistida3). No que concerne à gestação de substituição, a decisão não tem efeitos retroativos em relação aos
1 Curso de Doutoramento em Ciências Jurídicas Privatísticas. Licenciada em Direito pela Escola de Direito da Universidade do Minho (EDUM), Mestre em Direito dos Contratos e das Empresas pela EDUM. Assistente Convidada da EDUM. Investigadora Júnior do JusGov – Centro de Investigação para a Justiça e Governação. 2
Referente ao processo n.º 95/17.
3 Lei n.º 32/2006, de 26/07, com as alterações introduzidas pelas seguintes leis: Lei n.º 58/2017, de 25/07, Lei n.º 25/2016, de 22/08, Lei n.º 17/2016, de 20/06 e Lei n.º 59/2007, de 04/09. Doravante, para designar a lei n.º 32/2006 utilizaremos a expressão lei da PMA.
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processos terapêuticos de contratos já em execução4 (com exceção da inconstitucionalidade invocada quanto ao regime da nulidade previsto no n.º 12 do artigo 8.º)5. O TC não considerou o diploma completo inconstitucional, porém a sua decisão provocou um volte-facena regulamentação e prática da gestação de substituição (e da PMA heteróloga). Vejamos, com a Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto, permitiu-se o acesso à gestação de substituição. Até 2016, tal “método” era expressamente proibido, independentemente da realização a título gratuito ou oneroso, nos termos do anterior art. 8.º da Lei da PMA. Qualquer contrato celebrado era considerado nulo e a filiação constituía-se nos termos gerais do Código Civil (CC), ou seja, a criança era considerada filha da gestante de substituição. A Lei n.º 25/2016 veio permitir o acesso à gestação de substituição em casos de ausência de útero, lesão ou doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher (natural ou com recurso a técnicas de PMA) ou em situações clínicas que o justifiquem (ficando em aberto quais são essas situações…), conforme resulta da atual versão do n.º 2 do art. 8.º da Lei da PMA. Assim, o acesso à gestação de substituição foi admitido apenas com carácter limitado/excecional e os contratos somente podem revestir natureza gratuita (salvo as despesas resultantes do tratamento de saúde). Além disso, a gestante está proibida de ser a dadora6 de gâmetas no procedimento em que é participante. Limitou-se o acesso a casais (heterossexuais ou de mulheres), porquanto é necessário a utilização de material genético de, pelo menos, um dos beneficiários. A criança que venha a nascer será considerada filha dos beneficiários. Por fim, a celebração do contrato de gestação de substituição está dependente de autorização do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) e de audiência prévia da Ordem dos Médicos (ainda que o parecer não seja vinculativo)7. Porém, com a decisão do TC, a aplicação desta regulamentação
4 Na data do acórdão apenas tinham sido aprovados dois pedidos de contratos de gestação de substituição, sendo que apenas em relação a um contrato já estavam em curso os procedimentos terapêuticos. Porém, os tratamentos de fertilidade não resultaram e a “avó” (gestante) não conseguiu engravidar. REIS, Carolina, Não há bebés de ‘barriga de aluguer’, Expresso [Em linha], 09 jun. 2018, [consult.09 jun. 2018], disponível em: http://expresso.sapo.pt/sociedade/2018-06-09-Nao-ha-bebes-de-barriga-dealuguer#gs.Q2mN9no. 5 COUTINHO, Diana, Um parto difícil - Da (in) constitucionalidade da gestação de substituição, Atualidade Jurídica [Em linha], mar. – abr., (2018a), Escola de Direito da Universidade do Minho, p. 1. [consult. 09 jun. 2018], disponível em: https://www.direito.uminho.pt/pt/Sociedade/ PublishingImages/Paginas/AtualidadeJuridica/Um%20parto%20dif%C3%ADcil%20-%20gesta%C3%A7%C3%A3o%20de%20substitui%C3%A7%C3%A3o.pdf. 6 Usamos a expressão dadora (aquela que dá) por ser a adotada na Lei da PMA, sem prejuízo de considerarmos a expressão doadora (aquela que doa) como mais adequada, pois, trata-se de uma doação (e não uma venda) de óvulos. 7 COUTINHO, cit., 2018a, p. 1.
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legal ficou suspensa. Assim, neste momento, não é possível recorrer à gestação de substituição, aguardando-se com expectativa pelas alterações legislativas. Ora, face à limitação dos termos desta comunicação, optamos por não centrar a nossa comunicação na análise do acórdão, pois, a decisão do TC exige um estudo mais profundo, o qual remetemos para a nossa dissertação. Não obstante, e porque consideramos importante e correlacionado com a nossa comunicação, enunciamos – ainda que sucintamente – as principais linhas da decisão do TC. Apesar do impacto da decisão do TC, o diploma completo não foi considerado inconstitucional, aliás, os juízes do TC consideram que a gestação de substituição não é, por si só, atentatória à dignidade da pessoa humana8. Entenderam que a “gestação de substituição nos termos configurados da lei n.º 25/2016, ou seja, a gestação com cariz excecional e gratuito, limitada unicamente às situações previstas na lei, desde que verificado o consentimento dos beneficiários e da gestante, não viola o princípio da dignidade humana (nem da gestante nem da criança), tampouco o dever do Estado de proteção da infância. Ainda assim, consideram que há aspetos da regulamentação legal que violam direitos e princípios fundamentais. Em concreto, os juízes do TC fundamentam a sua decisão em três argumentos principais: a excessiva indeterminação da lei (caso dos n.ºs 4, 10 e 11 do art. 8.º), a ausência do direito ao arrependimento da gestante (restringida à possibilidade de revogação do consentimento prestado pela gestante apenas até ao início dos processos terapêuticos de PMA) e a ausência de concretização do regime de nulidade do contrato de gestação de substituição (n.º 12 do art. 8.º, pois a lei não faz distinção entre os efeitos de um contrato válido e de um contrato nulo)”9. O TC declarou também inconstitucional o anonimato dos dadores e da gestante de substituição10. Em segundo lugar, atendendo à decisão do TC, isto é, sabendo que a porta da gestação de substituição está entreaberta e desconhecendo as futuras alterações à lei, decidimos focar a nossa comunicação no estudo das alternativas à gestação de substituição. Cumpre esclarecer que tal opção não significa que rejeitamos ou somos contra este método de reprodução, tão-só procuramos perceber se existem alternativas e, a existirem, se são alternativas viáveis.
8 Idem, p. 2. 9 Idem, ibidem. 10 Posição contrária à manifestada no acórdão n.º 101/2009. Os juízes do TC consideram que o anonimato restringe em demasia o direito à identidade e ao livre desenvolvimento da criança (nascida por qualquer técnica de PMA heteróloga ou com recurso à gestação de substituição).
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Encontro de Investigadores da Escola de Direito da Universidade do Minho 2018
2. As alternativas 2.1 Considerações prévias Para circunscrever o nosso estudo focamo-nos, essencialmente, no caso do ordenamento jurídico português, ou seja, considerando apenas o recurso à gestação de substituição a título gratuito e pelos motivos elencados no n.º 2 do art. 8.º (já referidos supra)11. A discussão em torno do acesso e admissibilidade à gestação de substituição tem, entre outros, o argumento da existência de alternativas. Mas quais são essas alternativas? Podemos dividir as alternativas em dois grupos, conforme já se possam praticar ou não: as alternativas atuais ou presentes e as alternativas futuras. No 1.º grupo encontramos as técnicas de PMA, o transplante de útero, a adoção e o turismo reprodutivo. No 2.º grupo encontramos a ectogénese (v.g. útero artificial) e outras futuras tecnologias reprodutivas.
2.2 As alternativas atuais ou presentes
a). As técnicas de PMA
No artigo 2.º da Lei da PMA encontramos elencadas as técnicas de PMA: a inseminação artificial, a fertilização in vitro, a injeção intracitoplasmática de espermatozoides, a transferência de embriões, gâmetas ou zigotos e o diagnóstico genético pré-implantação (DGPI). Estas técnicas resultam de muitos anos de investigação científica e tecnológica. Têm como principais objetivos auxiliar o processo de reprodução, ajudar a combater os problemas de infertilidade, permitir a conceção utilizando material genético de dadores, evitar a transmissão de doenças genéticas graves, entre outras. Não é nosso objetivo explicar o funcionamento de cada uma das técnicas- nem é viável nos limites deste artigo-, procuramos unicamente responder à questão principal: são as técnicas de PMA alternativas (viáveis) à gestação de substituição? Em Portugal, as razões que justificam o acesso à gestação de substituição estão relacionadas com problemas de saúde graves que impede a mulher de gerar uma criança mesmo com auxílio às técnicas de PMA. Em muitos casos, antes do recurso à gestação de substituição, se o casal desconhecer a existência de qualquer problema de saúde tentará o recurso à reprodução natural e, subsidiariamente, aos tratamentos de PMA. Tal significa que a gestação de substituição aparece em 11 Com o objetivo de afastar as situações dos ordenamentos jurídicos em que o acesso à gestação de substituição é livre ou com poucas restrições. Nesses casos, os motivos de recurso a este método podem, entre outros, assentar em razões que não são medicamente justificáveis (por exemplo, a beneficiária não querer passar pelo processo de gravidez e parto). Ora, nessas situações, existe uma panóplia de alternativas viáveis à gestação de substituição, desde logo, a reprodução natural.
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último recurso, constituindo a única forma daquele casal ter um filho biológico, depois de esgotadas todas as vias. É certo que o casal pode saber abinitio do problema, por exemplo, imagine-se o caso de uma mulher que nasceu sem útero e automaticamente excluem a hipótese da reprodução natural e da reprodução assistida. Assim, nos termos que a gestação de substituição está pensada para a ordem jurídica portuguesa, as técnicas não constituem uma alternativa. Na verdade, na maioria das vezes, a gestação de substituição é a “única opção”12, pois, os problemas/doenças sofridas pelas beneficiárias são irreversíveis. Tais mulheres, certamente, sonhavam passar pela fase da gravidez e dar à luz o filho. Todavia, tendo a natureza vedado tal possibilidade, resta-lhes recorrer à gestação de substituição. Não se trata de mera dificuldade em engravidar (suprida pelo auxílio das técnicas) ou da inexistência de material genético (suprida pela doação de óvulos, espermatozoides ou embriões) ou de evitar a transmissão de uma doença genética (suprida pelo recurso ao DGPI). Trata-se de um problema de saúde que impede a gestação (v.g. gravidez) no corpo da beneficiária, ao contrário dos demais problemas de infertilidade/saúde em que o processo de gravidez ocorre no corpo da gestante após recurso às técnicas de PMA. Assim, as técnicas de PMA apenas constituirão uma alternativa viável quando o recurso à gestação de substituição não seja justificado por motivos graves de saúde que impeçam, em absoluto, a gestação no corpo da beneficiária.
b). O transplante de útero
A evolução da ciência tornou possível a realização de transplantes de útero. Trata-se de uma prática relativamente recente, realizada em poucos países e com bastantes riscos, precauções médicas e especificidades (atendendo ao fator transplante e ao órgão em causa). Fazendo uma breve resenha histórica dos transplantes de útero13, o primeiro transplante realizou-se na Arábia Saudita em 2000. A paciente transplantada era uma jovem-mulher, de 26 anos, a quem já tinha sido removido o útero (histerectomia) em consequência de uma hemorragia interna. A dadora do útero, com 46 anos, não tinha qualquer relação com a transplantada. O corpo da transplantada aceitou o útero, todavia, três meses depois do transplante surgiram complicações (trombose e necrose dos vasos sanguíneos) que obrigaram à
12 RAPOSO, Vera Lúcia, De Mãe para Mãe – Questões Legais e Éticas Suscitadas pela Maternidade de Substituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 27. 13 WDOWIAK, Anita; FILIP, Michal; ZUZAK, Tomasz; WOŹNIAKOWSKI, Mateusz; KIELAK, Miroslaw A.; WDOWIAK, Artur, Ectogenesis, European Journal of Medical Technologies [Em linha], n.º 3, (2014), p. 2, [consult. 27 dez. 2017], disponível em: http://www.medical-technologies.eu/upload/ectogenesis_-_wdowiak.pdf.
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remoção do útero transplantado (v.g. prolapso uterino)14. Na Turquia, em 2011, foi realizado um transplante uterino a uma jovem de 21 anos que nasceu sem útero15. A dadora era uma jovem em morte cerebral e tinha útero didelfo (v.g. útero duplo). Dezoito meses depois do transplante foram transferidos embriões para o útero da transplantada, mas a gravidez não foi adiante face a abortos espontâneos16. O primeiro transplante uterino bem-sucedido, pois permitiu à transplantada a possibilidade de gerar e dar à luz o seu filho, ocorreu na Suécia em 201517. A transplantada tinha 36 anos e nasceu com ovários saudáveis, mas sem útero. A dadora tinha 61 anos e era uma amiga próxima da família. Antes do transplante os médicos extraíram da futura transplantada os óvulos para posteriormente os fertilizar em laboratório e, um ano após o transplante, foi implantado no útero um embrião. O bebé nasceu prematuro (com 32 semanas), pois a mãe sofria de tensão arterial alta, mas nasceu saudável. Entretanto, já nasceram mais crianças de úteros transplantados (por exemplo, nos EUA)18, inclusive de úteros transplantados de dadoras em morte cerebral (por exemplo, no Brasil)19. Em que casos se justificará e será possível o transplante de útero? O transplante poderá ser uma solução alternativa à gestação de substituição para as mulheres que sofrem de infertilidade provocada por causas uterinas. A gestação de substituição deixaria de ser a “única opção”, apresentando-se como uma nova hipótese para as situações elencadas no ponto anterior. O transplante de útero tem o objetivo de permitir a gestação às mulheres que sofrem de uma causa de infertilidade. No entanto, não é uma alternativa tão simples, suscitando discussão de ordem ética e legal20. Por um lado, existem os riscos inerentes ao processo de transplante quer para a transplantada quer para a dadora. Por outro lado, a gravidez será de alto risco (por exemplo, risco de desenvolvimento de doenças 14 Idem, p. 3 e CARVALHO, Margarida, Transplante uterino [Em linha], Lisboa, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 2016, Dissertação de Mestrado Integrado, p. 10-11, [consult. 09 jun. 2018], disponível em: http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/29022/1/MargaridaTCarvalho.pdf. 15 CARVALHO, cit., p. 18-19. 16 Idem, p. 19. 17 Idem, p. 19-20 18 JORNAL NOTICIAS, Mulher que nasceu sem útero engravidou após transplante, Jornal Noticias online [Em linha], 3 dez. 2017, [consult. 08 jun. 2018], disponível em: https://www.jn.pt/mundo/ interior/mulher-que-recebeu-transplante-de-utero-conseguiu-engravidar-e-dar-a-luz-8960367. html. 19 GLOBO ONLINE, Mulher, que nasceu sem útero, faz transplante e consegue gerar bebê, Globo online [Em linha], 17 dez. 2017, [consult. 08 jun. 2018], disponível em: http://g1.globo.com/ fantastico/noticia/2017/12/mulher-que-nasceu-sem-utero-faz-transplante-e-consegue-gerar-bebe.html. 20 WDOWIAK; FILIP; ZUZAK; WOŹNIAKOWSKI; KIELAK; WDOWIAK, cit.., p. 4.
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hipertensas), sobretudo devido à medicação que a gestante terá de tomar para que o seu corpo não rejeite o transplante21. Assim, o feto está exposto a essa medicação e tem mais probabilidade de nascer prematuro. Apesar disso, como contra-argumento, faz-se a equiparação aos transplantes de outros órgãos, nos quais as gestantes também tomam medicação e têm filhos saudáveis22. Porém, o transplante não é sinónimo de gestação bem-sucedida. Por conseguinte, podemos estar a colocar a mulher numa posição de risco sem a garantia que consiga engravidar. Ao contrário do que acontece com os transplantes dos chamados órgãos vitais (coração, fígado, pulmão, medula etc), cuja finalidade principal é assegurar a sobrevivência da pessoa ou evitar uma lesão grave, no transplante de útero não está em causa a sobrevivência. A mulher pode sobreviver sem útero ou tendo um útero estéril, ficado apenas limitada no exercício dos seus direitos reprodutivos, nomeadamente, não pode engravidar. Assim, levanta-se a questão de saber se este transplante é tão necessário como os demais transplantes e se pode ser equiparado. Por fim, importará saber quem serão as dadoras de útero: pessoas em vida (com os riscos inerentes da submissão a uma cirurgia e recuperação) ou falecidas (não apresenta riscos para a dadora, mas pode ter implicações na qualidade do útero)23, com relação aa recetora ou não, idade, etc. O transplante de útero abre, ainda, a possibilidade de gravidez para os transexuais e, quiçá, também para os homens.
c). A adoção
O instituto jurídico da adoção24 é frequentemente referido como uma alternativa viável à gestação de substituição e é também utilizado como argumento para sustentar a sua proibição25. Nos termos do art. 1974.º do CC, estabelece-se que a “adoção visa realizar o superior interesse da criança e será decretada quando apresente reais vantagens para o adoptando, se funde em motivos legítimos, não envolva sacrifício injusto para os outros filhos do adoptante e seja razoável supor que entre o adoptante e o adoptado se estabelecerá um vínculo semelhante ao da filiação”. Portanto, quando se inicia um processo de adoção a criança já 21 ERTHAL, Maria Cecilia apud VESPA, Alessandra, Transplante de útero: uma oportunidade arriscada, in Vila Mulher [Em linha], [consult. 08 jun. 2018], disponível em: https://vilamulher.uol. com.br/familia/planejamento/transplante-de-utero-oportunidade-arriscada-8-1-52-121.html. 22 Idem, ibidem. 23 CARVALHO, cit., p. 22-23. 24 Sobre adoção crf. COELHO, Francisco Pereira; OLIVEIRA, Guilherme de, Curso de Direito da Família, Tomo I, vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 262-315. 25 COSTA, Marta; LIMA, Catarina Saraiva, A Maternidade de Substituição à Luz dos Direitos Fundamentais de Personalidade, Lusíada - Direito [Em linha], n.º 10, (2012), p. 263, [consult. 20 dez. 2016], disponível em: http://revistas.lis.ulusiada.pt/index.php/ldl/article/view/196/188.
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existe (já nasceu), tendo por algum motivo ficado privada da sua integração e respetivo crescimento no seio da sua família biológica. É dado à criança a possibilidade de crescer num lar saudável, garantindo-se, por exemplo, os direitos constitucionais à família (art. 36.º da CRP) e à infância (art.69.º da CRP). A criança é o elemento essencial do processo de adoção e os seus interesses devem ser protegidos. Assim, proporciona-se a possibilidade da criança crescer em ambiente familiar, junto de pessoas que a pretendem acolher e dar todo o apoio sentimental (e financeiro). Nesta linha de ideias (entre outros motivos), em 2016, alargou-se o acesso à adoção a casais homossexuais26-27. Ora, os motivos, o contexto, a realidade da adoção e da gestação de substituição são distintos. De facto, um dos motivos para recorrer a ambas pode ser comum: realização do direito à constituição de uma família a casais (ou solteiros)28 que não podem, pelos meios naturais ou com recurso à procriação assistida, gerar um filho. Todavia, existem dois aspetos que podem fazer toda a diferença, nomeadamente, para sustentar os motivos e os interesses a proteger em uma ou outra forma: a criança e o vínculo biológico. É que quando se recorre à gestação de substituição, contrariamente à adoção, a criança ainda não nasceu, nem sequer “existe”. No entanto, a gestação de substituição permite que a criança tenha um vínculo biológico29 com pelo menos um dos beneficiários. Assim, concordamos com a posição de Vera Raposo: são formas diferentes de constituição da filiação, cujos interesses a proteger são distintos30. Considerar a adoção como alternativa é colocar um “encargo demasiado oneroso sobre as pessoas que não conseguem procriar de outra forma (e inclusive sobre os casos inférteis e pessoas solteiras que recorrem às técnicas de procriação) em detrimento das pessoas que podem conceber naturalmente”31. No entanto, não negamos em termos absolutos a alternatividade da adoção. Por um lado, quando o recurso à gestação de substituição ocorre apenas pelos motivos enunciados no art. 8.º, n.º 2 da Lei da PMA32 entendemos que não se suscita a alternatividade. Pois, conforme referimos anteriormente, os interes26 Com a promulgação da lei n.º 2/2016, de 29 de fevereiro. 27 MOREIRA, Sónia, Igualdade de género e parentalidade, Scientia Ivridica, n.º 346, tomo LXVII, janeiro/abril, (2018), p. 102-103, 107. 28 No caso da PMA só casais heterossexuais ou casais de mulheres e mulheres solteiras. 29 O que em regra não acontece na adoção. 30 RAPOSO, cit., p. 23-25 31 Idem, p. 23 e COUTINHO, Diana, A constituição de “novas” famílias com recurso à gestação de substituição face ao direito a constituir família, in Paradigmas do Direito Constitucional Actual, Irene M. Portela (dir.), Rubén Miranda Gonçalves; Fábio da Silva Veiga (coords.), Barcelos, Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, 2017, p. 175. 32 Impossibilidade absoluta de gestação natural ou com recurso às técnicas de PMA.
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ses ao direito a constituir família dos beneficiários, o facto de a criança ainda não existir (sem prejuízo da salvaguarda do superior interesse da criança que venha a nascer, mas atendendo a outros parâmetros) não justificam uma alternatividade. Só por opção, livre e voluntária, dos beneficiários podemos aceitar a adoção como alternativa, sob pena de se revelar demasiada limitativa e um encargo desproporcional comparativamente com os casais (e solteiras) que podem procriar naturalmente ou com recurso à PMA. Pelo contrário, parece-nos que a adoção constituirá uma alternativa justificável (e o método correto) quando o recurso à gestação de substituição ocorre sem que se verifique uma causa grave (de levar adiante uma gravidez) ou quando não é utilizado material genético dos beneficiários33-34.
d). O turismo reprodutivo
Entende-se por turismo reprodutivo (ou migrações reprodutivas) a deslocação de casais (heterossexuais ou homossexuais) ou solteiras (os) do seu país de origem (onde a gestação de substituição é proibida ou admitida só em certas circunstâncias) para países onde esta prática é permitida (país de destino). O único intuito desta deslocação é o recurso à gestação de substituição. Trata-se de uma deslocação temporária (daí o termo turismo parecer-nos ser mais adequado) que poderá variar de país para país: em determinadas situações a deslocação ocorre apenas numa fase prévia (antes de se iniciar o processo) para tratamento das burocracias inerentes ao processo (escolher a gestante, estabelecer os termos do contrato, entre outros), regressando o casal ao país de origem (acompanhado a gravidez à distância) e só voltando ao país de destino na reta final da gravidez da gestante/nascimento da criança (podendo permanecer naquele país nos primeiros meses após o nascimento). Noutras circunstâncias, a estadia é mais demorada correspondendo a todo o processo de procriação e gestação. O turismo reprodutivo não é de per si uma técnica ou um método de reprodução, mas sim um modo de o (s) beneficiário (s) conseguir (em) ter (em) um filho fugindo às disposições legais (proibitivas) do país de origem. Trata-se, portanto, de uma prática que poderá constituir uma fraude à lei e que suscita uma série de perigos e receios. Por um lado, fomenta o risco de comercialização e instrumentalização do ser humano (quer da gestante, quer da criança). Normalmente, o país de destino permite o recurso à gestação mediante o pagamento de um preço, tratando-se de um contrato que tem por objeto a gestação de uma criança que será entregue no final do processo. Inerente, tem associado os riscos de objetivação do ser humano, o risco de atentar contra a dignidade da pessoa humana ou a colocação da gestante numa posição de vulnerabilidade. Pense-se 33 Hipóteses não admitidas na ordem jurídica portuguesa, mas admitidas em outras ordens. 34 Idem, p. 25 e COUTINHO, cit., 2017, p. 175-176.
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nos casos em que a gestante é contratada por agentes/empresas ou naqueles países de terceiro mundo, como a India, em que as condições são extremamente deficitárias e a gestante é utilizada como um mero instrumento, vivendo a gravidez sem condições de higiene e segurança e recebe um valor diminuto. Por outro lado, após o nascimento da criança, os beneficiários podem enfrentar vários problemas/dificuldades, por exemplo, ao nível do reconhecimento da filiação e respetivos direitos e obrigações inerentes à parentalidade e ainda um eventual processo-crime.
3. As alternativas futuras
a). A ectogénese
A ectogénese (v.g. útero artificial) não é uma técnica de reprodução atualmente disponível. Porém, investigadores têm-se dedicado ao estudo da gestação fora do corpo humano e já foram realizados alguns testes em animais. Mas em que consistirá esta técnica? Como funcionará? A ectogénese permitirá que todo o processo de reprodução – desde a conceção (fecundação), gestação e nascimento – ocorra em ambiente artificial, fora do corpo humano35. Esta técnica separa dois momentos, até agora inseparáveis, a conceção e a gravidez. Atualmente, as demais técnicas de PMA também permitem a conceção da vida humana fora do corpo da mulher, mas a fase da gravidez ocorre no corpo de uma mulher: o óvulo ou o embrião, após o tratamento de PMA, é colocado no corpo humano (seja a mãe biológica ou não). Pelo contrário, na ectogénese apesar da fase de conceção/fecundação corresponder à reprodução assistida, tal como conhecemos atualmente, a segunda fase – a implantação e gravidez – será totalmente diferente. O embrião será implantado no útero artificial (uma espécie de incubadora). Para que a técnica funcione é necessário que, efetivamente, o útero artificial consiga recriar as condições do útero materno, pois o embrião (futuro feto) precisará de condições para o seu desenvolvimento, alimento, excreção, assim como, o útero precisará de executar as suas funções, a da placenta e do organismo materno36. A noção de ectogénese referida supra corresponde à noção de ectogénese abinitio ou ectogénese stricto sensu. De facto, esta técnica desdobra-se em duas componentes ou tipos. Além da ectogénese stricto sensu poderá existir o útero artificial tardio ou complemen35 Para um estudo mais aprofundado crf. COUTINHO, Diana, O “futuro” da tecnologia reprodutiva: o útero artificial, in Direito na Lusofonia: Direito e novas tecnologias, Braga, EDUM/JusGov, 2018b, p. 53-61 e ATLAN, Henri, O útero artificial, Ana M. André (trad.), [S.I], Lisboa, Instituto Piaget, 2007. 36 ATLAN, cit., p. 27; 37.
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tar. Neste caso, a gravidez inicia-se no corpo de uma mulher, tendo a fecundação ocorrido naturalmente ou com recurso às técnicas de PMA37. Porém, quando por algum motivo grave (por exemplo, problema do feto ou da gestante) se revelar necessário proceder à remoção do feto, este será transferido para o útero artificial. Um dos objetivos do útero artificial, em particular da ectogénese tardia, é ajudar a salvar bebés prematuros, permitindo que consigam sobreviver (sem quaisquer sequelas ou danos) fora do corpo materno, em ambiente artificial, até completar o período necessário para o nascimento. A configuração da ectogénese como alternativa à gestação de substituição dependerá de vários fatores e não está isenta de perigos. Por um lado, é necessário o efetivo progresso da ciência para que a mesma se torne uma realidade. Dos Estados Unidos da América38 chegam notícias da possibilidade de se começarem a realizar testes em seres humanos no período de três anos. Por outro lado, são inúmeros os perigos associados a esta técnica, assim como as “dificuldades” ou limites de ordem moral, ética e jurídica sobre as quais não temos oportunidade de nos pronunciar neste artigo. Realçamos, todavia, que “cientifica e tecnologicamente a criação de um útero artificial viável se tornará possível. Apontamos uma utilização inicial do útero artificial como complemento do processo de gestação natural, quer pela finalidade associada (salvar bebés prematuros), quer por provocar menos conflitos ético-jurídicos. Maiores dúvidas e reticências suscita-nos o recurso ao útero artificial abinitio. Para o Direito, mais do que saber se será científica e tecnologicamente possível esta forma de reprodução, interessa saber se será legítimo criar um útero artificial e se atentará contra princípios e direitos fundamentais”39.
b). Outras tecnologias reprodutivas
A evolução da ciência e da tecnologia poderá levar ao aparecimento de novas técnicas de PMA que possam, porventura, constituir uma alternativa viável à gestação de substituição. O futuro o dirá.
4. Conclusões finais Os desafios e problemáticas em torno da gestação de substituição estão longe de terminar e de se tornarem consensuais. Conforme fomos discutindo, nem todas as hipóteses apresentadas constituem alternativas viáveis à gestação 37 COUTINHO, cit., 2018b, p. 56. 38 COUZIN-FRANKEL, Jennifer, Fluid-filled ‘biobag’ allows premature lambs to develop outside the womb, Science, [Em linha], [consult. 06 fev. 2018], disponível em: http://www.sciencemag. org/news/2017/04/fluid-filled-biobag-allows-premature-lambs-develop-outside-womb. 39 COUTINHO, cit., 2018b, p. 61.
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de substituição e algumas nem sequer podem ser consideradas como tal. Aguardamos, com expetativa, as alterações legislativas para limar arestas sobre esta questão e perceber efetivamente se existem alternativas viáveis. Aguardamos, também, a evolução e contribuição da ciência nesta matéria, sem esquecer que a ciência não se pode legitimar a si própria e o direito tem uma palavra a dizer.
Referências bibliográficas ATLAN, Henri, O útero artificial, Ana M. André (trad.), [S.I], Lisboa, Instituto Piaget, 2007. CARVALHO, Margarida, Transplante uterino, [Em linha], Lisboa, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 2016, Dissertação de Mestrado Integrado, [consult. 09 jun. 2018], disponível em: http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/29022/1/MargaridaTCarvalho.pdf. COSTA, Marta; LIMA, Catarina Saraiva, A Maternidade de Substituição à Luz dos Direitos Fundamentais de Personalidade, Lusíada - Direito [Em linha], n.º 10, (2012), p. 237 – 289, [consult. 20 dez. 2016], disponível em: http://revistas. lis.ulusiada.pt/index.php/ldl/article/view/196/188. COUTINHO, Diana, A constituição de “novas” famílias com recurso à gestação de substituição face ao direito a constituir família, in Paradigmas do Direito Constitucional Actual, Irene M. Portela (dir.), Rubén Miranda Gonçalves; Fábio da Silva Veiga (coords.), Barcelos, Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, 2017. COUTINHO, Diana, Um parto difícil - Da (in) constitucionalidade da gestação de substituição, Atualidade Jurídica [Em linha], Mar. – Abr., (2018a), Escola de Direito da Universidade do Minho, [consult. 09 jun. 2018], disponível em: https://www.direito.uminho.pt/pt/Sociedade/PublishingImages/Paginas/AtualidadeJuridica/Um%20parto%20dif%C3%ADcil%20-%20gesta%C3%A7%C3%A3o%20de%20substitui%C3%A7%C3%A3o.pdf. COUTINHO, Diana, O “futuro” da tecnologia reprodutiva: o útero artificial, in Direito na Lusofonia: Direito e novas tecnologias, Braga, EDUM/JusGov, 2018b. COUZIN-FRANKEL, Jennifer, Fluid-filled ‘biobag’ allows premature lambs to develop outside the womb, Science [Em linha], [consult. 06 fev. 2018], disponível em: http://www.sciencemag.org/news/2017/04/fluid-filled-biobag-allows-premature-lambs-develop-outside-womb.
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MOREIRA, Sónia, Igualdade de género e parentalidade, Scientia Ivridica, n.º 346, tomo LXVII, janeiro/abril, (2018), p. 89-110. COELHO, Francisco Pereira; OLIVEIRA, Guilherme de, Curso de Direito da Família, Tomo I, vol. III, Coimbra, Coimbra Editora, 2006. RAPOSO, Vera Lúcia, De Mãe para Mãe – Questões Legais e Éticas Suscitadas pela Maternidade de Substituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2005. WDOWIAK, Anita; FILIP, Michal; ZUZAK, Tomasz; WOŹNIAKOWSKI, Mateusz; KIELAK, Miroslaw A.; WDOWIAK, Artur, Ectogenesis, European Journal of Medical Technologies [Em linha], n.º 3, (2014), p. 1-5 [consult. 27 dez. 2017], disponível em: http://www.medical-technologies.eu/upload/ectogenesis_-_wdowiak.pdf.
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MEIOS ALTERNATIVOS E EFICIENTES DE RESOLUÇÃO DE LITÍGIOS QUE ENVOLVEM CRÉDITOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PORTUGUESA: EM QUE MEDIDA PODEM SER TRANSPLANTADOS AO BRASIL? Ines Querubina Ceni1
Minha pesquisa de doutoramento é sobre os meios alternativos de recuperação extrajudicial de crédito da administração pública e sua efetividade, comparando os ordenamentos jurídicos brasileiro, português e espanhol. Interessa-me neste contexto estudar os meios processuais alternativos que a Administração Pública2 tem lançado mão para cobrar os seus créditos, sob o viés de sua eficiência, na fase que antecede a propositura de demanda judicial. O texto ora apresentado corresponde a um dos desdobramentos da pesquisa do doutoramento, visto que se reflete sobre o direito português, apenas. Diante da crise do Direito e do Estado no período pós-moderno, percebe-se que o modelo espontâneo e emocionalmente regulativos do Direito pas1 Doutoranda em Ciências Jurídicas, área de especialização em Ciências Jurídicas Públicas, pela Universidade do Minho (Portugal). Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI (Brasil). Procuradora Federal com atuação na ENAC/PGF - Advocacia-Geral da União (Brasil). 2 Esclarece-se que o termo é utilizado para referir-se apenas ao Poder Executivo.
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sam a ganhar espaço, substituindo o critério racionalizador da ordem social3. É a fase de transição paradigmática, cuja transformação vem afetando a organização política, social e econômica do Estado, dando espaço para o surgimento de um novo modelo, em que o Estado passa a ser um fiscalizador4. Os problemas oriundos do Estado moderno não comportam mais solução pelas instituições jurisdicionais tradicionais, dado o crescente aumento de judicialização, cuja provocação se dá essencialmente pelo poder legiferante e desordenado do Estado5. O Poder Executivo também colabora com esse quadro, eis que o incremento do número de conflitos com a Administração Pública tem relação direta com a incapacidade do Estado ser eficiente na gestão dos interesses postos em jogo. A insuficiência das instituições modernas, entre as quais a via judiciária6-7, deu margem para a (re)introdução de técnicas de resolução de litígios que venham a somar esforços na luta pela diminuição do conflito. Esse tema é atual, de grande relevância e tem sido debatido academicamente, entre os operadores do direito, pelos governos e órgãos multinacionais. Os meios alternativos de resolução de litígio são opções colocadas ao administrado como forma desburocratizada de resolver ou evitar o litígio com a Administração Pública. São tidos por alternativos por escaparem à via judicial tradicional8 e podem acontecer tanto durante o trâmite do processo administrativo (tributário e não tributário) quanto após, mas antes da promoção da ação judicial. Para a primeira hipótese (durante o processo administrativo), fala-se em mecanismos como impugnação, recursos, reclamações administrativas e precedentes administrativos; já no segundo sentido (após o processo administrativo), a doutrina apresenta instru3 ROCHA, Joaquim Freitas da, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 6ª ed., Coimbra, Coimbra, 2018, p. 459, nota de rodapé nº 950. 4 FIGUEIRAS, Cláudia Sofia Melo, Arbitragem em matéria tributária: à semelhança do modelo administrativo? Braga, Universidade do Minho, 2012, Dissertação de Mestrado, p. 33-36. 5 FIGUEIRAS, cit., p. 33-36. 6 SOUZA, Luciane Moessa de, Resolução de conflitos envolvendo o poder público: caminhos para uma consensualidade responsável e eficaz, in Direito Administrativo: transformações e tendência, Tiago Marrara (org), São Paulo, Almedina, 2014, p. 453-466. 7 A Espanha, a título de exemplo, apresenta um problema crônico de litigiosidade na área tributária de difícil, senão impossível, solução com os sistemas convencionais que se aplicam até o momento. Se no ano 1988 havia 235.310 expedientes aguardando solução, em 2014 baixou para 190.000 assuntos pendentes acumulados para o conjunto de tribunais econômico administrativos da Espanha. Cfr. ALONSO GONZÁLES, Luis Manuel (dir.); ANDRÉS AUCEJO, Eva (dir.), Resolución alternativa de conflictos (ADR) em derecho tributário comparado, Madrid, Marcial Pons, 2017, p. 401-407. 8 V. FIGUEIRAS, Cláudia Sofia Melo, Justiça Tributária: prevenção e resolução alternativa de litígios, Coimbra, Almedina, 2018, p. 19-20.
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Meios alternativos e eficientes de resolução de litígios que envolvem créditos da Administração Pública portuguesa: em que medida podem ser transplantados ao Brasil?
mentos como a mediação9, a conciliação10, a transação11, a arbitragem12, o protesto extrajudicial13. Especificamente no campo do direito tributário, Joaquim Freitas da Rocha entende que os meios alternativos de resolução de litígios, podem 9 Vanessa Batista, a partir de sua dissertação de mestrado, traz uma importante contribuição ao mundo acadêmico ao confrontar a mediação em Portugal com a aplicação da mediação no Canadá, mais especificamente sobre a execução dos acordos obtidos pelas partes. No seu modo de ver “(...) A mediação apresenta-se ´como um meio de resolver os litígios de forma mais célere, económica e eficaz, de promover a paz social e de descongestionar os tribunais, contribuindo, deste modo, para a melhoria do acesso à justiça`”. Cf. BATISTA, Vanessa, Estudo comparativo da mediação em Portugal e no Canadá: a execução dos acordos de mediação, Coimbra, Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra, 2016, Dissertação de Mestrado, p. 03. 10 A mediação e conciliação com a Administração Pública, implementadas no Brasil com a Lei n. 13.140/2015, é percebida com pouca flexibilização do legislador na medida em que não permite um verdadeiro diálogo entre os envolvidos. JESUS, Marcela do Amaral Barreto de, Mediação e conciliação no âmbito da jurisdição administrativa no Brasil, Revista CEJ, Ano XXI, nº. 71 (2017), p. 47-53. [consult. 11 jan. 2019], disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_informativo/bibli_inf_2006/Rev-CEJ_n.71.05.pdf. Importante os esclarecimentos trazidos sobre a mediação no direito espanhol: ainda que prevista na Lei da Jurisdição Contenciosa Administrativa espanhola, não se chegou a fazer uso dela na prática. Assegura-se que em termos de resolução alternativa de conflito na área tributária, o melhor caminho é guiar-se pelos paradigmas de países que optaram pelo ADR, citando-se os exemplos da Austrália, Reino Unido, Holanda, Bélgica, Itália. Sugere-se a implantação de ADR´s na área tributária em determinadas causas (por exemplo, específicos para determinados casos e específicos para grandes empresas, tal como ocorre nos EUA e Grã Bretanha), medida que resultaria na celeridade, diminuição de custos, justiça tributária e sobretudo deixaria a tutela jurisdicional efetiva para os casos que realmente a requer. ALONSO GONZÁLES; ANDRÉS AUCEJO, cit., p. 401-436. 11 A transação corresponde a um “(...) Negócio jurídico bilateral, em que duas ou mais pessoas acordam em concessões recíprocas, com o propósito de pôr termo a controvérsia sobre determinada, ou determinadas relações jurídicas, seu conteúdo, extensão, validade ou eficácia”. Cfr. MIRANDA, Pontes de, Tratado de direito privado, Campinas, Bookseller, 2003, Tomo 25, p. 151. 12 “(...) A arbitragem pode ser conceituada como “um meio de resolução jurisdicional de litígios, alternativo aos Tribunais do Estado, em que um terceiro imparcial, árbitro, põe termo ao conflito e cuja decisão tem força de caso julgado e executiva”. O ordenamento jurídico português admite a arbitragem tanto no Direito Administrativo como Tributário. Especificamente quanto à arbitragem tributária, que encontra previsão no ordenamento jurídico português (Decreto-Lei 10/2011 de 20 de janeiro), concebe-se que ainda que tenha um caráter embrionário, traduz-se numa realidade mais ampla e arrojada em comparação aos sistemas dos E.U.A e da Venezuela. FIGUEIRAS, cit., 2012, p. 207-209. 13 O protesto extrajudicial possui o viés de recuperar o crédito extrajudicialmente, ao custo mínimo do erário. No Brasil, a partir da Lei n. 12.767, de 2012, foi incluído o parágrafo único, no art. 1º, da Lei n. 9.492, de 10 de setembro de 1997, que possibilita que o protesto “ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida” (Art. 1º, caput), realizado privativamente ao Tabelião de Protesto de Títulos (Art. 1º), ocorra também em relação às certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas. V. Lei nº 9.492 de 10 de setembro de 1997 (11/09/1997), na página do Planalto, disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9492.htm.
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ser: (i) preventivos, visto que ocorrem antes do surgimento de um conflito entre o sujeito ativo e passivo da relação obrigacional (fala-se em “acordos prévios”, previsto no art.º 138º, do CIRC; em acordos coletivos fiscais, art. 92º da Ley General Tributaria espanhola); e (ii) sucessivos, ocorrem após o conflito ter ocorrido, mas no decorrer do processo em curso (a exemplo da transação pré-judicial, arts. 156º, III, e art. 171º do Código Tributário Nacional brasileiro); ou após a sua conclusão (nos casos de transação para-judicial, arbitragem e mediação tributárias), de todo o modo, ocorrem antes da ida do processo ao tribunal14. Esse tema – meios alternativos de resolução de litígios – encontra-se no centro do debate do ordenamento jurídico tributário português15. Diz-se que até há pouco tempo atrás não se mostrou arrojado o Direito português no estabelecimento de formas alternativas de resolução da litigiosidade tributária, percebendo-se vigentes, nesse vértice, institutos como “comissões de perito” e “previsão de acordos prévios sobre preço de transferência”. Entretanto, esse quadro mudou com a introdução da arbitragem em matéria tributária16. Observa-se que foi crescente a opção pela via da arbitragem para solução de litígio na área tributária e que houve aumento da arrecadação desde que criado o instituto (DL 10/2011): de 2011 a 2017 foram recebidos 3.600 processos envolvendo 840 milhões de euros; sendo que somente no ano de 2017, deram entrada 696 litígios, no valor total de 228,5 milhões de euro, sendo julgados 650 processos, no valor global de 170 milhões de euros. A busca pela arbitragem se deve à qualidade das decisões e dos árbitros e à celeridade das sentenças, que demoram cerca de 4,5 meses a serem proferidas17. Pouco se localizou nas bibliotecas consultadas, notadamente virtuais, acerca de estudos sobre os créditos não tributários do ente público e a aplicabilidade dos meios alternativos de sua resolução; já no que concerne ao crédito tributário, a quantidade de material até então localizada é considerável. O que se percebe, nas obras acessadas, é a existência de um debate acerca da constitucionalidade da aplicabilidade dos meios alternativos de resolução de litígio em ambas as searas. A dificuldade de transacionar no direito administrativo reside no fato de que se pensa que o interesse público deve ser defendido e, portanto, não podem ser objeto de transação, entretanto, Arana e Navarro Ortega enten14 ROCHA, cit., 2018, p. 463-468. 15 ROCHA, Joaquim Freitas da, A justiça tributária como obstáculo à internacionalização, in Internacionalização e tributação: XV Jornadas Fiscais, Manuel Pires; Rita Sofia Martins Calçada Pires (coords), Lisboa, Edições Universidade Lusíada, 2012, [consult. 1 out. 2017], disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/38591. 16 ROCHA, cit., 2018, p. 469-470. 17 MIRANDA, Elisabete, Arbritragem tributária bate novo recorde em 2017, Jornal de Negócios, 08 jan. (2018), [consult. 11 jan 2019], disponível em: https://www.jornaldenegocios.pt/economia/ impostos/detalhe/arbitragem-tributaria-bate-novo-recorde-em-2017?ref=DET_relacionadas
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Meios alternativos e eficientes de resolução de litígios que envolvem créditos da Administração Pública portuguesa: em que medida podem ser transplantados ao Brasil?
dem que é preciso ponderar que a agilidade e a eficácia na resolução de conflitos também devem ser pensadas como interesse público a defender e a proteger18. No campo do direito tributário aponta-se que os limites da aplicação dessas vias alternativas decorrem basicamente dos princípios da reserva da função jurisdicional, da legalidade e da indisponibilidade do crédito tributário, cujos paradigmas podem ser superados, segundo Joaquim Freitas da Rocha, visto que tais princípios não são absolutos e devem ser lidos em consonância com os princípios da eficiência, da celeridade da atuação administrativa e da igualdade (justiça) tributária19. O objetivo da pesquisa é estudar o sistema jurídico-administrativo-tributário de Portugal20, especialmente em termos de soluções alternativas de litígios que envolvem créditos do ente público - tributários e não tributários-, e com isso obter elementos para avaliar em que medida esses meios alternativos, extrajudiciais, aplicados em Portugal podem ser transplantados ao Brasil21. Também se pretende fazer incursões nos ordenamentos jurídicos de outros países que
18 ARANA, Estanislao; NAVARRO ORTEGA, Asensio, La solución extrajudicial de conflitos en el derecho administrativo: especial referencia al arbitraje, in Tratado de mediación em la resolución de conflitos, Antonio M. Lozan Martin (dir.); Guilhermo Orozco Pardo (dir.); José Luis Monereo Perez (coord.); Rosa M. Gonzáles Patto (coord.), Madrid, Tecnos, 2015, p. 473-491. 19 ROCHA, cit., 2018, p. 458-463. 20 O ordenamento jurídico português aderiu ao sistema dual: parte do processo administrativo tramita na via administrativa e outra, na via Judicial. Já o Direito brasileiro aderiu ao sistema de controle anglo-americano de Administração Pública, o que remete à existência de uma unidade jurisdicional, com previsão constitucional da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV); pode-se dizer que existe o contencioso administrativo, não como um Tribunal Administrativo, mas como instância administrativa para a solução de interesses entre órgãos e entidades da Administração Pública Federal, bem como entre esses e a Administração Pública dos Estados, do Distrito Federal, e dos Municípios. Cfr. MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva, A processualização do Direito Administrativo, in Direito Administrativo: transformações e tendências, Thiago Marrara (org.), São Paulo, Almedina, 2014, Parte VI, p. 267-305. 21 O método comparado do Direito identifica importante fonte de desenvolvimento jurídico nos chamados “transplantes jurídicos”, metáfora que identifica o processo de transposição orgânica de dispositivos legais de um ordenamento jurídico para o outro. V. WATSON, Alan, Legal Transplants: An approach to comparative law, 2ª. ed., Athens, University of Georgia, 1993. No campo dos sistemas administrativos dos vários países, entende-se por complexo o estudo do direito comparado, haja vista que os ordenamentos jurídicos não contemplam um código administrativo, mas essencialmente, leis esparsas. Cfr. RIVERO, Jean, Curso de direito administrativo comparado, J. Cretella Jr. (trad.), 2ª ed., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2004.
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se mostrem mais avançados nesse campo22, o que virá a agregar mais valor ao estudo. A escolha por esse estudo comparado provém da sua relevância para o ordenamento jurídico brasileiro. No Brasil, o poder público é parte em mais da metade dos processos judiciais em curso no país23, mesmo diante da orientação do Conselho Nacional de Justiça, no sentido de fomentar a resolução consensual de conflitos na esfera pública24. O que se percebe é uma atuação extremamente tímida do poder público brasileiro em relação às vias alternativas de soluções de litígios que envolvam o crédito público e a sua recuperação. Esse panorama me mobiliza a pesquisar os meios alternativos de resolução de conflitos do processo administrativo (tributário e não tributário) e a investigar o nível de sua eficiência. Para tanto, primeiramente, venho desenvolvendo um levantamento bibliográfico e jurisprudencial que contempla as várias espécies de créditos de natureza tributária e não tributária, em que a Administração Pública é titular. O questionamento que esta pesquisa traz é sobre as formas alternativas de resolução de litígios que envolvem os créditos da Administração Pública; a eficiência dessas medidas alternativas frente à tradicional via judiciária que se opera pela ação executiva fiscal ou outras ações judiciais de cobrança; as discussões jurídicas travadas em torno dessas medidas alternativas, especialmente sob o prisma de sua constitucionalidade. 22 A experiência, por exemplo, norte-americana, com vasta e eficaz utilização dos mecanismos alternativos de solução de conflitos (ADR´s), reflete uma realidade que pode auxiliar a consolidação desses mecanismos em outros países. Sobre os meios alternativos de ADR´s, confira-se: SALES, Lília Maia de Morais; SOUSA, Mariana Almeida de, A mediação e os ADR’s (alternative dispute resolutions) - a experiência norte-americana, Revista Novos Estudos Jurídicos, vol. 19, nº 2, (2014), p. 377-399, [consult. 9 jul. 2017], disponível em: https://siaiweb06.univali.br/seer/ index.php/nej/issue/view/285. 23 Em termos de execuções fiscais em andamento, segundo estudos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2016, “(...) 51% das 79 milhões de ações em acervo são de execução. E 75% delas são execuções fiscais. Ou seja, o Brasil tem hoje 40,6 milhões de execuções pendentes de ´baixa`, das quais 30,4 milhões são fiscais. O resultado é uma taxa de congestionamento no Judiciário de 73% em 2016. Isso quer dizer que, de cada 100 ações, a Justiça só consegue ´dar baixa` em 27. No caso das execuções fiscais, essa taxa de congestionamento é de 91%. De acordo com o CNJ, se não existissem execuções fiscais, a média nacional de congestionamento cairia para 65% (...). Já na Justiça Federal, por exemplo, onde correm as execuções fiscais da União, elas representam 49% do total de ações pendentes. Mas é lá que está o maior congestionamento, de 95%. Ou seja, de cada 100 processos de execução fiscal, apenas cinco são baixados”. CANÁRIO, Pedro, Execuções fiscais são dois terços das execuções pendentes de julgamento, Consultor Jurídico, 4 set. (2017), [consult. 09 jun. 2017], disponível em: URL: https://www.conjur.com.br/2017-set-04/ execucoes-fiscais-sao-dois-tercos-execucoes-pendentes-cnj. 24 Sobre a normativa do CNJ que incentiva a aplicação dos meios alternativos de solução de litígios, v. Resolução nº 125 de 29/11/2010, disponível em: http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=2579.
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Meios alternativos e eficientes de resolução de litígios que envolvem créditos da Administração Pública portuguesa: em que medida podem ser transplantados ao Brasil?
Note-se que, a partir das questões esboçadas, emerge uma pesquisa de natureza teórica, cuja metodologia se funda em revisão bibliográfica dos conceitos explanados, na análise de jurisprudências e da legislação que envolve a matéria. Estuda-se, ainda, a viabilidade e a pertinência de realizar coleta de dados junto ao Tribunal Administrativo e ao Centro de Arbitragem Administrativa de Portugal. A pesquisa se encontra sem resultados e conclusões conhecidos, por se tratar de um trabalho em fase inicial.
Referências bibliográficas ALONSO GONZÁLES, Luis Manuel; ANDRÉS AUCEJO, Eva (dir.), Resolución alternativa de conflictos (ADR) em derecho tributário comparado, Madrid, Marcial Pons, 2017. ARANA, Estanislao; NAVARRO ORTEGA, Asensio, La solución extrajudicial de conflitos en el derecho administrativo: especial referencia al arbitraje, in Tratado de mediación em la resolución de conflitos, Antonio M. Lozan Martin (dir.); Guilhermo Orozco Pardo (dir.); José Luis Monereo Perez (coord.); Rosa M. Gonzáles Patto (coord.), Madrid, Tecnos, 2015. BATISTA, Vanessa, Estudo comparativo da mediação em Portugal e no Canadá: a execução dos acordos de mediação, Coimbra, Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra, 2016, Dissertação de Mestrado. CANÁRIO, Pedro, Execuções fiscais são dois terços das execuções pendentes de julgamento, Consultor Jurídico, 4 set. (2017), [consult. 09 jun. 2017], disponível em: URL: https://www.conjur.com.br/2017-set-04/execucoes-fiscais-sao-dois-tercos-execucoes-pendentes-cnj. FIGUEIRAS, Cláudia Sofia Melo, Arbitragem em matéria tributária: à semelhança do modelo administrativo? Braga, Universidade do Minho, 2012, Dissertação de Mestrado. _______________, Justiça Tributária: prevenção e resolução alternativa de litígios, Coimbra, Almedina, 2018. JESUS, Marcela do Amaral Barreto de, Mediação e conciliação no âmbito da jurisdição administrativa no Brasil, Revista CEJ, Ano XXI, nº. 71 (2017), p. 4753, [consult. 11 jan. 2019], disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/ portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/ bibli_informativo/bibli_inf_2006/Rev-CEJ_n.71.05.pdf.
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MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva, A processualização do Direito Administrativo, in Direito Administrativo: transformações e tendências, Thiago Marrara (org.), São Paulo, Almedina, 2014, Parte VI. MIRANDA, Elisabete, Arbritragem tributária bate novo recorde em 2017, Jornal de Negócios, 08 jan. (2018), [consult. 11 jan 2019], disponível em: https://www.jornaldenegocios.pt/economia/impostos/detalhe/arbitragem-tributaria-bate-novo-recorde-em-2017?ref=DET_relacionadas MIRANDA, Pontes de, Tratado de direito privado, Campinas, Bookseller, 2003, Tomo 25. RIVERO, Jean, Curso de direito administrativo comparado, J. Cretella Jr. (trad.), 2ª ed., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2004. ROCHA, Joaquim Freitas da, A justiça tributária como obstáculo à internacionalização, in Internacionalização e tributação: XV Jornadas Fiscais, Manuel Pires; Rita Sofia Martins Calçada Pires (coords), Lisboa, Edições Universidade Lusíada, 2012, [consult. 1 out. 2017], disponível em: http://repositorium.sdum. uminho.pt/handle/1822/38591. ROCHA, Joaquim Freitas da, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 6ª ed., Coimbra, Coimbra, 2018. SALES, Lília Maia de Morais; SOUSA, Mariana Almeida de, A mediação e os ADR’s (alternative dispute resolutions) - a experiência norte-americana, Revista Novos Estudos Jurídicos, vol. 19, nº 2, (2014), p. 377-399 [consult. 9 jul. 2017], disponível em: https://siaiweb06.univali.br/seer/index.php/nej/issue/view/285. SOUZA, Luciane Moessa de, Resolução de conflitos envolvendo o poder público: caminhos para uma consensualidade responsável e eficaz, in Direito Administrativo: transformações e tendência, Tiago Marrara (org), São Paulo, Almedina, 2014. WATSON, Alan, Legal Transplants: An approach to comparative law, 2ª. ed., Athens, University of Georgia, 1993.
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O CONSTITUCIONALISMO PARA O SÉCULO XXI Larissa A. Coelho1
1. Introdução Na sequência do questionamento sobre os caminhos a serem seguidos pela Constituição no cenário pós-moderno que foi tema de nossa intervenção no Encontro de Investigadores de 2017, apresentamos as inquietações que se fizeram a seguir, possibilitando o desenvolvimento das pesquisas empregues no âmbito do curso de doutoramento. Dedicando-nos à percepção das alterações ao paradigma da teoria da constituição em razão do emergente constitucionalismo global, confrontamo-nos com os estudos desenvolvidos por Gomes Canotilho que afirma não existir hoje “[…] uma situação clássica em sede da teoria da Constituição”, entendendo-se por “[…] situação clássica aquela em que se verifica o acordo duradouro em termos de categorias teóricas, aparelhos conceituais e métodos de conhecimento”. Instabilidade essa que decorre de uma “[…] divergência profunda quer quanto aos problemas constitucionais da contemporaneidade quer quanto às respostas dadas a esses problemas […]”2. 1 Doutoranda em Ciências Jurídicas Públicas na Universidade do Minho. Investigadora no Centro de Investigação em Justiça e Governação. A versão original deste artigo intitulado “Prospectos da teoria da constituição para o século XXI: ensaios de uma resposta” foi apresentada no 1er Colloque International Droit et Développment – CIRDOIT: les défis globaux pour le droit contemporain, realizado no dia 24 de maio de 2018, pela École de Droit de la Sorbonne, na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, Paris, França. 2 CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, p. 1333 (negrito no original).
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Encontro de Investigadores da Escola de Direito da Universidade do Minho 2018
No entanto, identificando a existência de uma relação entre os problemas constitucionais contemporâneos e os fatores impulsionadores da globalização, diversas correntes doutrinárias têm apontado possíveis respostas, por via de um diálogo ou entrelaçamento de soluções não apenas em um nível local, mas numa componente global o que tem impulsionado a doutrina a questionar qual a teoria da constituição que se adequa à realidade atual. Deste modo, nos guiaremos pela questão levantada pela doutrina, ensaiando uma possível resposta sobre a tendência do constitucionalismo para o século XXI3. Embora não tenhamos a pretensão de pacificar em definitivo o conflito, pretendemos antes observar sob óticas distintas a relação entre a teoria da constituição e a globalização, identificando as principais doutrinas que atualmente se encontram em desenvolvimento. A metodologia de pesquisa aplicada ao estudo corresponde aos métodos jurídico-sociológico e indutivo4.
2. Discussão Ao longo da evolução histórica do constitucionalismo, a teoria da constituição esteve relacionada a dois paradigmas. O primeiro relacionado à noção de poder constituinte e de soberania nacional, passando a ser considerado o new beginning do período revolucionário oitocentista. Nessa primeira fase o constitucionalismo discursa em prol da necessidade de limitação e controle do poder5. O segundo paradigma, desenvolve-se no período do pós-segunda guerra, devendo ser observado sob uma vertente institucional e doutrinal. Na primeira, verificamos o surgimento e afirmação dos tribunais constitucionais; ao passo que na segunda, está em causa o desenvolvimento doutrinário da proteção dos direitos humanos e fundamentais6. Embora os catálogos de direitos e os problemas a esses associados já estivessem presentes na primeira fase do constitucionalismo, através dos textos americano (1776) e francês (1789), será apenas com o pós-guerra que o seu processo de internacionalização se instaura, ampliando con3 THORNHILL, Chris, A Sociology of Transnational Constitutions, Cambridge, Cambridge University Press, 2016, p. 32, [consult. 23 mai. 2018], disponível em: http://dx.doi.org/10.1017/ CBO9781139833905. Também têm se debruçado sobre os questionamentos a respeito da teoria da constituição para o século XXI a doutrina portuguesa, em que destacamos o trabalho de SILVEIRA, Alessandra, Do dirigismo constitucional à interconstitucionalidade “com cheirinho de alecrim” (a propósito da projeção externa da CRP de 1976 na CF de 1988), in Nos 40 anos da Constituição, Jorge Miranda (ed.), Lisboa, AAFDL Editora, 2017. 4 GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca, (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática, 3ª ed., rev. e atual., Belo Horizonte, Del Rey, 2010, p. 22-23. 5 THORNHILL, cit., p. 33. 6 TUSHNET, Mark, The Inevitable Globalization of Constitutional Law, Harvard Public Law Working Paper, n.º 09-06, December 18, (2008), p. 1-2, [consult. 23 mai. 2018], disponível em: http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1317766.
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sequentemente uma conscientização por parte da sociedade para os problemas advindos destes, desencadeando o que Mark Tushnet, designa de globalização do direito constitucional7. Neste contexto e através de uma lenta progressão, o direito internacional dos direitos humanos passa a ter primazia em detrimento do direito constitucional nacional, promovendo uma transformação na teoria da constituição, visto que uma das consequências diretas deste fenômeno foi o contributo para uma redução significativa do conceito de soberania e posteriormente para a limitação da autonomia do Estado-Nação8. Com vista a sistematizar essas alterações, a doutrina chama à atenção para a observação do que considera como sendo duas correntes, designadas pela literatura norte-americana de processos top-down e bottom-up. A primeira apresenta-se através da influência transnacional que passam a ter: a) as sentenças dos tribunais ou cortes constitucionais, difundidas tanto pela publicitação das sentenças em si, quanto por meio das obras acadêmicas; b) os tratados internacionais e o aparecimento de atores transnacionais como os tribunais transnacionais, a exemplo do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que passam a influenciar os quadrantes nacionais através da transposição e adoção de suas diretrizes e c) a proliferação de organizações não governamentais (ONG´s), litigantes em matéria de direitos humanos, que contribuem para a construção de um entendimento uniforme e universalizado, cuja intervenção muitas vezes ocorre como uma espécie de “[…] constitutional advice giving […]”9. O segundo processo – bottom up – advém da conexão entre constitucionalismo e globalização. Contudo, o termo globalização deve ser entendido não apenas na sua perspectiva economicista, mas como um processo de interconexão e interação entre pessoas e nações promovidas através do desenvolvimento dos transportes, comunicações, turismo, migrações, informações, avanços
7 TUSHNET, cit., p. 3 e ss. No mesmo sentido do pensamento de Tushnet, Chris Thornhill afirma que “[t]he post-1945 period saw an exponential rise in the force of international law, and most especially of that branch of international law focused on promoting human rights norms”, cfr. THORNHILL, cit., p. 70. 8 THORNHILL, cit., p. 70 e TUSHNET, cit., p. 2-3. Essa desvinculação dos conceitos de constituição e Estado é defendida por Peter Häberle no argumento de que não seria o Estado o objeto da Constituição uma vez que a premissa desta é de base antropológica e assim deve se fundar na dignidade humana, logo nos cidadãos e seres humanos, cfr. HÄBERLE, Peter, El Estado Constitucional, trad. Héctor Fix-Fierro, México, Universidad Nacional Autónoma de México, 2003, p. 14. 9 TUSHNET, cit., p. 4-6 (itálico nosso).
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tecnológicos e científico10. E em razão desses fatores, aponta a doutrina, tem-se intensificado o processo de concorrência entre as nações que pretendem atrair investimento e capital humano, bem como passamos a lidar com uma abertura das fronteiras que instiga uma maior circulação de prestações de serviços, o que torna a matéria da proteção constitucional assunto de extrema importância11. Para muitos especialistas estamos num momento de transição, de mudança, em que vivenciamos o fim da era dos Estados enquanto entidades isoladas e autónomas, fundamentando a crise da soberania e a emergência de novos atores internacionais que influenciam ou têm capacidade para criar o direito. Neste contexto, identifica Francisco Paoli Bolio como correspondente às matérias que passam prioritariamente a ser tratadas sob uma lógica transnacional, os direitos humanos, o comércio, a política de segurança, a proteção ambiental, a preservação da biodiversidade e o equilíbrio ecológico que, segundo o autor “[…] nos permitan un desarrollo sustentable y no meramente un crecimiento amplio y acelerado”12. Por conseguinte, os estudos que analisam a correlação entre o constitucionalismo e a globalização indicam que esta influencia aquele ao modificar concepções como a noção de Estado, soberania, cidadania e inclusive o exercício e alcance dos direitos humanos e fundamentais13. Logo, essa mudança que tem sido designada por muitos autores como mutação ou transformação ocorre so10 PAOLI BOLIO, Francisco José, Constitucionalismo en el siglo XXI. A cién años de la aprobación de la Constitución de 1917, Ciudad de México, Senado de la República, Secretaría de Cultura, Instituto Nacional de Estudios Históricos de las Revoluciones de México, UNAM, Instituto de Investigaciones Jurídicas, 2016, p. 175-176. 11 TUSHNET, cit., p. 7-9. O argumento apresentando pelo citado autor é de que os investidores procuram por locais em que estejam garantidos maiores retornos econômicos, o que por vezes não corresponde a uma maior proteção dos direitos fundamentais, bem como, o deslocamento de profissionais altamente qualificados direciona-se no sentido de melhores oportunidades, havendo por estes uma preferência pelas garantias de direitos de privacidade em detrimento de liberdades como expressão e religiosa. Esse pensamento do autor (p. 9) pode ser traduzido na seguinte afirmação “[i]n a globalized economy, people with high levels of human capital are just about as mobile as investment capital, and will locate themselves in nations that provide them with what they want by way of freedom” 12 PAOLI BOLIO, cit., p. 176. O final da guerra fria marca cronologicamente, segundo a doutrina o período no qual as ideias transnacionais passam a se intensificar uma vez que é a partir de então que o mundo deixa de se ver dividido político-ideologicamente entre capitalismo-comunismo, cedendo lugar ao avanço de grandes mercados econômicos, com destaque para o NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, formado pelos Estados Unidos, Canadá e México), União Europeia e os designados Tigres Asiáticos (expressão que identifica segundo os economistas o desenvolvimento econômico-financeiro a partir de 1970 de Singapura, Hong Kong, Coreia do Sul e Taiwan). 13 De acordo com os ensinamos de Paoli Bolio “[l]a promoción planetária y defensa de los derecho humanos son una de las dinâmicas mayores de transformación de los sistemas jurídicos y de los aparatos jurisdicionales”, cf. PAOLI BOLIO, cit, p. 177.
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bretudo por uma perda por parte do Estado da “[…] governança no contexto do governo nacional aos níveis locais, regional, transnacional e global”14. Por isso, Cristina Queiroz ao analisar essas alterações é de opinião que estamos diante da necessidade de uma“[…] re-visitação e re-interpretação dos conceitos jusconstitucionais […]”15, indo de encontro ao movimento designado por constitucionalismo global ou ainda direito constitucional internacional, considerado o marco para uma nova etapa do constitucionalismo, através de novos “desenhos” ou “novos constitucionalismos”16, conjuntura na qual se desenvolve as seguintes teorias: o transconstitucionalismo, o constitucionalismo societário, o constitucionalismo cooperativo, o constitucionalismo multinível e a interconstitucionalidade. Assim sendo, os estudos dedicados a estas temáticas levam-nos a intuir que as analises depreendidas objetivam verificar a influência e as consequências da globalização no constitucionalismo, sendo a globalização a responsável, conforme a visão de Zygmunt Bauman e Ulrich Beck pela expropriação ou corrosão dos fundamentos do Estado, fragmentação que ocorre em favor de diferentes grupos e organizações, traduzindo-se na possibilidade da criação de governos em vários níveis17.
3. Resultados A partir sobretudo de finais do século XX, o constitucionalismo passa, conforme descrito acima, a lidar com novos desafios provocados sobretudo pela supranacionalização e pelo diálogo constitucional, reafirmando o cenário descrito por Tushnet sobre a globalização do direito constitucional, que não instaura uma constituição global, mas sim observa o processo migratório das normas constitucionais que passam a produzir efeitos e influenciar ordenamentos jurídicos diversos. O constitucionalismo emancipa-se do Estado “[…] não precisamente porque surgiu uma multidão de novas Constituições, mas sim tendo em vista que outras ordens jurídicas estão envolvidas diretamente na solução dos problemas constitucionais básicos […]”18. 14 QUEIROZ, Cristina, Direito Constitucional Internacional, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 7. 15 QUEIROZ, cit., p. 8. 16 CANOTILHO, cit., p. 17. 17 BAUMAN, Zygmunt, Globalização: as consequências humanas, Trad. Marcus Penchel, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1999, p. 66-71; BECK, Ulrich, O que é globalização? Equívocos do globalismo, respostas à globalização, Trad. André Carone, São Paulo, Paz e Terra, 1999 e QUEIROZ, cit., p. 30-31. 18 NEVES, Marcelo, Transconstitucionalismo, São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. XXI.
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Esse fenômeno não passa despercebido à teoria da constituição que em resposta ao mesmo dá azo a uma grande produção doutrinal que busca apresentar soluções aos problemas constitucionais hodiernos19. Nesta sentido, Marcelo Neves desenvolve a teoria do transconstitucionalismo que parte da ideia de que as ordens estatais, internacionais, supranacionais, transnacionais e locais que atualmente existem são incapazes de oferecer respostas adequadas para os problemas normativos contemporâneos, deste modo, propõe a teoria da transconstitucionalidade como sendo a alternativa mais adequada, uma vez que se baseia não na criação de uma única constituição, mas passando a resolução dos problemas constitucionais a figurar um entrelaçamento entre as normas já existentes20, fundamentando-se na necessidade de criação de “pontes de transição” ou “conversas constitucionais”, esta teoria rejeita a ideia de que uma única ordem jurídica possua a solução ideal para os problemas “hidraconstitucionais”21. Outro seguimento doutrinário é defendido por Peter Häberle, para quem a possível resposta à teoria da constituição para o século XXI consiste na chamada teoria do constitucionalismo cooperativo. Para Häberle a teoria da constituição tem por finalidade a captura do “espírito das Constituições”. Assim, devem os textos constitucionais se adequar aos processos evolutivos, tornando-se uma via aberta para o futuro. Esta nova tendência, disserta o autor, tem início com as Constituições italiana de 1947 e alemã de 1949 ao incluir articulados que previam a possibilidade de que poderes soberanos fossem transmitidos a organizações e instituições supranacionais e internacionais, situação até então alheia ao direito internacional22. E assim, a partir desta interação o direito constitucional e o direito internacional passam a estar unidos por um elo de cooperação, transformando-se e influenciando-se mutuamente, pois que o direito constitucional se abre às mudanças e aos desafios apresentados pelo direito internacional23. 19 Mais sobre as teorias indicadas ver COELHO, Larissa A, O ensino do direito constitucional na era da globalização, in Desafios do ensino jurídico no século XXI, Fabrício Veiga Costa; Ivan Dias da Motta; Sérgio Henrique Zandona Freitas (orgs.), Maringá, IDDM, 2018, p. 361 – 387. 20 NEVES, cit., p. 131. 21 Idem, p. XXV e 119 (itálico no original). O diálogo entre o Tribunal de Justiça da União Europeia (que atua supranacionalmente) e os tribunais nacionais dos Estados-Membros da União Europeia e a conversa entre o Tribunal Europeu de Direitos dos Homens e os tribunais nacionais ilustram a teoria do transconstitucionalismo, visto que “[…] [e]ssa ´conversação` (que constitui, a rigor, comunicações transversais perpassando fronteiras entre ordens jurídicas) não deve levar a uma ideia de cooperação permanente entre ordens jurídicas, pois são frequentes os conflitos entre perspectivas judiciais diversas. No limiar, toda ´conversação` entre cortes carrega em si o potencial de disputa”, cfr. NEVES, cit., p. 117. 22 HÄBERLE, cit., 2003, p. 2 – 4; 74. 23 HÄBERLE, Peter, Estado constitucional cooperativo, Rio de Janeiro, Renovar, 2007, p. 10.
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Gunther Teubner é o autor da tese do constitucionalismo societário24, segundo a qual encontramo-nos diante de uma “nova questão constitucional”, que surge a partir das energias sociais construídas pela economia, ciência, tecnologia, medicina e a comunicação social, cujos efeitos são transnacionais25 e por isso, defende que em razão da globalização estaríamos ante uma constituição civil global, sem estado mundial composta por constituições civis parciais, articulando diversos subsistemas autônomos, processando-se àquilo que o autor designa por constitucionalização da sociedade. Para Teubner os problemas do constitucionalismo não estariam limitados apenas à relação constituição e política e/ou direito internacional, mas à influência de outros atores, ou ainda como classifica o autor, de subsistemas como a economia, a ciência e tecnologia, a educação, mas também as ONG´s, grupos financeiros, corporações transnacionais, entre outros. Ingolf Pernice observa a reposta do constitucionalismo aos fenômenos globais através do que designa por constitucionalismo multinível, porém analisa o desenvolvimento do constitucionalismo a partir do prisma da integração europeia e do Tratado da União Europeia, no qual se mantém em vigor as constituições dos Estados-Membros que passam a conviver com uma constituição supranacional. Para esta teoria é irrelevante a discussão se a Europa possui ou não uma constituição, uma vez que dos estudos de Pernice compreende-se que o compartilhamento de poderes entre os Estados-Membros e as instituições europeias estabeleceria a Constituição Multinível, ou seja, estamos diante de um sistema constitucional complementar, que se constrói em conjunto26. Por fim, a teoria da interconstitucionalidade, desenvolvida por autores lusófonos que explicam a interação constitucionalismo-globalização, à luz do diálogo constitucional, verbalizado pelo processo integrativo europeu. O fundamento desta teoria consiste na observação de que as Constituições dantes exclusivamente nacionais, passam também a integrar-se, a entrar em diálogo com os textos constitucionais de outros Estados-Membros e com os textos consti-
24 TEUBNER, Gunther, Globale Zivilverfassungen: Alternativen zur staatszentrierten, Verfassungstheorie. Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht (ZaöRV), vol. 63, (2003), [consult. 23 mai. 2018], disponível em: http://www.zaoerv.de/63_2003/63_2003_1_a_1_28.pdf. 25 TEUBNER, Gunther, Reflexões sobre a constitucionalização do sistema de poder mundial, Revista Brasileira de Sociologia do Direito, vol. 5, n.º 1, jan/abr., (2018), p. 5, [consult. 23 mai. 2018], disponível em: http://dx.doi.org/10.21910/rbsd.v5n1.2018.231. 26 PERNICE, Ingolf, Multilevel constitutionalism in the European Union, WHI-Paper 5/02, Berlin, Walter Hallstein-Institut, Humboldt-Universität Berlin, 2001, p. 4, [consult. 23 mai. 2018], disponível em: http://www.whi-berlin.de/documents/whi-paper0502.pdf.
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tucionais supranacionais27. Fundamentando-se no estudo das relações “[…] da concorrência, convergência, justaposição e conflito de várias constituições e de vários poderes constituintes no mesmo espaço político”28, ou seja, estamos diante da fusão do patrimônio jurídico comum, que se dá a partir de uma aproximação conceitual e interpretativa para os conteúdos que compõem as constituições ocidentais em matérias como direitos fundamentais, separação de poderes, princípio da legalidade e controle da constitucionalidade, tomando por empréstimo os conceitos clássicos do constitucionalismo29.
4. Considerações finais Face ao exposto, ao longo do estudo vamos nos apercebendo que de um paradigma vincado na consolidação do Estado-Nação através da afirmação da teoria da soberania e do poder constituinte, a teoria da constituição vem adaptando-se a um new beginning à moda do século XXI, processo esse iniciado sobretudo com a supranacionalização dos direitos humanos e à abertura constitucional às normas do direito internacional, procedimento desencadeado particularmente a partir do pós-guerra. No entanto, atualmente tem vindo esta teoria a ser confrontada com uma nova força motriz em razão dos fenômenos gerados pela globalização, que permeabilizam as relações transnacionais com implicações jurídicas que permitem conforme observa Neves uma “[…] abertura do constitucionalismo para além do Estado”30. Neste sentido, ao questionarmos qual a teoria da constituição que se adequa à nossa realidade, a doutrina nos apresenta aportes teóricos, em que destacamos as teorias do transconstitucionalismo, constitucionalismo societário, constitucionalismo cooperativo, constitucionalismo multinível e a interconstitucionalidade contributos considerados como respostas à fenoménica da globalização, que por meio do entrelaçamento, elo cooperativo, compartilhamento de poder e do diálogo constitucional visam através de argumentos distintos a con27 COELHO, Larissa A, O ideal constitucional: das origens à teoria da interconstitucionalidade, in UNIO/CONPEDI E-book 2017. Interconstitucionalidade: democracia e cidadania de direitos na sociedade mundial – atualização e perspectivas, vol. II, Alessandra Silveira (coord.), Braga, Centro de Estudos em Direito da União Europeia, 2018, p. 212, [consult. 23 mai. 2018], disponível em: http://www.unio.cedu.direito.uminho.pt/Uploads/Ebook%202016/UNIO-CONPEDI%20 E-book%202017%20Vol.%202.pdf. 28 CANOTILHO, J. J. Gomes, “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional, Coimbra, Almedina, 2008, p. 266 e CANOTILHO, cit., 2003, p. 1425. 29 PIRES, Francisco Lucas, Introdução ao direito constitucional europeu: seu sentido, problemas e limites, Coimbra, Almedina, 1997, p. 19 e MADURO, Miguel Poiares, A Constituição Plural: constitucionalismo e União Europeia, Cascais, Principia, 2006, p. 345. 30 NEVES, cit., p. 120.
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solidação de um constitucionalismo que ultrapassa fronteiras territoriais, mas que partilha valores comuns31. Pois que nos encontramos numa fase em transformação, que em razão da globalização, os elementos estatais clássicos como soberania, fronteiras e a própria ideia de poder estatal encontram-se em franca modificação, ganhando espaço a ideia de poder fragmentado entre diversos atores sociais locais, supranacionais, regionais e internacionais, que possuem força para modificar e criar o direito além-fronteiras com implicações diretas na sociedade. Contudo, após o exposto e em face do mesmo, somos de opinião de que embora a doutrina apresente estas teorias isoladamente, acreditamos que todas são vértices do mesmo objeto e por isso ao fazermos uma leitura conjunta, que integra as diversas perspectivas, visto que por exemplo a interconstitucionalidade dedica-se à análise da integração normativa e jurisprudencial, ao passo que o constitucionalismo societário preocupa-se com a interação que os novos atores sociais passam a ter em virtude da desfragmentação do poder, tanto no âmbito público como privado, em que por exemplo propaga-se o diálogo entre as empresas transnacionais com ONG´s e parlamentos regionais. Assim, ao nos desvincularmos da ótica presente até então na doutrina de que a teoria da constituição responde à ação promovida pela globalização, em que a influência vai do sentido globalização-constitucionalismo, e passarmos a analisar qual seria o grau de influência do constitucionalismo-globalização, verificamos que esses “novos constitucionalismos” estariam em verdade pretendendo a constitucionalização da própria globalização, diligenciando, portanto, estruturar um limite e controlar o poder do próprio fenômeno, visto que como decorre do pensamento de Teubner o que se encontra em jogo é a constitucionalização das dinâmicas sociais32 e por isso mesmo, que em nossa perspectiva a análise não deveria ser realizada pela ótica da influência globalização-constitucionalismo, mas antes pela vertente constitucionalismo-globalização, em que o direito através de uma cooperação ou diálogo internormativo cerca as manifestações da globalização através do processo de constitucionalização da mesma. Deste modo, num ensaio de resposta, a teoria da constituição para o século XXI será aquela que constitucionalize a globalização, estabelecendo os padrões, os limites e garantias fundamentais, pois que como escreve Niklas Luhmann “[…] se o nível de complexidade da sociedade modifica-se, a semântica orientadora do vivenciar e agir precisa adequar-se a ele, porque, senão, ela perde a conexão com a realidade”33. 31 QUEIROZ, cit., p. 45. 32 TEUBNER, cit., 2018, p. 5. 33 LUHMANN, Niklas, Gesellschaftliche Struktur und semantische Tradition, in Gesellschaftsstruktur und Semantik: Studien zur Wissenssoziologie der modernen Gesellschaft, v. 1, Niklas Luhmann (org.), Frankfurt, Suhrkamp. 1980, p. 22.
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PANORAMA ATUAL DA INVESTIGAÇÃO JURÍDICA SOBRE OS MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS INTERNACIONAIS Maria Hylma Alcaraz Salgado1
1. Introdução O objetivo do presente estudo é realizar uma breve análise do estado das investigações jurídicas sobre os movimentos migratórios internacionais. As investigações jurídicas sobre as migrações internacionais começam a ter protagonismo no final do século XX, quando os países mais afetados pela imigração intensificam a produção normativa para regular a condição jurídica dos estrangeiros. De modo geral, as legislações sobre estrangeiros encontravam-se defasadas e não se ajustavam às diretrizes internacionais de proteção dos direitos humanos. A necessidade de regular a nova realidade migratória e adequar os sistemas jurídicos aos preceitos internacionais foram os fatores que permitiram incorporar aos estudos jurídicos o tema das migrações. O estudo das migrações internacionais exige uma análise interdisciplinar. Em princípio, o exame dos movimentos migratórios é tema vinculado aos estudos demográficos, próprios da Geografia. As causas que motivam os movimentos migratórios e a eleição dos destinos são temas apreciados pela Sociologia. O número de migrantes que recebem os países de acolhida, e sua importância na 1 Doutora em Direito pela Universidade de Vigo. Investigadora colaboradora do CIIDH da Universidade do Minho. Professora convidada da Universidade de Vigo.
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pirâmide populacional, é analisado pela Estatística. As sociedades de acolhida, muitas vezes, estão vinculadas historicamente com a sociedade de origem dos migrantes, razão por que a História permite compreender algumas tendências migratórias. Para o investigador jurídico os dados obtidos por referidas Ciências contribuem para desenvolver a análise da aplicabilidade e efetividade das normas reguladoras das migrações. O resultado das investigações jurídicas sobre os movimentos migratórios internacionais está vinculado ao método utilizado pelo jurista. A questão metodológica é problemática porque não há consenso sobre o método que deva orientar a pesquisa jurídica. Apesar da falta de unidade metódica se verificam algumas tendências teóricas predominantes que orientam o trabalho do jurista. As tendências metodológicas estão relacionadas às posturas filosóficas predominantes em cada etapa do desenvolvimento da Ciência do Direito. De acordo com as correntes epistemológicas contemporâneas estão presentes duas orientações metodológicas principais: a documental ou dogmática e a empírica. Os estudos jurídicos atuais sobre as migrações internacionais se orientam, principalmente, pela investigação documental ou dogmática. De modo geral, a investigação jurídica sobre o tema citado é marcada pela necessidade de reforçar a aplicação das normas internacionais e nacionais cuja finalidade é proteger os direitos fundamentais dos migrantes. Apesar da falta de unidade metodológica da investigação jurídica sobre os movimentos migratórios internacionais, os juristas dedicados ao conhecimento destas questões foram capazes de realizar importantes contribuições para a modernização das legislações e, com isso, lograr a ampliação do rol de direitos dos migrantes.
2. Por que os movimentos migratórios passam a ser objeto de investigação jurídica? Os movimentos migratórios são registrados em todas as etapas históricas. No entanto, as migrações internacionais constituem um fenômeno relativamente recente2. A descoberta da América, e o processo de colonização que se seguiu, abriu as portas para a criação de uma nova figura: o imigrante. De acordo com 2 De acordo com Alicia Gojman de Backal, no século XV a emigração era considerada como um sinal de debilidade dos Estados e afetava seus recursos financeiros. Por esta razão, se aplicava a pena de norte aos habitantes que se mudavam para o estrangeiro sem autorização do Estado. Por outro lado, a imigração era bem recebida, especialmente nos países que necessitavam gente para povoar seus extensos territórios. GOJMAN DE BACKAL, Alicia, Semejanzas y diferencias en cuanto a las políticas migratorias de Estados Unidos y México con respecto a los extranjeros (1900-1950), Revista de Humanidades: Tecnológico de Monterrey, núm. 8, (2000), p. 9, [consult. 18 jun. 2018], disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=38400801.
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Mariana Alicia Pérez, o imigrante é uma categoria que surge no século XIX com o advento das migrações massivas à América. Na época colonial não existia este termo, nem conceito equivalente que englobasse as características do que hoje se considera um imigrante: aquele que deixa sua terra de origem voluntariamente e se traslada a outra terra em busca de melhores condições de vida3. No século XVIII as relações comerciais entre o continente europeu e as terras recém-conquistadas propiciaram o crescimento das viagens pelo Atlântico facilitando a afluência de imigrantes ao novo continente. Os destinos americanos se diversificaram à medida que mais portos coloniais foram habilitados para o comércio transatlântico4. Entretanto, os deslocamentos de europeus para o Novo Mundo estavam controlados pelas Coroas de Portugal e Espanha. Somente os súditos dos reis de Portugal e Espanha estavam autorizados a viver nas colônias. Não se permitia a entrada de “estrangeiros” ou de vagabundos; a obtenção da autorização de residência nas colônias exigia dos interessados prova de serem cristãos e exercer atividade honrada. No transcurso do século XVIII foram admitidas famílias para povoar os espaços fronteiriços, como parte das políticas imperiais de defesa e controle de territórios em risco de ser invadidos por estrangeiros5. Se o século XVIII se caracteriza pelo controle dos fluxos migratórios, a situação se modifica no século XIX com a independência das antigas colônias americanas. As políticas migratórias adotadas pelos novos governos americanos, ao princípio, pretendem atrair famílias e trabalhadores para povoar seus extensos territórios. Neste período, se instalam em Europa oficinas de imigração com o objetivo de prestar informação, oferecer trabalho e incentivar as migrações para os territórios americanos. Desde los primeros momentos de la independencia, los gobiernos de las nuevas repúblicas latinoamericanas comprendieron que su futuro dependía de la inmigración extranjera. La llegada de inmigrantes les permitía afianzar su sistema económico y conseguir la base demográfica necesaria para poblar y modernizar sus países. Por esta razón, durante el siglo XIX la mayoría de países latinoamericanos aprobaron leyes y medidas para fomentar la inmigración. Algunos gobiernos instalaron incluso Oficinas de Inmigración en Europa, y hacían publicidad
3 PÉREZ, Mariana Alicia, De Europa al Nuevo Mundo: la inmigración europea em Iberoamérica entre la Colonia tardía y la Independencia, Nuevo Mundo Mundos Nuevos [Online], Debates, (2012), [consult. 18 jun. 2018], disponível em: https://journals.openedition.org/nuevomundo/63251. 4 Idem. 5 Idem.
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mediante guías y cartillas sobre las ventajas que los inmigrantes encontrarían al otro lado del Atlántico6.
Não obstante a propaganda para atrair as migrações, os requisitos legais para a autorização de residência nas novas terras são caracterizados por seu teor restritivo e discriminatório, a exemplo das restrições estabelecidas pelos Estados Unidos com os chineses. Para el siglo XIX se inició ya una fuerte corriente migratoria en Europa, la cual se embarcaba casi toda ella hacia Estados Unidos. Fue así como en 1882 el Congreso de ese país trató de impedir, mediante leyes especiales, el establecimiento de los chinos y empezó a restringir también la llegada de europeos7.
A proteção jurídica dos migrantes internacionais, nesta etapa histórica, é inexistente, razão pela qual não são desenvolvidos estudos sistemáticos sobre a legislação de estrangeiros vigente nos países de destino. No século XX as migrações internacionais continuam apresentando números expressivos, ainda que os estatutos de estrangeiros estejam marcados por normas discriminatórias. O aparecimento das organizações internacionais, notadamente a Organização das Nações Unidas, e o desenvolvimento de um sistema internacional de proteção dos direitos humanos contribuíram para a inclusão dos direitos fundamentais dos estrangeiros nos documentos internacionais que pretendem assegurar, universalmente, o tratamento igualitário e não discriminatório entre todas as pessoas. A consolidação dos organismos internacionais, no século XX, é elemento decisivo para o início das investigações jurídicas sobre as migrações internacionais8. Outro fator importante para o desenvolvimento dos estudos contemporâneos sobre as migrações internacionais é a globalização econômica que ampliou os mercados e abriu caminho para novas oportunidades de trabalho, especialmente para os países pobres que passaram a vislumbrar novas alternativas de uma vida melhor nos países desenvolvidos. Somada às migrações econômicas, 6 SALLÉ ALONSO, María Ángeles, La emigración española en América: historia y lecciones para el futuro, Madrid, Fundación Directa, Gobierno de España, Ministerio de Trabajo e Inmigración, 2009, p. 12, [consult. 21 jun. 2018], disponível em: http://www.fundaciondirecta.org/ Documentos/memoria_espanola_def.pdf. 7 GOJMAN DE BACKAL, cit., p. 9. 8 A constituição da Organização Mundial para as Migrações em 1951, criada para prestar ajuda aos governos europeus que tiveram que reassentar milhões de pessoas em virtude da 2ª Guerra Mundial, representa o inicio das ações contemporâneas de apoio aos movimentos migratórios. O desenvolvimento dos trabalhos desta Organização contribuiu para reforçar o reconhecimento dos direitos fundamentais dos migrantes internacionais.
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impende registrar também os deslocamentos contemporâneos motivados pelos conflitos armados, que ocupam um lugar essencial na análise das migrações atuais. Em virtude das profundas modificações contemporâneas do perfil das migrações internacionais este fenômeno passou a ser objeto de estudo de diferentes Ciências. As principais contribuições científicas neste setor se devem à Sociologia e à Geografia, as quais contam com a inestimável ajuda da Estatística. Não é de justiça deixar de fazer menção aos estudos históricos que permitem compreender algumas das motivações dos migrantes. Do mesmo modo, as análises políticas são fundamentais para compreender as decisões tomadas pelos governos dos países receptores. O estudo de referidas Ciências se complementa com as contribuição científica dos juristas, e estes, por sua vez, são auxiliados em seu mister pelas construções teóricas dos citados campos científicos. De modo geral, a compreensão científica dos movimentos migratórios internacionais exige um estudo interdisciplinar. O problema que surge desta questão é o de saber qual é o objeto de estudo próprio do jurista neste âmbito e qual é o método (ou os métodos) que devem orientar a investigação jurídica dos movimentos migratórios.
3. A metodologia aplicada à investigação dos movimentos migratórios Como vimos anteriormente, os movimentos migratórios começam a ser objeto de estudo a partir da segunda metade do século XX. Além do seu recente interesse, referidos estudos não pertencem ao campo específico de uma Ciência em particular, pois as teorias sobre as migrações se desenvolvem em diferentes ramos do saber, o que caracteriza a interdisciplinaridade deste conhecimento. No dizer de João Peixoto, As desvantagens da “terra de ninguém” têm sido, sob uma outra perspectiva, as vantagens da interdisciplinaridade. Uma vez que as raízes disciplinares são débeis e que o tema importa a um variado número de especialistas, ele tem sido desenvolvido sob diversas perspectivas teóricas, cujo conhecimento recíproco (dado o relativamente reduzido número de investigadores) tem permitido grandes benefícios9.
9 PEIXOTO, João. As teorias explicativas das migrações: teorias micro e macro-sociológicas. SOCIUS Working Papers. SOCIUS – Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações Instituto Superior de Economia e Gestão Universidade Técnica de Lisboa, Nº 11/2004, p. 3-4, [consult. 21 jun. 2018], disponível em: https://pascal.iseg.utl.pt/~socius/publicacoes/wp/wp200411.pdf.
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Se os estudos desenvolvidos sobre as migrações internacionais pertencem a diferentes ramos do saber, qual é a metodologia que deve orientar a investigação do jurista neste campo? O problema do método que deve ser utilizado pela Ciência Jurídica é uma equação de difícil solução. Isso é assim porque o método eleito pelo cientista depende, em grande medida, da postura filosófica que subjaz ao trabalho de investigação. A escolha do método adequado ao estudo das questões jurídicas é tema complexo que não pretendemos desenvolver neste estudo, mas que merece ser destacado como um dos problemas que deve enfrentar o jurista ao investigar as migrações internacionais desde uma perspectiva jurídica. É importante destacar que a investigação jurídica sobre referido tema deve utilizar uma metodologia própria, capaz de demarcar o campo de abordagem específico do jurista, sem se confundir com os caminhos trilhados pelas demais Ciências que investigam o mesmo objeto. Sendo certo que as análises teóricas sobre as migrações internacionais são interdisciplinares, a distinção que será feita entre as diferentes Ciências que se ocupam do tema será a abordagem que cada uma fará do objeto estudo. Em face destas considerações, a investigação jurídica sobre as migrações internacionais deve ter presente as contribuições sociológicas que explicam as causas dos deslocamentos humanos, bem como deve contar com o apoio das análises demográficas e estatísticas. Mas, não pode deixar de considerar que o exame interdisciplinar do contexto das migrações é o ponto de partida para a apreciação objetiva das normas reguladoras dos movimentos migratórios internacionais. Neste âmbito, a missão do jurista será: a) fornecer elementos para a elaboração de normas jurídicas que regulem os deslocamentos humanos, sem perder de vista a necessária proteção dos direitos fundamentais dos migrantes; b) analisar a adequação das legislações nacionais com a normativa internacional vigente; c) proporcionar recursos para a interpretação e aplicação das normas reguladoras das migrações.
4. Os resultados das investigações sobre os movimentos migratórios As investigações desenvolvidas pelos juristas sobre as migrações internacionais constituem uma novidade no campo da Ciência do Direito. As pesquisas, neste âmbito, são recentes e não há uma direção metodológica que permita estabelecer uma identidade própria. Apesar dos problemas epistemológicos que apresenta a investigação jurídica neste setor, os investigadores lograram alcançar resultados positivos com suas pesquisas. De modo geral, é possível afirmar que os resultados obtidos pela investigação jurídica neste âmbito são os seguintes: a) modernização das legislações de estrangeiros; b) adequação das legislações 98
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às diretrizes internacionais de proteção dos direitos humanos; c) ampliação dos direitos dos estrangeiros nas sociedades de destino; d) construção de novos conceitos inclusivos de cidadania; e) sensibilização política e incremento de medidas governamentais de proteção aos direitos dos migrantes. Antes dos estudos contemporâneos sobre as migrações internacionais, os estatutos jurídicos do estrangeiro eram caracterizados por seu perfil eminentemente administrativo. A preocupação dos Estados estava centrada, apenas, em estabelecer os requisitos legais de entrada, permanência e saída compulsória do estrangeiro, sem se preocupar com a proteção inerente à condição de pessoa humana do migrante. Com o avanço das pesquisas neste campo, várias legislações foram reformadas para se acomodarem às diretrizes internacionais de proteção aos direitos fundamentais dos migrantes, a exemplo da Lei portuguesa nº 23, de 4 de julho de 2007 e da Lei espanhola 4/2000, de 11 de janeiro. Historicamente, o estrangeiro era visto como inimigo. Como resultado do desenvolvimento do sistema de proteção internacional dos direitos humanos, o preconceito contra o estrangeiro passou a ser definido como conduta violadora dos seus direitos básicos. A transformação conceitual da figura do migrante representa uma nova etapa nas discussões teóricas sobre os movimentos migratórios e foi responsável por permitir que as legislações atuais equiparem em direitos os estrangeiros aos nacionais. Tal equiparação resulta dos mandamentos constitucionais e se reflete nos textos que disciplinam a condição jurídica dos estrangeiros. As novas diretrizes normativas de proteção dos migrantes estabelecem aos Estados a obrigação de criar medidas que tornem possível a concretização dos objetivos de proteção dos direitos fundamentais dos migrantes e integração dos estrangeiros na sociedade de destino.
5. Considerações finais Neste exame do estado das investigações jurídicas sobre os movimentos migratórios internacionais foi possível verificar as características gerais dos estudos realizados no campo das migrações, como também esboçar o principal problema que se depara o jurista ao desenvolver o seu labor científico. O estudo científico das migrações internacionais é recente. Este tema passa a ser objeto de estudo com a criação contemporânea da figura do imigrante e com o significativo aumento dos deslocamentos humanos produzidos nos séculos XIX e XX. Os estudos iniciais deste tema pertencem, principalmente, à Geografia e à Sociologia, em razão da necessidade de compreender as motivações dos migrantes e verificar o impacto do aumento de população nas sociedades de acolhida.
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Os avanços realizados pelos organismos internacionais no âmbito da proteção dos direitos fundamentais foi um fator essencial para que os juristas passassem a considerar o tema das migrações internacionais como assunto de relevância, pois a construção normativa internacional produziu a mudança do paradigma do estrangeiro para equiparar-lhe em direitos aos nacionais. Esta transformação foi responsável, também, pela reforma de vários estatutos de estrangeiros, cujo objetivo foi adaptar as legislações nacionais às diretrizes internacionais. As investigações jurídicas neste campo começam a desenvolver-se a partir destas modificações internacionais e das consequentes reformas das legislações nacionais. No entanto, o trabalho científico do jurista neste âmbito encontra algumas dificuldades: o conhecimento das migrações internacionais exige o intercâmbio de informações entre as diferentes Ciências que se ocupam do tema, ou seja, é um conhecimento caracterizado por sua interdisciplinaridade. Para o jurista, o problema que resulta desta característica é a eleição do método de abordagem que deverá conduzir as pesquisas no âmbito jurídico. Apesar da falta de unidade metodológica da pesquisa jurídica, os estudos que vêm sendo realizados sobre as migrações internacionais foram capazes de realizar importantes contribuições para a elaboração, a interpretação e a aplicação das leis nacionais reguladoras da condição jurídica do estrangeiro. Entretanto, ainda são muitos os problemas que se apresentam ante o jurista neste campo, a exemplo das questões relativas à integração dos estrangeiros na sociedade de acolhida, à proteção dos direitos dos migrantes irregulares, à salvaguarda dos direitos dos refugiados, entre outros aspectos sem resolver.
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Panorama atual da investigação jurídica sobre os movimentos migratórios internacionais
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O REGIME DA PROVA PERICIAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS: DOMÍNIO PELOS PERITOS DOS PROCESSOS JUDICIAIS?
Maria João Lourenço1
1. Introdução Nos últimos anos temos sido confrontados no âmbito dos processos judiciais com a necessidade de conhecer e valorar factos que exigem conhecimentos técnicos e científicos de que os juízes não dispõem. Como forma de colmatar tais necessidades, as chamadas “provas científicas” «ganham cidadania com a qualificativa de “juízos científicos”»2, assumindo cada vez mais relevância e primazia no seio judicial, já que sobre as mesmas recai a confiança de permitir um acesso com maior certeza e segurança ao conhecimento de factos juridicamente relevantes. Não sendo o recurso à ciência pelos tribunais um fenómeno novo, o certo é que a atual repercussão dos conhecimentos técnicos e científicos nos processos judiciais tem hoje particulares contornos, pressuposta a reconhecida interdepen1 Assistente convidada da EDUM e Advogada. Investigadora júnior do JUSLAB e Doutoranda em Ciências Jurídicas na EDUM, na vertente de especialização em Ciências Jurídicas Gerais. 2 SOUSA, Henrique Gomes de Sousa, A “perícia” técnica ou científica revisitada numa visão prático-judicial, Julgar, n.º 15 (2011), p. 27.
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dência entre o Direito e a ciência3. É neste contexto que surge a necessidade de investigação da problemática da prova pericial, como meio de produção da prova científica, ainda hoje envolta em mais dúvidas do que certezas. Neste artigo, apresentaremos os objetivos da investigação e algumas linhas orientadoras sobre a discussão em torno da problemática, lançando um olhar atento sobre a prática judiciária. Procuraremos evidenciar sobretudo as implicações do regime da produção e valoração da prova pericial no nosso ordenamento jurídico e apresentar algumas linhas orientadoras que poderão servir para desvendar as preocupações que nos ocuparão no percurso da investigação.
2. Objetivos O trabalho que desenvolvemos centra-se na análise do regime jurídico da prova pericial no nosso ordenamento jurídico, interessando-nos sobretudo as suas implicações na prática judiciária, em especial, o modo como o legislador e os tribunais têm lidado com os desafios que se colocam quanto à produção e à valoração que é feita da mesma pelos tribunais. Para tanto, partindo de uma análise crítica de algumas das atuais práticas na produção da prova pericial, será nosso intento, trilhando as linhas de tensão entre a afirmação científica e a decisão judiciária, analisar se os critérios de admissibilidade fixados se mostram suficientes e adequados para lidar com as complexidades inerentes à prova pericial ou se, colhendo os frutos de soluções adotados noutros modelos, se afigura necessário discutir possíveis soluções de jure condendo. Tendo como pano de fundo tal objeto de investigação, procuraremos dar resposta a muitas das questões que têm vindo a ser levantadas, quer pela doutrina como pela jurisprudência, mas que não têm ainda uma convincente e refletida resposta. Destacando algumas dessas, questionaremos se não estaremos a ignorar a necessidade de uma maior regulação da atividade pericial, designadamente quanto ao acesso conferido aos peritos a todos os elementos carreados para o processo e qual o tipo de acompanhamento que deverá ser assegurado às partes na realização da perícia, bem como se não deverá existir um maior controlo sobre a celeridade e imparcialidade das perícias e de que forma 3 Sobre as intersecções entre Direito e ciência devem ler-se, entre outros, TARUFFO, Michele, Conoscenza scientifica e decisione giudiziaria, in Decisione giudiziaria e veritá scientifica, Milano, Giuffré Ed., 2005, p. 3-24; CALHEIROS, Maria Clara, Para uma teoria da prova, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, passim, em especial, p. 117 e ss; HAACK, Susan, Irreconciliable difference?: the troubled marriage of science and law, Law and contemporary problems, Vol. 72 (2009), p. 1-23; SANTOSUOSSO, Amedeo; REDI, Carlo Alberto Redi, The need for scientists and judges to work together. Regarding a European network, Health Qual Life Outcomes, Vol. 1 (2003), p. 1-22 e BEECHER-MONAS, E., Blinded by science: how judges avoid the science in scientific evidence, Temple Law Review, n.º 71 (1998), p. 55–102.
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se poderá garantir o exercício de um verdadeiro contraditório na produção de prova pericial. Urge igualmente refletir sobre as formas de assegurar níveis de cientificidade, objetividade e fiabilidade da prova pericial que sejam consentâneos com as necessidades e exigências dos processos judiciais. A acrescer, será também pertinente expor as dificuldades sentidas pelos profissionais na análise interdisciplinar da prova – sejam elas ao nível da linguagem, comunicação e compreensão dos fenómenos complexos a que assistimos. Por fim, assente que a prova pericial adquiriu um caráter mitológico nos processos judiciais, cujo teor, muitas vezes, parece indiscutível pelas partes e pelo juiz, a investigação a realizar prende-se com a discussão em torno do cientificismo e das práticas processuais de valoração deste tipo de prova. Indagando da necessidade de restruturação do modelo adotado, já que estamos cientes de que, antes de nos preocuparmos com as questões de valoração deste tipo de prova, sempre será pertinente colocar em debate o procedimento específico relacionado com a prova pericial. Mais do que isso, pretendemos analisar se estaremos a assistir, pacificamente, a uma transferência do ofício jurisdicional para o perito. Isto é, se o modelo de perícias adotado pelo nosso legislador proporciona uma delegação de competências, incompatível com a exclusividade da função jurisdicional.
3. Metodologia Tendo em vista a prossecução dos objetivos acabados de referir, a investigação assentará sobretudo na análise de fontes documentais. As fontes primárias incluirão necessariamente atas parlamentares, instrumentos normativos de âmbito nacional e jurisprudência. De entre as fontes secundárias procuraremos articular um vasto leque de trabalhos académicos e colocar em diálogo várias perspetivas disciplinares sobre o tema, esperando analisá-lo sob diferentes olhares, não apenas do prisma do jurista, mas também dos múltiplos intervenientes processuais que possam assumir funções de perito. Entendemos ainda que o tema será tanto mais interessante quanto maior for a originalidade no tratamento do mesmo, pelo que a análise comportará alguns excursos por regimes jurídicos que consagrem diferentes modelos de produção e valoração de prova pericial – de entre os quais desde já destacamos o modelo das expert testimony que vigora nos EUA4. Conscientes das implicações práticas do estudo, parece-nos que será igualmente importante a realização de entrevistas a diferentes e variados atores, pelo que também se dará especial ênfase à observação da prática judiciária, já
4 Nos EUA o expert testimony encontra-se submetido às Federal Rules of evidence (em particular as normas 702 a 706), de 02 de janeiro de 1975, e com a última redação de 01 de dezembro de 2014.
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que apenas um estudo nestes moldes nos permitirá responder adequada e completamente aos objetivos da investigação.
4. Discussão Hoje é largamente reconhecido que os processos judicias dependem significativamente de conhecimentos técnicos e científicos, nos quais se depositam sérias expectativas em alcançar, com maior certeza, a verdade. Estes conhecimentos cruzam-se com os processos judiciais através da prova pericial. A sua contribuição é de tal forma relevante que a doutrina tem vindo a retratar uma relação inversamente proporcional entre o crescente recurso a novas áreas de conhecimento e o menor predomínio da experiência do julgador na tomada de decisões5. Pressuposta a inquestionável importância dos juízos de caráter técnico e científico no processo, a discussão atualmente já não se prende sobre a análise interdisciplinar da prova nem sequer sobre a inferência da ciência no Direito. O que se deve discutir é antes o grau de influência deste tipo de provas na decisão judicial, uma vez que, assumido o caráter reconstrutivo da decisão alicerçado no contraditório, o peso da ciência, tida como imparcial, objetiva e comprovada, supera esse esquema dialético. No ordenamento jurídico português, a produção de prova pericial nos processos de natureza criminal e civil tem lugar sempre que a perceção ou apreciação dos factos carreados para o processo exijam especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos que os julgadores não possuem ou ainda, no âmbito dos processos cíveis, quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial 6. A perícia pode ser requerida por qualquer uma das partes ou determinada oficiosamente pelo juiz, sendo requisitada a estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não for possível ou conveniente, será nomeado um perito pelo juiz, de entre pessoas de reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa (arts. 467.º CPC e 152.º CPP). Nos processos cíveis as partes são ouvidas sobre a nomeação do perito, podendo inclusivamente sugerir quem deverá realizar a perícia (art. 467.º, n.º 2 do CPC). Nos processos de natureza cível, a perícia pode ser realizada por mais de um perito, até ao número de três, funcionando em moldes colegiais ou multidisciplinares, se o juiz assim o determinar, atenta a complexidade das matérias ou se alguma das partes requerer a realização de perícia colegial (art. 468.º CPC). 5 Este fenómeno é-nos explicado por TARUFFO, cit, p. 3-24. 6 Vejam-se os arts. 388.º do Código Civil (doravante CC), aprovado pelo DL n.º 47 344, de 25 de novembro de 1996 e 151.º do Código de Processo Penal (em diante, CPP), aprovado pelo DL n.º 78/87, de 17 de fevereiro.
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Também nos processos crime será admissível a realização de prova pericial colegial, caso a perícia verse sobre matérias distintas ou se revele de especial complexidade (art. 153.º CPP). O despacho que ordena a realização da perícia contém a indicação do seu objeto e os quesitos a que os peritos deverão responder (arts. 475º e 476.º do CPC e 154.º CPP). Finda a realização da prova pericial, é elaborado um relatório no qual o perito fundamenta as suas conclusões e apresenta as respostas aos quesitos, sendo possível que o tribunal ou qualquer das partes processuais solicite a prestação de esclarecimentos complementares (arts. 484.º e ss CPC e 157.º e ss CPP). Expostos os traços fundamentais do regime de produção de prova pericial, parece resultar evidente que este modelo assenta no pressuposto de que o especialista nomeado pelo tribunal conhece as preocupações com as finalidades do processo e que intervirá no processo com a única finalidade de auxiliar o juiz a estabelecer os factos com objetividade. Por essa razão, o perito é visto como um assistente neutro e imparcial do tribunal, muitas vezes apelidado de auxiliar do juiz, instrumento de prova, funcionário de direito público ou até mesmo de companheiro do tribunal7. Para tal concorre ainda o facto de lhe ser facilitado o acesso a todos os elementos constantes do processo, podendo ainda requerer informação às partes, visitar locais, solicitar assistência de outros especialistas ou pedir informações a terceiros. Por tudo isto, questiona-se, inclusivamente, se ainda estaremos na esfera dos meios de prova, ou se estaremos já perante a figura de um verdadeiro assessor, uma vez que o seu papel parece estar mais próximo do de um assistente do juiz do que propriamente de uma testemunha8. Na prática judiciária, assistimos a um excesso de confiança na independência e conhecimentos dos peritos. Prova disso mesmo é o facto de, em regra, ser nomeado apenas um perito para as questões de especial complexidade técnica e as suas conclusões assumirem uma posição de destaque perante os demais meios de prova. Ora, se no âmbito do Direito civil a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal, já no processo penal assistimos pacificamente ao reconhecimento de uma dupla-autoridade ao perito, que advém não só dos seus conhecimentos, de natureza técnica e científica, mas também do facto de as conclusões que escreve no seu relatório pericial se encontram subtraídas à
7 VERKERK, Remme, Comparative aspects of expert evidence in civil litigation, International Journal of Evidence & Proof, Vol. 1 (2009), p. 169. E isto porque, mesmo não estando sujeito às regras de inquirição de testemunhas, nem podendo decidir a causa ou substituir-se ao juiz, sempre intervém na apreciação da prova. Tal evidência é-nos apresentada por SANTOS, Manuel Simas; LEAL-HENRIQUES, Manuel, Código de Processo Penal Anotado, 2.ª ed., reimp. e atual. Porto, Editora Rei dos Livros, 2003, vol. 2, p. 830. 8 Sobre esta constatação, vide VERKERK, cit, p. 80 e CALHEIROS, cit, p. 138 e ss.
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livre apreciação da prova (art. 163.º, n.º 1 do CPP), o que lhe confere assim um valor especial e reforçado9. Esta especial credibilidade está relacionada quer com a natureza oficial das perícias – designadamente as realizadas em organismos públicos –, quer com as presumidas imparcialidade e competência do perito nomeado pelo tribunal, em regra integrado num quadro administrativo das instituições oficiais de peritagem forense. Como resultado, aquilo a que se tem vindo a assistir pacificamente é a uma aceitação acrítica e generalizada das conclusões apresentadas pelos peritos nos seus relatórios periciais. Mais do que isso, nas sentenças proferidas pelos nossos tribunais tem sido sufragado que a apreciação que se deverá fazer dos relatórios periciais deve ser de natureza científica e, por essa razão, por via de regra, excluída da competência do juiz10. Tais preocupações ganham especial relevo no âmbito da valoração da prova nos processos de natureza crime, já que nestes a prova pericial se encontra subtraída à livre apreciação, como já referimos. A este respeito, sempre será de questionar como poderá o juiz debater, técnica e cientificamente, o relatório pericial se foi precisamente a sua falta de
9 Refira-se, no entanto, que a livre apreciação da prova se mantém intacta relativamente aos factos que estão na base do parecer dos peritos. É este, de resto, o entendimento que tem sido adotado na jurisprudência. Veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de maio de 1993, no qual se defende que “sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência. [O] juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial impõe-se, em princípio, ao julgador que o tem de acatar; [se] dele divergir - e é lícita a divergência - o julgador terá de fundamentar a sua discordância”. Para fundamentar suficientemente a sua divergência, o juiz pode aderir às conclusões da opinião vencida, no caso de uma perícia colegial, ou às formulações ou objeções levantadas pelo consultor técnico ou ainda a uma das opiniões quando tenham sido apresentadas perícias com resultados contraditórios. Sobre o tema, ainda ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed., atual., Lisboa, Universidade Católica, 2011, p. 444 e GASPAR, António Henriques Gaspar [et al.], Código de Processo Penal: comentado, Coimbra, Almedina, 2014, p. 686. 10 DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Processual Penal, Reimp. 1.ª ed. 1974, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 209-210. Tome-se ainda como referência a admiração que um médico psiquiatra expressa quando leu um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que, apelando às considerações constantes do seu relatório, as definiu como “juízos científicos de certeza, próprios das funções que lhes foram cometidas” – MOTA, Victor, Quase responsáveis: vinte anos de psiquiatra forense, Porto, Hospital de Magalhães Lemos, 2012, p. 125. Deve ainda ler-se, sobre concordância total entre as conclusões emitidas na perícia e decisão judicial constante dos acórdãos, GONÇALVES, Rui Abrunhosa, Psicologia forense em Portugal: uma história de responsabilidades e desafios, Análise Psicológica, Vol. XXVIII (2010), p. 109 e ss.
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conhecimento sobre a matéria em discussão que determinou a produção de prova pericial11. Neste contexto, aquilo que parece é existir uma “delegação da decisão”12 do juiz a favor do perito, uma vez que a fundamentação da sentença proferida assenta, em larga medida, nas conclusões apresentadas no relatório pericial. Efetivamente, a prova pericial assume no processo um maior destaque comparativamente aos demais meios de prova e aparenta situar-se num patamar de nível superior aos demais, já que raramente o relatório pericial passa pelo crivo do contraditório de que a lei faz depender a valoração de todos os outros meios de prova produzidos no processo13. Por outro lado, esta falta de controlo relativamente às perícias pode significar uma abertura nos processos judiciais à produção de meras “opiniões” e não de “juízos técnicos e científicos”, desde logo porque não estão previstos requisitos mínimos de fundamentação dos relatórios periciais nem se exigindo uma descriminação pormenorizada dos métodos usados pelos peritos, nem respetivos graus de credibilidade e confiabilidade14. Tudo isto poderá culminar na tentação sentida pelos peritos em extravasar as suas funções para outros elementos do processo, esquecendo a importân-
11 Sobre as formas de ilidir a presunção, pode ler-se NEVES, Rosa Vieira, A livre apreciação da prova e a obrigação de fundamentação da convicção (na decisão final penal), Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 94-95. Não deixamos, contudo, de compreender que assim seja, até porque seria paradoxal que a lei determinasse a intervenção de peritos especializados e depois admitisse que a prova pericial não tivesse qualquer relevância em relação às demais. Seguindo este entendimento, SANTOS; LEAL-HENRIQUES, cit., p. 831. 12 Cf. CALHEIROS, cit., p. 140. 13 Entre outros, os acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 18.03.2015, no âmbito do proc. n.º 344/12.9GBCLD.L1-3; do mesmo Tribunal, o acórdão proferido em 11.02.2010, no proc. n.º 949/05.4TBOVR-A.L1-8; o acórdão proferido em 07.11.2007 no proc. n.º 3986/07, no qual se refere expressamente “Face ao regime vigente, se o julgador acatar o juízo técnico, científico ou artístico dos peritos, inerente à prova pericial, nada terá que dizer. Também o Supremo Tribunal de Justiça em 12.11.1996, no proc. 96P669, considerou existir “manifesta insuficiência para a decisão da matéria de facto” porque o Tribunal Coletivo divergiu do juízo contido no auto de exame médico sem fundamentar devidamente a sua convicção. Todos disponíveis em www. dgsi.pt [consult. 28 mai. 2018]. 14 Este problema é-nos descrito por SOUSA, cit., p. 40.
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cia da tecnicidade e objetividades do seu contributo15. De resto, muitas das vezes esta tentação é fomentada pelo próprio julgador e pelas partes, que formulam quesitos e levantam questões esperando respostas conclusivas e claras, não permitindo a margem de liberdade para que os peritos expressem todas as preocupações e esclarecimentos tidos por convenientes. O problema parece então residir no desconhecimento pelos juristas de que as demais ciências trabalham também com conceitos complexos e que não são capazes de, por si, oferecer a certeza que delas se espera. Desta forma, o exercício do contraditório nos moldes em que está concebido também se poderá revelar inadequado aos conhecimentos dos especialistas, desde logo porque trabalham numa área que lida com conceitos complexos e imponderáveis e nos seus pareceres vêm-se inibidos de fazer as perguntas que consideram pertinentes ou de expressar uma opinião completa. Isto poderá transparecer uma imagem completamente distorcida do caso concreto ou permitir que a sua opinião seja desvirtuada e reconduzida a respostas de “sim” ou “não”16. Tal é compreensível não apenas pelo prestígio de que gozam as ciências, a cujo paradigma de cientificidade os juristas ainda parecem manter-se reféns, mas também pelo desconhecimento dos intervenientes processuais acerca das matérias objeto das perícias. Sobre este aspeto, sempre devemos esclarecer que as expectativas que os juristas depositam sobre os peritos, como especialistas e “cientistas”, esperando deles respostas concretas, objetivas e inabaláveis, se prende com o facto de as finalidades dos processos judiciais remetem para a procura de uma verdade, esquecendo que as demais áreas do saber não trabalham com respostas definitivas, mas antes com possibilidades e hipóteses de trabalho. Efetivamente, espera-se que os peritos forenses apresentem uma conclusão objetiva, 15 Esta situação é sobretudo frequente nos processos penais em que se discute a inimputabilidade do arguido. Nestes, o papel dos psiquiatras e psicólogos passa sobretudo pela determinação do estado mental do indivíduo no momento da prática dos factos, explicando em que medida, perante as bases psicobiológicas da imputabilidade, tem o arguido a capacidade de compreender o facto ilícito e de se autodeterminar perante essa avaliação, cabendo ao juiz a decisão sobre a (in)imputabilidade em função desses esclarecimentos. Sobre o conflito de competências entre o juiz, o psiquiatra e psicólogo, podem ler-se, entre outros, ROVINSKI, S. L. R., Fundamentos da perícia psicológica forense, São Paulo, Vetor Editora, 2004; FERNANDES, Henrique Barahona, Imputabilidade penal dos doentes e anormais mentais, in FERNANDES, Henrique Barahona; FERREIRA, José Carlos Ribeiro Ney; CANCELA, Mário Fernandes da Silva, Psiquiatria forense, Lisboa, Faculdade de Direito de Lisboa, 1954, p. 5-33; SILVA, José Pereira da, A propósito do exame psicológico no âmbito penal, Análise Psicológica, Vol. 1 (1993), p. 29-36 e VIEIRA, Fernando; GRAÇA, Olindina Graça, Perícias psicológicas versus perícias psiquiátricas: as minhas, as tuas e as nossas. Limites, confluências e exclusividades, in PAULINO, Mauro; ALMEIDA, Fátima Almeida, Psicologia, justiça & ciências forenses: perspetivas atuais, Lisboa, PACTOR, 2014, p. 11-27. 16 Estas preocupações surgem especialmente no seio dos modelos adversariais de processo penal, como os de matriz da commom law. Sobre estas preocupações, deve ler-se GUTIMACHER, Manfred S., The psychiatrist as an expert witness, The University of Chicago Law Review, Vol. 22 (1955), p. 327.
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científica, credível, que conduza a um facto verdadeiro e incontestável, pois só com certezas poderá lidar o processo e poderá ser tomada uma decisão final sobre a inimputabilidade do arguido. Sucede que “os cientistas não são o tipo de pessoas que têm o hábito de produzir certezas”17 e todos estes fatores fomentam um certo desconforto não só sobre a venalidade das perícias e a ignorância científica e credulidade dos advogados e juízes, mas sobretudo no próprio relacionamento entre peritos e demais intervenientes processuais18. Tendo em vista minorar tais dificuldades, a doutrina tem vindo a chamar a atenção para a necessidade de esclarecer os peritos sobre a sua função no processo, afirmando que é fundamental que os peritos saibam bem sobre o que se devem pronunciar, deixando a função de julgar para quem verdadeiramente a tem. Os peritos não são os julgadores da causa. São auxiliares do juiz. É preciso ter cuidado para que a verdadeira decisão não seja antecipada pelas conclusões do perito19.
O risco que corremos com o atual sistema jurídico, alerta a doutrina, é o de assentar uma decisão judicial numa opinião de um perito, sem contestar e 17 KOPPEN, Peter J. van, O mau uso da psicologia em tribunal, in FONSECA, António Castro, Psicologia e Justiça, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 124. Um exemplo paradigmático das dúvidas com que se deparam os profissionais na avaliação dos arguidos é apresentado por Victor Mota, médico psiquiatra, na análise que fez a um arguido, acusado de um crime de abuso sexual de menor, no qual assume que, perante as análises e dados recolhidos, poderia ter-se decidido pela inimputabilidade. Contudo, afirma não o ter feito, optando pela defesa da atenuação da imputabilidade, provavelmente pelo conjunto de consequências, de natureza diversa que se colocam nos internamentos de inimputáveis. MOTA, cit., p. 107-109. 18 Leia-se, a título exemplificativo, HAACK, cit., p. 1., citando Charles F. Himes refere “In many respects [the scientific expert] seems to be a positive annoyance to lawyers, and even to judges at times, a sort of intractable, incompatible, inharmonious factor, disturbing the otherwise smooth current of legal procedure; too important or necessary to be ruled out, too intelligent and disciplined mentally to yield without reason to ordinary rules and regulations of the court, . . . and, at the same time[,] possessing an undoubted influence with the jury, that it is difficult to restrict by the established rules and maxims of legal procedure..”. A este propósito pode também ler-se PAIS, Lúcia Maria de Sousa Gomes Gouveia, Uma história das ligações entre a psicologia e o direito em Portugal: Perícias psiquiátricas médico-legais e perícias sobre a personalidade como analisadores, Porto, Universidade do Porto, 2004, Tese de Doutoramento [consul. 26 mai. 2018], disponível em: http://repositorio.ispa.pt/handle/10400.12/1666 19 LOPES, Romeu Raimundo, A prova pericial – evolução, regime actual e questões constitucionais, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2017, Dissertação de Mestrado [consult. 20 mai. 2018], disponível em: https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/22873/1/TESE-%20FINAL.pdf, p. 46-47. Conscientes da valoração da prova pericial que é feita pelos tribunais, os peritos têm vindo a refletir sobre a importância da sua intervenção no processo e os especiais cuidados que devem ter como auxiliares do juiz. Entre outros, devem ler-se PAULINO, Mauro; CASIMIRO, Carlos Casimiro, O psicólogo na justiça: notas preliminares sobre o perito, o seu depoimento e a perícia forense, in PAULINO, Mauro; ALMEIDA, Fátima, Psicologia, Justiça & ciências forenses: pespetivas atuais, Lisboa, PACTOR, 2014, p. 57-81; GONÇALVES, cit., p. 107-115.
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sem a pretensão de a validar objetivamente, abdicando-se assim da descoberta da verdade, valor que determinou uma abertura a este meio de prova. Fazendo nossas as palavras de João Henrique Gomes de Sousa, questionamos se estaremos perante uma “inutilidade processual”20 que desvirtua o fundamento deste meio de prova. Tal facto está também associado ao alheamento do dever de investigação que impende sobre o tribunal, por recusa, falta de conhecimento técnico ou científico da matéria ou falta de tempo e/ou recursos para procurar os fundamentos e a compreensão dos factos objeto de análise pericial, abrindo portas a uma “opinião corporativa desculpabilizante do erro”21. Como forma de aferir da cientificidade da perícia, provavelmente já na esteira do modelo anglo-saxónico, várias vozes se fizeram ouvir alegando que será na própria perícia que podemos aferir da sua cientificidade, elemento essencial para garantir não só um efetivo exercício do direito ao contraditório, mas também uma decisão assente em conhecimentos técnicos, imparciais e científicos.
5. Resultados Da exposição que temos vindo a apresentar, resulta claro que a investigação se encontra numa fase ainda embrionária, pelo que não nos será possível adiantar os resultados finais da pesquisa. De todo o modo, parece-nos que a doutrina e a jurisprudência não estão ainda conscientes da gradual subversão do papel do juiz e têm vindo a aceitar, pacificamente, que os peritos venham a concentrar, em si, alguns dos poderes conferidos a quem detém a função jurisdicional. Apelando a uma discussão sobre o tema, que entendemos ser necessária e cada vez mais urgente, neste momento podemos já adiantar algumas linhas orientadoras que poderão facilmente contribuir para fomentar esse debate. 20 Cf. SOUSA, cit., p. 40. Estas preocupações já foram objeto de análise pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão proferido no proc. n.º 08P2035, em 01.10.2008, no qual se referiu que, no caso concreto, não tendo o perito apresentado uma afirmação nem sequer uma pronúncia sustentada, mas apenas uma opinião, que mais não seria do que uma probabilidade, teria necessariamente este juízo que ficar afastado da aplicação do disposto no art. 163.º do CPP. Em causa estava a seguinte conclusão do relatório pericial: “Na altura dos factos de que é acusado – com base nos elementos fornecidos pelo próprio e da informação do Hospital de Caxias onde foi internado ao 3° dia de detenção – é provável que se encontrasse em surto psicótico agudo, de causa indeterminada. Em surto psicótico agudo o sujeito não tem capacidade para adequadamente avaliar as consequências dos seus actos e omissões e de adequadamente se determinar de acordo com essa avaliação. Admitindo que na altura dos factos de que é acusado o sujeito estava em surto psicótico agudo deverá ser considerado inimputável”. 21 SOUSA, cit., p.41.
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Assim, defendemos que é essencial haver uma maior regulação quanto ao desempenho das funções do perito e na realização das perícias. A este respeito, é importante estabelecer critérios objetivos não só, p. ex., acerca do acesso que estes podem ter aos processos, mas sobretudo quanto à estrutura e requisitos do relatório pericial. Igualmente será de extrema relevância assegurar meios para o exercício de um contraditório efetivo e critérios para valoração do resultado da perícia, que necessariamente se deverão prender com testes de admissibilidade e credibilidade do método e das conclusões apresentadas. A acrescer, a formação dos magistrados e dos peritos será um dos fatores a ter em consideração para se alcançar um verdadeiro e profícuo diálogo entre a ciência e o processo judicial. Por outro lado, o reforço de formas efetivas de reação dos relatórios periciais e uma maior abertura, pelos magistrados, à assessoria técnica, poderão contribuir, a par de maiores exigências da fundamentação das sentenças, para uma valoração mais rigorosa deste tipo de prova, já que o seu valor probatório está sobretudo relacionado com o rigor científico do método usado.
6. Conclusão Por tudo quanto se disse nas páginas anteriores, urge refletir sobre o modelo de produção de prova pericial e de inferência da ciência nos processos judiciais. Com efeito, parece que os atores da justiça permanecem, mesmo nos dias de hoje, alheados das discussões filosóficas sobre a ciência e continuam reféns do paradigma científico que ganhou eco nos séculos anteriores. Em boa verdade, no ponto de partida, parece desconhecer-se as reais implicações e importância da prova pericial no processo. E esta realidade parece ser aceite por todos os intervenientes: pelas partes e respetivos mandatários, porque se sentem incapazes de contraditar as perícias e pelos juízes, porque depositam um elevado grau de esperança de que as perícias garantam com imparcialidade, objetividade e tecnicidade o grau de certeza e de aproximação à verdade que se exige nos processos judiciais. No ponto de chegada, assistimos a uma acrítica aceitação da prova pericial, a qual não raras vezes fica à margem do controlo que deve ser feito relativamente a todos os meios de prova. Ao perito atribui-se uma dupla-autoridade, que nem ao juiz é reconhecida, e parece que o paradigma clássico segundo o qual o juiz era visto como o “perito dos peritos” tem sofrido uma evolução que culmina no perito como o juiz da causa.
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A CORRUPÇÃO E O BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS EM MOÇAMBIQUE: UMA RELAÇÃO SIMBIÓTICA E ANORMAL Miguel Mussequejua1
1. Introdução A corrupção corresponde, hodiernamente, a uma realidade profundamente mediatizada, assegurando a primeira página dos jornais nos quatro quadrantes do mundo2. Trata-se de uma questão que suscita profundos e permanentes debates quer de natureza jurídica quer de natureza sociológica. Corresponde a um tema cuja vitalidade atrai as mais inesperadas audiências. A corrupção tem sido nos últimos anos apontada como um crónico problema de governação dos países, com efeitos negativos no combate à pobreza e promoção do desenvolvimento. Tal situação é demonstrada por diversas evidências empíricas, mostrando que a corrupção tem consequências nefastas no
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Doutorando em Direito pela Universidade do Minho, Mestre em Direito pela Universidade Eduardo Mondlane, Advogado e Assistente Universitário da Universidade Zambeze.
2 Atente-se a eventos mediáticos como o julgamento do antigo presidente braileiro Lula da Silva, do antigo Primeiro Ministro portugês José Sócrates ou mesmo da antiga presidente coreana Park Geun – Hye, todos envolvidos em processos onde a acusação por corrupção constitui uma linha comum.
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campo da redistribuição da riqueza, aumentando, com efeito, as desigualdades de renda3. Como adverte Gonçalo Bandeira, tornou-se tão comum utilizar as expressões «combate à corrupção»; «luta contra a corrupção»; «guerra à corrupção»; «batalha da corrupção»; «vamos matar a corrupção»; etc. etc., que nos escusamos de citar aqui. Tais expressões estão praticamente em todo o lado. Não apenas na comunicação social mais diversa, mas também entre juristas (uns mais doutos do que os outros), associações privadas e mesmo em instituições públicas e inclusive órgãos de polícia criminal, entre outros4. A simbiose constitui a associação de dois seres que embora diferentes na espécie, vivem em conjunto, compartilham vantagens e se caracterizam como um só organismo e é isto que se pretenderia que fosse a relação entre o branqueamento de capitais e a corrupção. Com efeito, o que sucede, é que a matriz da incriminação pelo branqueamento de capitais funda-se na ocultação de tais bens materiais e fluxos monetários, passando a ideia de que o funcionário corrupto na verdade não o é. No entanto, caminhando em sentido contrário, o que se verifica é que na maior parte das vezes estes agentes corruptos, optam por exibir, dando sinais externos de riqueza avultadíssima à luz do dia, não se dando sequer o trabalho de os ocultar, pois há evidência da punição ser escassa, um olhar para o lado por parte das autoridades de administração da justiça5. O presente artigo pretende analisar de modo circunspecto o quadro legal do combate à corrupção no ordenamento jurídico moçambicano, de modo a averiguar se há alguma falha que determine a inércia ou apatia das autoridades da administração da justiça no combate a esta maleita social que nos últimos tempos graça o país e coloca em perigo as gerações futuras. Este exercício será efectuado com recurso à doutrina sobre a matéria bem como no amparo legislativo e eventualmente jurisprudencial.
3 MACUANE, José J.; SITÓI, Filipe; MADUELA, Amélia, Relatório de avaliação de impacto pesquisa sobre o combate à corrupção, Maputo, MPD, 2009, p. 13. 4 BANDEIRA, Gonçalo S. M., Algumas notas sobre o problema da «corrupção», sobretudo no seio do Direito penal económico e social, quer de um ponto de vista do Direito penal, quer a partir de uma perspectiva criminológica: o caso da empresa, in III Congresso Internacional de Ciências Jurídico-Empresariais, Leiria, Instituto Politécnico de Leiria – Escola Superior de Tecnologia e Gestão, 2013, p. 26. 5 Uma aproximação neste sentido PEREIRA, Pedro Gomes; TRINDADE, João Carlos, Visão geral e análise do pacote legislativo anti‐corrupção de Moçambique: análise jurídica, Basileia, Basel Institute on Governance, 2012, p. 13 e ss.
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2. Do conceito de corrupção Existem dois sentidos básicos do termo corrupção. O primeiro diz sentido respeito à corrupção dos princípios, no sentido ético de corrosão dos alicerces de uma estrutura política, social ou comunitária. Numa visão mais restrita, o conceito se remete às transacções ilícitas dirigidas a alguém ou por alguém em posição de poder beneficiar-se com um objectivo privado6. A corrupção visa também o acesso dos cidadãos às decisões dentro de um quadro ético que lhes permite manter a confiança de um sistema político justo e isento de qualquer tipo de vício no seu quadro existencial. Já numa dimensão legal, a corrupção versará sobre os mecanismos de natureza jurídico-normativa, instituídos de modo a assegurar à colectividade que as acções dos funcionários públicos e outros que trabalham em actividades de interesse público estejam arrimadas no quadro legal e constitucionalmente definidos7. Como expendeu Eugénio Zaffaroni a “corrupção é a relação que se estabelece entre uma pessoa com poder decisório estadual e outra fora desse poder em virtude do qual trocam-se vantagens, obtendo ambas um incremento patrimonial, em função de um acto ou omissão da esfera de poder da primeira em benefício da segunda”8. Numa sequência próxima, Luigi Ferrajoli expende que a criminalidade do poder onde se enquadra a corrupção “caracteriza-se por uma pretensão à impunidade”9. Na verdade, a corrupção baseou-se desde a antiguidade na aceitação de qualquer dádiva por parte dos funcionários públicos aliado à infâmia, de modo que a sua punição se tornava necessária não somente para restaurar a reputação do funcionário, mas e com especial incidência no restauro da boa honra do Estado.
6 SHECAIRA, Sérgio Salomão, Corrupção, uma análise criminológica, in Direito Penal como crítica da pena. Estudos em homenagem a Juarez Tavares, Luís Greco; António Martins (orgs.), São Paulo, Marcial Pons, 2012, p. 603 7 SHECAIRA, cit., p. 604. 8 ZAFFARONI, Eugénio Raúl, La corrupción: su perspectiva latinoamericana, Criminología y Derecho Penal, Ano 1, n. 1, jan.-jun., (1991), p. 172-179. 9 FERRAJOLI, Luigi, Criminalidade e Globalização, Revista do Ministério Público, n.º 96, (2003), p. 12.
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Como expendeu Fabián Caparros, a corrupção inunda todas as manifestações sociais, agredindo os interesses mais essenciais do cidadão em benefício daqueles que detêm o poder10. A corrupção funda-se, portanto, na mercantilização da função pública ou privada de interesse público, prejudicando em nome de um benefício pessoal aos demais cidadãos. Esta construção permitiu de algum modo assegurar que determinados sectores de actividade, nomeadamente os bancos, passassem a ser sujeitos da ameaça penal pelos crimes de corrupção, muito presente nas solicitações e autorizações de créditos bancários, sob signo de comissões, entretanto não dirigidas à entidade bancária, bem como pelo facto de poderem colocar em risco a sanidade do sistema financeiro através da concessão de créditos com elevado grau de risco sem a devida avaliação, pelo facto de estar comprometida pela corrupção as acções diligência devidas aos bancários e banqueiros.
3. Quadro Legal de combate à corrupção em Moçambique Em Moçambique o combate11 à corrupção foi estruturado nos principais instrumentos de planificação da acção política e governamental, nomeadamenteo Plano Quinquenal e o Plano de Acção da Redução da Pobreza absoluta – PARPA12. De forma mais específica, o combate à corrupção é uma das componentes da EGRESP (Estratégia Global da Reforma do Sector Público) entretanto hoje substituída pela Plano de Acção da Estratégia de Reforma e Desenvolvimento da Administração Pública (ERDAP) 2016-2019, aprovada em Novembro de 201613. Na mesma senda o Governo moçambicano aprovou, para o combate à corrupção, a Estratégia Anti‐Corrupção (EAC), que entrou em vigor em 2006, hoje entretanto superada pelos sucessivos planos estratégicos, sendo o último 2018-2022. A estratégia anti corrupção assentou em três pilares: a prevenção, a acção administrativa e o sancionamento. Neste contexto a prevenção assenta a aplicação do quadro normativo, uma acção administrativa, que se funda na interação do sistema repressivo com os órgãos de controlo interno e externo da actividade 10 FABIÁN CAPARROS, Eduardo, La corrupción: aspectos jurídicos y económicos, Salamanca, Ratio Legisl, 2000, p. 20. Tais palavras foram proferidas após o então secretário geral da ONU Kofi Anan ter referido que “a fome, a guerra e o sida não desaparecerão enauqnto o poder estiver nas mãos de governantes corruptos.” 11 BANDEIRA, cit., p. 30-33. Este autor mostra-se crítico à esta formulação de “combate à corrupção”, entendendo-a como um chavão de índole políticaque não tem serventia enquanto instrumento técnico jurídico ao serviço do legislador de um estado de Direito Democrático” 12 O PARPA acha-se entretanto já findo. 13 MACUANE; SITÓI; MADUELA, cit., p. 13.
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administrativa e quando constatada a existência de actos corruptos a investigaçao e o endosso do respectivo processo para as autoridades judicantes. Nesta sequência, foram aprovados alguns normativos de índole penal, a saber a Lei n.º 6/2004, de 17 de junho, que veio aprovar os mecanismos complementares de combate á corrupção, visto que à data da sua aprovação, o então vigente Código Penal de 1886, já previa nos artigos 318 e 321 os crimes de corrupção, nas suas vertentes activa e passiva, respectivamente. Adensando o quadro legal de combate à corrupção, foi também pela Lei 6/2004, de 17 de junho, criado o Gabinete Central de Combate à Corrupção, que sendo um órgão do Ministério Público, fica subordinado ao Procurador Geral da República. A Lei 6/2004, de 17 de junho constitui porém um marco importante porque os mecanismos em referência para o combate à corrupção são de extrema utilidade porquanto desenvolve o normativo um novo plano de incriminação para actividades que densificam o conceito de corrupção, nomeadamente a obrigação de declaração de bens14 por parte dos servidores públicos15 com competências decisórias, a obrigatoriedade da fundamentação das decisões administrativa16, a participação económica em negócio17. A Lei 6/2004, de 17 de junho, ao adoptar o modelo de controlo de corrupção pela consagração de órgãos especializados, nomeadamente magistrados do Ministério Público e magistrados judiciais em regime de turno. Note-se porém que pela investigação empírica sobre o tema, desde 2004, em que foi aprovada a lei em tela, nunca foi criado ou utilizado o sistema de juíz de turno, mostrando desse modo que ou se trata de um regime ainda não conhecido pelas entidades de investigação, mormente o Ministério Público. Outro aspecto essencial é a ligação que se mostra legalmente estabelecida é a obrigação das entidades de controlo interno e externo18, independentemente de se tratarem de entidades privadas ou públicas. Aqui se nota-se mais uma questão profunda que este normativo apresenta que se funda numa obrigação de informação ao Gabinete Central de Combate à Corrupção, sempre que se verifique em sede de alguma auditoria algum facto que gere fundada suspeita de corrupção. E, na eventualidade de violação desta norma, estão estabelecidas sanções para as entidades que prevaricam e deixam de prestar as informações ou fazer as comunicações legalmente estabelecida, com multas que podem ascender 14 Cfr. Art.º 4 da Lei n.º 6/2004, de 17 de junho. 15 A menção de servidor público nos termos dalei em tela abarca os funcionários públicos strictu sensu, bem como os agentes que representam os interesses do Estado nas empresas por este participadas ou detidas. 16 Cfr. Art.º 5 da Lei n.º 6/2004, de 17 de junho. 17 Cfr. Art.º 10 da Lei n.º 6/2004, de 17 de junho. 18 Cf. Art.º 21 da Lei n.º 6/2004, de 17 de junho.
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aos 8 milhões de meticais19 para as pessoas colectivas. As sanções incluem também a suspensão do alvará para exercício da actividade na qual se incumpriu a determinação legal, sendo que ambas as formas de sanção são de índole judicial. O Código Penal de 2014, por seu turno, não se distancia deste combate à corrpção, consagrando uma série de normas repeitantes ao tema, nomeadamente a corrupção eleitoral20, corrupção activa21, corrupção passiva para acto ou omissão ilícita22, corrupção passiva para acto lícito23 e corrupção de magistrados e agentes de investigação criminal24. Note-se que embora o núcleo da disucusão sobre a corrupção sobre a corrupção se funde na actuação do servidor público, o novo regime trazido pelo Código Penal de 2014, alarga o ambito da inciminação, admitindo aqueles que não sendo servidores públicos, ainda assim pratiquem acções que se reconduzam à incriminação.
4. Branqueamento de capitais A incriminação pelo branqueamento de capitais no ordenamento jurídico moçambicano remete ao ano de 2002, aquando da aprovação da Lei n.º 7/2002, de 5 de fevereiro, como na maior parte dos países em decorrência de um movimento internacional de criminalização deste tipo de condutas. Posteriormente foi revista a lei de 2002, passando a vigorar a Lei 7/2012, de 5 de fevereiro, que em pouco tempo foi descontinuada, sendo revogada e substituída pelo normativo substancialmente melhorado que é a Lei n.º 14/2013, de 12 de agosto. O branqueamento de capitais corresponde a uma evolução das actividades criminosas, uma sofisticação da sua actuação que, quando não controlado gera enormes prejuízos às economias dos países onde as tais actividades ocorrem. Trata-se de uma forma de fazer o crime compensar, como adiante João Davin quando lembra que as organizações criminosas que actuam principalmente no ramo de tráfico de estupefacientes lograram obter rendimentos tão vultuosos que eram susceptíveis de pôr em crise a economia e as finanças de
19 Equivalente a 115 mil Euros. 20 Cfr. Art.º 446 do CP. 21 Cfr. Art.º 501 do CP. 22 Cfr. Art.º 502 do CP. 23 Cfr. Art.º 503 doCP. 24 Cfr. Art.º 504 doCP.
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certos países tidos por mais vulneráveis25, nomeadamente os que tem uma democracia ainda imberbe ou mesmo inexistente. O branqueamento de capitais é uma realidade também associada ao financiamento do terrorismo e constituem uma preocupação permanente da comunidade internacional, tendo nessa sequência o legislador moçambicano feito disso menção na Lei n.º 14/2013, de 12 de agosto. O fenómeno adquiriu uma dimensão transnacional e ameaça a estabilidade da economia a uma escala global. De acordo com o artigo 4 da Lei n.º 14/2013, de 12 de agosto, comete o crime de branqueamento de capitais aquele que: a) “ocultar, transferir, auxiliar ou facilitar qualquer operação de conversão, transferência de produtos do crime no todo ou em parte, de forma directa ou indirecta, com o objectivo de ocultar ou dissimular a sua origem ilícita ou de auxiliar a pessoa implicada na prática das actividades criminosas a eximir-se das consequências jurídicas dos seus actos” b) “ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade de produtos do crime ou direitos relativos a eles” c) “Adquirir, possuir a qualquer título ou utilizar bens sabendo da sua proveniência ilícita no momento da recepção”.
5. Entidades de protecção contra o branqueamento de capitais em Moçambique De acordo com o artigo 3 da Lei n.º 14/2013, de 12 de agosto, há diversas entidades que devem conformar a sua actuação com o dever de não promover ou apoiar qualquer actividade de branqueamento de capitais, separando-as entre entidades financeiras e não financeiras. Tais entidades sujeitam-se a diversas sanções em caso de incumprimentos dos seus deveres no âmbito da lei em referência. O controlo de actividades que sejam referentes ou suspeitas de corresponderem ao branqueamento de capitais, à luz do artigo 18 da Lei n.º 14/2013, de 12 de agosto, está consignado ao GIFIM (Gabinete de Informação Financeira
25 DAVIN, João, Branqueamento de capitais e a corrupção. Aspectos práticos, Separata de Revista do Ministério Público, N.º 91 (2002), p. 233.
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de Moçambique) que sendo uma FIU26 tem competências para receber e fazer a devida investigação dos reportes efectuados pelas entidades referidas no artigo 3, com a finalidade de apurar se as suspeitas de facto concretizam o ilícito de branqueamento e com isso promover a continuidade do processo ao Ministério Público para efeitos de acusação e posterior remessa a julgamento. A Lei n.º 14/2013, de 12 de agosto, também reserva para as entidades de supervisão do sector financeiro um papel importante no âmbito do controlo do branqueamento de capitais, quando impõe que estas assegurem que as entidades sob sua supervisão cumpram a lei. A Lei n.º 14/2013, de 12 de agosto define um conjunto de medidas quer de índole administrativo quer penal, com vista a reprimir actividades de branqueamento de capitais no ordenamento jurídico moçambicano.
6. O branqueamento e a corrupção Como supra definida, a corrupção corresponde ao desvalor do comportamento do servidor público que decide por motu propriu ou a pedido de um particular, mercadejar a sua função a troco de benefícios financeiros ou de outra espécia seu favor ou para pessoa por si determinada. Note-se que o processo de branqueamento engloba três fases distintas e sucessivas que consistem na colocação, segundo a qual os bens e rendimentos são colocados nos circuitos financeiros e não financeiros, seguindo-se a circulação, onde os bens e rendimentos são objeto de múltiplas e repetidas operações, com o propósito de os distanciar da sua origem criminosa, apagando (dissimulando) os vestígios da sua proveniência e propriedade, e finalmente a integração que ocorre quando os bens e rendimentos, depois de reciclados, são reintroduzidos nos circuitos económicos legítimos (por exemplo, através da sua utilização na aquisição de bens e serviços). Com assento na estatística e na publictação mediática, maior parte das acções de corrupção sustentam-se na obtenção de vantagens patrimoniais para o servirdor corrupto. E como tal, estas vantagens negociadas quando transferidas a favor do servidor corrupto, pelo quadro típico do branqueamento, o comportamento natural do servidor corrupto seria de se servir dos mecanismos de branqueamento, nomeadamente a ocultação, a dissimulação e finalmente a conversão das vantagens adquiridas, de modo a dar uma aparência de legalidade do ingresso na sua esfera patrimonial de tais proveitos. Sucede porém que com a maior estranheza que tal pode sigificar, no ordenamento jurídico moçambicano, não obstante os esforços que especialmente 26 Correpondente a Unidade de Inteligência Financeira.
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alguns bancos realizam no controlo das transacções, baseando-se no conheciemnto do perfil do seu cliente (KYC)27, não há qualquer registo de ter sido autuado e instruído como tal um processo de branqueamento de capitais que tenha chegado a acusação e julgamento28. Trata-se de uma situação incompreensível, pois se for tido em conta que os planos de acção governamental desde 2005 se focaram (pelo menos na parte discursiva e textual-normativa) em acções tendentes a extreminar o mal que é designado por corrupção, mau grado tal não ter ocorrido no plano jurisdicional.
7. Conclusão A corrupção, como referiu Ana Frade29 pela análise histórica, por mais superficial que seja, demonstra que a corrupção sempre existiu. É um mal endémico, que infecta o Estado, corroendo as suas entranhas, em maior ou menor grau. O perigo de recidiva estará sempre presente, mesmo que se utilizem fortes antibióticos e vacinas polivalentes. A corrupção não acabará. Erradicá-la é um lirismo. Seria necessário mudar primeiro a sociedade e, sobretudo, os interesses, a conduta e os anseios individuais. O desenvolvimento das sociedades modernas acompanhou asactividades criminosas que se adaptaram às vantagems de uma socedade comunicacional onde as distâncias de ir e vir se tornam cada vez menores, bem como a circulação de bens e fluxos financeiros se tornou mais expedita devido aos desenvolvimentos científicos bem como pelo interesse justo dos estados em aproximar-se cada vez mais uns dos outros30 Neste quadro, o branqueamento de capitais emerge como consequência da utilização pelos deliquentes cujo nível de estruturação e proficiência económica das organizações criminosas em que se acham envolvidas exige. Trata-se de uma exigência fundada na posse de altas somas monetárias e em espécie que determina o aparecimento de medidas para o branqueamento.
27 Quando não corresponde ao perfil do cliente os bancos tem usualmente recusado determinadas operações, com especial ênfase ao crédito em numerário às contas, bem como quando não o faça antes do crédito, realizando o bloqueio até o que o cliente faça a devida prova da legal proveniência da quantia ora depositada. 28 Procuradoria Geral da República de Moçambique (2017), Informe Anual de 2017, Maputo, disponível em http://www.pgr.gov.mz/images/documentos/informe-anual/Informe_pgr_2017.pdf., [consult. 3 jun. 2018]. 29 FRADE, ANA, A corrupção no Estado Pós-Colonial em África, Porto, CEAUP, 2007, p. 28. 30 Note-se entretanto uma mudança de paradigma do actual líder dos Estados Unidos da América, que caminha em sentido de um isolacionismo nas relações económicas com os seus parceiros de sempre.
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Em sentido contrário, no caso moçambicano, a simbiose proposta pelo título do presente artigo mostra-se recusada pelos factos, visto que contrariamente ao que se deveria esperar – o servidor público corrupto ocultar os seus bens – há uma exibição frenética dos ganhos obtidos em sede de acçtividades corruptas. Esta situação coloca em crise o quadro legal de branqueamento de capitais, quando se trate de vantagens obtidas pela via da corrupção, antagonizando deste modo a necessária simbiose com o branqueamento de capitais.
Referências bibliográficas BANDEIRA, Gonçalo S. M., Algumas notas sobre o problema da «corrupção», sobretudo no seio do Direito penal económico e social, quer de um ponto de vista do Direito penal, quer a partir de uma perspectiva criminológica: o caso da empresa, in III Congresso Internacional de Ciências Jurídico-Empresariais, Leiria, Instituto Politécnico de Leiria – Escola Superior de Tecnologia e Gestão, 2013. DAVIN, João, Branqueamento de capitais e a corrupção. Aspectos práticos, Separata de Revista do Ministério Público, N.º 91 (2002), p. 230-257. FABIÁN CAPARROS, Eduardo, La corrupción: aspectos jurídicos y económicos, Salamanca, Ratio Legisl, 2000. FERRAJOLI, Luigi, Criminalidade e Globalização, Revista do Ministério Público, n.º 96, (2003), p. 7-20. FRADE, ANA, A corrupção no Estado Pós-Colonial em África, Porto, CEAUP, 2007. MACUANE, José J.; SITÓI, Filipe; MADUELA, Amélia, Relatório de avaliação de impacto pesquisa sobre o combate à corrupção, Maputo, MPD, 2009. PEREIRA, Pedro Gomes; TRINDADE, João Carlos, Visão geral e análise do pacote legislativo anti‐corrupção de Moçambique: análise jurídica, Basileia, Basel Institute on Governance, 2012. SHECAIRA, Sérgio Salomão, Corrupção, uma análise criminológica, in Direito Penal como crítica da pena. Estudos em homenagem a Juarez Tavares, Luís Greco; António Martins (orgs.), São Paulo, Marcial Pons, 2012. ZAFFARONI, Eugénio Raúl, La corrupción: su perspectiva latinoamericana, Criminología y Derecho Penal, Ano 1, n. 1, Jan.-Jun., (1991), p. 172-179.
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O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A APLICAÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS: O USO DE BAGAÇO, PALHA E PONTAS DA CANA DE AÇÚCAR NA COGERAÇÃO DE ENERGIA Priscila Elise Alves Vasconcelos1 Paulo Sérgio Vasconcelos2
1. Introdução Segundo dados da EMBRAPA em 2018, o Brasil possui mais de sete milhões de hectares plantados, sendo o maior produtor mundial de cana-de-açúcar. Isso corresponde a uma produção superior a 480 milhões de toneladas de cana de açúcar3. 1
Doutoranda em Direito pela Universidade Veiga de Almeida (RJ). Mestre em Agronegócios (UFGD). Especialista em Meio Ambiente (COPPE UFRJ), Direito Público e Direito Privado (EMERJ ESA). Advogada e pesquisadora nas áreas de Direito Ambiental Econômico e Direito de Energia.
2
Doutor em Planejamento Energético (COPPE UFRJ). Mestre em Administração (ESA). Economista. Possui diversas especialidades. Pesquisador na área de Bioeconomia com ênfase em Energia. Professor universitário na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD MS)
3 AGEITEC, Agência Embrapa de Informações Tecnológicas. Cana de Açúcar, [consult. 20 fev. 2018], disponível em: http://www.agencia.cnptia.embrapa.br/gestor/cana-de-acucar/arvore/ CONTAG01_1_711200516715.html.
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Encontro de Investigadores da Escola de Direito da Universidade do Minho 2018
Da cana-de-açúcar, pode-se extrair não só o açúcar como o etanol, estando o Brasil na liderança mundial em tecnologia de produção deste combustível. Por ser uma cultura capaz de gerar vários produtos e subprodutos, a cana pode ser usada tanto para consumo alimentar como também para outros fins, como a produção de substitutos de derivados do petróleo, tal como o bioplástico e outros, como a geração de energia elétrica que se utilizam dos resíduos da produção. De acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos4, o gerenciamento dos resíduos e as responsabilidades dos seus geradores e do próprio Poder Público estão ali previstas, em respeito ao disposto na Constituição da República de 19885 acerca da responsabilidade ambiental. É necessário abordar a existência de uma política para incentivar a produção de energia elétrica limpa e renovável por produtores autônomos. Esse programa foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro em 2002, através da Lei no. 10.438/20026. Através dela, tornou-se possível aumentar a participação da energia elétrica produzida por empreendimentos de Produtores Independentes Autônomos, seja através de fontes eólica, pequenas centrais hidrelétricas e biomassa, no Sistema Elétrico Interligado Nacional. Imprescindível destacar a busca pelo desenvolvimento sustentável que a temática impõe. Ao utilizar resíduo como matéria prima para a cogeração de energia elétrica, está-se respeitando o preceito desenvolvido em 1987 pelo Relatório de Brundtland e novamente trazido na Declaração do Rio realizada durante a Conferência Internacional das Nações Unidas, ocorrida na cidade de Rio de Janeiro em 1992 (RIO 92)7. Desde então, a busca pelo desenvolvimento sustentável vem servindo de paradigma a diversas políticas públicas não só no Brasil como em todo o mundo. Para este estudo foi realizada uma pesquisa bibliográfica além de dados oficiais que demonstram a aplicação das politicas públicas inerentes.
2. Objetivos Este trabalho tem por objetivo abordar o uso de resíduos da cana-de-açúcar na cogeração de energia elétrica em busca do cumprimento do princípio do desenvolvimento sustentável. 4 Brasil, Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei 12.305/2010. 5 Art. 225 da Constituição da República Federativa do Brasil. 6 Brasil, Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica - PROINFA. Lei 10.438/2002. 7 Conferencia das Nações Unidas. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. 1992.
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O desenvolvimento sustentável e a aplicação da política nacional de resíduos sólidos: o uso de bagaço, palha e pontas da cana de açúcar na cogeração de energia
2.1 Dos resíduos das atividades sucroenergéticas: o bagaço O Brasil apresenta uma posição de destaque no mercado mundial acerca da produção de cana-de-açúcar. Por consequência, há uma quantidade relevante de usinas sucroalcooleiras em todo o território nacional. O setor sucroenergético está em grande expansão no Brasil, provocado pela demanda mundial na questão de utilização de energias renováveis. Verifica-se que a maior concentração de usinas que também são termoelétricas está na região Sudeste e Centro-Sul do país. Com o intuito de realizar a geração de energia elétrica, as usinas sucroalcooleiras passaram a utilizar os resíduos de sua cadeia produtiva. Através dessa alternativa, tornou-se possível reduzir a quantidade de resíduos além de atingir a sustentabilidade no tocante à bioeletricidade. Tornaram-se assim usinas sucroenergéticas. Assim, dentre os resíduos gerados na cadeia das usinas sucroalcooleiras, é possível destacar a palha, o bagaço, as cinzas, as tortas de filtro e a vinhaça.
2.2 Da aplicação da política nacional de resíduos sólidos Dentre os resíduos gerados pela cana-de-açúcar, a palha, o bagaço e as pontas são utilizadas na co-geração de energia elétrica8. O bagaço é um subproduto da etapa produtiva de extração do caldo, sendo composto basicamente de fibras e água9 e juntamente com palha e pontas serve como matéria-prima para gerar calor e energia elétrica. As cinzas e as tortas de filtro são oriundas da queima do bagaço da cana de açúcar nas caldeiras10. A vinhaça é um subproduto do processo de fabricação do etanol. Para que se efetive a aplicação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, verifica-se que os resíduos gerados pela indústria sucroenergética podem ser classificados de acordo com a origem, periculosidade e reciclabilidade. Os resíduos palha, bagaço, pontas e cinzas são, de acordo com sua origem, classificados como resíduos industriais, conforme estabelece o art. 13, I, f da Lei 8 ROMÃO JUNIOR, R. A., Análise da Viabilidade do Aproveitamento da Palha da Cana de Açúcar para Cogeração de Energia numa Usina Sucroalcooleira, Ilha Solteira/SP, UNESP, 2009, Dissertação de Mestrado. 9 RODRIGUES, A. M.; REBELATO, M. G.; PAIXÃO, R. B. S. et al., Gestão Ambiental no setor sucroenergético: uma análise comparativa, Revista Científica Eletrônica de Engenharia de Produção, vol. 14, n° 04, (2014). 10 NOGUEIRA, M. A. F.; GARCIA, M. S., Gestão de resíduos do setor industrial sucroenergético: estudo de caso de uma usina no município de Rio Brilhante, Mato Grosso do Sul, Revista Eletrônica em Gestão, Educação e Tecnologia Ambiental – REGET, vol. 17, nº 17, (2013).
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nº 12.305/2010, Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS11. Não possuem grau de periculosidade, conforme o art. 13, II, b da Lei nº 12.305/201012 e ABNT 10004:200413, item 4.2, sendo classificados como classe 2B resíduo não perigoso. No tocante à reciclabilidade, a Política Nacional de Resíduos Sólidos a descreve como uma transformação de materiais em insumos através de processos físicos, físico-químicos ou biológicos, conforme descrito em seu art. 3º., inciso XIV14. A palha, as pontas e o bagaço são resíduos capazes de gerar subprodutos da cana de açúcar e vêm ganhando cada vez mais relevância pelo seu grande potencial energético. Podendo ser utilizados para a produção de bioeletricidade, são as principais matérias primas responsáveis pela formação da biomassa necessária à cogeração15. Assim, verifica-se que a palha, as pontas e o bagaço da cana de açúcar também são resíduos recicláveis.
2.3 Do desenvolvimento sustentável: autossuficiência elétrica Nos anos de 2001 e 2002, o Brasil passou por uma forte escassez de chuva, que ocasionou uma redução dos níveis de água dos reservatórios das hidrelétricas, base da matriz elétrica brasileira. Por ter alcançado níveis críticos, a população sofreu um racionamento de energia elétrica. Em 2014 houve novo período de poucas chuvas nas áreas onde se situam as hidrelétricas, provocando a redução na geração de energia e ampliando o funcionamento das termelétricas à carvão, tidas como mais poluidoras que as hidrelétricas16. De acordo com Hinrichs e Kleinbach17, o Brasil possui uma vantagem considerável quando comparado com outros países pelo potencial natural energético que possui. Da cana-de-açúcar, objeto deste estudo, é possível extrair o etanol, combustível renovável com taxas de emissões de gases poluentes inferiores quando comparado aos derivados de petróleo. 11 Brasil, Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei no 12.305 de 2 de agosto de 2010. 12 V. item 4. 13 Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), ABNT NBR 10004:2004, Resíduos sólidos – Classificação. 14 V. item 4. 15 V. item 4. 16 VASCONCELOS, P. S.; CARPIO, L. G. T., Estimating the economic costs of electricity deficit using input–output analysis: the case of Brazil, Applied Economics, vol. 47, issue 9, (2014). 17 HINRICHS, R. A.; KLEINBACH, M., Energia e Meio Ambiente, 3 ed., São Paulo, Thompson, 2003.
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Ao tratar do tema sustentabilidade ambiental, Simioni informa que o Direito de Energia incorporou essa referência como premissa18. Com a descentralização do sistema de geração, transmissão, distribuição e consumo de energia, é possível verificar uma tríplice referência jurídica, ecológica e tecnológica que são os fundamentos para os princípios específicos ao Direito da Energia. Com a classificação trazida pela Lei 10.438/2002, as usinas sucroenergéticas se enquadram como produtores autônomos de energia no momento que passam a utilizar a biomassa como matéria prima para a cogeração19. A Comissão Europeia elaborou em 2007 um pacote relativo à energia e alterações climáticas, com o objetivo de estimular a redução de emissão de GEE (gás de efeito estufa). Criou-se a Política Energética para a Europa onde um dos principais pilares é a eficiência energética a fim de promover a sustentabilidade ambiental20. De acordo com o princípio do desenvolvimento sustentável, trazido pelo Relatório de Brendlant em 198721, é necessário o respeito às ordens econômicas, ambientais e sociais, para que seja alcançado. O Ministério do Meio Ambiente22 conceitua produção sustentável como uma incorporação, ao longo de todo ciclo de vida de bens e serviços, tendo por finalidade o uso de alternativas para redução de custos ambientais e sociais. Com base nesse preceito, conceitua a responsabilidade socioambiental como as ações que respeitam o meio ambiente e as políticas que apresentem dentre seus objetivos a sustentabilidade. Importante o destaque com relação à responsabilidade pela preservação ambiental, cabível a governos, empresas e a cada indivíduo. Através do uso de biomassa, resíduo da cana-de-açúcar, as usinas cogeradoras conseguem atingir o consumo sustentável no ciclo de produção de energia limpa. Respeitando o disposto pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente23-PNUMA-, há uma melhor qualidade de vida através da redução no uso de recursos naturais e materiais tóxicos, geração de resíduos e a emissão de
18 SIMIONI, Rafael L., Princípios do direito da energia, Revista Jus Navigandi, ano 16, nº 2911, jun. (2011). 19 Ministério das Minas e Energia (MME). 20 EEA - European Environment Agency. 21 Relatório de Bruntland, A ONU e o meio ambiente, disponível em: https://nacoesunidas.org/acao/ meio-ambiente/. 22 Ministério de Meio Ambiente, Responsabilidade Socioambiental, Brasil, 2016, disponível em: http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental.html. 23 Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, 1972, disponível em: https://nacoesunidas. org/agencia/onumeioambiente/.
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poluentes durante todo ciclo de vida do produto ou do serviço, preservando as futuras gerações.
3. Metodologia Fortemente influenciado pela Política Nacional de Meio Ambiente24, em 1981, houve o início de uma fase de conscientização da sociedade com relação à preservação ambiental. Em 1997, com a implementação da Política Energética Brasileira pelo Ministério de Minas e Energia, há um novo marco histórico na legislação ambiental. O Brasil possui posição de destaque como um dos maiores produtores de energia renovável do mundo25. O país também possui uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo, sendo que mais de 45% de toda a energia utilizada no país é gerada a partir de fontes renováveis26. Tolmasquim relata que o uso de biomassa como matéria prima para bioletricidade, em 2016 foi responsável por cerca de 8% da matriz elétrica brasileira. Trata-se de fonte termelétrica renovável e utilizada como forma de conservar e proteger o meio ambiente27. Há um grande número de usinas sucroenergéticas distribuídas ao longo do território brasileiro, contribuindo na disponibilização da matéria prima necessária à cogeração como também no acesso às energias limpas renováveis e sua distribuição28. Dentre os estados brasileiros com maior produção de bioenergia, é possível destacar os estados de São Paulo, Minas Gerais e Paraná, responsáveis por 45% de toda a produção nacional29. No ano de 2015, a FIRJAN publicou um ranking dos países com o custo mais elevado de energia elétrica para indústria. Brasil e Portugal possuem um custo muito alto de energia quando comparado com outros países desenvolvi-
24 Brasil, Política Nacional do Meio Ambiente, Lei no. 6.938/ 1981. 25
VASCONCELOS, P. E. A; VASCONCELOS, P. S., Responsabilidade Ambiental e Sustentabilidade das Usinas de Bioenergia, X CBPE Congresso Brasileiro de Planejamento Energético, Gramado/RS., 2016.
26 Políticas energéticas brasileiras, Energia inteligente. 27 TOLMASQUIM, Mauricio T. (org.), Energia Renovável, Rio de Janeiro, EPE, 2014. 28 VASCONCELOS, P.E.A., Responsabilidade jurídico-ambiental das usinas sucroenergéticas e a recuperação de áreas degradadas, Dourados/MS, Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, 2017, Dissertação de Mestrado. 29 União dos Produtores de Bioenergia. UDOP. Produção Brasileira.
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dos, sendo o valor de R$534,28 por MWh o brasileiro, enquanto o custo português era de R$ 290,40 por MWh30. Em 2016, Portugal conseguiu no mês de maio, por um período de 04 dias utilizar apenas energia limpa, renovável e sustentável para atender a necessidade de sua população. Com o total de 107 horas de consumo, não foi utilizado nenhuma outra fonte de energia advinda de carvão ou gás natural para abastecer a sua rede elétrica31.
4. Discussão e Resultados O Brasil é signatário de tratados internacionais de proteção ao meio ambiente e redução de danos ambientais. Tendo em vista a Conferência das Nações Unidas ocorrida em 2015 (COP 21), onde foram discutidas medidas sobre as mudanças climáticas, o Brasil se comprometeu a buscar novas alternativas para desenvolver com o menor impacto possível. O que leva a uma mudança na matriz energética brasileira, com a necessidade de buscar novas alternativas limpas e com investimentos mais baixos, juntamente ao atendimento aos paradigmas legislativos, como a redução de resíduos sólidos32. Apresentando papel de destaque no uso de biomassa para cogeração de energia desde 2013, o Brasil já era o país com maior uso desse material para produção (cogeração) de energia, correspondendo a 16% do uso mundial do setor, seguido pelos Estados Unidos, 9%, e Alemanha, 7%. Em 2013, o uso da biomassa representava 10% da cogeração elétrica global33. Importante destacar que no ano de 2016 houve uma expansão da capacidade instalada de energias renováveis no Brasil. Foi alcançado o percentual de 80,6% do total da matriz nacional, superando a média mundial de 33%, sendo o equivalente ao uso de biomassa na cogeração o de 9,3%34.
30 V. item 29. 31 ALVES, Virgínia, Renováveis alimentaram o país quatro dias e meio, Diário de Notícias, 16 mai. (2016), [consult. 01 fev. 2017], disponível em: https://www.dn.pt/dinheiro/interior/renovaveisalimentaram-o-pais-quatro-dias-e-meio-5176232.html. 32 V. item 29 33 WALTER, Arnaldo; DOLZAN, Paulo, Country Report: Brazil – Task 40 – Sustainable Bioenergy Trade; securing Supply and Demand, [s.l], IEA Bioenergy Task 40, 2014. 34 Brasil, Ministério de Minas e Energia, Capacidade Instalada de Geração Elétrica Brasil e Mundo, disponivel em: http://www.mme.gov.br/documents/10584/3580498/09+Capacidade+Instalada +de+Gera%C3%A7%C3%A3o+El%C3%A9trica+-+ano+ref.+2016+%28PDF%29/ef977c6324e2-459f-9e5b-dd2c67358633;jsessionid=E771C31AC8C293339D02919A5D95A2C6.srv155.
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5. Conclusão Os resíduos sólidos (bagaço, palha e pontas da cana) oriundos da produção de açúcar e etanol são a matéria prima necessária para a cogeração de energia elétrica. Como há uma quantidade de resíduos produzidos sem que seja feito o descarte adequado, verifica-se a oportunidade de não só reduzir seu volume como também trazer benefícios à sociedade. A cogeração através da biomassa acaba por incidir positivamente no aspecto econômico e ambiental, podendo também ser uma técnica de logística reversa nos parâmetros definidos pela Política Nacional de Resíduos Sólidos.
Referências bibliográficas ALVES, Virgínia, Renováveis alimentaram o país quatro dias e meio, Diário de Notícias, 16 mai. (2016), [consult. 01 fev. 2017], disponível em: https:// www.dn.pt/dinheiro/interior/renovaveis-alimentaram-o-pais-quatro-dias-e-meio-5176232.html. BERNARDO, André, Participação de usinas de cana na geração de energia do país poderia ser seis vezes maior. Revista Galileu, (2013), [consult. 7 jul. 2016], disponível em: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI326727-18537,00-PARTICIPACAO+DE+USINAS+DE+CANA+NA+GERACAO+DE+ENERGIA+DO+PAIS+PODERIA+SER+SE.html. GURGEL, M.N.A.; CORREA, S.; DOURADO NETO,D., et al., Tecnologia para aproveitamento de resíduos da agroindústria sucroalcooleira como bio fertilizante organomineral granulado, Eng. Agríc. [online], vol. 35, nº 1, jan.-fev, (2015), p. 63-75, [consult. 05 mar 2018], disponível em http://www.scielo.br/ scielo.php?pid=S0100-69162015000100063&script=sci_abstract&tlng=pt. HINRICHS, R. A.; KLEINBACH, M., Energia e Meio Ambiente, 3 ed., São Paulo, Thompson, 2003. NOGUEIRA, M. A. F.; GARCIA, M. S., Gestão de resíduos do setor industrial sucroenergético: estudo de caso de uma usina no município de Rio Brilhante, Mato Grosso do Sul, Revista Eletrônica em Gestão, Educação e Tecnologia Ambiental – REGET, vol. 17, nº 17, (2013), p. 3275 – 3283. Disponível em https:// periodicos.ufsm.br/index.php/reget/article/download/10444/pdf, [consult. 27 fev 2018]. RODRIGUES, A. M.; REBELATO, M. G.; PAIXÃO, R. B. S. et al., Gestão Ambiental no setor sucroenergético: uma análise comparativa, Revista Científica Eletrônica de Engenharia de Produção, vol. 14, n° 04, (2014), p. 1481-1510,
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A IDEIA DE “ABANDONO DOS MÉTODOS” NA FORMAÇÃO DO CONVENCIMENTO DO MAGISTRADO E O CARÁTER DE CIENTIFICIDADE DA FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS Raphaela Sant´Ana Batista Toledo1
1. Introdução O dever de fundamentar tem grande importância como forma de estabelecer limites mínimos de verificabilidade e controle de conteúdo das decisões judiciais, sendo compreendido como mecanismo de proteção contra a arbitrariedade judicial, visto que impõe ao julgador a obrigação não somente de expor as razões que formaram o seu convencimento como, ainda, de apresentar como estabeleceu seu processo de escolha. Nesse processo, verifica-se o pensamento, ainda arraigado na cultura jurídica, de que para se conferir certeza e legitimidade a uma decisão judicial, sua construção deve estar calcada em algum método interpretativo que permita ao 1 Doutoranda em Direito pela Universidade do Minho, na linha de pesquisa em Ciências Jurídicas Gerais. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Professora Titular Adjunta dos cursos de Direito do Centro Universitário Tiradentes e Centro Universitário Cesmac (Brasil). Investigadora do Centro de Investigação de Justiça e Governação - JUSGOV da Escola de Direito da Universidade do Minho.
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julgador objetivar o processo de escolha, tornando-o, de certa maneira, dotado de cientificidade. Sendo assim, o presente trabalho tem por escopo analisar a relação existente entre o processo de formação do convencimento do magistrado e a fundamentação das decisões judiciais, tomando como parâmetro a evolução, no plano filosófico, da necessidade de instituição de um método de decisão que confira à atividade interpretativa certo caráter de veracidade, certeza e legitimidade. A fundamentação das decisões judiciais é, pois, aqui tomada como o ambiente onde o magistrado deve demonstrar a utilização de um método ou procedimento que consiga justificar o caminho seguido até chegar a uma decisão racionalmente correta, o que nem sempre consegue ser demonstrado como se verá adiante.
2. O “abandono dos métodos” na hermenêutica quanto ao processo de formação do convencimento do magistrado A apreensão do conhecimento pelo homem tem sido ao longo do tempo uma preocupação filosófica das mais relevantes. Isso porque o “conhecer algo” ou se apropriar do que vem a ser o objeto conhecido deve revelar um processo por meio do qual esta apropriação foi possível. Isso revela uma inquietação sobre se o conhecimento é algo pré-existente e, portanto, deve ser descoberto pelo sujeito ou se é algo construído pelo próprio sujeito utilizando-se de sua experiência. Por isso, parece que a questão da apreensão do conhecimento pelo homem orbita em torno de um método capaz de explicar como o homem desenvolve novos saberes e aprimora o conhecimento, e que seja capaz de lhe conferir certo grau de certeza e veracidade. O método, aqui tratado, se refere a algo apreendido de forma “matematizada”, no sentido do que é conhecido através de regras pré-definidas2, assim como no campo das ciências exatas cujo conhecimento científico é operacionalizado através de um conjunto de regras que proporcionem um resultado objetivamente aferível. Nesse sentido, ao se falar em conhecimento e da relação existente entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, deve-se partir, filosoficamente, da metafísica. Historicamente, a metafísica é marcada pela tradição essencialista grega e pelo pensamento teológico do direito canônico na idade média. No século XVII, houve uma ruptura dessa tradição, marcada pelo pensamento racionalista, tendo como grande expoente René Descartes, através do questionamento 2 SCHIMITZ, Leonard Ziesemer, A fundamentação das decisões judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil, Coleção Liebman, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 48.
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de todos os dogmas tidos por inquestionáveis. A dúvida, no pensamento cartesiano, era a linha mestra do raciocínio considerado científico3. A dúvida, que representava o ponto alto de seu pensamento, levou Descartes ao desenvolvimento de seu método dedutivo: observações gerais para constatações (conclusões) particulares. Descartes foi levado por seu raciocínio a um máximo de dedução, passando a duvidar até da própria existência. O eu cogito significava que se tudo parte da dúvida, até a minha própria existência poderá ser questionada4, e o postulado máximo de sua teoria a metafísica teológica foi substituída pela figura do homem como fundamento último de compreensão do mundo. O pensamento cartesiano marcou uma visão antropocentrista em relação à apreensão do conhecimento pelo homem. Já não era o saber algo pré-existente, simplesmente a ser descoberto enquanto uma verdade imanente, mas dependia da percepção do homem que, ao duvidar, colocava em cheque a existência e a veracidade de determinado objeto. O antropocentrismo, nesse aspecto, se afigura como subjetivismo enquanto ambiente adequado para o descobrimento de verdades5. A lógica cartesiana dominou o pensamento europeu quando, no fim do século XVIII, essa construção passa a ser questionada através da obra de Kant, A Crítica da Razão Pura. Kant elimina a ideia da “coisa em si”, como a crença de que os objetos possuem uma essência a ser descoberta “revelada” e transfere essa categoria para o próprio homem. Deve-se levar em conta que o pensamento em Kant remonta à ideia de método como sendo algo matematizado, conforme mencionado em linhas anteriores. O que se pode ser aprendido pelo homem – em razão da visão antropocentrista -, deve ser operacionalizado de um modo referido e somente desse modo. Há uma forma particular de aprender e de proceder. Isso significa que um dado não é por si só dotado de sentido e significação, mas deverá ser orientado por um princípio orientador e sistematizante6. O método ganha sua importância, pois, como sendo uma estrututa autossuficiente, algo que promete resolver de forma objetiva e completa, através de um procedi-
3 MORRISON, Wayne, Filosofia do Direito: dos gregos ao pós-modernismo, Trad. Jefferson Luiz Camargo, São Paulo, Editora Martins Fontes, 2006, p. 95 4 DESCARTES, René, O discurso do método, São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011, p. 38. 5 SCHIMITZ, cit., p. 38 6 PIRES, Márcio, O método da razão pura em Kant: o filosofar como exercício arquitetônico, Studia kantiana, n. 17, dez., (2014), p. 51-62, p. 57.
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mento pré-determinado, a interpretação que o homem faz para conhecer textos e objetos7. Esse subjetivismo que marcou a filosofia até o fim do séc. XIX é marcado pela visão do homem como constituidor dos sentidos do mundo e, por isso, é chamado de “filosofia da consciência”. É o homem que através da linguagem atribui significado às coisas. Não há uma relação necessária entre o objeto e a sua significação como algo pré-determinado, porque essa significação é dada pela linguagem8. Essa visão antropocêntrica do homem como construtor do conhecimento através da linguagem, colocou sob questionamento a ideia de que o raciocínio dedutivo estruturado através de um método seria suficiente para explicar como o homem interpreta os textos e as coisas. A partir daí percebeu-se que um único texto poderia gerar mais de uma interpretação possível e, por isso, deveria ser criado um mecanismo capaz de manter a integridade de sentido ou um sentido “correto” ao mesmo9. A filosofia da linguagem marca, pois, uma libertação do pensamento pautado num método capaz de generalizar as condições em que o conhecimento é apreendido. Desse modo, quando o intérprete procede à leitura do texto, ele não o faz de maneira procedimentalizada através de um método, até porque não há uma consciência racionalizável quanto à forma com a qual pensamos, ou seja, isso não é controlável pelo intérprete porque quando pretende interpretar para conhecer o objeto, na verdade já o conhece10. É a partir deste raciocínio que a filosofia da linguagem começa efetivamente a influênciar a hermenêutica jurídica11. Como não há exatidão linguística, não há como controlar procedimentalmente a forma como o intérprete opera cognitivamente a interpretação, e isso terá forte influência na forma como os operadores do direito interpretam os textos jurídicos e os aplicam. Desse modo, Gadamer, influenciado pela teoria de Heidegger, propõe o abandono dos métodos no processo de investigação nas ciências humanas, visto não ser possível encontrar um objeto ao qual se atribua o caráter de “verdade” descoberto metodologicamente. Nesse sentido, Gadamer assevera que
7 SCHIMITZ, cit., p. 42. 8 STRECK, Lênio, Hermenêutica jurídica e(m) crise, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2011, p. 178. 9 STRECK, cit., p. 199. 10 SCHIMITZ, cit. p. 48. 11 OLIVEIRA, Rafael Thomaz de, Decisão judicial e conceito de princípio, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2008, p. 149.
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É obvio que aquilo a que chamamos de filosofia não é ciência no mesmo sentido em que são chamadas ciências positivas. Não há dúvida que o âmbito da filosofia não é algo positivo que possa ser situado ao lado dos âmbitos de investigação das outras ciências. A filosofia se ocupa do todo. Porém este todo não é somente o todo como união de todas as suas partes. Mas consiste numa ideia que supera as possibilidades finitas do conhecimento, não sendo assim nada que possa ser conhecido de maneira científica12.
Nesse ponto, Gadamer inova ao afirmar que a interpretação requer a inserção do objeto a ser interpretado num contexto histórico, ou seja, como o sujeito vê o acontecer na história e na linguagem13. Assim sendo, o intérprete não tem condições de pensar por meio de métodos e procedimentos que o levem a estabelecer um conceito preciso acerca de determinado objeto. Ao final, ao proceder à interpretação, ele “escolhe” o método cujo resultado lhe pareça mais útil e mais satisfatório ao resultado ou à decisão que já tomou ou pretende tomar. Essa é uma marca que parece se assimilar ao raciocínio jurídico. No processo racional de tomada de decisão, o intérprete e aplicador cognitivamente seleciona a decisão que lhe parece ser a mais acertada partindo de algum padrão de justeza da decisão e então seleciona, através de um procedimento ou um método existente a forma como vem a justificar, a posteriori, a decisão tomada. Essa é talvez uma forma de raciocínio que seja mais condizente com o Direito, visto que o pensamento jurídico não atua sobre o que é objetivamente demosntrável, mas com o que é provável e verossímil. Nesse quesito, resta invertida a lógica dedutiva e silogística de pensarmos no objeto a fim de conhecê-lo, como se ele já existisse antes da interpretação: quando interpretamos, na verdade já conhecemos o objeto. Contudo, a par da mudança paradigmática operada no campo da filosofia da linguagem no que diz respeito à construção de que a atividade interpretativa não supõe a utilização de métodos, impende questionar por quê o raciocínio subsuntivo ainda é arraigado no pensamento jurídico como forma de conferir certo grau de certeza às decisões judiciais. Isso se verifica porque alguns dos tradicionais métodos interpretativos ou cânones hermenêuticos ainda são utilizados pelos tribunais relacionados a alguma forma metodológica de conhecimento. Os tradicionais métodos de interpretação teleológico, gramatical, sistemático, ou ainda, os princípios da interpretação constitucional tais como o da interpretação conforme a Constituição, são 12 GADAMER, Hans-Georg, A razão na época da ciência, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1983, p. 09. 13 GADAMER, Hans-Georg, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, Petrópolis, Vozes, 1997, p. 79.
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manejados muitas vezes de forma indiscriminada pelo julgador para justificar a decisão, muito embora o julgador não consiga revelar através deles o processo através do qual a decisão foi tomada. Com efeito, tem-se que uma possível explicação para este fenômeno orbite em torno do caráter de cientificidade e certeza conferido pela aparente utilização de um método que venha a justificar a decisão tomada pelo magistrado, conforme será visto adiante.
3. O apego aos métodos e o caráter de cientificidade das decisões judiciais: algumas (des)construções acerca do raciocínio silogístico e sua relação com o dever de fundamentação O raciocínio jurídico encontra seu diferencial no fato de que a construção de uma decisão deve apresentar certo grau de legitimação, demonstrando que a decisão é adequada quando efetivamente conseguir uma correspondência entre os fatos e a lei e dos fatos às provas produzidas no processo que lhes dêem lastre. Por isso, de alguma maneira, atribui-se em torno da decisão algum método que remonte à cientificidade no discurso jurídico como algo certo. E a certeza está intimamente ligada à ideia de justiça. Como Susan Haack afirma, não importa ter uma solução dentre tantas outras, mas aquela que parece ser a solução justa. Embora o raciocínio seja probabilístico, a decisão do magistrado não poderá ser cambiante14. Por isso mesmo, aparentemente, o caráter científico do Direito acaba sendo dependente de um método porque a decisão judicial, além de intentar ser legítima, pretende gerar obrigatoriedade. No mais, o fator histórico é relevante para demonstrar a influência do raciocínio dedutivo no universo das decisões judiciais. Ainda existem resquícios quanto à criação de métodos de decisão com base numa lógica subsuntiva de cáriz positivista pós Revolução Francesa, segundo a qual ao magistrado cabe apenas expressar o conteúdo da lei previsto pelo legislador e, com isso, diante do caso concreto, deve-se encontrar a norma que se encaixe aos parâmetros estabelecidos pelo caso e estabeleça uma solução para o mesmo15. Além disso, a criação de um método voltado às decisões judiciais buscava reduzir a subjetividade com a qual o intérprete e aplicador enfrentava o caso,
14 HAACK, Susan, Of truth in science and in law, Brooklyn Law Review, vol. 73, nº 02, (2008), p. 563-586, p. 569. 15 SCHIMITZ, cit., p. 52.
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possibilitando autocontrole e conferindo à sua atividade um caráter previsível16. Desse modo, nos países do civil law, o controle das decisões através de métodos que viessem a conferir objetividade ao processo de tomada de decisão contribuiu sobremaneira para assegurar aos julgadores liberdade em relação às instâncias políticas. Nesse esteio, a atividade de julgar é, antes de tudo, uma atividade criativa que faz surgir, por meio da interpretação, uma norma jurídica individualizada. O julgador cria uma norma jurídica que servirá de fundamento jurídico para a decisão a ser tomada na parte dispositiva do pronunciamento judicial. É, pois, a parte dispositiva da decisão onde se encontra a norma jurídica individualizada para o caso concreto17. Assim, se no Direito a utilização de um método capaz de conformar o processo através do qual o julgador toma a sua decisão é difícil, é bem aceita a ideia de que o convencimento do magistrado está fundado, quase sempre, num juízo de verossimilhança, sendo, portanto, inatingível o grau de certeza e de “verdade” relacionável à decisão. Assim sendo, através do processo, o que se busca é um critério de determinação mais aproximado ou uma “verdade possível”, entendida como sendo aquela suficiente para que o juiz profira a sua decisão de forma justa. Ocorre que, para que o juiz confira legitimidade à decisão, é preciso justificar como se deu a formação de sua convicção, surgindo daí a necessidade de fundamentação. A fundamentação das decisões são, desta forma, um imperativo para que o magistrado efetivamente demonstre quais são as razões que lastreiam a decisão, bem como se deu o processo de formação de seu convencimento, estando muito longe de um dever de simplesmente apresentar quais foram os dispositivos legais escolhidos que devem ser subsumidos aos fatos postos em questão no caso concreto. Noutro passo, ocorre que, cognitivamente, é difícil acessar o processo através do qual tomou a decisão, visto que este decorre de vários fatores, inclusive de ordem subjetiva. Uma decisão, nesse sentido, tem um caráter pragmático, no sentido de que as impressões pessoais do magistrado podem influenciar no processo de formação do convencimento do juiz, ainda que este não se dê conta disso18. 16 KRELL, Andreas Joachim, Entre o desdém metodológico e aprovação na prática: os métodos clássicos de interpretação jurídica, Revista Direito GV, nº 19, jan-jun, (2014), p. 494. 17 DIDIER JR, Fredie, Sobre a fundamentação da decisão judicial, 2012, [consult. 19 jan. 2017], disponível em: www.frediedidier.com.br/wp-content/uploads/2012/02/sobre-a-fundamentacao-da-decisao-judicial.pdf&ved+0ahUKEwiT1. 18 CARDOZO, Benjamin Natan, A natureza do Processo Judicial, Trad. Silvana Vieira, São Paulo, Editora Martins Fontes, 2004, p. 02
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Diante disso, se há a necessidade de demonstração de um processo através do qual o magistrado formou o seu convencimento e que justifique as razões expostas no bojo da decisão, tem-se que a adoção de um método capaz de simplificar e objetivar esse processo, atendento ao imperativo de fundamentação estabelecido por lei para que a decisão não padeça por vício e carência de fundamentação e, assim, de nulidade. Por tal motivo, segundo Zaccaria19, a metodologia jurídica adota como programa mais convincente procurar reconstruir através de um método o processo através do qual o intérprete chega a uma decisão tida por correta, utilizando-se da argumentação para legitimá-la. De acordo com o autor, para que uma interpretação não apareça como mero arbítrio, é preciso que ela tome por base reflexões comunicáveis e claras. Por isso mesmo, ao invés de tentar consolidar através de um método capaz de reduzir a um padrão objetivo a atividade interpretativa e de formação do convencimento do magistrado, a metodologia jurídica deveria aprender a observar melhor a prática forense, extraindo dela “programas informais” regidos por rotinas e hábitos funcionais da atividade judicial. Já que não é possível controlar ou estabelecer um procedimento único que oriente o processo de tomada de decisão judicial, sobrecarregando-se com esta pretensão de difícil alcance, a ciência do direito deveria limitar-se a investir seus esforços na capacidade de controlar se a decisão que, uma vez tomada, deve ser justificada racionalmente. Andreas Krell enfatiza que, “nessa tarefa, os meios metódicos tradicionais não levam ´à verdade`, mas servem como boas razões no processo discursivo de uma argumentação. O que é materialmente correto não pode ser fixado e ´conhecido` unilateralmente, mas deve ser produzido de maneira intersubjetiva e, assim, reconhecido”20. Sendo assim, o processo de seleção de determinado fundamento visa a resolver um problema de ordem prática e de forma justa e por isso mesmo deve ser arrazoada, mas isso não quer dizer que necessariamente isso deva ocorrer através de um método que influencie ou controle a forma como, intelectivamente, o intérprete chegue ao resultado justo, mas que leve em consideração procedimentos argumentativos que legitimem de forma consensual um critério de verdade e certeza da decisão. Por isso, a própria interpretação consiste num processo argumentativo de escolha, orientado por um lado formal, estabelecido através de regras mínimas
19 ZACCARIA, Giuseppe, Razón jurídica e interpretación, Compilação Ana Messuti, Navarra, Thomson Civitas, 2004, p. 28 20 KRELL, cit., p. 298.
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de raciocínio e por outro lado consensual, ao buscar alcançar concordância sobre valorações que influenciem nas ideias finalísticas da decisão21. Com efeito, a argumentação jurídica, no caso da motivação de uma decisão judicial, possui uma certa aptidão prática para a demonstração da justiça da decisão e atende à necessidade de fundamentar, sendo esta suprida argumentativamente.
4. Conclusão Deve-se ter em vista que a influência da filosofia da linguagem no campo do Direito operou mudanças paradigmáticas que repercutiram numa mudança de visão quanto à necessidade de estabelecer um método capaz de organizar e controlar a forma como o homem desenvolve novos saberes. Na teoria jurídica, por situar-se na área das ciências sociais e humanas, não dispõe de uma metodologia que consiga lidar com os problemas concretos e, de certo modo, controlar a racionalidade humana a ponto de estabelecer um procedimento através do qual o intérprete e operador do Direito toma suas decisões. Isso reflete no fato de que, ainda que não exista uma forma de controlar cognitivamente o processo através do qual o juiz decide, há um certo apego ao método no sentido de que sua utilização confere certo caráter de cientificidade à decisão, como se esta cientificidade atribuísse à decisão o caráter de certeza e de justiça do qual a decisão carece para ser legítima e obrigatória. No mais, a ideia de “apego ao método” coloca o intérprete numa posição de certo conforto ao realizar a interpretação, visto que o raciocínio subsuntivo ainda arraigado no pensamento jurídico aparenta ser uma fórmula fácil de construção de uma solução jurídica para o caso posto sob julgamento. Eis que nesse processo de formação do convencimento do magistrado está o dever de fundamentação enquanto um imperativo de demonstração não só dos dispositivos legais que serão aplicados ao caso, escolhidos normativamente em detrimento de outros igualmente aplicáveis, mas, também do dever de motivar, reconstruir o procedimento utilizado pelo juiz até o perfazimento de seu convencimento, demonstrando, assim, às partes, os motivos de sua escolha. Sendo assim, por ser uma tarefa hercúlea e de difícil alcance a demonstração de como se deu a formação de seu convencimento, visto que foi influenciada por variados fatores de índole endo e extraprocessuais, tem-se que deve-se buscar, através da fundamentação, uma aproximação em nível ótimo de um critério de veracidade, certeza e justiça, já que esses critérios não podem ser objetivamente demonstrados através da metódica jurídica atualmente existente. 21 KRELL, cit., p. 252.
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Nessa linha de pensamento, ao expor argumentativamente as razões de convencimento, o intérprete sujeita tais razões a uma legitimidade estabelecida consensualmente, produzida de maneira intersubjetiva e, assim, reconhecida.
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OS EXCESSOS DA LÍNGUA UTILIZADA NOS TRIBUNAIS COMO UM OBSTÁCULO AO ACESSO À JUSTIÇA Ricardo Russell Brandão Cavalcanti1
1. Introdução O presente estudo decorre de uma dificuldade na qual o autor do trabalho se depara na sua atuação como Defensor Público: a grande dificuldade de compreensão do linguajar utilizado nas petições jurídicas, em especial nas sentenças e nos acórdãos, o que pode vir a dificultar o acesso à justiça.
2. Metodologia
A metodologia adotada será exploratória, por meio de pesquisa bibliográfica. Assim, o estudo será iniciado com a questão da narrativa no discurso, para, em seguida, se chegar ao ponto central do problema: as dificuldades geradas em virtude do excesso de robustez do linguajar jurídico.
3. Dos Objetivos O objetivo do geral do presente estudo é analisar a chamada língua falada nos tribunais, ou “juridiquês”, por ser, em algumas situações, extremamente 1 Doutorando em Ciência-Jurídicas Públicas pela Universidade do Minho, Braga/Portugal, mestre em Direito, Processo e Cidadania pela Universidade Católica de Pernambuco, professor efetivo do Instituto de Ciência e Tecnologia de Pernambuco –IFPE, Defensor Público Federal em Pernambuco/Brasil
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complexa. Já o objetivo específico é analisar a razão pela qual por vezes decisões judiciais não são compreendidas pelos menos letrados e até mesmo por pessoas que possuem uma boa formação, porém sem ser da área jurídica, de modo que também são chamados de leigos2, o que pode incluir as próprias partes envolvidas no processo.
4. Da narrativa do Direito Antes de adentrar propriamente nas especificidades da língua falada nos tribunais, urge a necessidade de falar da importância da escrita para o Direito, uma vez que o Direito é uma narrativa que começa antes mesmo do início do processo, começa desde o momento em que o cliente procura o advogado pela primeira vez para narrar a sua história3. O processo cível, por exemplo, começa por uma petição inicial, que, tal como a acusação penal e a reclamação trabalhista, comumente se divide nas partes dos fatos, dos fundamentos e dos pedidos, um típico texto narrativo: com começo, meio e fim. A parte dos fatos é considerada a mais importante, pois o juiz julga com base nos fatos trazidos pelas partes e a questão de Direito o juiz pode julgar com base no seu próprio conhecimento em face do princípio jura novit curia (o juiz conhece o direito), ainda que existindo situações nas quais a questão de fato e as questões de Direito são tão próximas que não é possível fazer uma separação4. Desta feita, a parte dos fatos mais se aproxima de uma narrativa típica. Após a petição inicial, a parte contrária terá o direito de apresentar uma contestação, com a sua versão dos fatos, ou seja, uma nova narrativa visando convencer o juiz a indeferir o pleiteado. No primeiro grau o feito será finalizado com uma sentença, que necessariamente deverá ter o relatório com uma narrativa resumindo as versões das partes e os acontecimentos do processo, seguida de uma fundamentação na qual o magistrado deverá agir também de forma convincente e argumentativa para gerar a satisfação e o convencimento do “acerto da decisão”5 por parte dos envolvidos, bem como o
2 PIEDADE, Fernando Oliveira; COSTA, Marli Marlene Moraes da, Direito e linguagem: participação social e acesso à Justiça, in Direito e marxismo, Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (org), Caxias do Sul, RS, Educs, 2014, p. 114. 3 SILVA, Joana Maria Madeira de Aguiar e, As narrativas do direito e as verdades judiciais, in Linguagem, argumentação e decisão judiciária, Rui do Carmo, et al. (org.), Coimbra, Ed. Coimbra, 2012, p.113. 4 LARENZ, Karl, Metodologia da ciência do direito, tradução José Lamego, 3ª ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p.435. 5 SOUZA, Carlos Aurélio Mota de, Motivação e fundamentação das decisões judiciais e o princípio da segurança jurídica, Revista Brasileira de Direito Constitucional, nº 7, vol. 2, (2006), p. 363.
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convencimento do próprio magistrado6, finalizando com o dispositivo, na qual efetivamente se terá a decisão do juiz e que é considerado por alguns uma “norma jurídica individualizada”7, pois, como afirma Kelsen, a decisão judicial não “tem um simples caráter declaratório”8, possuindo também uma função criadora. Após a sentença, as narrativas continuam a existir por meio dos recursos e contrarrazões das partes e dos acórdãos dos tribunais. Desse modo, pode-se afirmar que Direito é narrativa, é escrita, do seu início até o seu final, principalmente porque a própria norma é um fenômeno linguístico9. Naturalmente, os processos judiciais são escritos no âmbito interno com o vernáculo (a língua) próprio de cada país. Entretanto, conforme será visto em seguida, no meio jurídico existe um linguajar próprio, usado apenas pelos profissionais da referida área e que acaba vindo a ser, quando se está diante de excessos, um obstáculo do Acesso à Justiça.
5. O problema da língua falada nos tribunais (o Juridiquês) Os textos legais, a doutrina do Direito e a jurisprudência, tanto brasileira como a portuguesa, por exemplo, utilizam um linguajar próprio, muitas vezes com a presença do latim, em virtude da influência do Direito Romano e do Direito Canônico10. Em verdade, cada profissão cria o seu linguajar próprio para se distinguir e a profissão jurídica não é uma exceção11. Entretanto, alguns excessos nesse linguajar próprio podem vir a acabar dificultando o acesso à justiça por parte dos leigos, principalmente para os que possuem um baixo nível de instrução, de modo a fazer o Direito vir a ser “acessível apenas a uns poucos especia-
6 BRITO, Ana Maria Barata de, Livre apreciação da prova e prova indirecta, Lisboa, CEJ, 2013, p. 14 [consult. 29 mai. 2018], disponível em: http://www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS%20-%20MAT%20 CRIMINAL/Livre_Aprec_Prova%20e%20Prova_Indirecta.pdf 7 DIDIER JR., Fredie, Sobre a fundamentação da decisão judicial. Escrito para compor coletânea em comemoração aos quinze anos do Curso de Especialização em Direito Processual Civil do Centro de Extensão Universitária, Salvador, CEU, 2012, p. 3. 8 KELSEN, Hans, Teoria pura do direito, 6ª ed, tradução João Batista Machado, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 166. 9 ROCHA, Joaquim Freitas da, Constituição, ordenamento e conflitos normativos: esboço de uma teoria analítica da ordenação normativa, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 40. 10 PEREIRA, Francisco Caetano, O latim no discurso jurídico, Recife, Departamento de Letras do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, 2004, Pós-Doutorado, p. 6. 11 SANTOS, Boaventura de Souza, O direito dos oprimidos, Coimbra, Almedina, 2014, p. 146.
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listas”12. Desse modo, os não profissionais jurídicos envolvidos em um processo, como as partes e as testemunhas, acabam sendo excluídos do chamado círculo retórico13, até mesmo porque os excessos da mencionada língua falada nos tribunais acabam por não levar em consideração as diferenças sociais existentes entre as pessoas, de modo que a mesma pode vir a se tornar um instrumento de dominação, oprimindo ainda mais o oprimido14. Bice Mortara Garavelli frisa que não há, em verdade, uma língua própria do Direito, mas sim uma reutilização de termos especializados da língua ordinária15, o que, da mesma forma, pode vir a tornar mais difícil a interpretação dos termos jurídicos em comparação com os falados e escritos pela população em geral. Além de termos técnicos e em latim, é comum também se encontrar termos já ultrapassados, arcaicos. A professora de linguística brasileira Nirlene Oliveira traz os seguintes exemplos de expressões arcaicas encontradas nos processos brasileiros: alvazir de piso, aresto doméstico, autarquia ancilar, caderno indiciário, cártula chéquica, consorte virago, digesto obreiro, ergástulo público, exordial increpatória e repositório adjetivo16. Das palavras em questão, algumas acabam sendo incompreensíveis até mesmo por parte dos próprios profissionais com formação jurídica. A questão cá exposta, ainda que em menor intensidade, existe também para as pessoas com uma boa formação, porém sem que essa formação seja da área jurídica. A referida problemática, no entanto, ganha dimensão mais alargada quando se está diante de uma pessoa com baixa instrução. Desse modo, para essas últimas, que possuem a dificuldade em compreender a própria língua ordinariamente falada e escrita, a dificuldade em compreender os termos tipicamente jurídicos é ainda maior. É dentro dessa linha de raciocínio que Cappelletti e Garth trazem como um dos obstáculos no acesso à justiça a falta de aptidão para o reconhecimento do Direito de propor uma ação ou sua defesa17. Frise-se, no entanto, assim como já afirmado alhures, que o Direito, tal como a Medicina e a Engenharia, por exemplo, naturalmente precisa possuir 12 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio, Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão dominação, 4.ª ed., São Paulo, Atlas, 2003, p. 32. 13 SANTOS, cit., p. 146. 14 PIEDADE; COSTA, cit., p. 114. 15 GARAVELLI, Bice Mortara, Le parole e la giustizia: divagazioni grammaticali e retoriche su testi giuridici italiani, Torino, Giulio Einaudi, 2001, p. 11. 16 OLIVEIRA, Nirlene da Consolação, Linguagem Jurídica e Acesso à Justiça, Revista Pensar Direito, vol. 4, nº 1, (2013), [consult. 29 mai. 2018], disponível em http://revistapensar.com.br/direito/ pasta_upload/artigos/a121.pdf. 17 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant, Acesso à justiça, tradução de Ellen Gracie, Northfleet, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris, 2002, p. 22.
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alguns termos técnicos próprios. No Brasil há uma diferença na própria lei entre medida cautelar e medida antecipatória. São realmente expressões difíceis de diferenciação para o leigo, mas cujo uso não pode ser deixado de lado. A própria diferença entre furto e roubo é de difícil compreensão. O comum para quem não é da área jurídica é afirmar que foi roubado, mesmo que não tenha existido violência. Entretanto, faz-se necessário haver uma terminologia própria para a apropriação com violência (roubo) e para a apropriação sem violência (furto) do bem de outrem, o mesmo acontecendo com o conceito de culpa, que tem uma acepção técnico-jurídica e que é comummente utilizada de forma diversa pelos leigos18. Na linha do que afirma Hart, a linguagem técnica pode diminuir a textura aberta da linguagem natural, diminuindo as varáveis e evitando uma nova apreciação em cada caso concreto19, até mesmo porque, como afirma Castanheira Neves, “nenhuma linguagem é tão ambígua como a linguagem comum”20. Assim, o problema, ao que parece, dá-se quando o uso rebuscado da linguagem jurídica é feito de forma excessiva, como, por exemplo, com o uso exagerado de termos arcaicos ou em latim, principalmente quando a decisão judicial não se torna entendível para as próprias partes. Nesse sentido, Luciane Fröhlich afirma que a “procura por uma linguagem rebuscada e perfeita, associada à precisão de sentido, induz o jurista à formação de sentenças truncadas, evasivas”21. Desse modo, o exagero de rebuscamento nas lides jurídicas pode acabar gerando um abismo desnecessário entre o Poder Judiciário e o cidadão comum. Assim, diante do afirmado até então, levanta-se o seguinte questionamento: qual o motivo para ainda existir na atualidade um excesso de robustez nas lides jurídicas? Analisando esse mesmo problema cá estudado, Pierre Bourdieu afirma: A constituição do campo jurídico é inseparável da instauração do monopólio dos profissionais sobre a produção e a comercialização desta categoria particular de produtos que são serviços jurídicos. A competência jurídica é um poder específico que permite que se controle o acesso ao campo jurídico22. 18 SILVA, Joana Maria Madeira de Aguiar e, Para uma teoria hermenêutica da justiça: Repercussões jusliterárias no eixo problemático das fontes e das interpretações jurídica, Braga, Universidade do Minho, 2008, Tese de Doutoramento, p. 44. 19 HART, Hebert L. A., O conceito de direito, 3ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 148. 20 NEVES, António Castanheira, Metodologia jurídica: problemas fundamentais, Coimbra, Editora Coimbra, 1993, p. 117. 21 FRÖHLICH, Luciane, Redação jurídica objetiva: o juridiquês no banco dos réus, Revista da ESMESC, vol. 22, nº 28, (2015), p. 215. 22 BOURDIEU, Pierre, O poder simbólico, 2ª ed., tradução de Fernando Tomaz, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998, p. 233.
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Desse modo, só teriam acesso ao “campo jurídico” aqueles a quem os operadores do Direito permitissem o ingresso e na medida e na forma dos interesses desses profissionais. A dificuldade em se compreender o Direito seria uma forma de garantir aos profissionais da referida área o monopólio sobre a resolução dos conflitos, de modo a se fazer necessário que as pessoas sempre busquem um profissional do Direito quando se encontrem diante de qualquer questão jurídica a ser resolvida ou analisada. Entretanto, não há elementos suficientes para se afirmar que a questão em pauta decorre apenas de fatores coorporativos, quando também é possível encontrar uma série de outros fatores culturais, sociais e históricos ou até mesmo de ordem técnica, assim como afirmado acima, que podem vir a explicar as peculiaridades do linguajar jurídico. Da mesma forma que não é possível afirmar ser o referido problema apenas uma questão de poder, até mesmo porque o Direito, por si só, independentemente do seu linguajar, já pode vir a ser considerado um instrumento a serviço de classes em face do seu caráter genérico e abstrato23. De qualquer forma, a questão é que o excesso de robustez desnecessário no linguajar jurídico é um, dentre outros, obstáculo no acesso à justiça, pois, como afirma Luciana Guimarães, “a partir do momento em que uma das partes não consegue compreender a mensagem, o intuito da comunicação falhou”24. Nesse diapasão, uma das funções dos profissionais da área jurídica, isso inclui desde os advogados até os magistrados, é fixar para os leigos os sentidos das normas, ou seja, é interpretar25o que está previsto na lei, que alguns chamam de “legalês”26, de modo que a atividade jurídica muitas vezes é reconhecida como um verdadeiro processo de tradução27. Além disso, a interpretação jurídica não se esgota no texto legal, vertendo-se na extração da normatividade do mesmo, ou seja, na identificação do sentido normativo da norma28, sendo um erro muito comum se falar de interpretação da lei sem levar em consideração que ela é apenas uma, dentre outras, projeção da teoria jurídica29. Desse modo, um dos corolários da busca pelo acesso à justiça deve ser a interpretação das normas, de modo a torná-las acessíveis a todos, mormente àqueles menos instruídos, assim 23 SHAID, David, Filosofia do direito e interpretação, 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2004, p. 78. 24 GUIMARÃES, Luciana Helena Palermo de Almeida, A simplificação da linguagem jurídica como instrumento fundamental de acesso à justiça, Ponta Grossa, Publ. UEPG, 2012, p. 180. 25 KELSEN, cit., p. 245. 26 SILVA, cit., 2008, p. 28. 27 Idem, ibidem. p.31 28 NEVES, cit., 1993, p. 143-144. 29 VIGO, Rodolfo Luis, Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XIX às novas perspectivas, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005, p. 104.
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como pode ser retirado das palavras de Mozdzenski, quando o mesmo afirma: “Além disso, a compreensão de determinados termos jurídicos e de seu contexto é que torna possível, em princípio, o efetivo exercício da cidadania”30. Entretanto, tão relevante quanto interpretar os textos jurídicos para os leigos, é o acto de tornar o linguajar jurídico mais acessível, de forma a ser mais compreensível para as partes envolvidas em cada litígio, bem como para a população de um modo geral, pois, ainda que se reconheça existir a necessidade de um linguajar especializado no mundo jurídico, tal como acontece com outras profissões, esse linguajar, na medida em que assim for possível, deve ser comum para poder se comunicar com as pessoas que não são do meio jurídico31, até mesmo porque todas as “linguagens particulares se alimentarão” da linguagem comum.32. Complementando o raciocínio acima, novamente se traz as palavras de Luciane Fröhlich, que afirma: Dessa forma, o uso do juridiquês põe em xeque o ofício do operador do Direito, na medida em que este falha na exposição objetiva dos textos jurídicos, contrariando sua essência romana de interpretar/repassar as normas escritas aos cidadãos comuns33.
Assim, os exageros do juridiquês podem acabar afastando o profissional do Direito de umas de suas funções mais antigas que é a de interpretar as normas para as demais pessoas. No mais, a interpretação jurídica não deve ser apenas a busca da intepretação textuais dos termos jurídicos e sim a realização concreta do Direito34, de modo que os textos jurídicos, em especial as decisões judiciais, devem ser claros para que o intérprete não precise em uma leitura realizar duas atividades: traduzir o que está escrito e retirar o seu sentido jurídico. Além disso, urge frisar que as decisões judiciais devem ser motivadas conforme previsão da Constituição Portuguesa35, com previsão similar em vários ordenamentos jurí-
30 MOZDZENSKI, Leonardo, O Papel do Estereótipos Jurídicos na Divulgação do Direito e da Cidadania: uma abordagem crítica, in Linguagem e direito, Virgínia Colares et al. (org.), Recife, Ed. Universitária da UFPE, 2010, p. 101. 31 SILVA, cit., 2008, p. 27. 32 NEVES, António Castanheira, O actual problema metodológico da interpretação jurídica, Coimbra, Editora Coimbra, 2003, p. 197. 33 FRÖHLICH, cit., p. 215. 34 NEVES, cit., 2003, p. 332. 35 Constituição Portuguesa (redação cf. LC nº 1/2005) artigo 205.º Decisões dos tribunais: 1. As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
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dicos, como o brasileiro36, inclusive como forma de garantir uma fiscalização do Poder Judiciário por parte da população37, bem como da Justiça agir de forma transparente. Acontece que a motivação para cumprir o seu papel legal e constitucional deve ser efetivamente compreensível, em especial para as partes envolvidas no processo, de modo que essas devem, como resultado da pacificação, compreender, na medida que for possível, o que foi decido, até mesmo para que as mesmas possam aceitar e se conformar com mais facilidade ou, ainda, para “permitir o exercício esclarecido do direito ao recurso”38. Desse modo, sendo uma das funções da atividade jurídica interpretar as normas jurídica, não parece ser razoável que o resultado dessa interpretação seja uma decisão judicial que ainda precise vir a ser interpretada (ou traduzida) novamente em face do excesso de robustez do seu linguajar. Não está a se defender o uso de um linguajar pobre ou banalizado39, nem mesmo o afastamento dos necessários termos técnicos e próprios do meio jurídico, da mesma forma que é importante deixar claro que uma escrita mais acessível não vai resolver todas as dificuldades no acesso à justiça. Além disso, urge frisar que, especificamente para as pessoas com baixa instrução, o grande estranhamento não é a peculiaridade da língua falada nos tribunais, mas sim a própria dificuldade em se comunicar, o que é objeto de preocupação da pragmática linguística, que procura estudar a questão linguística dentro do contexto onde se “desenvolve as atividades humanas”.40 Entretanto, é importante que se busque no meio jurídico, sem afastar a sua essência, um linguajar o mais acessível possível.
6. Conclusão Entre os obstáculos existentes ao acesso à justiça estão os excessos da própria língua falada nos tribunais, comummente chamada de “juridiquês”, principalmente no que tange às decisões judiciais.
36 Constituição Brasileira (redação dada pela EC nº 45/2004), artigo 93, IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação 37 ALMEIDA, Vitor Luis de, A fundamentação das decisões judiciais no sistema do livre convencimento motivado, RIDB, ano 1, n.º 5, (2012), p. 29. 38 Idem, ibidem. p.2. 39 BORTOLAI, Luís Henrique, A hermenêutica jurídica e a linguagem: análise da realidade brasileira no século XXI, Re(pensando) Direito, vol. 7, n.º 14, (2017), p. 78. 40 SILVA, Jorge da; SILVA, Vera Lúcia T. da, Introdução ao pragmatismo linguístico, Soletras, Ano I, nº 1, (2001), p. 136.
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A diferença entre a língua falada nos tribunais e um linguajar comum pode ser explicada por uma série de razões. Uma delas seria o fato da linguajem especializada ser uma característica das profissões de um modo geral, bem como o fato dos termos técnicos diminuírem a textura aberta da língua nos tribunais, o que pode gerar mais segurança jurídica. De modo que o linguajar jurídico se faz importante para preservar as características técnicas, sociais e culturais do Direito. Outra possível explicação seriam questões coorporativas, de modo a garantir o monopólio do controle do Direito pelas pessoas especializadas. Entretanto, tendo em vista que um linguajar próprio, tal como algumas formalidades, é algo importante para o meio jurídico cumprir o seu papel, não há como se afirmar que o uso de alguns termos técnicos decorre apenas de uma relação de poder. Desse modo, o que efetivamente parece ser um problema é o exagero, principalmente no excesso desnecessário do uso do latim e de expressões arcaicas, gerando um fosso entre o meio jurídico e a população e trazendo mais um obstáculo desnecessário no acesso à justiça. No mais, uma das funções das carreiras jurídicas é interpretar o Direito para as partes envolvidas no processo e essa obrigação se torna ainda maior para os magistrados, que possuem o dever de motivar as decisões judiciais de forma clara e precisa, de modo que se faz importante uma busca de tentar evitar o excesso de termos técnicos e o uso sem necessidade de expressões não corriqueiramente usadas. Assim, ainda que sem dispensar os importantes e muitas vezes inevitáveis termos técnicos e sem que o discurso jurídico se torne pobre, urge a necessidade de se buscar uma escrita jurídica o mais acessível a todos possível, como forma do processo judicial efetivamente cumprir o seu papel de fazer Justiça para o máximo possível de pessoas. Naturalmente, evitar a problemática cá mencionada não será a solução para as diversas dificuldades existentes para se obter o acesso aos direitos, até mesmo porque não se pode nem mesmo afirmar que o maior estranhamento existente seria a questão da diferença entre a língua comum e o linguajar jurídico. Entretanto, a busca de um linguajar mais acessível é um importante caminho, dentre tantos outros, a ser percorrido.
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Título
Encontro de Investigadores da Escola de direito da Universidade do Minho 2018
Edição
Escola de Direito da Universidade do Minho
Comissão Organizadora
Larissa Coelho | Ana Carolina Cohen | Maria João Lourenço | Raphaela Toledo
Comissão Científica
JusGov - Centro de Investigação em Justiça e Governação
Data
Julho 2019
ISBN
978-989-54194-7-0