ENCONTRO DE INVESTIGADORES EDUM 2017
Escola de Direito da Universidade do Minho
ENCONTRO DE INVESTIGADORES Escola de Direito da Universidade do Minho
2018
FICHA TÉCNICA
TÍTULO DA PUBLICAÇÃO Encontro de Investigadores da Escola de Direito da Universidade do Minho 2017 COMISSÃO CIENTÍFICA Centro de Estudos em Direito da União Europeia (CEDU) Direitos Humanos - Centro de Investigação Interdisciplinar (DH-CII) COMISSÃO ORGANIZADORA Larissa Coelho Ana Carolina Cohen Raphaela Toledo DATA DE PUBLICAÇÃO Junho de 2018 EDIÇÃO Escola de Direito da Universidade do Minho ISBN 978-989-99766-6-5
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ÍNDICE
PREAMBULO
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APRESENTAÇÃO
IX
O TRATAMENTO JURÍDICO DO NASCITURO EM PORTUGAL E O DESAFIO HERMENÊUTICO DO SEU RECONHECIMENTO COMO SUJEITO DE DIREITOS DE PERSONALIDADE
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O PODER CONSTITUINTE VIVO. O CASO LATINO-AMERICANO E SEU CONTRIBUTO PARA A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE
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COMÉRCIO INTERNACIONAL E IMPOSIÇÃO TRIBUTÁRIA JUSTA. AS IMPORTAÇÕES E AS EXPORTAÇÕES NO CONTEXTO DE UM SISTEMA FISCAL COERENTE
25
A NATUREZA JURÍDICA DOS SERVIÇOS DE CARONA PAGA PROVENIENTE DA RELAÇÃO ENTRE AS PLATAFORMAS DIGITAIS E O CONDUTOR DO VEÍCULO
35
A ESTRUTURA TERRITORIAL DOS MUNICÍPIOS EM PORTUGAL: RAZÕES PARA UMA REFORMA (?)
43
GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO: DA PROIBIÇÃO À ADMISSIBILIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS
51
O DIREITO À INFORMAÇÃO ENQUANTO INSTRUMENTO GARANTÍSTICO NO DIREITO TRIBUTÁRIO. NOVOS RUMOS NO DOMÍNIO DA SUA CODIFICAÇÃO
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v
O ESTADO DA ARTE: A ARBITRAGEM E SUA APLICABILIDADE NOS CONFLITOS TRABALHISTAS DOS ATLETAS PROFISSIONAIS – UM ESTUDO LUSO-BRASILEIRO
67
UM OLHAR PARALÁTICO DA VIOLÊNCIA, DO DESEJO MIMÉTICO E DA JUSTIÇA RESTAURATIVA: O SENTIDO DAS RESTAURAÇÕES POSITIVISTA E COMUNITÁRIA
77
O TELETRABALHO E A CONTEMPORANEIDADE
87
DIREITOS DAS CRIANÇAS E POLÍTICAS EUROPEIAS. A DIMENSÃO JUSFUNDAMENTAL DO “INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA” À LUZ DO ARTIGO 24.º DA CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA
95
PARA ONDE CAMINHA A CONSTITUIÇÃO?
109
CONTRAORDENAÇÕES: DA PROTEÇÃO DOS BENS JURÍDICOS À PROTEÇÃO DOS DIREITOS E DEVERES. EPÍLOGO DA RELAÇÃO ENTRE O DIREITO PENAL E O DIREITO CONTRAORDENACIONAL
121
O BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS E O DESENVOLVIMENTO
133
PERSONALIDADE E IDENTIDADE INFORMACIONAL NO CONTEXTO DA PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS: UMA ANÁLISE LUSO-BRASILEIRA
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PREAMBULO
A Escola de Direito, através do seu Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov), o qual resultou da fusão do Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos e do Centro de Estudos em Direito da União Europeia, criou uma Escola de Investigadores, com o objectivo de promover a integração dos doutorandos daquela Unidade Orgânica da Universidade do Minho nas actividades de investigação aqui desenvolvidas. Esta obra será a primeira publicação da Escola de Investigadores e pretende disseminar os resultados do trabalho dos nossos jovens doutorandos. Na verdade, o livro que ora se publica resultou do entusiasmo com que um grupo de estudantes, admitidos à primeira edição do Curso de Doutoramento em Ciência Jurídicas, abraçou o repto lançado pelo corpo de docentes e investigadores da Escola para debater e partilhar publicamente os resultados das suas pesquisas. Um agradecimento é necessário, em particular, à Mestre Larissa Coelho pelo empenho e dedicação colocados na organização do seminário, ocorrido em 2017, no qual as intervenções que ora se dão à estampa foram realizadas, bem como na organização e compilação dos textos. Os trabalhos que compõem esta obra são um excelente mostruário da investigação que vem sendo desenvolvida pelos estudantes de doutoramento da Escola de Direito e acreditamos que são de grande interesse para as sociedades contemporâneas. São, por outro lado, um óptimo auspício para as dissertações que, mais lá à frente, esperamos ver os autores defender na nossa Escola. A todos o nosso bem haja. Braga, junho de 2018 Maria Clara Calheiros
Presidente da Escola de Direito / Investigadora do JusGov
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APRESENTAÇÃO Encontro de Investigadores da Escola de Direito da Universidade do Minho 2017
A Escola de Direito da Universidade do Minho vem se afirmando no âmbito da pesquisa em ciências jurídicas, tanto nacional quanto internacionalmente. Com uma oferta de Mestrados em diversas áreas, dois programas de Doutoramento, um programa de Pós-Doutoramento, Centros de Investigação e revistas científicas que se encontram sob a sua tutela, verifica-se um forte investimento para o desenvolvimento da pesquisa nos variados temas do Direito. Com o objetivo de registar e divulgar o estado da arte da pesquisa jurídica que atualmente se encontra em progresso nesta instituição no âmbito das investigações doutorais, uma equipa de doutorandos e docentes reuniu-se no Encontro de Investigadores em Ciências Jurídicas da Universidade do Minho: o estado da arte da pesquisa em Direito, no dia 5 de setembro de 2017, na Sala dos Investigadores da EDUM para debater os temas das investigações em desenvolvimento. Por via da apresentação de resumos expandidos, de autoria individual ou em co-autoria com os respetivos orientadores, foram debatidas pesquisas cujos temas abordavam as três vertentes oferecidas no curso de Doutoramento em Ciências Jurídicas: Ciências Jurídicas Gerais, Ciências Jurídicas Privatísticas e Ciências Jurídicas Públicas. O debate foi ainda enriquecido com os comentários dos professores que moderaram os diversos painéis, bem como com o apoio e as intervenções da Diretora do Curso de Doutoramento e Presidente da Escola de Direito, Profª Doutora Clara Calheiros, da Diretora do Centro de Estudos em Direito da União Europeia (CEDU), Profª Doutora Alessandra Silveira e do Diretor do Direitos Humanos-Centro de Investigação Interdisciplinar, Profº Doutor Mário Monte.
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Os trabalhos que agora se apresentam por escrito ao público em geral abordam investigações que tradicionalmente classificaríamos como pertencentes ao Direito constitucional, Direito do trabalho, Direito penal, Direito administrativo, Direito tributário e Direito civil. Porém, devido às suas especificidades e interdisciplinaridades visam analisar e dar respostas a questões jurídicas que passam a ser colocadas no século XXI, transpondo as fronteiras clássicas do Direito como por exemplo a questão da gestação de substituição; do contrato de trabalho decorrente das plataformas digitais; o teletrabalho; justiça restaurativa; proteção de dados pessoais; reformas municipais; tributos em sede do comércio internacional; o referendo para fins constitucionais em situações de instabilidade política, como no caso latino-americano; os desafios que os processos de integração regional colocam a questões como a da proteção do superior interesse da criança e o futuro do constitucionalismo. Estes trabalhos não encerram a variedade temática das investigações desenvolvidas no curso de Doutoramento, pelo contrário, mostram ao público algumas das pesquisas em curso e a panóplia de temas que se colocam hoje ao Direito. Num mundo de constantes e rápidas transformações, discutir o Direito nas suas várias perspetivas permite aos seus investigadores repensá-lo sob novas óticas, contribuindo para a efetivação de uma pesquisa ampla e de qualidade na Escola de Direito da Universidade do Minho. Braga, Junho de 2018 A Comissão de Organização
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O TRATAMENTO JURÍDICO DO NASCITURO EM PORTUGAL E O DESAFIO HERMENÊUTICO DO SEU RECONHECIMENTO COMO SUJEITO DE DIREITOS DE PERSONALIDADE Ana Carolina Trindade Soares Cohen1
1. Introdução O estudo da ordem jurídica contemporânea não pode estar dissociado da análise das principais mudanças que marcaram o Estado Moderno, uma vez que influenciaram fortemente a compreensão do Direito, sobretudo no que diz respeito aos aspectos hermenêuticos.
1 Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidade do Minho. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (Brasil). Advogada. Professora de Direito Civil.
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Encontro de Investigadores da Escola de Direito da Universidade do Minho 2017
Sem olvidar das distintas classificações que vêm sendo elaboradas acerca da concepção de Estado2 3, dominantes em determinado período histórico, o presente estudo vai tratar mais especificamente dos postulados perpetrados pelo Estado liberal e pelo Estado social. É sob essa perspectiva que serão examinados os novos parâmetros hermenêuticos, contextualizando-os com a análise da tutela jurídica do nascituro no Direito português, sobretudo no que diz respeito à garantia dos direitos de personalidade, demonstrando a necessária superação da teoria tradicional que concebe o ordenamento jurídico como sistema estático, apartado da realidade circundante. Não se pretende apresentar nesse estudo uma análise das diversas correntes hermenêuticas que vêm sendo desenvolvidas na atualidade, mas demonstrar, no contexto do Estado social, os caminhos hermenêuticos que estão sendo tomados, o que servirá como marco teórico para a apreciação do alcance das normas que regulam a aquisição da personalidade jurídica.
2 Em Do Estado liberal ao Estado social, 7ª edição, São Paulo, Malheiros, 2004, por exemplo, Paulo Bonavides faz uma distinção entre “Estado liberal”, “Estado socialista”, “Estado social” e “Estado social dos direitos fundamentais”. 3 Como bem observa Jorge Miranda, “existe, pois, como não podia deixar de ser, uma relação constante entre história política e história constitucional portuguesa”, pois, como acontece por toda a parte, “são os factos decisivos da história política que, direta ou indiretamente, provocam o aparecimento das Constituições, a sua modificação ou a sua queda”. Por outro lado, são as constituições, contudo, “na medida em que consubstanciam ou condicionam certo sistema jurídico e social vêm a ser elas próprias, igualmente, geradoras de novos factos políticos” (p. 244). No panorama do Estado português, Miranda destaca que a época liberal vai de 1820 a 1926, na qual sucederam-se quatro constituições, as de 1822, 1826, 1838 e 1911, identificando-se estas pela garantia da separação dos poderes e dos direitos individuais. Entre 1926 e 1974 sucedeu-se um período de enfraquecimento do Estado constitucional, representativo e de Direito, instituindo-se o que o autor denomina de “constitucionalismo corporativo e autoritário”, corporificado pela Constituição de 1933. Já com a Revolução de 1974 o país entra na época contemporânea, encaminhando-se para um regime democrático pluralista, “com tendências descentralizadoras, por um lado, e de Estado social, por outro lado. A Constituição de 1976, resultante dessa revolução, significa, em primeiro lugar, o termo daquele interregno e, depois, a abertura para horizontes e aspirações de Estado de Direito democrático” (p. 245). (Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo I, 9ª edição, Coimbra, Coimbra, 2011, pp. 244-245.)
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O tratamento jurídico do nascituro em Portugal e o desafio hermenêutico do seu reconhecimento como sujeito de direitos de personalidade
2. O perfil do direito no estado liberal: a interpretação e a aplicação normativas como operações meramente formais O Direito do Estado liberal coincide com a ascensão do positivismo jurídico4. À medida que era superada a ideia de direitos inatos e transcendentes, estes passam a ser abrigados pela ordem jurídica positiva, com fins de resguardar a segurança das relações entre os indivíduos. Através da perspectiva positivista, o Direito é considerado como um fato: “um conjunto de fatos, de fenômenos ou de dados sociais em tudo análogos àqueles do mundo natural”5. O jurista deveria atuar com a objetividade e o distanciamento de um cientista, aplicando a lei jurídica às situações nela descritas6, estudando o Direito da mesma forma que os cientistas estudavam a realidade natural, abstendo-se de formar juízos de valor. Tal compreensão do fenômeno jurídico é tributária da noção de cientificidade oriunda das ciências naturais; a norma jurídica era tratada como um objeto científico a ser conhecido, e o ordenamento jurídico era concebido a partir da ideia de completude. Disso decorria a concepção meramente formalista da interpretação jurídica, que oferta absoluta prevalência às formas, com base em uma operação meramente lógica, isto é, “aos conceitos jurídicos abstratos da norma legislativa com prejuízo da finalidade perseguida por esta, da realidade social que se encontra por trás da forma e dos conflitos de interesse que se deve dirimir”7. Propunha-se excluir da ciência do Direito qualquer referência a sentido ou a valor, e isso se justificava pelo fato de que, como os positivistas objetivavam se distanciar das ideias jusnaturalistas, havia um receio em se fazer afirmações ou pressuposições que não pudessem ser objetivamente demonstradas.
4 Frise-se que o presente trabalho não pretende apresentar um estudo acerca das vertentes do positivismo jurídico, mas apenas oferecer um panorama das principais características do Direito no Estado liberal. Ademais disso, importante observar que a atividade interpretativa se expressa de forma diversa de acordo com as diferentes concepções do positivismo. 5 Norberto BOBBIO, O Positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, São Paulo, Ícone, 1995, p. 132. 6 Jane Reis Gonçalves PEREIRA, Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios, Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 27. 7 Andreas Joachim KRELL, Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des) caminhos de um direito constitucional “comparado”, Porto Alegre, Sergio Fabris, 2002, p. 71-72.
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A escola da Exegese e a Jurisprudência dos Conceitos são vertentes hermenêuticas que caracterizam esse período de “primazia da segurança formal”8. Esses modelos constituem uma forma de interpretação que se pode denominar, semioticamente, de sintático-semântica, uma vez que enfatiza a conexões sintáticas entre os termos, expressões ou enunciados normativo-jurídicos, pressupondo a univocidade dos mesmos. Partia-se da precisão denotativa e conotativa da linguagem legal: “os problemas semânticos estaria subordinados aos sintáticos, na medida em que a articulação lógica e sistemática entre signos legais ou conceitos normativos possibilitaria a subsunção do caso à hipótese legal pré-delineada”9. Para os exegetas, o Direito se resumia à lei, tida como expressão precisa da intenção do legislador. A interpretação e a aplicação eram confiadas a uma razão judicial asséptica, que mediante um elementar mecanismo de subsunção remetia sem dificuldades a lei ao caso10. O valor decisivo e central deste modelo era a segurança jurídica, consubstanciada na previsibilidade das decisões, em uma resposta antecipada para cada problema concreto. A interpretação circunscrevia-se na reconstrução, com fidelidade, da vontade do legislador. Também sob o prisma da atividade interpretativa como operação lógica, só que desta feita partindo da ideia de subsunção da matéria de fato a conceitos jurídicos, a Jurisprudência dos Conceitos “concebe o ordenamento jurídico como um sistema fechado de conceitos jurídicos, requerendo, assim, o «primado da lógica» no trabalho juscientífico”11. O Direito era concebido a partir de um pensamento conceitual formal, em que as proposições jurídicas singulares que o constituíam encontravam-se interligadas por um nexo lógico entre conceitos, que precisavam ser reconhecidos entre si como condicionantes e derivantes, tudo através do sentido que o legislador ligou às palavras por ele utilizadas. Exigia-se que o intérprete se colocasse no lugar do legislador e executasse o seu pensamento, perseguindo as circunstâncias jurídicas e os fins considerados ao tempo da edição da lei. Propunha-se que a interpretação tivesse também a missão de extrair o verdadeiro pensamento do legislador, e “não apenas ajustar 8 Marcelo NEVES, “A interpretação jurídica no Estado Democrático de Direito”, in Direito Constitucional. Estudos em homenagem a Paulo Bonavides, Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho (orgs.), 1ª edição, São Paulo, Malheiros, 2003, p. 357. 9 Marcelo NEVES, “A interpretação jurídica no Estado Democrático de Direito”, op. cit., p. 357-358. 10 Rodolfo Luis VIGO, “Razonamiento Justificatorio Judicial”, Doxa, n. 21, 1998, p. 483. 11 LAREZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, traduzido por José Lamego, 4ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 64.
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O tratamento jurídico do nascituro em Portugal e o desafio hermenêutico do seu reconhecimento como sujeito de direitos de personalidade
à expressão insuficiente da lei o sentido realmente pensado pelo legislador, mas ainda «imaginar» o pensamento que o legislador não pensou até ao fim”. Caberia ao intérprete desvelar o único sentido juridicamente possível dos termos legais, a aplicação apropriada das normas jurídicas; o que, por sua vez, era viabilizado pela “precisão denotativa e conotativa da linguagem legal”12, que permitia atingir o sentido essencial dos termos e expressões jurídicas. Todavia, “desfeita a paliativa crença na certeza racional e objetiva do positivismo oitocentista, forçoso se mostra ao jusfilósofo do nosso século restaurar, de algum modo, os valores agora postos em causa”13. Nesta perspectiva, consoante já assinalado, “o problema da interpretação mostra-se nuclear a todo este processo transformativo. Uma interpretação tradicional, assente numa teoria referencial da linguagem, mostra-se hoje profundamente fragilizada em função dos desenvolvimentos alcançados pela filosofia da linguagem e pela teoria literária.”14 Neste aspecto, concluímos juntamente com a lição de Joana Aguiar e Silva, que “a relação signo/significado se encontra irremediavelmente danificada, não mais podendo um dos termos ser visto como fiel reprodução do outro”15.
3. Os novos parâmetros hermenêuticos introduzidos pelo direito do estado social Os postulados do Estado social impõem uma nova forma de compreensão da ordem jurídica, agora pautada através da promoção da justiça social, da garantia da dignidade da pessoa humana, da igualdade material – e não somente da proclamação erística da igualdade –, da solidariedade, da introdução de aspectos axiológicos, e da superação dos rigores do formalismo tradicional. Com isso, a interpretação e a aplicação do Direito ganham novos contornos, opondo-se à estrita observância do modelo lógico-dedutivo, e incorporando as teorias anti-formalistas, que ascenderam a partir do século XIX: abstração e formalismo dão lugar à concretude, ao exame das situações jurídicas além da simples subsunção lógica. Percebeu-se que as novas demandas sociais, extremamente complexas e empiricamente insolúveis através do recurso à subsunção, “impunham uma con12 Marcelo NEVES, “A interpretação jurídica no Estado Democrático de Direito”, op. cit., p. 358. 13 Joana Aguiar e SILVA, A prática Judiciária entre Direito e Literatura, Coimbra, Almedina, 2001, p. 76. 14 Joana Aguiar e SILVA, A prática Judiciária entre Direito e Literatura, op. cit., p. 76. 15 Joana Aguiar e SILVA, A prática Judiciária entre Direito e Literatura, op. cit., p. 76.
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cepção substantiva de justiça”16, inatingível através da compreensão formalista do fenômeno jurídico. O Direito passa a instaurar-se sobre outras bases, que não são as do individualismo minguante, mas as da socialização ascendente e que trouxe à altura constitucional os direitos fundamentais da segunda dimensão, requerendo o alargamento e a renovação de todo o instrumental interpretativo, buscando o Direito nas suas raízes sociais17. No plano hermenêutico, esse perfil se revela pela introdução de teorias interpretativas concretistas, onde ganha proeminência o exame do caso concreto, a adequação da norma à realidade, o conteúdo axiológico da ordem jurídica, a compreensão do “homem como ser-no-mundo”18. O problema concreto exsurge como componente do ato interpretativo, que, por sua vez, pressupõe um vínculo entre a compreensão prévia do intérprete sobre o conteúdo da norma e o problema cuja solução se busca. Elementos que outrora eram considerados metajurídicos, porque não se enquadravam na moldura estrita da lei, agora passam a ser internalizados, a fim de que se concretize a necessária aproximação entre Direito e realidade. É o que se denomina de virada hermenêutica, onde o Direito é visto como uma prática interpretativa, superando os limites do formalismo que caracterizou a teoria jurídica dos séculos XIX e XX. Nessa direção, insere-se o Direito no contexto social, e o intérprete passa a ser visto como um conector entre o Direito e a sociedade19. Entram em cena os debates acerca da crença na absoluta objetividade e neutralidade do intérprete, diante da maior indeterminação que passou a caracterizar os textos legais, exigência de uma sociedade em transformação, que impõe a edição de textos de conteúdos normativos mais abertos, e sem pretensão de completude, como ocorrera com a codificação liberal. A par disso, avulta de importância a filosofia hermenêutica, que se opõe à concepção tradicional da hermenêutica jurídica baseada na existência de um 16 Daniel SARMENTO, A ponderação de interesses na Constituição Federal, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2000, p. 20. 17 Paulo BONAVIDES, Do Estado liberal ao Estado social, op. cit., pp. 9 e 19. 18 Adrualdo de Lima CATÃO, “A visão hermenêutica da interpretação jurídica para a superação do paradigma da neutralidade do intérprete”, Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito, disponível em http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/XIVCongresso/119.pdf, acesso em 06.01.2017. 19 Juliana Neuenschwander MAGALHÃES, “Interpretando o direito como um paradoxo: observações sobre o giro hermenêutico da ciência jurídica” Hermenêutica Plural – possibilidades jusfilosóficas em contextos imperfeitos, Carlos Eduardo de Abreu Boucault e José Rodrigo Rodriguez (org.), São Paulo, Martins Fontes, 2002, pp. 130-131.
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O tratamento jurídico do nascituro em Portugal e o desafio hermenêutico do seu reconhecimento como sujeito de direitos de personalidade
sentido em si do texto normativo20. Desvela-se, nesse cenário, a referência a uma pré-compreensão do intérprete, que ao invés de descobrir o que pretendia o autor do texto, formula o seu sentido a partir da sua própria perspectiva e do problema posto: “a interpretação de um texto pressupõe sempre um problema situado na existência histórica do intérprete e que, por isso, só poderá ser entendido a partir de sua pré-compreensão, o que implica uma conexão circular entre o texto interpretado e a realidade que o circunda”21 22. Rompe-se, assim, com a dimensão meramente sintática da interpretação, buscando a determinação semântica do sentido dos textos jurídicos, condicionada pragmaticamente23. Nesse enfoque, é no momento histórico da aplicação que o sentido será dado ao texto pelo intérprete24, numa estreita conexão entre o processo de conhecimento e o contexto histórico em que está inserido o sujeito cognoscente25. Não é difícil perceber, através dos termos até aqui expostos, que os métodos de interpretação tradicionais são impotentes para solucionar as questões jurídicas atuais, sobretudo diante da introdução de dispositivos normativos de conteúdo mais aberto, que exigem a inafastável interlocução do intérprete, tal como ocorre com a temática em perspectiva.
20 Adrualdo de Lima CATÃO, “A visão hermenêutica da interpretação jurídica para a superação do paradigma da neutralidade do intérprete”, Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito, disponível em http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/XIVCongresso/119.pdf, acesso em 06.01.2017. 21 Jane Reis Gonçalves PEREIRA, Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios, op. cit., p. 31. 22 Segundo Gadamer (Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, traduzido por Flávio Paulo Meurer, Rio de Janeiro, Vozes, 1997, p. 14.), a ideia de análise da pré-compreensão e da inserção histórica da interpretação/aplicação como princípios hermenêuticos partiu de uma intenção filosófica, onde “o que está em questão não é o que nós fazemos, o que nós deveríamos fazer, mas o que, ultrapassando nosso querer e fazer, nos sobrevém ou nos acontece”. 23 Marcelo NEVES, “A interpretação jurídica no Estado Democrático de Direito”, op. cit., p. 359. 24 Adrualdo de Lima CATÃO, “A visão hermenêutica da interpretação jurídica para a superação do paradigma da neutralidade do intérprete”, Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito, disponível em http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/XIVCongresso/119.pdf, acesso em 06.01.2017. 25 Jane Reis Gonçalves PEREIRA, Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios, op. cit., p. 31.
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4. O reconhecimento dos direitos de personalidade do nascituro como exigência dos novos parâmetros hermenêuticos instaurados pelo direito do estado social Prevê o art. 66.º, n.º 1, do Código Civil, que a personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida. O art. 66.º, n.º 2, por sua vez, estabelece que “os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento”. À vista da determinação legal, diverge a doutrina quanto ao reconhecimento do nascituro como sujeito de direito. Para Carlos Alberto da Mota Pinto, “até ao nascimento, estamos em face da problemática dos direitos sem sujeito”26. Orlando de Carvalho, por sua vez, destaca que “estes direitos patrimoniais dos nascituros levam frequentemente à conclusão de que, para esses fins, os nascituros são já pessoas jurídicas – que a personalidade jurídica começa, para esses fins, antes do nascimento”27. Nesse sentido, “teríamos então uma personalidade jurídica ficta (pois não se apoia sequer num começo de personalidade humana no caso dos nascituros não concebidos) e personalidade necessariamente provisória ou resolúvel, dada a pendência da verificação do nascimento da criança”. Ainda com o objetivo de explicar a tutela dos direitos do nascituro, refere-se a doutrina a uma retroação da personalidade, na medida em que “a personalidade jurídica só se adquiria com o nascimento, mas, existindo aquelas doações ou aquela devolução sucessória, a personalidade cobriria retroactivamente semelhantes direitos, retroagiria até ao momento da doação ou da morte do de cujus”28. Há, ademais, quem conceba os direitos do nascituro como “meros estados de vinculação de certos bens”29, de modo que, é possível concluir pela existência de três principais correntes doutrinárias que visam a explicam a tutela dos di-
26 Carlos Alberto da Mota PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Coimbra, Coimbra, 2012, p. 203. 27 Orlando de CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, Coimbra, Coimbra, 2012, p. 195. 28 Orlando de CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, op. cit., p. 195. 29 Orlando de CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, op. cit., p. 195.
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O tratamento jurídico do nascituro em Portugal e o desafio hermenêutico do seu reconhecimento como sujeito de direitos de personalidade
reitos do nascituro, nos termos do referido art. 66.º, n.º 230: a) a dos direitos sem sujeitos; b) a da retroação; c) a dos estados de vinculação. Todavia, tais correntes cingem-se a explicar apenas os direitos patrimoniais do nascituro, que foram especialmente destacados no âmbito da lei civil; não o contemplando sob uma perspectiva mais ampla, para alcançar a tutela dos direitos de personalidade. De fato, torna-se mais simples a discussão quando nos limitamos aos direitos patrimoniais, uma vez que, sendo estes expressamente garantidos pela lei ao nascituro, sua eficácia fica condicionada ao nascimento deste com vida. O problema surge quando nos deparamos com a tutela dos direitos de personalidade31. Ultrapassando o quadro dos direitos patrimoniais, e reconhecendo que os direitos dos nascituros não se reduzem a eles, comungamos com Orlando de Carvalho no sentido de que “a personalidade humana não surge no nascimento ex abrupto: surge como termo de um processo biológico – há uma formação progressiva da personalidade”, de modo que o Direito “não pode desconhecer tal formação progressiva e deixar de proteger as infra-estruturas da personalidade que se vão formando nessa fase embrionária”32. A tutela jurídica dos nascituros leva ao reconhecimento de direitos pessoais que não podem ser reduzidos à mera ideia de um patrimônio autônomo, mas no sentido de que “a personalidade jurídica que lhes advirá pelo nascimento é à medida da respectiva personalidade humana, considerando-se como tutela dessa personalidade, como direitos dessa personalidade, os direitos respeitantes
30 Pedro Pais de VASCONCELOS (Direito de Personalidade, Coimbra, Almedina, 2014, p. 104) noticia que no ensino de Teoria Geral do Direito Civil, na Faculdade de Direito de Lisboa, “é reconhecida a personalidade jurídica à pessoa humana desde a concepção”: “os nascituros já concebidos são seres humanos, com vida, que se encontram numa particular fase da sua vida. A vida humana tem início na concepção por comunicação da vida de ambos os pais. [...] O nascimento é apenas mais um facto relevante da vida da pessoa. Não há grande diferença entre a véspera do nascimento e o dia seguinte”. 31 Observa Pedro Pais de VASCONCELOS (Direito de Personalidade, op. cit., p. 11), que o que hoje entendemos por direitos de personalidade não encontrava consagração no Direito português antes do Iluminismo e das reformas pombalinas. O autor ainda destaca que o primeiro Código Civil português esteve profundamente influenciado pelo pensamento de António Luiz de Seabra, no qual “a construção da personalidade jurídica tem de ser compreendida a partir da sua obra fundamental, A Propriedade” (p. 15), o que evidencia o caráter patrimonialista do Direito Civil e, pois, “o seu modo de conceber o Direito, a partir da propriedade” (p. 15). 32 Orlando de CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, op. cit., p. 197.
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à defesa do indivíduo na fase meramente intra-uterina”33, ultrapassando-se, pois, os rigores do formalismo oitocentista, para interpretar a lei à luz dos novos ditames hermenêuticos até aqui expostos. Em recente decisão34, o Supremo Tribunal de Justiça português negou provimento a recurso em que se discutia o direito a indenização por dano extrapatrimonial ao nascituro. No caso, foi firmado contrato entre a mãe da criança e os réus, para a realização de duas ecografias, nas quais se informou à gestante que “o bebé era perfeitamente normal”, fornecendo-lhe “uma ‘falsa’ representação da realidade fetal”. Entretanto, o bebê nasceu com síndrome polimalformativa, vindo posteriormente a pleitear a reparação dos danos extrapatrimoniais, em virtude da vida de angústia e sofrimento pela qual passa, e que teria sido evitada não fosse o erro médico, pois, se soubesse da realidade, sua genitora teria posto fim à gravidez. Todavia, o Tribunal concluiu não se tratar de dano juridicamente reparável de acordo com o ordenamento jurídico português, pois “não enquadrável em termos normativos”. Segundo a relatora, a grande dificuldade desta construção jurídica consistiria “na impossibilidade de se considerar como ‘terceiro’ o feto, porque salvo o devido respeito que é muito pelos defensores desta teoria, não se pode aceitar, de todo em todo que a criança, inexistente enquanto ser humano – em gestação apenas – face ao preceituado no normativo inserto no artigo 66º, nº 1 do Ccivil”, segundo o qual a personalidade se adquire no momento do nascimento completo e com vida, “possa ser tida como parte interessada num contrato havido entre aqueles que a conceberam, sendo a mesma na altura um nascituro e por isso carecida de personalidade jurídica” (grifamos). Destacou que a lei atribui direitos ao nascituro, “que são apenas e tão só os que decorrem dos normativos indicados”, de modo que “nenhum outro direito 33 Orlando de CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, op. cit., p. 197. Acerca disso adverte Manoel Carneiro da FRADA que “A solução metodologicamente correcta da questão passa por admitir uma insuficiência na protecção civil da vida pré-natal, resultante da contemporânea multiplicação de perigos de dano a essa vida pré-natal. Trata-se em larga medida de uma lacuna superveniente, pois essa multiplicação representa um corolário dos avanços da ciência médica e das possibilidades da tecnologia no domínio da chamada ‘bioética’, que o legislador de 1966 não podia antecipar convenientemente.” (“A própria vida como dano? Dimensões civis e constitucionais de uma questão-limite”, in Estudos em honra ao Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. 1, Coimbra, Almedina, 2008, p. 166.) 34 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de janeiro de 2013, proferido no Processo n.º 9434/06.6TBMTS.P1.S1, 7ª Secção, Relatora Ana Paula Boularot, disponível em http://www.dgsi. pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e657efc25ebbdf3b80257af7003ca979?OpenDocument&Highlight=0,9434 [16.12.2016].
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se afigura concretizável com o nascimento do nascituro, maxime, o decorrente de um pretenso contrato com eficácia de protecção de terceiro (terceiro este apenas nascituro, falho da qualidade jurídica de terceiro para efeitos obrigacionais, por ausência de personalidade jurídica).” Verifica-se que a decisão identifica a personalidade jurídica com a própria compreensão de pessoa humana, negando esta ao nascituro, a teor do disposto no art. 66.º, nº 1 do Código Civil português, que trata do momento da aquisição da personalidade. Entendemos que a confusão entre tais conceitos viola a garantia da dignidade da pessoa humana prevista no art. 1º da Constituição portuguesa, pois, embora ainda não nascido, o “nascituro é um ser humano vivo com toda a dignidade que é própria à pessoa humana. Não é uma coisa. Não é uma víscera da mãe.”35. A personalidade jurídica refere-se à aptidão genérica para ser sujeito de direitos e obrigações na ordem civil. Embora o art. 66.º, n.º 1 do Código Civil tenha definido que a personalidade somente se adquire a partir do nascimento, isto não retira do nascituro a sua natureza humana, não o faz “inexistente enquanto ser humano”36. Aliás, como observou Orlando de Carvalho, “a subjectividade jurídica (a qualidade de quem é sujeito de direito) supõe no homem a personalidade jurídica, que, por seu turno, supõe a personalidade humana”37. É por reconhecer a personalidade humana do nascituro que o art. 66.º, n.º 2 do Código Civil possibilita que a lei lhe atribua direitos. Nesse sentido, a proteção jurídica que a lei lhe confere não é apenas objetiva, “se o fosse, o seu estatuto não seria diferente daquele que é próprio das coisas ou animais especialmente protegidos”38. A qualidade de pessoa humana do nascituro impõe-se, portanto, ao Direito, que “não tem o poder de negar a verdade da pessoalidade, da hominidade,
35 Pedro Pais de VASCONCELOS, Direito de Personalidade, op. cit., p. 106. 36 Expressão utilizada na decisão do Supremo Tribunal de Justiça (de 17 de janeiro de 2013, proferido no Processo n.º 9434/06.6TBMTS.P1.S1.) 37 Orlando de CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, op. cit., p. 190. 38 Pedro Pais de VASCONCELOS, Direito de Personalidade, op. cit., p. 106.
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da humanidade do nascituro. Não pode, pois, deixar de ser reconhecida, pelo Direito, ao nascituro a qualidade de pessoa humana viva [...]”39. O próprio Supremo Tribunal de Justiça40 reconheceu ser insustentável, por violar o direito constitucional de igualdade, que dois irmãos, que sofrem a perda do mesmo genitor, tenham tratamento jurídico diferenciado pelo fato de um deles já ter nascido à data do falecimento do pai e o outro apenas ter nascido 18 dias após o fato, reconhecendo-se a um e negando-se a outro, respectivamente, a compensação por danos extrapatrimoniais decorrentes da morte do genitor. Destacou o relator que, “ainda na fase intra-uterina os efeitos da supressão da vida paterna fazem-se sentir no ser humano, sendo os danos não patrimoniais daí decorrentes – traduzidos na falta desta figura, quer durante o período de gestação, quer depois do nascimento, com o vazio que tal ausência provoca – merecedores de compensação”. Comungamos do entendimento esposado pela 2ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça no julgado acima referido, no sentido de que a questão da personalidade jurídica do nascituro não poderá ser entrave ao reconhecimento do direito à compensação por danos extrapatrimoniais próprios. Neste caso em particular, danos sofridos pela morte de um dos progenitores, vitimado pela conduta negligente de um terceiro. Sendo incontestável a personalidade humana do nascituro, impõe-se o reconhecimento dos seus direitos de personalidade, ultrapassando-se, pois, a mera interpretação literal do art. 66º do Código Civil português.
39 Pedro Pais de VASCONCELOS, Direito de Personalidade, op. cit., p. 107. Pedro Pais de Vasconcelos destaca, ademais, que a redação do art. 66º do Código Civil português não é feliz, mas nem por isso deve o intérprete ficar prisioneiro da sua letra. Salienta o autor que “a personalidade jurídica das pessoas humanas não depende da lei e está fora do alcance do poder legislativo do Estado retirar ou não reconhecer a qualidade de pessoa humana a quem a tem” (p. 107). Por isso, em seu entender, o art. 66º deve ser compreendido como referido à capacidade de gozo e não propriamente à personalidade jurídica. Ressalva, ademais, que, inclusive, a confusão entre personalidade jurídica individual e capacidade de gozo era comum ao tempo da promulgação do Código Civil português, onde tais noções eram consideradas por alguns autores como sinônimas. Para Pedro Pais de Vasconcelos, “a personalidade jurídica das pessoas humanas tem início concomitantemente com o início da sua vida e existência enquanto pessoas” (p. 108). Deste modo, para o autor, deve ser reconhecida a qualidade, a dignidade humana e, consequentemente, a personalidade jurídica a quem ainda está no seio da mãe (p. 108). 40 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 03 de abril de 2014, no Processo n.º 436/07.6TBVRL.P1.S1, 2ª Secção, Relator Álvaro Rodrigues, disponível em http://www.dgsi.pt/ jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/28aff17cdabb90e880257cb00034dcc2?OpenDocument&Highlight=0,436 [16.12.2016].
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Conclusões O presente estudo buscou demonstrar que a compreensão do Direito desenvolvido no Estado liberal não mais se sustenta, não sendo apta para explicar as novas bases de institutos jurídicos que têm passado por transformações diante das exigências individuais e sociais, como ocorre com a compreensão dos direitos de personalidade. O foco sai do indivíduo-proprietário e chega ao indivíduo-pessoa. O Direito do Estado social impõe que seus institutos sejam dirigidos à promoção da justiça social, da garantia da dignidade da pessoa humana, da igualdade material, da solidariedade, da observância dos aspectos axiológicos, e da superação dos rigores do formalismo tradicional. A pessoa humana é o centro das relações civis, e como tal deve ser tutelada. A pessoa não se realiza através de um único esquema de situação subjetiva, “mas como uma complexidade de situações que ora se apresentam como poder jurídico (potestà), ora como interesse legítimo, ora como direito subjetivo, faculdade, poderes”41. Superam-se, assim, as discussões dogmáticas sobre a categoria dos direitos da personalidade, evidenciando-se a sua natureza aberta. Como bem observa Pedro Pais de Vasconcelos, “a relevância da pessoa no Direito é sobretudo interpessoal. Por isso, o nascimento tem uma muito grande relevância jurídica. Mas nem por isso a pessoa deixa de existir e de ser relevante para o Direito antes de nascer”. Embora nascituro, “a sua natureza humana é a mesma, a sua situação biológica continua a evoluir, a sua situação jurídica modifica-se de acordo com a natureza das coisas”42. O formalismo que dominava a interpretação normativa não tem lugar na compreensão do alcance subjetivo dos direitos de personalidade, devendo ser superada, portanto, a interpretação meramente literal do art. 66º do Código Civil português, a fim de que sejam tutelados tais direitos com relação ao nascituro, considerada a sua peculiar condição de pessoa que está por nascer.
41 Pietro PERLINGIERI, Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional, tradução portuguesa de Maria Cristina De Cicco, 3ª edição, Rio de Janeiro, Renovar, 2002, p. 155. 42 Pedro Pais de VASCONCELOS, Direito de Personalidade, op. cit., p. 106.
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Bibliografia BOBBIO, Norberto, O Positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, São Paulo, Ícone, 1995. BONAVIDES, Paulo, Do Estado liberal ao Estado social, 7ª edição, São Paulo, Malheiros, 2004. CARVALHO, Orlando de, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, Coimbra, Coimbra, 2012. CATÃO, Adrualdo de Lima, “A visão hermenêutica da interpretação jurídica para a superação do paradigma da neutralidade do intérprete”, Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito, disponível em http://www.publicadireito.com. br/conpedi/manaus/arquivos/anais/XIVCongresso/119.pdf, acesso em 06.01.2017. FRADA, Manoel Carneiro da, “A própria vida como dano? Dimensões civis e constitucionais de uma questão-limite”, in Estudos em honra ao Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. 1, Coimbra, Almedina, 2008. GADAMER, Hans-Georg, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, tradução portuguesa de Flávio Paulo Meurer, Rio de Janeiro, Vozes, 1997. KRELL, Andreas Joachim, Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des) caminhos de um direito constitucional “comparado”, Porto Alegre, Sergio Fabris. LAREZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, tradução portuguesa de José Lamego, 4ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. MAGALHÃES, Juliana Neuenschwander, “Interpretando o direito como um paradoxo: observações sobre o giro hermenêutico da ciência jurídica” Hermenêutica Plural – possibilidades jusfilosóficas em contextos imperfeitos, Carlos Eduardo de Abreu Boucault e José Rodrigo Rodriguez (org.), São Paulo, Martins Fontes, 2002. MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo I, 9ª edição, Coimbra, Coimbra, 2011. NEVES, Marcelo, “A interpretação jurídica no Estado Democrático de Direito”, in Direito Constitucional. Estudos em homenagem a Paulo Bonavides, Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho (orgs.), 1ª edição, São Paulo, Malheiros, 2003.
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O PODER CONSTITUINTE VIVO. O CASO LATINO-AMERICANO E SEU CONTRIBUTO PARA A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE André Ribeiro Leite1
1. Introdução A investigação que se desenvolve para elaboração de tese perante o programa de Ciências Jurídicas Gerais da Escola de Direito da Universidade do Minho possui como tema “O Poder Constituinte Vivo: o caso latino-americano e seu contributo para a teoria do Poder Constituinte”. O estudo tem como origem o recente fenômeno de reforma dos textos constitucionais de diversos países da América Latina através de consulta popular - em regra pela via do referendo -, que em muitos dos casos consiste em verdadeiro pressuposto de validade para que redação de reforma ou revisão, após regular trâmite formal perante os órgãos legislativos, ingresse no ordenamento jurídico com a natureza de norma fundamental, com todos os requisitos que lhe são intrínsecos, como a validade, a obrigatoriedade e a eficácia. Seu objeto é a aferição da natureza desse fenômeno e se ele representa nova ramificação da teoria do poder constituinte.
1 Aluno do doutoramento em Ciências Jurídicas, vertente Ciências Jurídicas Gerais, pela Universidade do Minho, Mestre em Direito Judiciário por essa mesma instituição e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. É Procurador do Município de Nossa Senhora do Socorro, Estado de Sergipe, Brasil.
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Preocupa-se, em especial, quanto à identificação de possível viés democrático desse fenômeno, a representar o contínuo e direto exercício geracional dos titulares do Poder Constituinte – o povo – quanto a sua própria soberania, de forma a evitar relativa estagnação do texto constitucional e a consequente submissão de gerações futuras aos desejos remotos de legisladores passados, ou mesmo se se está em frente a aparentes golpes constitucionais, a minar garantias em momentos de populismo ou comoção, sob a camuflagem de pseudo manto democrático, em mácula incompatível com a teoria do Poder Constituinte e a segurança jurídica. Na investigação, são utilizadas bases teóricas advindas das Ciências Jurídicas e Política, bem como daquelas que investiguem o papel do Estado de Direito Democrático e os institutos que o protegem, especialmente o exercício da democracia e a idéia de legitimidade dos comandos normativos. A pesquisa de doutoramento motiva-se pela valorização do texto constitucional e o papel desempenhado pelo titular do Poder Constituinte, o povo, em uma democracia.
2. Objetivos A investigação em curso possui como objetivo geral aferir a possível existência de uma teoria do Poder Constituinte tido como vivo, a ser caracterizado pelo exercício direto e contínuo através de seus titulares, o povo, a agir conforme os princípios democráticos, além de sua eventual compatibilidade com o sistema de reforma constitucional via referendo, conforme positivado em alguns ordenamentos jurídicos de países da América Latina. A investigação também possui os seguintes objetivos específicos: a) analisar e registrar o tratamento dispensado às alterações das Constituições na América Latina via consulta popular; b) analisar e registrar os discursos doutrinários que se posicionam acerca das alterações das Constituições na América Latina via consulta popular; c) analisar e registrar a legitimidade e sujeição a influências das alterações das Constituições na América Latina via consulta popular; d) analisar os parâmetros de controle de constitucionalidade das reformas procedidas via consulta popular nos países da América Latina.
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O poder constituinte vivo. O caso latino-americano e seu contributo para a teoria do poder constituinte
3. Metodologia A pesquisa é baseada a partir de informações levantadas em estudo de microcomparação em direito comparado, com foco no instituto da reforma constitucional via consulta popular. Para tanto, utiliza como fontes textos normativos e textos doutrinários.
4. Discussão O problema de investigação consiste no conflito advindo entre o exercício do Poder Constituinte ao longo do tempo via referendo por seu titular, o povo, face os princípios da soberania, democracia, legitimidade e segurança jurídica. Afinal, conforme aludido, pode-se estar em frente ao simples exercício da força por aparente golpe constitucional, a minar garantias em momentos de populismo ou comoção camuflados sob pseudo manto democrático. Essa problemática já foi sugerida por CANOTILHO, ao lecionar que No plano político, o modo de revelação de um poder constituinte conexiona-se com o pressuposto democrático da autodeterminação e auto-organização de uma colectividade. Sob o ponto de vista jurídico, o poder constituinte convoca irrecusavelmente a “força bruta” que constitui uma ordem jurídica para o terreno problemático da legitimação e legitimidade2.
Este autor, aliás, levanta questão importante e imediata ao estabelecimento de uma Constituição enquanto documento fundamental do Estado pelo Poder Constituinte, sobretudo por força de características que lhe são próprias, a exemplo da superior hierarquia normativa e, consequentemente, parâmetros de rigidez para fins de reforma. É que, salienta, A domesticação jurídica do poder constituinte veiculada pelo estabelecimento de limites ao poder constituinte derivado ou poder de revisão originará, por sua vez, outros momentos de perplexidade jurídica e política. Referimo-nos ao chamado paradoxo da democracia: como “pode” um poder estabelecer limites às gerações futuras? Como pode uma constituição colocar-nos perante um dilema contramaioritário ao dificultar deliberadamente a “vontade das gerações futuras” na mudança das suas leis? Revelar-se-á, assim, o constitucionalismo de uma antidemocraticidade básica impondo à soberania do povo “cadeias para o futuro” (Rousseau)?”3. 2 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 8.ª reimp. Coimbra: Livraria Almedina, 2010, p. 67. 3 Id. Ibid. p. 74.
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Conforme sugerido na introdução deste resumo, alguns países da América Latina aparentam tentar manter o exercício do Poder Constituinte por seus titulares vivo, de modo a ter a participação popular como imprescindível para a reforma de seus textos constitucionais, para assim os legitimar e validar de forma direta. De acordo com FLORES, constitucionalista mexicano, em abordagem do tema da reforma constitucional via referendo, esse tipo de reforma seria legítima, pois, (...) como todas las formas de democracia directa o indirecta, la iniciativa popular encuentra al menos en teoria muchas ventajas: Su consecuencia con la teoria de la soberania popular; se corrigen abusos y desaciertos de los gobernantes; evita la dictadura de los partidos, mejora la educacíon popular y evita câmbios avanzados sin debida justificacíon”4.
Há, todavia, críticas, a exemplo de doutrina em Colômbia, em que RAMÍREZ afirma que “el reformismo constitucional opera como una eficaz estrategia de autolegitimacíon mediante la cual los sectores dominantes han intentado crear un consenso y han logrado prevenir un cambio”5. Em menção específica ao fenômeno ocorrente América Latina que deu origem à discussão acima referida, registra-se que no ano de 2003, teve lugar referendo na Colômbia para a alteração de quinze artigos da Constituição, cujo resultado apenas possibilitou a reforma de um, pertinente à proibição de que pessoas condenadas por delitos de corrupção se candidatassem a cargos públicos ou firmassem contratos com o Estado. Já no dia 02 de Dezembro de 2007, foi realizada consulta popular na Venezuela, para que o povo pudesse aprovar ou rejeitar emendas propostas pela Presidência da República e pelo Congresso para a alteração de quarenta e seis artigos da Constituição daquele país. O conjunto da reforma constitucional foi votado em dois blocos identificados sob as letras “A” e “B” e, entre os assuntos tratados, discutiu-se a redução da idade mínima para votar, a redução da jornada de trabalho, o fim da autonomia do Banco Central e o controle da política econômica pela Presidência da República. Todas as propostas foram rejeitadas à época. O mesmo não ocorreu no ano de 2009, quando foi realizada nova consulta popular via referendo, através da qual restou aprovada a possibilidade de
4 FLORES, Armando Soto. In Teoría de la Constitucíon. Cidade do México: Ed. Porrúa. 2015, p. 223 5 RAMÍREZ, Manuel Fernandez Quinche. Derecho Constitucional Colombiano. 6.ª ed. Bogotá: Editorial Temis. 2015, p. 12.
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reeleição ilimitada a todos os ocupantes de cargos populares no país, como a presidência da república. No Equador, no ano de 2008, teve lugar referendo que resultou na ratificação do texto constitucional esboçado pela Assembléia Constituinte após anterior referendo que autorizou sua convocação para o ano de 2007. Posteriormente, no ano de 2016, foi realizado referendo na Bolívia para confirmar reforma constitucional que permitisse maior número de reeleições do Presidente da República. A consulta popular resultou na rejeição da proposta. Juridicamente, o fenômeno objeto de estudo encontra previsão em diversos textos constitucionais. Nesse ponto, ressalta-se que a Constituição da República Bolivariana da Venezuela é um dos poucos textos constitucionais da América Latina, se não o único, que expressamente se reporta ao Poder Constituinte, o que faz através de seus arts. 347 e 348, a seguir transcritos: Artículo 347. El pueblo de Venezuela es el depositario del poder constituyente originario. En ejercicio de dicho poder, puede convocar a una Asamblea Nacional Constituyente con el objeto de transformar el Estado, crear un nuevo ordenamiento jurídico y redactar una nueva Constitución. Artículo 348. La iniciativa de convocatoria a la Asamblea Nacional Constituyente podrá hacerla el Presidente o Presidenta de la República en Consejo de Ministros; la Asamblea Nacional, mediante acuerdo de la dos terceras partes de sus integrantes; los Consejos Municipales en cabildos, mediante el voto de las dos terceras partes de los mismos; y el quince por ciento de los electores inscritos y electoras en el registro electoral. Artículo 349. El Presidente o Presidenta de la República no podrá objetar la nueva Constitución. Los poderes constituidos no podrán en forma alguna impedir las decisiones de la Asamblea Constituyente. A efectos de la promulgación de la nueva Constitución, ésta se publicará en la Gaceta Oficial de la República de Venezuela o en la Gaceta de la Asamblea Constituyente.
O art. 347 expressamente reconhece que a titularidade do Poder Constituinte é do povo venezuelano, assim como lhe garante o direito de convocar uma Assembléia Nacional Constituinte, desde que respeitados os requisitos de iniciativa estipulados pelo seguinte art. 348.
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O art. 349, por sua vez, reforça o princípio soberano do Poder Constituinte, ao estipular que o Presidente da República não poderá apresentar objeção à nova Constituição, assim como em relação aos Poderes Constituídos, que são proibidos de impedir as decisões da Assembléia Nacional Constituinte. Este artigo, no entanto, a princípio revela sutil limite ao exercício do Poder Constituinte, pois sugere que os Poderes Constituídos, em especial do executivo, que é exercido pelo Presidente da República, não poderão ser substituídos, ao menos imediatamente, por força do decidido pela Constituinte. No que se reporta à confecção de emendas para a adição ou modificação de um ou vários artigos da Constituição, respeitada sua estrutura fundamental (art. 340), há garantia de iniciativa popular igualmente por quinze por cento dos cidadãos inscritos no registro civil e eleitoral (art. 341, n.º 1), tal como ocorre para a convocação de Assembléia Nacional Constituinte (art. 348). Para ser aprovado, o texto da emenda, após trâmite legislativo (art. 341, n.º 2), deverá ser submetido a referendo popular (art. 341, n.º 4), o que lhe representa pressuposto de validade. O mesmo se dá com o instituto da reforma constitucional – leia-se Poder Constituinte Derivado -, que na Venezuela condiz com a revisão parcial da Constituição ou a substituição de uma ou de várias normas que lhe modifiquem a estrutura ou então alterem seus princípios fundamentais (art. 342). De acordo com seu art. 343, a iniciativa também pode se dar por ação de quinze por cento dos eleitores inscritos nos registros civil e eleitoral, que após trâmite definido pelo art. 344, deverá ser submetida a referendo (art. 345). No Equador, o art. 103, da Constituição, versa sobre a democracia direta, e possibilita que um por cento do eleitorado apresente proposta de reforma constitucional, que deverá ser apreciada pela Função Legislativa, sob pena de possibilitar que os mesmos proponentes solicitem ao Conselho Nacional Eleitoral que convoque consulta popular. Na Colômbia, o art. 374, da Constituição, prevê que sua reforma poderá ocorrer pelo Congresso, por Assembléia Constituinte ou mesmo referendo popular, sendo que seu art. 155 possibilita que mais de 5% (cinco por cento) do eleitorado do país poderá apresentar projeto de reforma à Constituição. Já o art. 377 afirma que deverão se submeter a referendo as reformas constitucionais aprovadas pelo Congresso quando se refiram aos direitos fundamentais, exigindo-se a participação de cinco por cento dos cidadãos que participem do censo eleitoral. Por fim, o art. 378, da Constituição, garante a iniciativa dos cidadãos, respeitadas as exigências do art. 155, para que projeto de reforma à Constituição seja submetido a aprovação via referendo.
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Na Bolívia, o art. 411 estabelece que a reforma total da Constituição ou aquela que afete as suas bases fundamentais, direitos e garantias ou à primazia e reforma da Constituição, terá lugar através de uma Assembléia Constituinte Originária ativada por vontade popular mediante referendo. A convocação do referendo se realizará por iniciativa cidadã, com a assinatura de, ao menos, vinte por cento do eleitorado; ou por maioria absoluta dos membros da Assembléia Legislativa Plurinacional; ou mesmo pelo Presidente do Estado. A reforma parcial, de acordo com o mesmo art. 411, igualmente poderá ocorrer por iniciativa popular, com a assinatura de, ao menos, vinte por cento do eleitorado, por maioria absoluta dos membros da Assembleia Legislativa Plurinacional. Em qualquer caso de reforma parcial, todavia, o referendo é obrigatório. Já em países como Argentina e Brasil, não é prevista a reforma constitucional via referendo. A título de herança ou influência histórica, enquanto nações colonizadoras, apesar de a Constituição de Portugal não prever a possibilidade de revisão via referendo, atribuindo a competência para esse fim aos deputados, de acordo com seu art. 284.º, em Espanha, ao contrário, o art. 168, ao cuidar da revisão total da Constituição, ou então parcial que afete seus Títulos referentes aos direitos fundamentais e liberdades públicas, assim como à Coroa, em seu número 3, determina que, aprovada a reforma pelas Cortes Gerais, estas compostas pelo Congresso de Deputados e Senado (art. 66), ela será submetida a referendo para sua ratificação.
5. Resultados A pesquisa ainda se encontra em estágio inicial, posto que aprovada pelo Conselho Científico da Escola de Direito da Universidade do Minho no dia 25 de Maio de 2017, ou seja, há cerca de um mês. Deste modo, enquanto perspectiva, tentar-se-á, além dos objetivos já indicados, averiguar se o Poder Constituinte pode ser exercido via referendo por seus titulares após a promulgação da Constituição; se a alteração da Constituição via consulta popular é condizente com a democracia e logra legitimidade; e se a alteração da Constituição via consulta popular é passível de controle de constitucionalidade, circunstância fundamental para caracterizar a Constituição como norma ápice do ordenamento jurídico.
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6. Conclusão Conforme exposto no início deste resumo, o objetivo desta investigação é revelar fenômeno que deve ser objeto de estudo do direito constitucional, com assim foi o constitucionalismo à época de transição dos Estados Absolutos para as democracias constitucionais. Resposta à presente questão necessariamente passará pelos instrumentos de democracia postos à disposição do cidadão para seu exercício. Certo é que, além da ocorrência do fenômeno da alteração de textos constitucionais por consulta direta à população, nem sempre ela desaguará na simples manipulação das massas, conforme a mencionada rejeição de grande parte das propostas dessas consultas no tópico discussão assim revela.
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COMÉRCIO INTERNACIONAL E IMPOSIÇÃO TRIBUTÁRIA JUSTA. AS IMPORTAÇÕES E AS EXPORTAÇÕES NO CONTEXTO DE UM SISTEMA FISCAL COERENTE Andreia Isabel Dias Barbosa1
1. Introdução A investigação que estamos a desenvolver assume como principal objeto a tributação do comércio internacional em sede de direitos aduaneiros e de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA). As transações de mercadorias para além-fronteiras conhecem um conjunto alargado de obrigações legais, entre elas, obrigações tributárias. Em concreto, as importações e as exportações devem ser realizadas em estrito cumprimento do regime aduaneiro em vigor e ainda das regras de IVA aplicáveis, em nome da promoção de um funcionamento eficaz do mercado único instituído. Sucede que o tratamento fiscal do constante fluxo de bens que entram e que saem do território dos Estados Membros (EM) da União para países terceiros está revestido de enorme complexidade. Apesar de a União Europeia (UE) contar com uma regulamentação aduaneira uniformizada, em sede de IVA a harmonização que existe não é ainda total, para além de que são várias as diferenças entre os aludidos regimes, que devem ser tidos em consideração simultaneamente. Acresce 1 Doutoranda em Ciências Jurídicas Públicas, Mestre em Direito Tributário e Fiscal; Licenciada em Direito pela Escola de Direito da Universidade do Minho.
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ainda que o regime tributário das operações transfronteiriças assenta, essencialmente, na matriz do Direito Aduaneiro e as regras que se lhes aplicam surgem como um corpo estranho na Diretiva do IVA, que recorre frequentemente a remissões. Consequentemente, a articulação entre ambos os regimes tributários fica dificultada, em prejuízo do estrito cumprimento das normas aplicáveis. Mostra-se, pois, imperioso desmistificar e compreender a interação existente entre as regras tributárias atinentes aos direitos aduaneiros e ao IVA quando aplicadas às transações internacionais, através, essencialmente, de uma análise articulada entre a Diretiva do IVA e o Código Aduaneiro da União (CAU), a qual se mostra particularmente relevante para a correta aplicação simultânea de ambos. A nova abordagem que nos encontramos a fazer aos termos em que o comércio internacional é tributado implicará, ainda, a atribuição de uma nova dimensão jurídica e principiológica à matéria em causa.
2. Objetivos O desafio subjacente à nossa investigação reconduz-se a esclarecer os termos em que a articulação entre os regimes jurídico tributários aplicáveis deverá ser feita, desde logo porque as dificuldades de compreensão da forma como a tributação do comércio internacional tem lugar não surgem apenas pelas dificuldades de articulação que enunciamos entre o que dispõe o CAU e a Diretiva do IVA, mas ainda pelo facto de não existir uma densificação teórica, jurídica e principiologicamente enquadrada desta matéria, a qual também nos propomos a desenvolver. Optamos por reconduzir a nossa análise ao núcleo fundamental do comércio internacional: as importações e as exportações, em particular aquelas que são realizadas entre os sujeitos passivos dos EM da UE e os dos países terceiros2. Porém, e em prol de uma abordagem o mais completa possível, o estudo das transações intracomunitárias, em certos momentos, e ainda que em termos não tão desenvolvidos, também se impõe, visto que as transações internacionais são, muitas vezes, antecedidas ou geradoras de trocas comerciais entre sujeitos passivos dos próprios EM, essencialmente no contexto das chain transactions3. A análise que estamos a desenvolver é centrada na gestão financeira internacional e nas políticas comerciais, as quais servem de meios de controlo das 2 Contamos, desde logo, dedicar-nos ao estudo dos acordos celebrados entre a UE e países terceiros para incremento do comércio mundial, numa abertura ao resto do mundo e em obediência aos princípios fixados pelo GATT. Neste contexto, debruçar-nos-emos, nomeadamente, sobre o regime do sistema generalizado de preferências e sobre a cláusula da nação mais favorecida. 3 Cf. ALEKSANDRA BAL, «Import and Export in Multi-Sale Transactions», Part II, in International Vat Monitor, Vol. 27, number 3, 2016, p. 168.
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ligações económicas estabelecidas entre os países no estudo das que já existem e daquelas que, eventualmente, poderão servir de alternativa às primeiras, quer por se revelarem mais vantajosas, quer porque a atualidade poderá impor novas medidas. Temos aqui em mente, por exemplo, as questões atinentes à desintegração da UE, com a saída de EM. Pergunta-se: que união aduaneira para a Europa hoje? Não obstante, saliente-se que nos encontramos a realizar um estudo fundamentalmente teórico das questões atinentes ao comércio internacional que se reportam ao objeto da investigação, sem prejuízo, no entanto, da convocação de fundamentos económicos, imprescindíveis para a compreensão das questões em análise4. Evidentemente que o trabalho conta com uma forte componente jurídico-tributária. Optamos por analisar isoladamente os regimes jurídico-tributários das importações e das exportações aplicáveis, mas com articulação das disposições legais atinentes aos direitos aduaneiros ao IVA. Partimos, nesta sede, da resposta a duas questões essenciais: a) os direitos aduaneiros e IVA devidos pelas importações e exportações devem ser qualificados como tributos e, dentro deste género, como impostos?; e b) sendo qualificados como tributos, a tributação incide sobre as mercadorias em si mesmas ou sobre as operações respetivas (importações e exportações)? Porém, a análise que encetamos não assenta apenas na exposição meramente normativista do regime tributário aplicável. Essa exposição está complementada com o necessário enquadramento jusprincipiológico, para que se possa aferir da justeza da tributação nesta sede. Note-se que não é nosso objetivo dissertar sobre o que é que se poderá entender por «justiça na tributação» ou por «tributação justa», em termos genéricos. É nosso intento, isso sim, partir de alguns pressupostos indiciadores da existência de justiça na imposição tributária, que consideramos serem já praticamente unânimes na doutrina e na jurisprudência, e estudá-los à luz dos regimes de tributação aduaneira e de IVA existentes, para que se consiga identificar quais são os princípios que, nesta sede em concreto, devem ser invocados, quer pelo sujeito ativo, quer pelo sujeito passivo, na relação jurídica que, neste âmbito, é construída. Importa realçar, ainda, que o enquadramento principiológico da matéria em estudo é antecedido pela exposição dos termos em que a atividade administrativa tributária e aduaneira é desenvolvida quando estão em causa importações e exportações. Para o efeito, é necessário, desde logo, dar conta da noção atual de Administração Tributária e Aduaneira e da respetiva estrutura orgânica 4 Aliás, a ideia de que a análise económica do Direito deve estar presente na formulação das soluções jurídico-normativas é protagonizada por H. EIDENMÜLLER, Effizienz als Rechtsprinzip – Möglichkeiten und Grenzen der ökonomischen Analyse des Rechts (Einheit der Gesellschaft-swissenschaften), 3.ª edição, Tübingen, Mohr Siebeck, 2005.
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e repartição de competências existente. É também relevante identificar o tipo de atos que são praticados, no sentido de ser definida uma adequada tipologia de atos dentro dos quais a atividade da ATA pode ser subsumida. Só depois é que a análise dos princípios aplicáveis que integram a disciplina jurídica do comércio internacional é possível, sendo ainda necessário, nesse contexto, identificar as fontes da disciplina jurídica do comércio internacional, com o desenho da respetiva «pirâmide normativa do comércio internacional»5 e também o respetivo objeto. Depois de estudados todos estes aspetos e após a exposição do regime jurídico-normativo da tributação sobre as importações e exportações em vigor, passaremos para a construção de um modelo de relação jurídica tributária no comércio internacional, enformada pelas componentes de justeza na tributação nesta sede, em articulação de conhecimentos e enquanto culminar da nossa investigação.
3. Metodologia A concretização da investigação depende da recolha e do estudo dos elementos legislativos, doutrinários e jurisprudenciais que sejam pertinentes para o desenvolvimento do tema em análise, bem como das instruções administrativas que tenham sido emitidas no âmbito da matéria em investigação. Nesse sentido, é necessário convocar conhecimentos de Direito Tributário, de Direito da UE, de Direito Fiscal Europeu, de Direito Internacional e ainda de Economia e de Finanças. Encontramo-nos a levar a efeito um estudo sério e profundo da questão, que passa, num primeiro momento, pela leitura dos elementos recolhidos, seguindo um critério de especialização crescente. O objetivo da primeira fase da investigação assenta, pois, na absorção de conhecimento para depois, num segundo momento, poder reduzi-lo a escrito e tomar uma posição acerca das questões que possam ser controvertidas e que mereçam uma maior densificação crítica. Para o efeito, e sobretudo por uma questão de, num momento posterior, a redação da investigação ser mais fácil, num documento em word são feitas anotações ao material bibliográfico analisado, a fim de se conseguir identificar, para cada manual ou artigo lido, os aspetos mais relevantes para o nosso objeto de estudo, transcrevendo as citações consideradas pertinentes, tecendo comentários críticos e outras observações. Ademais, e no que às fontes primárias diz respeito, 5 PETER WITTE e HANS-MICHAEL WOLFFGANG construíram a «Normenpyramide des Zollrechts» - cf. WITTE, Peter, WOLFFGANG, Hans-Michael, Lehrbuch des Europäischen Zollrechts Gebundene Ausgabe, 6.ª edição, Herne, NWB Verlag, 2009, p. 29 e seguintes.
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à medida do desenvolvimento da investigação, é feita uma recolha das decisões jurisprudenciais proferidas que são relevantes para o estudo do tema, essencialmente as provindas do TJUE, e que permitem atribuir uma dimensão prática e real à investigação. Quanto à análise da legislação aplicável, a consulta de legislação anotada, bem como dos trabalhos preparatórios, é fundamental para uma correta execução da tarefa de interpretação dos preceitos normativos e consequente análise crítica. Por força da grande amplitude geográfica que as matérias em análise conhecem, as fontes legislativas, doutrinais e jurisprudenciais recolhidas e a recolher não estão, todas elas, escritas em português, nem respeitam apenas ao ordenamento jurídico português. Aliás, grande parte do material existente respeitante às matérias em estudo encontra-se redigido em inglês e provém de variados ordenamentos jurídicos. Note-se que não é nossa pretensão centrar a investigação num estudo comparado. Porém, considerando que as transações comerciais em estudo ultrapassam fronteiras e continentes, a convocação de outros ordenamentos jurídicos é inevitável. Prosseguindo com a exposição do método a adotar, a leitura dos elementos disponíveis e a realização propriamente dita da investigação não são momentos completamente estanques no processo de investigação. De facto, à medida que a investigação vai sendo feita, surgem novas fontes, pelo que a tarefa de redução a escrito sempre é acompanhada pelo estudo desses novos elementos (normativos, bibliográficos e jurisprudenciais), sem prejuízo de nesta fase inicial a tarefa de recolha bibliográfica e de leitura ser, de facto, mais acentuada. Assim, ainda que cientes desta realidade, a segunda fase de concretização da investigação servirá, maioritariamente, para a escrever. Esta tarefa é particularmente desafiante na medida em que, apesar de existirem inúmeras fontes respeitantes a assuntos relacionados com as matérias em análise, são muito poucos os elementos bibliográficos especialmente respeitantes às mesmas. Por esse motivo, mais do que com uma componente crítica, a investigação conta com uma forte componente criativa, pelo que, atenta a ausência de grandes desenvolvimentos sobre o objeto de estudo, exige-se, da nossa parte, um trabalho de criação, ex novo, o que torna o momento da escrita ainda mais exigente. À medida que a investigação for sendo feita, consideramos ser necessário proceder à revisão do que já escrevemos. Apesar de a tarefa de revisão se encontrar prevista primordialmente para a fase final da investigação, o cuidado de analisar o que já está escrito, num momento em que a redação e a revisão estão temporalmente próximas, mostra-se benéfico para detetar eventuais lapsos de raciocínio e para melhorar a concretização das ideias. Assim, parece-nos que o processo de investigação não é constituído por fases completamente estanques entre si. Ainda que possamos estruturar o processo metodológico em três
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momentos essenciais – de leitura, de escrita e de revisão –, existe uma simbiose entre todos eles, que reputamos de natural e, até, desejável.
4. Discussão A doutrina e a jurisprudência têm vindo a dedicar-se ao estudo de questões isoladas que, no domínio da tributação do comércio internacional, se têm vindo a levantar. A título de exemplo, discute-se qual a inserção do Direito Aduaneiro no domínio do Direito Fiscal; a natureza jurídica dos direitos aduaneiros; os efeitos para o comércio internacional e para a internalização da cobrança de direitos aduaneiros e de IVA; o facto gerador e a exigibilidade do IVA na importação; a origem preferencial ou não preferencial das mercadorias; a qualificação das taxas dos impostos previstos na Pauta Aduaneira da União; a arbitrabilidade do IVA na importação; a arbitragem nos direitos aduaneiros; os conflitos de interesses entre o regime aduaneiro e o regime dos preços de transferência; a articulação entre o Direito Aduaneiro e as normas da Organização Mundial do Comércio, o regime das «mercadorias não-UE» e as transactions, entre muitas outras. Note-se que algumas das questões elencadas surgiram por força de casos que foram levados ao conhecimento do Tribunal de Justiça da UE, pelo que a análise a concretizar poderá partir desses mesmos casos concretos ou de outros que, entretanto, tenham surgido. Por conseguinte, é nosso intento, também, debruçar-nos sobre questões debatidas na doutrina e na jurisprudência e assumir uma posição sobre as mesmas, dando o nosso contributo para a solução dos problemas existentes. Porém, os concretos termos em que o comércio internacional se concretiza são pensados e repensados constantemente, fruto das evoluções verificadas neste âmbito, o que leva à introdução reiterada de alterações legislativas importantes, como por exemplo, a adoção recente do CAU. Têm também vindo a ser concentrados novos e reforçados esforços em matéria de troca de informações, com a assinatura de acordos bilaterais, em prol da eliminação da fraude e evasão fiscais. Neste domínio, deteta-se uma especial preocupação com a necessidade de serem realizadas investigações criminais especialmente destinadas a esse fim. Ao nível procedimental, é patente o novo ambiente eletrónico vivido, com o objetivo de simplificação e de implementação de novas práticas administrativas baseadas na análise de risco. Trata-se de novos desafios e de objetivos atuais que nos parece relevante acompanhar e analisar. A este respeito, importa salientar que o papel desempenhado pelas administrações fiscais e aduaneiras estende-se para além das respetivas fronteiras territoriais e foca-se não apenas no objetivo de cobrança de receitas fiscais mas também na prossecução dos objetivos de segurança e de eficiência. Parece-nos, pois, relevante, analisar estas novas tendências procedimentais. 30
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Por outro lado, e no que respeita ao Direito Aduaneiro, constata-se que o mesmo foi afastado da «colorful arena»6 do Direito Tributário, tendo sido alvo de esquecimento pela doutrina jurídica, em geral, e pela doutrina fiscal, em particular. Com efeito, são essencialmente os manuais de economia internacional que dedicam algumas páginas ao tratamento das matérias atinentes ao Direito Aduaneiro, páginas essas que são redigidas pelos próprios servidores públicos aduaneiros, em termos objetivos e simples. Consequentemente, ainda que o Direito Aduaneiro seja aí trabalhado do ponto de vista técnico, com claros proveitos ao nível do conhecimento da realidade, acaba por padecer de isolamento dogmático, de insuficiente reflexão crítica e de despreocupação sistemática. Ora, é também precisamente a este nível, de libertação da análise estritamente técnica que se tem vindo a discutir, que procuramos dar o nosso contributo. Ainda que se reconheça que estamos perante um domínio com uma imponente componente tecnicista, verificamos que dele não se poderão afastar dimensões jurídicas. O Direito Aduaneiro também merece ser alvo de uma reflexão juridicamente enquadrada, que parta de um conjunto de princípios enformadores, e que seja capaz de lhe atribuir uma dimensão jusfundamentada. As ideias de direito e de justiça impõem, pois, a juridificação do comércio internacional.
5. Resultados Os resultados que passamos aqui a expor reconduzem-se, tão só, aos que, até ao momento (junho de 2017), apuramos. Assim, no que concerne à necessária articulação entre o regime do IVA e o dos direitos aduaneiros, constatamos já que as diferenças entre os aludidos regimes jurídico-tributários se reportam à finalidade, à origem e à incidência objetiva, subjetiva e territorial dos mesmos. No que concerne à finalidade, os direitos aduaneiros procuram proteger os produtores de bens da UE da concorrência estrangeira, através da cobrança de direitos sobre os produtos importados, e assegurar o respeito das regras relativas ao tipo de mercadorias que podem entrar na UE. Já o IVA persegue, essencialmente, um objetivo de obtenção de receitas, por via da respetiva cobrança. Quanto à origem, a legislação aduaneira é da exclusiva competência da UE e é diretamente aplicável nos EM. Pelo contrário, as regras fundamentais do IVA encontram-se estabelecidas numa Diretiva e carecem de ser transpostas para o ordenamento jurídico dos EM. Para além do vasto conjunto de disposições obrigatórias, a Diretiva do IVA prevê uma série de opções que resultam em divergentes regras de IVA nos vários EM. Consequentemente, o nível de 6 TIMOTHY LYONS recorreu a esta expressão para caracterizar o Direito Aduaneiro em comparação com as questões que a tributação direta levanta ao nível da UE – assim, vide TIMOTHY LYONS, EC Customs Law, 2.ª edição, Oxford EC Law Library, 2008, p. 1.
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harmonização em sede de IVA é mais baixo do que aquele que existe no domínio dos direitos aduaneiros. Relativamente à incidência, a legislação aduaneira e de IVA têm diferentes âmbitos de aplicação. A legislação aduaneira abrange o comércio aduaneiro e os direitos aduaneiros são cobrados sobre as mercadorias importadas para a UE. Por seu turno, a legislação do IVA aplica-se sobre bens e serviços e o IVA é devido nas operações de importação e nas transações estabelecidas entre os sujeitos passivos dos EM da UE. Destarte, o âmbito de aplicação do IVA é mais amplo do que o dos direitos aduaneiros. Por fim, o IVA é, geralmente, cobrado nas operações de venda de bens, enquanto os direitos aduaneiros são cobrados assim que as mercadorias são introduzidas em livre prática, independentemente de serem vendidas a terceiros. Destarte, embora as regras aduaneiras e de IVA aplicáveis às importações e às exportações estejam, em grande medida, alinhadas, subsistem diferenças significativas. Analisamos já, também, alguns dos prós e dos contras subjacentes à tributação do comércio internacional, sendo entendimento maioritário que «[o] comércio internacional deveria desenvolver-se num ambiente seguro e simples, eliminando-se os custos fiscais e administrativos desnecessários»7. Aliás, os direitos aduaneiros têm vindo a ser acusados de constituírem um fator de restrição ao comércio internacional8, tendo sido, por esse motivo, objeto de «eliminação» no âmbito dos processos de integração económica regional e nas negociações multilaterais de liberalização do comércio mundial. Em virtude do atual contexto de internacionalização e globalização do comércio e das economias, poder-se-ia, então, considerar que o Direito Aduaneiro perdeu importância ou que
7 Cf. GLÓRIA TEIXEIRA, Manual de Direito Fiscal, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2016, p. 173 [interpolação nossa]. 8 Cf. LUÍS M. BARATA, «Os direitos aduaneiros e os impostos especiais sobre o consumo podem contribuir para a internacionalização?», in Internacionalização e Tributação (Manuel Pires e Rita Calçada Pires – Coord.), Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2012, p. 104. Ainda a propósito dos fatores de restrição ao comércio internacional, procuraremos dedicar-nos à questão levantada por JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, que alerta para a circunstância de que as causas impeditivas da internacionalização poderão dever-se não apenas à carga impositiva sob a forma de impostos, taxas ou contribuições que incidem sobre os rendimentos, atos e patrimónios, mas também por força dos problemas procedimentais e processuais que o comércio aberto conhece, assentes na «complexidade normadora», na «complexidade administrativa», na «excessiva litigiosidade» e na «inadequação da organização judiciária e do iter processual» – cf. JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, «A justiça tributária como obstáculo à internacionalização», in II Congresso de Direito Fiscal, Porto, Vida Económica, 2012, p. 100 e seguintes.
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passou a ter menos peso9. Não obstante, a investigação tem servido também para reequacionar o problema e questionar elementos dados como assentes, com o objetivo de aferir a justeza da tributação do comércio internacional. Neste sentido, constatamos que o contexto de mundialização das transações comerciais serve, precisamente, para ressaltar a importância crescente do Direito Aduaneiro. A verdade é que se assistiu recentemente a alterações significativas na legislação aduaneira – com a adoção do CAU –, fruto das novas exigências impostas pela evolução dos termos em que o comércio internacional é concretizado. Já no que concerne ao IVA, apesar de encontrarmos abundante doutrina que se debruça sobre a respetiva componente teórica e principiológica, a abordagem existente é generalista, não sendo especificamente direcionada para as operações de importação e de exportação, nem articulada com o Direito Aduaneiro, em claro prejuízo das especificidades que as matérias em questão conhecem. Por conseguinte, também no âmbito do IVA se tem vindo a mostrar pertinente fazer a aludida abordagem especialmente baseada nos princípios aplicáveis à matéria em causa.
Conclusão «Nenhum país é uma ilha. Todos os países participam na economia mundial e estão interligados através do comércio internacional e das finanças»10. Em constatação desta ideia, assiste-se a uma internacionalização crescente das economias nacionais, a um avanço vertiginoso das novas tecnologias e, em particular, das comunicações, elevando o comércio a uma nova dimensão, na qual a atuação dos cidadãos e das empresas é mundializada. Ora, os termos em que as transações internacionais são tributadas em sede aduaneira e de IVA constitui uma temática da maior importância num contexto em que o comércio internacional conhece uma elevada pujança. Trata-se de uma preocupação transversal a todos os que participam no comércio internacional e que é reforçada pela circunstância de a tributação das transações internacionais visar, também (pelo
9 A aludida perda de importância encontrar-se-ia espelhada, fundamentalmente, em dois aspetos: na circunstância de as receitas advindas da cobrança dos impostos aduaneiros serem residuais – o que terá originado a integração dos procedimento e processo aduaneiros nos procedimento e processo tributários e a extinção dos tribunais aduaneiros – e na organização em que se integram os correspondentes órgãos, que, depois de já terem estado integrados na Direção Geral das Alfândegas, e na Direção Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais, se encontram, desde 2012, inseridos na ATA - cf. JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 9.ª edição, Coimbra, Almedina, 2016, p. 92. 10 Cf. SAMUELSON NORDHAUS, Economia, 19.ª edição, Nova Iorque, McGraw Hill, 2011, p. 380.
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menos, nos países desenvolvidos), a proteção da saúde pública, o combate ao narcotráfico, ao contrabando e ao crime organizado. A circunstância de o comércio internacional se encontrar, atualmente, facilitado e regulamentado de forma tendencialmente harmoniosa não significa que os limites ou os obstáculos ao comércio tenham deixado de existir. O comércio puramente livre reconduz-se a uma utopia, cuja implementação parece estar longe de ser concretizada. Enquanto forem necessárias as barreiras ao comércio, ditadas, nomeadamente, para alterar os termos de troca a favor de um país, para proteção temporária de uma «indústria nascente» com um potencial de crescimento, para facilitar e melhorar o controlo dos fluxos de mercadorias na cadeia logística internacional, para proteção das economias nacionais, do meio ambiente e da saúde pública, a tributação do comércio internacional continuará a ter patente relevância.
Referências Bibliográficas BAL, Aleksandra, «Import and Export in Multi-Sale Transactions», Part II, in International Vat Monitor, Vol. 27, number 3, 2016. BARATA, Luís M., «Os direitos aduaneiros e os impostos especiais sobre o consumo podem contribuir para a internacionalização?», in Internacionalização e Tributação, Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2012. LYONS, Timothy, EC Customs Law, 2.ª edição, Oxford EC Law Library, 2008. NABAIS, José Casalta, Direito Fiscal, 9.ª edição, Coimbra, Almedina, 2016. NORDHAUS, Samuelson Economia, 19.ª edição, Nova Iorque, McGraw Hill, 2011. ROCHA, Joaquim Freitas da, «A justiça tributária como obstáculo à internacionalização», in II Congresso de Direito Fiscal, Porto, Vida Económica, 2012. TEIXEIRA, Glória, Manual de Direito Fiscal, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2016. WITTE, Peter, WOLFFGANG, Hans-Michael, Lehrbuch des Europäischen Zollrechts Gebundene Ausgabe, 6.ª edição, Herne, NWB Verlag, 2009.
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A NATUREZA JURÍDICA DOS SERVIÇOS DE CARONA PAGA PROVENIENTE DA RELAÇÃO ENTRE AS PLATAFORMAS DIGITAIS E O CONDUTOR DO VEÍCULO Ângela Barbosa Franco1
1. Introdução Diante da era cibernética, os atos decorrentes do poder diretivo do tomador de serviços se manifestam por programação em algoritmos, redes e sistemas. Essa virtualidade desvela um poder sem intervenção humana capaz de disfarçar a subordinação, principal característica da relação de emprego, caso não seja contextualizada em consonância com as inovações tecnológicas. Esse fenômeno pode ser vislumbrado no transporte privado de passageiros ofertado pelas plataformas digitais, em virtude do impasse classificatório sobre a existência ou não de relação de emprego entre trabalhadores e a empresa intermediadora dos serviços. A falta de amparo legal e a indefinição sobre a natureza jurídica dessa atividade dão ensejo à exploração da mão-de-obra pelas plataformas que ditam
1 É doutoranda em Ciências Jurídicas Privatísticas na Universidade do Minho/Portugal. Leciona a disciplina de Direito do Trabalho na faculdade Univiçosa nos cursos de graduação e pós-graduação. Na pesquisa, suas áreas de interesse são em Direito e Literatura, Direito do Trabalho e Mediação.
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as regras de uso, determinam o poder de barganha e não preservam um patamar mínimo civilizatório para se manter a dignidade do trabalhador.
2. Objetivos A pesquisa tem como objetivo investigar em que medida o condutor do veículo encontra-se subordinado à empresa que gerencia a plataforma, a fim de poder averiguar se a mesma é uma mera facilitadora ou real empregadora do prestador de serviço.
3. Metodologia A pesquisa pauta-se em um raciocínio lógico-dedutivo, exploratório de uma vertente jurídico-dogmática, que analisa a presença ou identifica a ausência dos elementos caracterizadores da relação de emprego na interação entre o condutor de veículo de caronas pagas e a plataforma que faz a intermediação dos serviços. Assim, avalia quais são as peculiaridades inerentes à figura do tomador de serviços e de quem presta serviços.
4. Discussão As empresas de transporte privado de passageiros apenas se veem como intermediadoras do contato entre clientes e contratados autônomos. Os termos e condições da plataforma variam em cada país, mas, independentemente de onde e como o trabalhado é ofertado, negam a existência de uma relação de emprego2. Apesar disso, no Tribunal do Distrito do Norte da Califórnia, há precedentes que admitem a caracterização do motorista como empregado da plataforma que faz a intermediação do serviço de transporte privado3. Na mesma perspectiva, tem-se a decisão do Tribunal do Reino Unido4. Os fatos considerados relevantes para o veredicto são: a empresa responsável pela plataforma digital é quem recruta os motoristas; controla as informações pessoais dos 2 JEREMIAS PRASSL; MARTIN RISAK, Uber, Taskrabbit, and Co.: Platforms as Employers? Rethinking the Legal Analysis of Crowdwork, disponível em https://cllpj.law.illinois.edu/access?returnurl=https://cllpj.law.illinois.edu/archive/vol_37/, acessado em 17.04.2017, p. 619. 3 UNITED STATES, District Court for the Northern District of California. 2015, disponível em https://assets.documentcloud.org/documents/2328122/uber-class-action-chen-ruling.pdf, acessado em 25.04.2017. 4 ENGLAND, Courts and Tribunals Judiciary. Mr. Y Aslam, Mr. J Farrar and Others -V- Uber. 2016, disponível em https://www.judiciary.gov.uk/judgments/mr-y-aslam-mr-j-farrar-and-others-v-uber/, acessado em 25.05.2017.
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A natureza jurídica dos serviços de carona paga proveniente da relação entre as plataformas digitais e o condutor do veículo
passageiros e a destinação pretendida; exige que os motoristas aceitem viagens e/ou não cancelem viagens, sob pena de desconexão da plataforma; define a rota padrão; determina a tarifa e o motorista não pode negociar um valor maior ou menor com o passageiro; impõe regras aos motoristas de como desempenhar o trabalho; limita o modelo dos carros; sujeita os motoristas a determinados procedimentos disciplinares; define descontos sem a anuência do motorista; aceita o risco da perda; detém as queixas dos motoristas e dos passageiros; e tem o poder de alterar unilateralmente os termos contratuais em relação aos motoristas. Em ambos os julgados, os tribunais desconsideram as formas contratuais, ajustadas entre as partes, de prestação de serviços autônomos e se pautam nos fatos. Segundo os Tribunais, americano e inglês, o trabalho desempenhado pelo motorista não se confunde com uma mera prestação de serviços autônomos. A relação de emprego se perfaz em virtude da dependência do condutor às ordens da empresa gerenciadora da plataforma digital para conseguir desempenhar seu labor. No Brasil, percebe-se um embaraço interpretativo quanto à natureza jurídica dos serviços de caronas pagas. As decisões judiciais analisam a presença de cinco elementos fático-jurídicos: se o prestador de serviços é uma pessoa física, que desempenha o labor de forma pessoal, não eventual, subordinada e mediante o pagamento de uma contraprestação. No entanto, as sentenças são díspares. Algumas reconhecem nesses elementos a existência de um contrato de trabalho5 e outras, ao entender que nem todas as características encontram-se presentes, afirmam tratar de um trabalho autônomo6. Em grau recursal, o Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais6 sustenta que um motorista credenciado à plataforma que oferta o transporte privado de passageiros não possui relação de emprego com a mesma. 5 BRASIL, Decisão da 13ª Vara do Trabalho de São Paulo, de 11.04.2017, disponível em http://link. estadao.com.br/noticias/empresas,justica-de-sp-determina-que-uber-tem-de-pagar-r-80-mil-amotorista-por-vinculo-empregaticio,70001737802, acessado em 20.04.2017. BRASIL, Decisão da 33ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, Minas Gerais, de 13.02.2017, disponível em https://s.conjur.com.br/dl/juiz-reconhece-vinculo-emprego-uber.pdf, acessado em 20.02.2017. 6BRASIL, Decisão da 37ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, Minas Gerais, de 30.01.2017, disponível em http://s.conjur.com.br/dl/justica-trabalho-fixa-motorista-uber.pdf, acessado em 20.02.2017. BRASIL, Decisão da 10ª Vara do Trabalho de Gama, Distrito Federal, de 18.04.2017, disponível em http://www.conjur.com.br/2017-abr-21/motorista-uber-nao-funcionario-daempresa-juizadf?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook, acessado em 26.04.2017. 6
BRASIL, Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Processo de 2º grau. RO001135934.2016.5.03.0112. 9ª Turma. Relatora Des. Maria Stela Álvares da Silva Campos. Belo Horizonte, acórdão de 25 maio 2017, disponível em
https://pje.trt3.jus.br/consultaprocessual/pages/consultas/DetalhaProcesso.seam?p_num_ pje=130956&p_ grau_pje=2&p_seq=11359&p_vara=112&dt_autuacao=03%2F04%2F2017&cid=12608, acessado em 02.06.2017.
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Em Portugal, até o momento, não há registros de ações movidas em Tribunal de competência especializada do Trabalho por motoristas para se discutir a existência de um contrato de trabalho com as plataformas digitais. Contudo, à luz do ordenamento jurídico português, em especial os preceitos aventados pelos artigos 11º e 12º do Código do Trabalho7, depreende-se que os prestadores de serviços on demand, para requererem o reconhecimento da relação de trabalho, podem se pautar em diversos aspectos. O elemento retribuição, adstrito obrigatoriamente à noção de contrato de trabalho, consiste na demonstração que a remuneração é paga de maneira uniforme ou periódica. Por exemplo, se comprovado seu repasse semanalmente ao motorista pela empresa, que recebe diretamente dos usuários do serviço, tem-se a existência de um labor decorrente de uma contraprestação. A subordinação, que se vincula ao poder diretivo do credor da prestação de serviços, desperta-se caso comprovada a determinação pelo gerenciador do aplicativo do valor cobrado pela corrida, sem qualquer interferência ou autonomia do condutor na fixação dos preços. Além disso, a subordinação pode ser corroborada quando demonstrado que a plataforma digital controla e afere o desempenho dos condutores de acordo com as avaliações dos usuários. Assim, aplica-lhes sanções como o descredenciamento em caso de queixas de clientes ou avaliações insatisfatórias. Como se não bastasse, se os prestadores de serviços estiverem sujeitos a um conjunto de regras no desempenho de suas atividades que limitam sua liberdade de decidir, a relação de emprego encontra-se plenamente configurada. Por outro lado, ainda dentro do contexto legal português, há fundamentos para tentar evitar a presunção da existência do contrato de trabalho. Note-se que, no trabalho desempenhado pelos condutores de transporte privado os equipamentos e os instrumentos de trabalho são de propriedade do prestador da atividade, afastando-se a alínea b, do art. 12º do CT8. Também, é viável pontuar que o motorista não está sujeito a um horário de trabalho ou tempo à disposição e, por isso, conta com plena liberdade para trabalhar quando e pelo tempo que lhe aprouver, o que rechaça a alínea c, do art. 12º do CT9. Ainda, há a questão do motorista não se fixar com exclusividade ao intermediador dos serviços, vez que pode se vincular às empresas concorrentes o que traduz autonomia e fragiliza o elemento subordinação, restando-se, assim, apenas o elemento retribuição, cuja periodicidade é contestável, visto que o repasse apenas ocorre quando o trabalhador quer prestar serviços. Nesse contexto, “não é expectável que os presta-
7 PAULA QUINTAS; HÉLDER QUINTAS, Código do Trabalho. Anotado e Comentado. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 2016, pp. 62 e 69. 8 Idem, p. 69. 9 Idem, p. 69.
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A natureza jurídica dos serviços de carona paga proveniente da relação entre as plataformas digitais e o condutor do veículo
dores de serviços on demand venham a conseguir beneficiar da presunção legal de existência de contrato de trabalho”10. Ante a dubiedade, a natureza jurídica da atividade torna-se subjetiva e fica ao alvedrio do magistrado. Os prestadores de serviços precisam invocar e provar os fatos evidenciadores da subordinação, ao passo que o gerenciador do aplicativo tem que reverter tais alegações e demonstrar a autonomia dos serviços ofertados pelos motoristas11. A oscilação dos posicionamentos apresentados denota que a classificação dos trabalhadores, como empregado ou trabalhador por conta própria credenciados à Uber, representa uma incógnita que necessita ser sanada para a identificação da presença de um empregador como responsável pelas condições de trabalho a que estão expostos os trabalhadores a ele vinculados. Prassl e Risak12 sugerem analisar se na relação jurídica entre a plataforma e o motorista, aquela possui as características inerentes a todo empregador. Para os autores, o verdadeiro tomador de serviços encontra-se adstrito a cinco funções: determina o início e o término da existência da relação de trabalho; explora a mão-de-obra e de seus frutos; oportuniza o trabalho e sua contraprestação; realiza a gestão interna, bem como a gestão da empresa no mercado externo; assume os riscos do empreendimento. Presentes essas atribuições temse o empregador e, consequentemente, da existência de um contrato de trabalho. Sob essa perspectiva é possível identificar que a admissão do condutor e a extinção do contrato são prerrogativas da plataforma que oferta os serviços de transporte. Esta detém tanto o poder de seleção, através da imposição de uma série de exigências, bem como a decisão de dispensar o motorista, motivada, por exemplo, na baixa classificação dada pelo cliente à corrida. No que concerne ao recebimento do trabalho e seus frutos, a plataforma é quem recebe, diretamente, o valor pago pelo usuário da carona e repassa, posteriormente, ao condutor do veículo parte da quantia, tornando-se, assim, a principal destinatária dos frutos do trabalho. A forma da prestação do trabalho e sua remuneração são definidas pela plataforma ao indicar as regras a serem obedecidas pelos trabalhadores a ela vinculados e o valor a ser cobrado pela corrida. Dessa maneira, há efetivo gerenciamento interno da plataforma sobre os trabalhadores, inclusive do período em que estão à disposição para a realização dos serviços de carona paga e da 10 JOANA VASCONCELOS, O caso das relações estabelecidas no contexto da economia on demand entre prestadores independentes (?) de serviços e empresas tecnológicas intermediárias (?) no mercado de trabalho. In: VII Colóquio sobre Direito do Trabalho realizado pelo STJ. 21 out. 2015, disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/coloquios/coloquios_STJ/VII_Coloquio/profdrjoanavasconcelos.pdf, acessado em 04.01.2017, p. 08. 11 Idem, p. 08. 12 JEREMIAS PRASSL; MARTIN RISAK, cit, p. 636.
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avaliação dos usuários sobre a qualidade dos serviços. No que tange ao gerenciamento da plataforma no mercado externo, esta, ao explorar uma atividade econômica que visa lucros potenciais, também se expõe a eventuais prejuízos que a função possa resultar. A análise da existência de uma relação de emprego, diante das particularidades adstritas ao empregador, representa uma solução viável para se proceder um redimensionamento da maneira de se identificar a relação de emprego no contexto das novas formas de trabalho atinentes à tecnologia de informação. No trabalho contemporâneo, o fenômeno da uberização, de acordo com as ideias de Chaves Júnior13, expõe um poder diretivo do empregador que se desprende do espaço físico, do tempo de trabalho e do contato direto com o obreiro, para controlar sua alma e o marketing. Para Moreira14, o problema é o empregador poder se servir das novas tecnologias para finalidades nem sempre legítimas, “disfarçadas com biombos linguísticos de flexibilidade e autonomia”, quando na realidade faz uso de um controle intrusivo e extremamente abusivo do trabalho. Sob um prisma internacional e juridicamente trabalhista, a disrupção tecnológica dos serviços on demand de transporte pode ser apontada como um modelo para o subterfúgio da regulamentação protetiva aos trabalhadores e da segurança e saúde no trabalho. Um trabalho com vínculos precários, contínuos e virtuais estabelece conexões heterogêneas, sem identidade, com distorções para se afastar uma relação de emprego. Essa situação desvela a necessidade urgente de se redimensionar o Direito do Trabalho para que o labor vinculado às novas tecnologias não desconsidere a pessoa humana e seus direitos fundamentais.
Conclusão Uma das razões para a dificuldade em se classificar o condutor do veículo como empregado ou autônomo decorre da ausência de um critério legal que se adapte ao trabalho contemporâneo e abranja as novas formas de labor intermediadas por plataformas digitais. A dubiedade interpretativa dos julgados consiste na tentativa fracassada de ajustar o modelo de subordinação tradicional nos moldes do labor da era tecnológica. Ou seja, a subordinação anterior aos contratos formalizados na 13 JOSÉ EDUARDO DE RESENDE CHAVES JÚNIOR, Motorista do Uber poderá ser considerado empregado no Brasil, disponível em http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI237918,41046Motorista+do+Uber+podera+ser+considerado+empregado+no+Brasil, acessado em 15.12.2016. 14 TERESA COELHO MOREIRA, The Electronic Control of the Employer in Portugal. Labour & Law Issues. V. 2, n. 1, 2016, disponível em https://labourlaw.unibo.it/article/view/6009/5792, acessado em 17.04.2017, p. 194.
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A natureza jurídica dos serviços de carona paga proveniente da relação entre as plataformas digitais e o condutor do veículo
pré-revolução tecnológica não mais se ajusta ou serve para dar uma solução adequada às novas formas de trabalho provenientes da economia on demand. A existência ou não da relação de emprego entre a plataforma digital que oferta os serviços de carona e os condutores depende da realidade vivenciada pelos sujeitos contratantes. Para se identificar a natureza jurídica desses serviços não basta averiguar a subordinação do condutor, no contexto atual, ao tomador de serviços. Também é necessário vislumbrar as características inerentes a todo empregador. Dessa forma, eventuais fraudes na contratação ficam sujeitas à apreciação casuística, mesmo que a designação formal se destoe da realidade, possibilitando o reconhecimento do vínculo de emprego se identificada a atividade nos padrões de uma relação empregatícia.
Referências Bibliográficas BRASIL, Decisão da 10ª Vara do Trabalho de Gama, Distrito Federal, de 18.04.2017, disponível em http://www.conjur.com.br/2017-abr-21/motorista-uber-nao-funcionariodaempresa-juiza-df?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook, acessado em 26.04.2017. BRASIL, Decisão da 13ª Vara do Trabalho de São Paulo, de 11.04.2017, disponível em http://link.estadao.com.br/noticias/empresas,justica-de-sp-determina-que-uber-tem-depagar-r-80-mil-a-motorista-por-vinculo-empregaticio,70001737802, acessado em 20.04.2017. BRASIL, Decisão da 33ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, Minas Gerais, de 13.02.2017, disponível em https://s.conjur.com.br/dl/juiz-reconhece-vinculo-empregouber.pdf, acessado em 20.02.2017. BRASIL, Decisão da 37ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, Minas Gerais, de 30.01.2017, disponível em http://s.conjur.com.br/dl/justica-trabalho-fixa-motoristauber.pdf, acessado em 20.02.2017. BRASIL, Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Processo de 2º grau. RO-001135934.2016.5.03.0112. 9ª Turma. Relatora Des. Maria Stela Álvares da Silva Campos. Belo Horizonte, acórdão de 25 maio 2017, disponível em https://pje.trt3.jus.br/consultaprocessual/pages/consultas/DetalhaProcesso. seam?p_num _pje=130956&p_grau_pje=2&p_seq=11359&p_vara=112&dt_ autuacao=03%2F04%2F 2017&cid=12608, acessado em 2.06.2017.
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ENGLAND, Courts and Tribunals Judiciary. Mr. Y Aslam, Mr. J Farrar and Others -V- Uber. 2016, disponível em https://www.judiciary.gov.uk/judgments/ mr-y-aslam-mr-jfarrar-and-others-v-uber/, acessado em 25.05.2017. PRASSL, Jeremias; RISAK, Martin, Uber, Taskrabbit, and Co.: Platforms as Employers? Rethinking the Legal Analysis of Crowdwork, disponível em https://cllpj.law.illinois.edu/access?returnurl=https://cllpj.law.illinois.edu/ archive/vol_3 7/, acessado em 17.04.2017. VASCONCELOS, Joana, O caso das relações estabelecidas no contexto da economia on demand entre prestadores independentes (?) de serviços e empresas tecnológicas intermediárias (?) no mercado de trabalho. In: VII Colóquio sobre Direito do Trabalho realizado pelo STJ. 21 out. 2015. Disponível em: http://www. stj.pt/ficheiros/coloquios/coloquios_STJ/VII_Coloquio/profdrjoanavascon celos.pdf, acessado em 04.01.2017. CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende, Motorista do Uber poderá ser considerado empregado no Brasil, disponível em http://www.migalhas. com.br/dePeso/16,MI237918,41046-Motorista+do+Uber+podera+ser+considerado+empregado+no+Brasil, acessado em 15.12.2016. QUINTAS, Paula; QUINTAS, Hélder, Código do Trabalho. Anotado e Comentado. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 2016, pp. 62 e 69. MOREIRA, Teresa Coelho, The Electronic Control of the Employer in Portugal. Labour & Law Issues. V. 2, n. 1, 2016. Disponível em: https://labourlaw. unibo.it/article/view/6009/5792, acessado em 17.04. 2017. UNITED STATES, District Court for the Northern District of California. 2015. Disponível em: <https://assets.documentcloud.org/documents/2328122/ uber-classaction-chen-ruling.pdf>, acessado em 25.04.2017.
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A ESTRUTURA TERRITORIAL DOS MUNICÍPIOS EM PORTUGAL: RAZÕES PARA UMA REFORMA (?) Barbara Luize Iacovino Barreiros1
1. Introdução Este estudo debruça-se sobre a estrutura territorial dos municípios em Portugal, ou seja, limitamos o nosso objecto de estudo ao município, ainda que considerado no contexto da organização da administração local portuguesa em que se insere, nomeadamente, na qualidade de entidade local intermédia situada entre a freguesia e as regiões (neste momento inexistentes). Escolhemos estudar o município por ser a Autarquia local principal, e isso revela-se claramente não apenas na legislação, mas também na doutrina. Assim, em Portugal, o regime tradicionalmente assenta na divisão municipal ao longo de vários séculos de história. Para além disso, verifica-se que o município é um ente praticamente comum a todos os Estados-Membros da União Europeia. No entanto, entre outros aspectos que não vamos abordar neste estudo, verificamos que a estrutura territorial dos municípios difere em cada um dos Estados-Membros, sendo possível agrupá-los em dois grandes grupos: de um lado, Estados-Membros que procederam à implementação de reformas com consequente redução quanto ao número destas entidades, tais como, Alemanha, Bélgi1 Doutoramento em Ciências Jurídicas Públicas na Escola de Direito, Universidade do Minho, orientador Prof. Doutor António Cândido de Oliveira. Licenciada em Direito e mestre em Direito das Autarquias Locais pela Universidade do Minho. Pós-graduada em Estudos Europeus pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e em Carreiras Diplomáticas pela Faculdade de Direito e Ciência Política da Universidade de Auverge.
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ca e Holanda; e de outro Estados-Membros que possuem um elevado número de municípios, tais como a França, a Espanha e a Itália. Assim, A Alemanha Ocidental reduziu de cerca de 24.500 para pouco mais de 8.000 municípios, embora, após a reunificação com a Alemanha do Leste, o número de municípios aumentou para mais de 16.0002. A Bélgica, que por razões históricas, nomeadamente a sua anexação à França por Napoleão Bonaparte que durou até à Batalha de Waterloo, possuía 2.586 municípios, após a reforma iniciada nos anos 80, procedeu à fusão dos municípios, reduzindo-os para 5893. O mesmo se passou na Holanda que reduziu o número de municípios de 1.200 para cerca de 500. Também a Dinamarca, a Noruega e a Suécia reduziram significativamente o número de municípios, contando actualmente com cerca de 300 municípios. Também a Grécia há cerca de 15 anos reduziu de 6.000 municípios para pouco mais de 1.0004. Pelo contrário, o mesmo não se passou na França e na Espanha5. Contudo, recentemente, também a França em 2014 iniciou um conjunto de profundas e sucessivas modificações à organização territorial francesa, com a Lei de Modernização da Acção Pública Territorial e da Implementação das Metrópoles, designada por lei MAPAM ou MAPTAM, de 27 de Janeiro de 2014, e que criou um novo estatuto para as metrópoles. Posteriormente, em Julho de 2015, a Assembleia e o Senado adoptaram o projeto de lei sobre a nova organização territorial da república (NOTRe). Entretanto, esta lei foi promulgada, estabelecendo uma profunda reforma territorial, tendo reduzido o número de regiões francesas de 22 para 13, estando previsto dar continuidade às reformas territoriais até ao ano de 20206. Tendo em conta o exposto, pretendemos compreender porque é que existem 308 municípios em Portugal para uma população de 10,3 milhões de habitantes e uma superfície de 89,9 mil km2; enquanto em Espanha existem 8.108 municípios para 47,2 milhões de habitantes e uma superfície de 498,9 mil km2; e em França existem mais de 36.000 municípios para 65,3 milhões de habitantes e
2 Yves MENY (dir.), La réforme des collectivités locales en Europe – notes et études documentaires, La Documentation française, 1984. 3 Idem. 4 Idem. 5 Para a França ver: Paul BERNARD, Le Grand tournant des communes de France, Libraairie Armad Colin. Para a Espanha ver: Ramón PARADA VÁSQUEZ; Ángel FUENTETAJA PASTOR (dirs.), Reforma y retos de la Administración Local, Madrid, Marcial Pons, 2006. 6 Cf. http://www.gouvernement.fr/action/la-reforme-territoriale, consultado a 10/07/2017.
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A estrutura territorial dos municípios em Portugal: razões para uma reforma (?)
uma superfície de 550 mil km2; e identificar quais as razões que determinaram a existência de mapas territoriais municipais tão diferentes7. A organização da administração local autónoma portuguesa tem os seus alicerces nas reformas introduzidas na primeira metade do século XIX na sequência da Revolução Liberal de 18208. Nestes termos, como ponto de partida, pretendemos estudar a evolução histórica da planta municipal em Portugal durante o século XIX, e mais detalhadamente a reforma ocorrida em Portugal em meados de 18369 e indagar quais as razões desta reforma? Por que motivo a estrutura territorial dos municípios portugueses foi drasticamente alterada com a reforma de 1836? A dimensão racional da reforma exigia que os municípios não fossem demasiado pequenos e com pouca população pois não gerariam receitas fiscais suficientes. Por outro lado, o território municipal não deveria ser demasiado grande no sentido de se tornar difícil a deslocação da população aos serviços centrais normalmente situados na sede do município. Por outro lado, desde a implementação da reforma de Passos Manuel que a estrutura territorial dos municípios praticamente não sofreu alterações, no entanto vários factores (demografia, atribuições, meios de comunicação) mudaram. Nestes termos, questionamo-nos se esta realidade estará ajustada às necessidades actuais de autonomia e descentralização que se pretende que os municípios portugueses tenham ou se haverá razões para uma reforma da planta municipal. Para além disso, na sequência da grave crise financeira, a 17 de Maio de 2011, o Estado português assinou o Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica. Nesses termos, até julho de 2012, o governo deveria ter desenvolvido um plano de consolidação para reorganizar e reduzir significativamente o número de entidades locais, com o objectivo de reforçar a prestação do serviço público, aumentar a eficiência e reduzir custos. A fim de dar cumprimento ao acordado, foi publicada a Lei 22/2012, de 30 de Maio que aprovou o regime jurídico da reorganização administrativa autárquica, através da qual, Portugal procedeu a reorganização das freguesias e poderia ter procedido à reorganização dos municípios por fusão, mas não o fez.
7 Cf.https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&contecto=pi&indOcorrCod=0008273&selTab=tab0, consultado a 10/07/2017; População por municípios em Espanha: http://www.ine.es/dynt3/inebase/index.htm?padre=525, consultado a 10/07/2017. Em França: https://www.insee.fr/fr/accueil, consultado a 10/07/2017. 8 António Cândido de OLIVEIRA, Direito das Autarquias Locais, 2ª Edição, Coimbra, Coimbra Editores, 2013, p. 11. 9 V. Fausto J. A. de FIGUEIREDO, “A Reforma Concelhia de 6 de Novembro de 1836”, in O Direito, ano 82, 1950, p. 257 e seguintes.
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Acresce que, desde o veto presidencial de 2003 relativamente à Lei-Quadro da criação de municípios (Lei n.º 142/85 de 18 de novembro) o Presidente da República propunha a elaboração de um “Livro Branco sobre o tema do recorte territorial do sistema municipal, reunindo os contributos dos diversos ramos do saber” que “possa fazer luz sobre os caminhos que poderão e deverão ser percorridos”10. Pelo exposto, parece-nos oportuno e imprescindível elaborar um estudo com estas características, esperando poder contribuir para a reflexão sobre a (des) necessidade de uma reforma da planta municipal em Portugal.
2. Objetivos Será nossa tarefa investigar as razões que no decurso do século XIX motivaram a redução do número de municípios em Portugal para menos de metade; e por fim, indagar se na actualidade existe ou não razões para uma reforma territorial dos municípios. Simultaneamente, e tendo em conta as soluções que têm sido elaboradas nos outros países da União Europeia, tentaremos, se possível, elaborar a proposta de um critério ideal. Numa primeira abordagem, pretendemos conhecer e compreender a evolução histórica da planta municipal em Portugal, com especial destaque para as reformas implementadas e as tentativas de reforma que tiveram lugar durante o século XIX. De seguida verificar se a actual dimensão territorial dos municípios portugueses permite-lhes executar as funções que lhe são atribuídas pela Lei 75/2013 de 12 de setembro. Pretendemos também ter em atenção os problemas que neste domínio se colocam nos países que nos estão mais próximos (Espanha, França e Itália) e onde existe uma realidade territorial dos municípios muito mais fragmentada do que a do nosso país. No entanto, adiantamos desde já que não pretendemos fazer uma análise comparativa, mas tão só conhecer as experiências destes países no sentido de identificar formas de resolução dos problemas relativos ao micromunicipalismo. Vamos ter presente que as tentativas de redução do número de municípios nesses países têm tido grandes resistências, de tal modo que não tem sido possível executá-las, e procuraremos verificar se as soluções alternativas de cooperação e associação têm produzido os resultados desejados. 10 António Cândido de OLIVEIRA, “A criação de municípios em Portugal: As razões de um veto do presidente da República” in Separata de Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no centenário do seu nascimento, Edição da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 228.
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A estrutura territorial dos municípios em Portugal: razões para uma reforma (?)
Perante a realidade social descrita, pretende-se determinar se o mais conveniente é fomentar a fusão de pequenos municípios ou a sua absorção por outros maiores, e nesta hipótese como se poderia elaborar esta reforma; ou se é mais conveniente fomentar a cooperação, orgânica e funcional entre municípios, procedendo-se a explicação do regime de ambos os tipos de cooperação e a sua eventual utilidade.
3. Discussão Estará a realidade ajustada às necessidades actuais de autonomia e descentralização que se pretende que tenham os municípios portugueses ou haverá razões para uma reforma? É certo que Portugal, por comparação com a França e a Espanha, tem um número reduzido de municípios, todavia, existem alguns municípios de pequenas dimensões e com pouca população. Por um lado, o modelo de grandes municípios implementado na Dinamarca e na Inglaterra, por exemplo, em que prevalece os princípios da eficácia e eficiência na tentativa de evitar o problema dos “micromunicipios” poderá colocar em causa a proximidade na participação democrática. Por outro lado, o modelo de cooperação de municípios adoptado em França e Espanha, por exemplo, para combater a micromunicipalidade11, poderá não ser a melhor solução.
4. Metodologia Para o efeito, vamos ter em conta a evolução histórica e a realidade territorial dos municípios em Portugal e vamos realizar um estudo das opções que foram implementadas pela doutrina e legislação no nosso país. Em paralelo, vamos dar especial atenção aos países que nos estão mais próximos (Espanha e França). Escolhemos estudar a França pela influência que teve no nosso direito e organização administrativa, e a Espanha por se situar tão próximo e fazer fronteira com Portugal. Ainda no que se refere a França e a Espanha vamos estudar quais as medidas adoptadas para colmatar as dificuldades relacionadas com o micromunicipalismo. Será também objecto de estudo o veto presidencial de 2003 à criação de novos municípios, e no qual aponta a necessidade não só da criação de novos municípios como a extinção de outros. 11 O que diz respeito à micromunicipalidade e tentativas de solucionar o problema em Espanha, V. Fernando LÓPEZ RAMÓN, “Políticas Ante La Fragmentácion del Mapa Municipal”, REALA, Revista de Estudios de la Administración Local y Autonómica, n.º 313-314, Maio-Dezembro 2010, p. 66 a 104.
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Procederemos ainda ao estudo empírico de campo ou de caso, analisando um grupo de municípios pequenos, outro grupo de municípios médios, e outro de municípios grandes, no sentido de apurar a realidade prática. Estes grupos ainda não foram escolhidos. Proceder-se-á à sua escolha aleatoriamente tentando seja diversificada no que diz respeito a situação geográfica. Detalhando as características dos nossos municípios, tentaremos identificar as eventuais dificuldades encontradas por eles para cumprirem devidamente a sua missão. Por fim, tentaremos clarificar a origem do tão elevado número de municípios em França e Espanha. Para o efeito, acompanharemos em grandes linhas os debates que têm ocorrido sobre a questão do mapa territorial nestes países, sabendo que tem havido fortes discussões sobre o tema e sucessivas tentativas para o resolver. Este estudo será apenas lateral, e servirá sobretudo para conhecer as ideias que têm sido desenvolvidas, os casos de sucesso e insucesso, no sentido de se verificar se em Portugal se verificam problemas semelhantes, e se é ou não necessário proceder a uma reforma territorial dos municípios. Será também objecto de atenção, se possível, a reforma funcional e territorial com especial referência a Alemanha, procurando apurar o que se deve entender como município viável, e à Bélgica porque tendo inicialmente um mapa municipal semelhante ao francês, fez, nos anos 60 e 70 uma profunda reforma que conduziu a uma muito substancial redução de municípios. Por fim, com o estudo pormenorizado da organização territorial dos municípios em Portugal vamos analisar e concluir, se é ou não necessário uma reforma territorial dos seus municípios, e, em caso afirmativo, apresentar as soluções a adoptar para a sua reforma.
5. Resultados Estamos ainda numa fase muito inicial da investigação portanto ainda é muito cedo para apresentação de resultados. Efectivamente, iniciamos a investigação no início do corrente ano, pelo que, encontramo-nos praticamente no fim do 1º semestre da investigação. Nesta fase inicial, o estudo tem versado sobretudo sobre o conhecimento da problemática e estudo da evolução histórica da planta municipal em Portugal. Assim, procedemos ao estudo mais detalhado e recolha de informação e documentos provenientes dos Arquivos históricos sobre a reforma de Passos Manuel de 1836, porquanto, como referimos acima, podemos afirmar que terá sido a reforma mais marcante no que diz respeito à reforma da planta municipal implementada em Portugal.
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A estrutura territorial dos municípios em Portugal: razões para uma reforma (?)
Neste momento, encontramo-nos a estudar e analisar os debates parlamentares que deram origem às reformas implementadas. Analisamos neste momento, os debates para elaboração do Código de Martens Ferrão.
Conclusões Conforme afirma Cândido OLIVEIRA, “efectivamente os municípios demasiado pequenos nem podem suportar estruturas municipais de serviços suficientemente amplas e qualificadas, nem possuem território e população para exercer as atribuições e competências que a lei lhes confere”12. A reflexão em torno desta matéria e as reformas demonstram claramente que um elevado número de municípios não é satisfatório do ponto de vista funcional. Sugere também a necessidade de uma reforma na estrutura territorial dos municípios para a consolidação da autonomia local, pois não pode haver autonomia sem território. No entanto, verifica-se que não é um assunto fácil de ser abordado e que se desconhece ainda quais os critérios que devem ser aplicados e a estratégia mais correcta a ser adotada tendo em vista a solução ideal.
Referências Bibliográficas BERNARD, Paul, Le Grand tournant des communes de France, Librairie Armad Colin. FIGUEIREDO, Fausto J. A. de “A Reforma Concelhia de 6 de Novembro de 1836” in O Direito, ano 82, 1950. FUENTETAJA PASTOR, Angel et al. (Dirs.), Reforma y retos de la Administración Local, Madrid, Marcial Pons, 2006. LÓPEZ RAMÓN, Fernando, “Políticas Ante La Fragmentácion del Mapa Municipal”, REALA, Revista de Estudios de la Administración Local y Autonómica, n.º 313-314, Maio-Dezembro 2010. MENY, Yves (Dir.), La réforme des collectivités locales en Europe – notes et études documentaires, La Documentation française, 1984. OLIVEIRA, António Cândido de, Direito das Autarquias Locais, 2ª Edição, Coimbra, Coimbra Editores, 2013.
12 António Cândido de OLIVEIRA, A criação de municípios em Portugal… op. cit., 2006, p. 226.
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OLIVEIRA, António Cândido, “A criação de municípios em Portugal: As razões de um veto do presidente da República” in Separata de Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcelo Caetano no centenário do seu nascimento, Edição da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 226.
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GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO: DA PROIBIÇÃO À ADMISSIBILIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS Diana Sofia Araújo Coutinho1
1. Introdução No âmbito da nossa admissão em ciclo de estudos conducente à obtenção do grau académico de doutor(a) decidimos enveredar a nossa investigação pela temática da gestação de substituição. Em primeiro lugar, a nossa escolha prende-se com as implicações jurídicas e o impacto das alterações vividas, nas últimas décadas, no campo da medicina da reprodução. De facto, os progressos da ciência e da tecnologia permitiram o surgimento de novos métodos de procriação, alterando o conceito tradicional de reprodução, maternidade e família. O direito foi chamado a intervir e a regular o estatuto e as implicações jurídicas da medicina da reprodução, nomeadamente, das técnicas de reprodução assistida (e todas as questões conexas), com o objetivo primordial de garantir a salvaguarda da dignidade da pessoa humana. Os “avanços” promovidos pela ciência e pela tecnologia colocam novos desafios a uma visão (mais) tradicional da sociedade e impõem, sobretudo, uma reflexão 1
Curso Ciências Jurídicas, na especialidade de Ciência Jurídicas Privatísticas. Licenciada em Direito pela Escola de Direito da Universidade do Minho (EDUM), Mestre em Direito dos Contratos e das Empresas pela EDUM, Doutoranda em Ciências Jurídicas Privatísticas. Assistente Convidada da EDUM. Advogada.
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crítica sobre questões inerentes aos direitos humanos. A reprodução humana com recurso às técnicas de procriação medicamente assistida e à gestação de substituição configura um dos desafios contemporâneos da parentalidade, com reflexos e consequências importantes a nível jurídico. Em segundo lugar, consideramos que a temática escolhida se revela atual e pertinente, em particular no nosso ordenamento jurídico, atendendo às recentes alterações legislativas introduzidas pela lei n.º 25/2016, de 22 de Agosto. Esta lei veio permitir o recurso à gestação de substituição, a título gratuito e excecional, em casos específicos de problemas graves de saúde que impossibilitam a gestação natural de uma criança (por exemplo, lesão ou ausência de útero). Em terceiro lugar, a reprodução humana, e em particular, a reprodução assistida têm despertado a atenção e o interesse da doutrina nacional e internacional. Os juristas não são indiferentes às repercussões jurídicas, sociais, éticas, morais, religiosas e políticas desta temática. Neste contexto, a matéria da gestação de substituição desde há muito que tem fomentado opiniões diversas e discussão. Do prisma da nossa investigação encontramos sustento e fundamento para a sua importância, relevância e atualidade em estudos doutrinais discutíveis e controversos. Nessa medida, procuramos com a nossa investigação contribuir para o estudo, reflexão e debate sobre esta “nova” realidade de conceção humana.
Um olhar sobre a nossa investigação Conforme referido supra, a nossa investigação tem como núcleo essencial o estudo da gestação de substituição, especificamente, a análise das principais repercussões jurídicas deste “método” de conceção humana. Como principais objetivos destacamos a análise terminológica de gestação de substituição e suas questões conexas, os direitos e princípios subjacentes a esta figura atendendo à ideia de dignidade da pessoa humana e não instrumentalização do ser humano. É, ainda, nosso objetivo o estudo do regime jurídico português da gestação de substituição e do impacto/reflexo internacional da gestação de substituição. A metodologia de trabalho adotada na nossa investigação assenta, fundamentalmente, em seis principais linhas de orientação: calendarização das diferentes fases de execução da investigação através da elaboração de um plano de orientação; pesquisa e recolha bibliográfica, jurisprudencial e legislativa; investigação profunda e tendencialmente exaustiva das fontes doutrinais e jurisprudenciais, de âmbito maioritariamente nacional, mas também internacional; análise crítica das fontes recolhidas, nomeadamente pela contraposição de diversas posições doutrinais e jurisprudenciais sobre idênticas questões jurídicas, através da seleção, análise e tratamento dos dados; redação do texto da investigação e
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sua revisão da dissertação (incluindo reuniões com a orientadora). Refira-se que a calendarização das diferentes fases de execução da investigação será meramente indicativa, e não necessariamente imperativa, porquanto entendemos que a própria calendarização da nossa investigação será conduzida tendencialmente em função das necessidades do estudo que se revelem necessárias no decurso da investigação. No que concerne ao desenvolvimento dos nossos objetivos importa, ainda que sucintamente, referir algumas das principais linhas de discussão da nossa investigação. Para tanto começamos por fazer uma breve contextualização histórico-legislativa. Em Portugal, com a promulgação da lei n.º 32/2006, de 26 de junho regulamentou-se a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida (PMA). Esta lei proibia e punia o recurso à gestação de substituição, na altura designada de maternidade de substituição. Recentemente, com a promulgação da lei n.º 25/2016, de 22 de agosto passou-se admitir o recurso à gestação de substituição, a título gratuito e excecional, “nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clinicas que justifiquem.” (art.8º n.º 2 da LPMA). O regime jurídico da gestação de substituição parece apoiar-se numa base instável, suscitando-nos o interesse de analisar e refletir sobre a viabilidade e a segurança/certeza jurídica desta relação contratual. O que se entende por gestação de substituição? De acordo com o n.º 1 do art. 8.º da Lei da PMA “entende-se por ´gestação de substituição´ qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade”. Assim, a gestação de substituição mais não é do que um contrato celebrado entre a gestante de substituição e os beneficiários. Este contrato tem como “objeto” a gestação de uma criança no útero da gestante. Após o parto, a gestante entrega a criança aos beneficiários, renunciando a quaisquer direitos e deveres inerentes à maternidade. Esta é a interpretação que fazemos de acordo com a regulamentação legal (lei n.º 25/2016, de 22/08). No entanto, chamamos a atenção para a amplitude que este conceito pode alcançar, dependendo do ordenamento jurídico em que se insere. Isto é, podemos ter casos em que este contrato pode ser realizado para fins totalmente altruístas, e não apenas em casos excecionais (por exemplo, no caso do Reino Unido ou da Grécia) ou casos em que pode ser utilizado material genético da gestante, celebrado a título oneroso (por exemplo, em alguns estados dos Estados Unidos da América), entre outros aspetos.
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A gestação de substituição não é uma técnica de procriação medicamente assistida nos termos configurados no art. 1.º da Lei da PMA2. Não obstante, é aplicável à gestação de substituição, com as devidas adaptações, a lei da PMA por força do n.º 2 do art. 1.º (introduzido pela lei n.º 25/2016, de 22/08)3. Nos termos admitidos no ordenamento jurídico português (crf. art.8.º da lei da PMA), nos casos em que se pode recorrer à gestação de substituição tal implicará, necessariamente, a utilização de uma técnica de PMA. Esta técnica terá a função de unir o material genético dos beneficiários ou o material de um dos beneficiários e de um dador4, para posteriormente implantar no corpo da gestante de substituição que ´apenas´se presta à gestação. Pois, conforme refere o n.º 3 do art. 8.º, não é possível a utilização de ovócitos da gestante de substituição no procedimento em que é participante, sendo necessariamente obrigatório a utilização de gâmetas de pelo menos um dos beneficiários. A gestação de substituição só é admitida a título gratuito (crf. n.º 2 do art. 8.º da lei da PMA) e “carece de autorização prévia do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida” (crf. n.º 4 do art. 8.º da referida lei). Referia-se, ainda, que não é possível o recurso à gestação de substituição quando entre as partes envolvidas (beneficiários e gestante de substituição) exista uma “relação de subordinação económica, nomeadamente de natureza laboral ou de prestação de serviços”, conforme resulta do n.º 5 do art. 8.º da referida lei. A admissibilidade do recurso à gestação de substituição, as vozes a favor e contra este método, a natureza do contrato de gestação, a instrumentalização da mulher, entre outras questões têm sido discutidas na doutrina. A nível nacional, no início da década de 90, GUILHERME DE OLIVEIRA, discutia esta problemática na sua obra “Mãe Há Só Uma/Duas! – O Contrato de gestação”5. De uma realidade ainda distante a uma realidade cada vez mais próxima, a doutrina foi-se debruçado sobre esta temática. A nível nacional destacamos o amplo estudo feito por VERA LÚCIA RAPOSO, em obras como “De Mãe para Mãe: Questões Legais e Éticas 2 São consideradas técnicas de PMA, para efeitos da lei da PMA, conforme o n.º 1 do art. 1.º “ a)- Inseminação artificial, b)- Fertilização in vitro, c)- a injecção intracitoplasmática de espermatozoides ; d)- transferência de embriões, gâmetas ou zigotos; e) – diagnóstico genético de pré-implantação; f)- outras técnicas laboratoriais de manipulação gamética ou embrionária equivalente ou subsidiárias.” 3 É aplicada à gestação de substituição com as devidas adaptações a matéria de validade e eficácia do consentimento (art. 14.º), a regulamentação sobre o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e da Ordem dos Médicos, os direitos e deveres previstos no art. 12.º e 13.º todos da Lei da PMA. - crf. n.º8 e 9 da Lei da PMA. 4 Por exemplo, nos casos em que por doença o material genético dos beneficiários não é viável. Nestas situações, além do recurso à gestação de substituição será necessário o recurso à doação de gâmetas (masculina ou feminina), regulado nos termos do art. 10.º da Lei da PMA, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2016, de 20/06. 5 OLIVEIRA, Guilherme, Mãe há só (uma) duas! O Contrato de gestação, Coimbra, Coimbra Editora, 1992.
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Suscitadas pela Maternidade de Substituição”6, “Pode trazer-me o menu por favor? Quero escolher o meu embrião”7, “Vende-se Gâmeta em Bom Estado de Conservação (O Obscuro Mercado das Células Reprodutivas)”8, entre outras. A matéria concernente à gestação de substituição desperta também o interesse de entidades como do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que se tem pronunciado – com um papel de destaque e de relevância – sobre as questões éticas e legais desta matéria. Ou, ainda, da Cite (Comissão para a Igualdade do Género e do Trabalho) ao nível das questões laborais atinentes à gestação de substituição. O estudo da gestação de substituição reflete-se em textos internacionais que denotam a preocupação pelas questões inerentes à gestação de substituição, nomeadamente, dos direitos das crianças, como é o caso da Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças ou a Convenção de Haia. A nível de jurisprudência, destacamos o papel do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e do Tribunal de Justiça da União Europeia. A intervenção do Estado na regulamentação das técnicas de reprodução assistida é considerada essencial. Mas até onde poderá intervir o Estado? Quais os limites da sua atuação na vida dos cidadãos?9 Podemos inferir do art. 36.º da CRP a exigência de um direito a ter um filho como direito ao desenvolvimento da pessoa e da sua realização pessoal? Para JORGE MIRANDA E RUI MEDEIROS, o art. 36.º da CRP comporta uma dimensão que se traduz num “direito fundamental a procriar”10. Segundo os autores, este direito resulta da proteção constitucional da paternidade e maternidade (art. 68.º), do reconhecimento e preocupação da Constituição pela matéria da PMA, ao expressamente se consagrar um dever do Estado regular esta matéria nos termos do art. 67.º, n.º 2, alínea e) da CRP e da ligação com o art. 36.º, n.º4 da CRP, que proíbe qualquer discriminações de filhos nascidos fora do casamento.11 No entanto, es-
6 RAPOSO, Vera Lúcia, De Mãe para Mãe – Questões Legais e Éticas Suscitadas pela Maternidade de Substituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2005. 7 RAPOSO, Vera Lúcia, Pode trazer-me o menu por favor? Quero escolher o meu embrião, in “Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde”, n.º 8, 2007. 8 RAPOSO, Vera Lúcia, Vende-se Gâmeta em Bom Estado de Conservação (O Obscuro Mercado das Células Reprodutivas), in “Lex Medicinae”, ano 6, n.º 12, 2009. 9 Para mais desenvolvimentos crf. COUTINHO, Diana, A Constituição de ´novas´ famílias com recurso à gestação de substituição face ao direito a constituir famílias, in “Paradigmas do Direito Constitucional Atual”, org. Irene Portela, ebook do II Condit, IPCA, 2017, pp.167 a 178. 10 MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 813. 11 Idem, pp. 813 e 814
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tes autores referem que este direito tem limites12, não podendo ser considerado um direito absoluto.13 Partilhando a posição dos autores, o direito a procriar terá sempre como limites, de um modo geral, outros princípios constitucionais, em particular o princípio da proporcionalidade14 (art. 18.º da CRP). Para HELENA VILAÇA RAMOS não existe um direito a ter um filho, o que existe é o mero desejo15. TIAGO DUARTE16 refere que “o facto de a Constituição reconhecer igual dignidade a todos os tipos familiares não implica, necessariamente, que exista uma obrigação do legislador ordinário de favorecer, incentivar, nem tão pouco contribuir para o aparecimento de todos esses tipos de famílias transformando as técnicas de Procriação Medicamente Assistida numa autêntica, via verde para a constituição de famílias a gosto e conveniência de cada um.” Esta afirmação ganha relevo com a admissibilidade do recurso à gestação de substituição. Ora, neste âmbito questionamo-nos sobre o alcance e o conteúdo do direito constitucional a constituir família previsto no art. 36.º da CRP. VERA LÚCIO RAPOSO defende a necessidade de uma interpretação atualista da CRP: a Constituição foi criada numa época em que a reprodução assistida, ainda, não era considerada uma “realidade” subsidiária da reprodução natural. No entanto, face às modificações operadas e ao reconhecimento da procriação assistida, torna-se operante fazer uma interpretação do direito a constituir família: por meio naturais e por técnicas de reprodução assistida17. No mesmo sentido, PAMPLONA CORTE-REAL defende uma interpretação do art. 36.º no sentido de incluir a reprodução assistida, sob pena de uma limitação do art. 67.º, n.º2, alínea e) da CRP18. Pretendemos, assim, aferir se do art. 36.º da CRP se pode justificar (e exigir) um direito a procriar (e os
12 Os limites ao direito de procriar não se reconduzem-se apenas às questões de reprodução assistida. Como refere Fernando Araújo os limites ao direito de procriar suscitam-se no caso de pessoas portadoras de doença genéticas ou contagiosas graves, dos incapazes, dos menores, entre outros. ARAÚJO, Fernando, A Procriação Assistida e o Problema da Santidade da Vida, 1.ª edição, Coimbra, Almedina, 1999, pp.19 a 21. 13 MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, op. cit., p. 814. 14 Idem, Ibidem 15 RAMOS, Helena Vilaça, O Direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, in “Brotéria Cristianismo e Cultura”, vol. 175, n.º 2/2, Lisboa, 2012, pp. 153. 16 DUARTE, Tiago, In Vitro Veritas? A Procriação Medicamente Assistida Na Constituição e na Lei, Coimbra, Almedina, 2003, pp. 36 e 37 17 RAPOSO, Vera Lúcia, De Mãe para Mãe: Questões Legais e Éticas Suscitadas pela Maternidade de Substituição, 1.ª edição, Centro Biomédico, 10, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 76. 18 CORTE-REAL, Carlos Pamplona, Os efeitos familiares e sucessórios na procriação medicamente assistida, in “Estudos de Direito da Bioética”, coord. José de Oliveira de Ascensão, 1.ª edição, Lisboa, Almedina, 2005, pp. 101 e 102.
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seus limites) e especificamente, saber se o direito a constituir família contempla a constituição de famílias com recurso à gestação de substituição19. Todavia, apesar da doutrina (nacional e internacional) se debruçar sobre a temática da gestação de substituição, importa salientar que esses estudos têm sido realizados em termos globais, na maior parte das vezes inseridos no âmbito do estudo de outras matérias como o estudo do direito da medicina ou do estudo de questões bioéticas. Consideramos que o estudo da gestação de substituição, nos termos que nos propomos realizar, é inovador e necessário, sobretudo atendendo à recente alteração legislativa, no nosso ordenamento jurídico, em matéria de gestação de substituição. Além disso, se é verdade que a doutrina se tem debruçado sobre esta temática, também é verdade que as alterações verificadas nesta matéria, em particular no ordenamento jurídico português e a relevância internacional da temática carecem, ainda, de um estudo jurídico reflexivo e aprofundado. Não podemos ignorar que no ordenamento jurídico português só recentemente se admitiu o recurso à gestação de substituição. O estudo da gestação de substituição à luz dos problemas e desafios jurídicos atuais ainda é escasso. A gestação de substituição deixou de ser uma realidade distante, ficcional e proibida, razão pela qual urge perceber qual o seu impacto e quais as suas consequências jurídicas. Assim, pretendemos com a nossa investigação contribuir para o estudo e progresso desta temática que se revela pertinente e contemporânea.
Conclusão Encontrando-se a nossa investigação numa fase inicial revela-se prematuro retirar ilações dos objetivos que nos propomos atingir. Não obstante, comprometemo-nos a atingir os objetivos propostos, contribuindo para o estudo e reflexão desta temática. O recurso à gestação de substituição é hoje uma realidade, sendo necessário compreender as suas implicações na realidade jurídica nacional e internacional. Assim, na nossa investigação, procuraremos aferir se a gestação de substituição, nos termos que foi autorizada na nossa ordem jurídica, configurando uma regulamentação adequada e idónea, respeitando outros direitos fundamentais e o conteúdo mínimo do direito a procriar.
19 COUTINHO, Diana, A Constituição de ´novas´ famílias com recurso à gestação de substituição face ao direito a constituir famílias, op. cit., pp. 167 a 178.
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Referências Bibliográficas ARAÚJO, Fernando, A Procriação Assistida e o Problema da Santidade da Vida, 1.ª edição, Coimbra, Almedina, 1999, pp. 19 a 21. CORTE-REAL, Carlos Pamplona, Os efeitos familiares e sucessórios na procriação medicamente assistida, in “Estudos de Direito da Bioética”, coord. José de Oliveira de Ascensão, 1.ª edição, Lisboa, Almedina, 2005, pp. 101 e 102. COUTINHO, Diana, A Constituição de ´novas´ famílias com recurso à gestação de substituição face ao direito a constituir famílias, in “Paradigmas do Direito Constitucional Atual”, org. Irene Portela, ebook do II Condit, IPCA, 2017, pp. 167 a 178. DUARTE, Tiago, In Vitro Veritas? A Procriação Medicamente Assistida Na Constituição e na Lei, Coimbra, Almedina, 2003, pp. 36 e 37 MIRANDA, Jorge/ MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, pp.813-814. OLIVEIRA, Guilherme, Mãe há só (uma) duas! O Contrato de gestação, Coimbra, Coimbra Editora, 1992. RAMOS, Helena Vilaça, O Direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, in “Brotéria Cristianismo e Cultura”, vol. 175, n.º 2/2, Lisboa, 2012, pp.153. RAPOSO, Vera Lúcia, De Mãe para Mãe – Questões Legais e Éticas Suscitadas pela Maternidade de Substituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2005. RAPOSO, Vera Lúcia, Pode trazer-me o menu por favor? Quero escolher o meu embrião, in “Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde”, n.º 8, 2007. RAPOSO, Vera Lúcia, Vende-se Gâmeta em Bom Estado de Conservação (O Obscuro Mercado das Células Reprodutivas), “Lex Medicinae”, ano 6, n.º 12, 2009.
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O DIREITO À INFORMAÇÃO ENQUANTO INSTRUMENTO GARANTÍSTICO NO DIREITO TRIBUTÁRIO. NOVOS RUMOS NO DOMÍNIO DA SUA CODIFICAÇÃO Diogo Alexandre de Paiva Manso Bastos dos Santos1
1. Introdução O direito à informação encontra-se consagrado no ordenamento jurídico português, quer a nível constitucional - nomeadamente nos artigos 37.º e 268.º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) – bem como em outros ramos, tais como Direito Penal, Direito Administrativo e Direito Tributário. Sem prejuízo da sua consagração em alguns ramos de Direito Privado, o nosso estudo versará, porém, apenas o direito à informação no âmbito do Direito Público e, de forma mais acentuada, no Direito Tributário. Este direito constitui uma garantia dos sujeitos passivos - e outros obrigados tributários - face à Administração Tributária, num momento em que os mesmos assistem à criação desenfreada - pelos órgãos do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais - de normas tributárias e à sua consequente aplicação pela Administração Tributária. As normas tributárias impõem aos sujeitos passivos tributários o cumprimento de uma plêiade de deveres para os 1 Doutorando no Curso de Doutoramento em Ciências Jurídico-Públicas – Direito Tributário. Mestre em Direito Tributário e Fiscal – Universidade do Minho. Advogado.
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quais estes nem sempre estão tecnicamente apetrechados, nem devidamente informados quanto ao seu conteúdo.
2. Objetivo A investigação que levaremos a cabo destina-se a permitir a responder a duas questões centrais: a) qual o conteúdo e alcance do direito à informação? E b) como deve ser consagrado o direito à informação em direito tributário: num diploma único ou em cada diploma de índole tributária?
3. Metodologia Para podermos responder às duas questões indicadas no ponto anterior, analisaremos, num primeiro momento, em que medida e com que extensão foi o direito à informação acolhido nas sucessivas Constituições portuguesas2, para depois detetar em que medida é que o referido direito encontra acolhimento noutros ramos do Direito Público, nomeadamente o Direito Internacional Público, Direito Penal e Processual Penal, o Direito Administrativo e o Direito Tributário. Em momento posterior, procuraremos delimitar o conceito de direito à informação e, por outro, perscrutar qual o melhor modelo de consagração do direito à informação.
2 Segundo Jorge Miranda, “as seis constituições – decretadas em 1822, 1826, 1838, 1911, 1933 e 1976 – são o produto so circunstancialismo histórico do país e o reflexo de determinados elementos políticos, económicos, sociais e culturais” acrescentando que “fruto dos nossos atribulados dois últimos séculos, elas traduzem os seus problemas e as suas contradições e apresentam-se como veículos de certas ideias, tentativas de reorganização da vida colectiva, projectos mais ou menos assentes na realidade nacional, corpos de normas mais ou menos efectivos e duradouros.” (MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo I -Preliminares, O Estado de Direito e os Sistemas Constitucionais, 9ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp.. 243). O mesmo autor, ibidem, a pp. 244, refere, em reforço desta ideia que “ existe (...) uma relação constante entre história política e história constitucional portuguesa(...). Por outro lado, Paulo Otero considera que “a história constitucional portuguesa é anterior à Revolução Liberal de 1820, pois desde que Portugal é um Estado que existe uma normatividade reguladora do poder político e das relações entre governantes e governados, verificando-se que essa normatividade assume uma natureza materialmente constitucional, comprovando que não há um Estado sem Constituição: Portugal, desde que é Portugal, sempre teve uma Constituição em sentido material, podendo falar-se em Constituição histórica ou institucional.”(OTERO, Paulo, Direito Constitucional Português - I Identidade Constitucional, Coimbra, Almedina, 2010, p. 253).
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4. Discussão 1. Com exceção da Constituição de 1976, nenhuma das Constituições portuguesas reconhece expressamente o direito à informação, não obstante consagrarem o direito de petição3. Ora, o direito de petição tinha um conteúdo amplo pelo que o súbdito podia solicitar às Cortes ou ao poder executivo que lhe fossem prestados esclarecimentos ou informações sobre a feitura de leis ou sobre o andamento de determinado procedimento. O artigo 16º da Constituição de 18224 estipulava que “todo o português (…) poderá apresentar por escrito às Cortes e ao poder executivo reclamações, queixas ou petições, que deverão ser examinadas”, consagração que teve eco semelhante nas Constituições seguintes, incluindo a Constituição de 1933, da qual consta que “o direito de representação ou petição, de reclamação ou queixa, perante os órgãos de soberania ou quaisquer autoridades, em defesa dos seus direitos ou do interesse geral” (artigo 8º §18). Outrossim, a Constituição de 1976, na sua redação primitiva, previa o direito de informação com um âmbito mais restrito do que na redação atual. De facto, na redação primitiva, no então artigo 267º, reconhecia-se o direito à informação a quem fosse de algum modo interveniente num procedimento administrativo, enquanto que na redação actual esse direito abrange o direito de qualquer cidadão de aceder aos arquivos e registos administrativos, o qual se encontra previsto no nº2 do artigo 268º. 2. O direito à informação tem acolhimento em diversas áreas do Direito Público, desde logo no Direito Internacional Público, sendo de destacar o reconhecimento do referido direito em dois instrumentos de direito internacional : a Declaração Universal dos Direitos do Homem (doravante DUDH), adoptado pelos Estados que integram a Organização das Nações Unidas (doravante ONU) 3 Quanto à finalidade do direito de petição, Jorge Miranda assinala que “o constitucionalismo moderno confirmaria o direito de petição como meio de defesa dos direitos e, ao mesmo tempo, conexo com a emergência do princípio democrático, como via de participação política.” (JORGE MIRANDA, Notas sobre o Direito de Petição” in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão – Vol. I, Coimbra, Almedina, 2008, p. 266). 4 A Constituição de 1822 foi o resultado de factores histórico-culturais peculiares. De acordo com Fernando Araújo “coexistiam ao menos três tendências principais em vésperas de 1820: - a republicana, alimentada quer pelos ideais neoclássicos do iluminismo, quer pelos antecedentes norteamericano e francês; - a absolutista modernizada, representando-se a possibilidade de reatamento da continuidade interrompida com as invasões napoleónicas através do mero regresso da Corte a Lisboa, travando-se o regresso dos «esturrados» através da adopção de uma atitude reformadora «cameralista»; - a liberal-contratualista, assente na ideia de que a tradição monárquica portuguesa seria pactícia (usando-se a imagem mítica das «Cortes de Lamego»), alimentada pelo paradigma britânico e pelos ideais burgueses que o Terror Revolucionário francês não fizera mais do que adiar(...)” - ARAÚJO, Fernando, “Almeida Garrett e o Constitucionalismo” in Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Ano 2, Nº5, Lisboa, FDUL, 2013, pp. 352.
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e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (doravante CEDH), adotada pelos Estados que integram o Conselho da Europa (mas não só). A DUDH reconhece, no artigo 19º, que “ o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão” enquanto que, no artigo 10º da CEDH prevê que o direito de liberdade de expressão “compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades e sem considerações de fronteiras.(...)”. Estes dois normativos consagram o direito à liberdade de expressão, o qual abrange o direito à informação, mas também o direito de difusão de informações, opiniões e ideias. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) reconhece igualmente o direito à informação, quer no âmbito do direito à liberdade de expressão – art. 11º – quer no quadro do direito a uma boa administração – artigo 41º – bem como no direito de acesso aos documentos – artigo 42º. Por outro lado, o Tratado da União Europeia (TUE) prevê que os Parlamentos Nacionais, no quadro de uma ativa contribuição com a União Europeia, sejam informados pelas instituições desta, seja quanto a projetos de atos legislativos da União seja quanto a pedidos de adesão à União5. Outrossim, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) consagra, no §1 do nº3 do seu artigo 15º, o direito dos cidadãos da União Europeia de acesso “aos documentos das instituições, órgãos e organismos da União, seja qual for o respectivo suporte”, precisando, no §3 do mesmo número que cada uma das instituições ou organismos assegura a transparência dos seus trabalhos (...)6”. No que concerne ao Direito Penal, assinale-se, a título de exemplo os artigos 54º e 89º do Código Penal que preveem a obrigatoriedade de o plano de reinserção social ou o plano de readaptação deverem ser comunicadas ao condenado e ao delinquente, respetivamente, bem como o artigo 1º e o nº2 do artigo 13º- A do Decreto-Lei nº454/91 de 28/12 (Regime Jurídico de cheque sem 5 Por outro lado, nos termos do nº3 do artigo 28º do TUE, sempre que, no âmbito de ação operacional pela UE, um Estado-Membro tomar uma posição ou agir nesse sentido, deverá comunicá-la ao Conselho dentro de um prazo que permita uma concertação prévia no Conselho, com excepção das “medidas que constituam simples transposição das decisões do Conselho para o plano nacional”. 6 Este direito encontra-se concretizado no Regulamento (CE) nº 1049/2001, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de Maio de 2001, sendo que, nos termos do nº1 do artigo 2. deste diploma, “todos os cidadãos da União e todas as pessoas singulares ou colectivas que residam ou tenham a sua sede social num Estado Membro têm direito de acesso aos documentos das instituições, sob reserva dos princípios, condições e limites estabelecidos no presente regulamento.” O artigo 14º deste mesmo diploma - nos termos do qual “cada instituição tomará as medidas necessárias para informar o público dos direitos de que este beneficia ao abrigo deste regulamento” - mostra a preocupação da União Europeia com o conhecimento deste direito pelos seus destinatários.
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provisão), no qual se prevê a obrigatoriedade de notificação, pela instituição de crédito, da rescisão de convenção de cheque às entidades abrangidas com a decisão. Já no que tange ao Direito Processual Penal, uma das manifestações mais prementes do direito à informação é o direito do arguido a conhecer os fundamentos pelos quais o Ministério Público deduz acusação contra ele, nos termos da alínea b) do nº3 do artigo 283º do CPP, bem como o direito de o mesmo conhecer a motivação de facto e de direito de uma sentença condenatória, segundo o nº2 do artigo 374º do mesmo diploma. No que concerne ao direito administrativo, é de salientar, desde logo o artigo 11º7 do Novo Código do Procedimento Administrativo (NCPA8), que consagra o Princípio de Colaboração com os particulares. No entanto, o NCPA reserva um capítulo – o Capítulo IV da Parte III – ao direito à informação: os artigos 82º a 84º tratam do direito à informação procedimental e o artigo 85º do direito à informação não procedimental. Enquanto o direito à informação procedimental tem como destinatários somente os sujeitos da relação jurídico-administrativa, o direito à informação não procedimental visa todos aqueles que, embora alheios à relação jurídica procedimental, invoquem e provem interesse legítimo na tomada de conhecimento dos elementos a que pretendem ter acesso. O artigo 82º consagra o direito de os interessados serem informados quanto ao andamento dos procedimentos que lhes digam diretamente respeito, bem como “o direito de conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas”, enquanto que os artigos 83º e 84º preveem o direito de consulta de processo e de obtenção de “certidão, reprodução ou declaração autenticada dos documentos que constem dos processos a que tenham acesso”. Por outro lado, o artigo 85º prevê o direito de qualquer cidadão de consulta dos arquivos e registos administrativos. No que prende com o Direito Tributário, o artigo 67º da Lei Geral Tributária (LGT) consagra expressamente o direito à informação, enquanto que o artigo 59º o contempla de forma indireta. Aliás, este normativo consagra o Princípio da Colaboração, o qual prescreve que Administração Tributária e contribuintes estão sujeitos a um dever de colaboração recíproco (nº 1). O dever de colaboração da Administração Tributária para com os contribuintes implica que a primeira preste aos segundos “informação pública, regular e sistemática sobre os seus direitos e obrigações” (nº 3, alínea a), o que traduz a consagração do direito à informação em direito tributário. 7 “1. Os órgãos da Administração Pública devem actuar em estreita colaboração com os particulares, cumprindo-lhes designadamente, prestar aos particulares as informações e os esclarecimentos de que careçam, apoiar e estimular as suas iniciativas e receber as suas sugestões e informações 2. A Administração Pública é responsável pelas informações prestadas por escrito aos particulares, ainda que não obrigatórios.” 8 Quando nos referimos a “Novo”, queremos reportar-nos ao CPA aprovado pelo Decreto-Lei nº 4/2015, de 7 de Janeiro.
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Outrossim, o nº 1 do artigo 48º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) prevê que a Administração Tributário tem a obrigação de esclarecer os contribuintes quanto à necessidade de apresentação de declarações, reclamações e petições necessários ao exercício dos respetivos direitos, o que traduz o acolhimento do direito à informação pelo direito tributário, mas na vertente adjetiva. A segunda questão que se coloca é de saber qual o modo mais eficaz de consagrar o direito à informação no direito tributário: a) pela sua previsão num único diploma - ressalvada a Constituição - , com descrição determinação do seu conteúdo e finalidades; ou b) pela sua inclusão em todos os diplomas cujo objeto possa colidir com direitos e interesses legítimos dos sujeitos passivos tributários; ou ainda c) pela consagração do conteúdo e objetivos do direito à informação num diploma, com eventuais concretizações do mesmo em diplomas avulsos, sempre que a matéria se revista de especial especificidade ou complexidade. No primeiro modelo, que se pode denominar de modelo de concentração normativa, o direito à informação estaria consagrado num único diploma. Este diploma tanto poderia ter como objeto somente o direito à informação, como abranger os outros princípios de direito tributário, sendo que qualquer uma destas opções é defensável. A existência de um diploma dedicado exclusivamente ao direito à informação permitiria uma maior especialização e profundidade no tratamento do tema; já um diploma que contemplasse os diversos princípios de direito tributário não permitiria esse aprofundamento do direito à informação, na medida em que teria - ou deveria ter – de delimitar igualmente o sentido e o alcance de cada um dos outros princípios, bem como o respetivo conteúdo. A primeira opção, no entanto, levaria a questionar se cada um dos outros princípios devia merecer tratamento similar. Ora, a adotar-se uma solução desse tipo, haveria tantos diplomas legais quantos os princípios jurídicos a merecer consagração em separado. Este resultado não seria desejável, dada a proliferação legislativa já existente neste ramo do Direito. O segundo modelo, o qual denominamos modelo de dispersão normativa, consiste na previsão e reconhecimento do direito à informação em todo o diploma legal em que possa estar em causa a afetação ou eliminação de direitos e interesses legítimos dos sujeitos passivos e de outros obrigados tributários. Ou seja, o direito à informação não constitui o objeto de cada diploma legal individualmente considerado, mas antes um elemento integrante, embora indispensável. O que sucede é que encontramos o direito à informação previsto em diversos normativos legais, mas com especificidades que se prendem com a matéria objeto do ato legislativo. A título de exemplo, o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) que visa regular a tributação da propriedade rústica e urbana, prevê, no artigo 71º, que uma vez efetuada a avaliação cadastral, o resultado da mesma será publicitado, no sentido de os interessados poderem reclamar da 64
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mesma, querendo. Esta publicitação permite ao sujeito passivo reagir, querendo, contra a avaliação cadastral concretamente efetuada, seja através de reclamação seja por impugnação. O terceiro modelo é híbrido, na medida em que conjugam características dos outros modelos supra descritos. Assim, este modelo repousa na ideia de haver, por um lado, um diploma onde se identificam os princípios norteadores do Direito Tributário – substantivo e adjetivo - ao mesmo tempo que concretiza o direito à informação em diplomas avulsos relacionados com matérias de especial complexidade. Dito de outro modo, a tónica é colocada na consagração do direito à informação num diploma, com exceção dos casos em que se justifica o desenvolvimento do direito em causa em instrumentos legislativos que tenham por objeto matérias de maior melindre. A este título, o nº 2 do artigo 37º e o 49º do Regulamento Complementar de Inspeção Tributária (RCPIT) prescrevem qual o conteúdo das notificações a serem dirigidas aos destinatários das inspeções tributárias e a antecedência com as mesmas devem ser efetuadas, respetivamente.
5. Resultados Tendo analisado as diversas concretizações do direito à informação em vários ramos de Direito Público, podemos agora avançar com uma noção de direito à informação, mais precisamente em sede tributária. Assim, entendemos que o direito à informação traduz o conjunto de dados e/ou documentos em posse da Administração Tributária que devam ser transmitidos aos sujeitos passivos tributários ou aos cidadãos em geral, bem como as decisões ou resoluções tomadas que devam ser levados ao seu conhecimento em virtude de afetarem ou condicionarem um direito subjetivo ou interesse legalmente protegido. Quanto aos modelos de consagração do direito à informação, consideramos que quer o modelo de concentração normativa quer o modelo híbrido permitem uma proteção adequada dos sujeitos passivos e de outros obrigados tributários. Já o modelo de dispersão normativa incrementa a complexidade do
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ordenamento jurídico-tributário, prejudicando desse modo a compreensão do mesmo pelos obrigados tributários9.
Conclusão O direito à informação é uma importante garantia dos sujeitos passivos e de outros obrigados tributários face ao jus imperii do Estado e de outros entes públicos com o poder de tributar. Este direito encontra-se previsto na Constituição da República Portuguesa, constituindo um direito análogo aos Direitos, Liberdades e Garantias, bem como em legislação ordinária. A consagração deste direito, pode, no entanto, ser perspetivada de três formas: de um modo concentrado, de modo disperso, ou combinando os dois modelos.
Referências Bibliográficas ARAÚJO, Fernando, “Almeida Garrett e o Constitucionalismo” in Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Ano 2, Nº5, Lisboa, FDUL, 2013. JANSEN, Wim e VOERMANS, Wim, “Procura e destruição nos Países Baixos” in Legislação- Cadernos de Ciência da Legislação, nº 44, Out-Dez 2006, Oeiras, Instituto Nacional de Administração, 2006, pp. 63-79. MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo I -Preliminares, O Estado de Direito e os Sistemas Constitucionais, 9ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2011; _________, Notas sobre o Direito de Petição” in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão – Vol. I, Coimbra, Almedina, 2008, pp. 465-480. OTERO, Paulo, Direito Constitucional Português - I - Identidade Constitucional, Coimbra, Almedina, 2010.
9 Um incremento na produção legislativa acarreta a maior parte das vezes o aumento de encargos administrativos para os particulares e para as empresas. Nos Países Baixos, a partir de 2003 teve início um programa de simplificação legislativa e burocrática dos órgãos do Estado no sentido de travar o aumento dos encargos administrativos para o sector. Segundo Wim Jansen e Wim Voermas, “são calculados os encargos administrativos de normas e leis novas (...)” e que “(…) são envidados esforços no sentido de reforçar a sensibilização dos legisladores para esta matéria (...)” (JANSEN, Wim e VOERMANS, Wim, “Procura e destruição nos Países Baixos” in Legislação- Cadernos de Ciência da Legislação, nº 44, Out-Dez 2006, Oeiras, Instituto Nacional de Administração, 2006, p. 74.)
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O ESTADO DA ARTE: A ARBITRAGEM E SUA APLICABILIDADE NOS CONFLITOS TRABALHISTAS DOS ATLETAS PROFISSIONAIS – UM ESTUDO LUSO-BRASILEIRO Edmar Arnaldo Lippmann Junior1 Marco Filipe Carvalho Gonçalves2
1. Introdução O presente estudo que será desenvolvido durante a realização do Doutoramento em Ciências Jurídicas, investigará acerca da aplicabilidade do instituto da arbitragem nas soluções de conflitos trabalhistas dos atletas profissionais. Esta profissão possui regulamentação própria no ordenamento jurídico luso-brasileiro. No Brasil vigora a Lei nº 9.615, de 24 de março de 19983, que institui normas gerais sobre o desporto e dá outras providências, popularmente conhecida como Lei Pelé (homenagem ao jogador Edson Arantes do Nascimento). Já em 1 Licenciado em Educação Física – UNICENTRO (2008), Bacharel em Direito – Faculdade Campo Real (2009), Mestre em Ciências Jurídicas – UNIVALI (2014), Doutorando em Ciências Jurídicas, Direito Privatístico – UMINHO. E-mail: mazinho_ealj@hotmail.com. 2 Licenciado em Direito – UMINHO (2004), Mestre em Direito Judiciário - UMINHO (2009), Doutor em Ciências Jurídicas – UMINHO (2014), Professor auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho e Orientador. E-mail: marcofcg@direito.uminho.pt. 3 BRASIL, Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/L9615Compilada.htm>, Acesso em 10 jul 2017, às 18:00.
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Portugal a legislação que regulamenta o desporto é a Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto, Lei nº 5/2007, de 16 de Janeiro4, e a Lei nº 28/1998 de 26 de junho5 que trata do profissional desportivo e do Tribunal Arbitral do Desporto. Ademais, a arbitragem também é admitida em ambos os ordenamentos. Em Portugal através da Lei da Arbitragem Voluntária, Lei nº 63/2011, de 14 de dezembro6, e no Brasil através da Lei da Arbitragem, Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 19967, cumulada com as alterações da Lei nº 13.129, de 26 de maio de 20158. Ocorre que, a forma com que se aplica tal instituto jurídico dentro da esfera do direito desportivo e trabalhista é adversa. Desta maneira, uma análise comparativa da legislação portuguesa e da legislação brasileira, auxiliaria no entendimento acerca da utilização de um Tribunal Arbitral para a resolução de conflitos que envolvam essa matéria – os direitos trabalhistas dos atletas profissionais. Como forma de delimitar o tema e justificar a pesquisa nesse âmbito, definiu-se como objeto de estudo do projeto de tese a comparação da legislação luso-brasileira e a discussão da necessidade/possibilidade da instituição de um Tribunal Arbitral do Desporto Brasileiro, bem como que o mesmo possa dirimir conflitos trabalhistas, oriundos dos contratos de trabalho de tais trabalhadores. Por se tratar de um ramo em ascensão é que surgiu o interesse em pesquisar algo que envolva o Direito Desportivo, Direito Constitucional, Direito Processual, Direito do Trabalho e Sociologia. Ocorre que, diante de tal evolução, existe uma grande diversidade de opiniões nesta área. Em outras oportunidades houve a possibilidade de investigar nestes ramos, focando, entretanto, nas questões sociais que o desporto causa dentro da sociedade, bem como nas questões jurídicas, analisando vários institutos e peculiaridades do Direito. Entretanto, a possibilidade de executar um estudo
4 PORTUGAL, Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro, Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto, Disponível em <goo.gl/YxYsEV>, Acesso em 19 dez 2016, às 11:00. 5 PORTUGAL, Lei nº 28/1998 de 26 de junho, Estabelece um novo regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo e do contrato de formação desportiva e revoga o Decreto-Lei n.º 305/95, de 18 de Novembro, Disponível em < https://www.tribunalarbitraldesporto.pt/files/ Lei_28-98.pdf >, Acesso em 10 jul 2017, às 18:30. 6 PORTUGAL, Lei nº 63/2011 de 14 de dezembro, Disponível em <http://www.pgdlisboa.pt/leis/ lei_mostra_articulado.php?nid=1579&tabela=leis>, Acesso em 10 jul 2017, às 19:10. 7 BRASIL, Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, Dispõe sobre a arbitragem, Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9307.htm>, Acesso em 10 jul 2017, às 19:20. 8 BRASIL, Lei nº 13.129, de 26 de maio de 2015, Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13129.htm>, Acesso em 10 jul 2017, às 19:15.
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comparado, tendo como paradigma um país mais desenvolvido, é que aumentou o interesse em continuar investigando neste ramo. Ademais, o Brasil sediou recentemente duas competições totalmente expressivas mundialmente, a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos, nos quais estão envolvidos, em grande parte, atletas profissionais de diversas modalidades, estando em voga a prática esportiva profissional. Não bastasse, as resoluções alternativas de conflito, atualmente, estão sendo amplamente utilizadas como justificativa de vários aspectos. O menor custo, o desafogamento dos tribunais judiciais, a especialização de um árbitro ou tribunal arbitral quanto à matéria a ser julgada, dentre vários outros motivos. Embora popularmente às partes envolvidas falte credibilidade em confiar no instituto, a legislação é contundente em garantir que nenhum direito seja lesado. Todos os critérios formais, materiais e procedimentais estão presentes no texto legal, os quais, em caso de suas inobservâncias, geram nulidades no processo arbitral. Talvez essa falta de confiança esteja justificada na cultura do litígio que ainda é integrante inclusive no meio jurídico, ficando o juiz de direito num patamar de superioridade para prolatar alguma decisão em conflitos se comparado a um árbitro. Ocorre que, cada vez mais o Direito está evoluindo, e essa evolução aumenta os campos de operação. A tutela que o Estado deve dar à sociedade acaba por ser prejudicada em virtude da grande quantidade de litígios e da especificidade dos mesmos. Assim, como o profissionalismo no esporte, embora recorrente na sociedade atual, ainda se trata de um campo mais recente, com as devidas peculiaridades da profissão (institutos jurídicos, caracteres e requisitos do contrato de trabalho, etc.), é de suma importância a especialização dos julgadores de tais litígios. Como a Justiça Trabalhista abrange a generalidade laboral, a arbitragem certamente veio somar e auxiliar na solução desses conflitos tão específicos. Havendo a previsão legal que garante a utilização da arbitragem nos litígios oriundos das relações laborais dos desportistas profissionais, os elementos gerais de tal instituto acabaram por supostamente se confrontarem com a particularidade da profissão, como é o caso da arbitrabilidade de tais litígios por abrangerem direitos laborais indisponíveis. Ocorre que, essa especificidade deve ser analisada por quem tenha considerável conhecimento da causa, e que vivencie e domine tal campo, sob pena de não estar prestando sua função jurisdicional de forma eficaz. Não obstante, embora o atleta profissional de futebol brasileiro seja o que tem maior incidência em termos de contrato de trabalho, ou seja, dentre os atletas profissionais é o que tem seu profissionalismo mais difundido no Brasil, a categoria dos mesmos é um tanto quanto discriminada pela sociedade, pois mesmo 69
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havendo jogadores que recebem fortunas para exercer tal profissão, jogadores estes que na maioria das vezes residem fora do Brasil, trata-se da minoria se analisarmos toda a classe. Muitos jogadores que vivem do esporte não recebem valores significativos, tendo que complementar a renda, demonstrando, portanto, a importância dos fatores sociológicos envolvidos no estudo. Vale lembrar, que os atletas profissionais de futebol brasileiros que possuem maior repercussão salarial, exercem sua profissão no futebol europeu, o que certamente justifica a importância da comparação da legislação brasileira com a da União Europeia, em especial a de Portugal, no que diz respeito a estes trabalhadores. Ainda, por ser um tema atual, em crescimento, e envolver a modalidade esportiva com maior repercussão no Brasil, quiçá no mundo, é que existe a necessidade e importância de pesquisas como esta. Acrescentando, o aparecimento de um direito positivo que envolva tais questões é cada vez mais frequente no ordenamento jurídico brasileiro, comprovando, novamente, a necessidade de mais estudos referentes a este tema, pois ao final, caso seja concluído, ocorrerá a regulamentação de um “novo” direito, tudo com base nos princípios já constituídos em nosso ordenamento jurídico. Ademais, historicamente a legislação brasileira se ampara e se origina da legislação de países tidos como mais desenvolvidos, como é o caso de Portugal e de toda a União Europeia em geral. Assim, considerando que o Tribunal Arbitral do Desporto já é instituído em Portugal, em comparação com a Justiça Desportiva brasileira, bem como diante da previsão legal da solução alternativa dos conflitos através da arbitragem em ambos, antes de qualquer conclusão devemos analisar ambas, e verificar, internacionalmente, como tal assunto é tratado. Por fim, para verificar a possibilidade de solução dos conflitos trabalhistas de tais atletas através de um tribunal alternativo, temos que pesquisar a evolução do Direito, desde sua base principiológica, passando pelo positivismo, e ao final pela eficácia e aplicação das normas Constitucionais e do Direito; a evolução do Futebol e de seu profissionalismo; interpretar a legislação já existente e pertinente à pesquisa, verificando suas finalidades e justificativas de criação; esclarecer as peculiaridades da profissão; utilizar do direito positivado já existente há vários anos para rebater os acontecimentos recentes; analisar o instituto jurídico que está sendo objeto, verificando teorias, aplicabilidade, requisitos e natureza jurídica; e analisar decisões judiciais de casos concretos que discutam algum direito material semelhante, comparando, sempre, as ocorrências no Brasil e em Portugal. Diante do exposto, é que se questiona: seria possível instituir o Tribunal Arbitral do Desporto no ordenamento jurídico brasileiro, nos moldes do orde70
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namento português, com o intuito de dirimir alternativamente os conflitos oriundos das relações trabalhistas dos atletas profissionais?
2. Objetivos Inicialmente cumpre destacar que os objetivos foram divididos em institucional, investigatório geral e investigatórios específicos, conforme se vê adiante. O objetivo institucional definido foi produzir a Tese de Doutorado para obtenção do Título de Doutor em Direito vinculado ao Ciclo de Estudos Conducente ao Grau de Doutor em Ciências Jurídicas, com concentração no Direito Privatístico, pela Escola de Direito da Universidade do Minho. Dentro dos objetivos investigatórios, o geral foi verificar a possibilidade de solucionar os conflitos trabalhistas dos atletas profissionais através da forma alternativa do instituto da arbitragem. Para se obter êxito, foram estabelecidos alguns objetivos investigatórios específicos como pesquisar a evolução tanto do instituto da arbitragem quanto do profissionalismo no desporto, no Brasil e em Portugal; interpretar a legislação luso-brasileira existente e pertinente à pesquisa, verificando as justificativas de criação das leis, bem como a finalidade das mesmas; expor as correntes doutrinárias existentes (favoráveis e contrárias) em ambos os países; esclarecer as peculiaridades da profissão do atleta profissional de futebol brasileiro, comparando-a ao atleta profissional de futebol português e europeu; associar a aplicabilidade efetiva da arbitragem em Portugal no ordenamento jurídico brasileiro; analisar decisões judiciais de casos concretos que tratem de matéria semelhante, ou seja, as resoluções alternativas de conflitos no Tribunal Arbitral do Desporto em Portugal e a atuação da Justiça Desportiva e Trabalhista no Brasil; prosseguir com os estudos realizados na ocasião das Graduações em Educação Física e Direito, bem como no Mestrado em Ciência Jurídica.
3. Metodologia9 Primeiramente, de acordo com Ruiz, temos que os métodos de pesquisa dividem-se em racional e indutivo. De acordo com seus ensinamentos, classifica-se o futuro trabalho como sendo de um método racional, e, dentro disso, dedutivo, isto porque “a partir de enunciados mais gerais dispostos ordenadamente 9 Os fundamentos metodológicos a serem empregados no produto científico final, são os constantes de: Cesar Luiz PASOLD, Metodologia da Pesquisa Jurídica: teoria e prática, 13ª edição, revista, atualizada e ampliada, São Paulo, Editora Conceito, 2015.
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como premissas de um raciocínio, chega a uma conclusão particular ou menos geral (...)”10. Sendo assim, sabendo que os atletas profissionais portugueses e brasileiros possuem sua profissão regulamentada, bem como diante da previsão legal do instituto da arbitragem em ambos os países como forma de resolução alternativa dos litígios, quer nos parecer que a arbitragem poderia ser utilizada para dirimir tais tipos de conflitos eventualmente existentes, tendo em vista a peculiaridade de tal profissão e a especificidade que o árbitro estaria investido para resolvê-los. Assim, deve-se compreender as leis gerais e saber quando aplica-las (deduzi-las) no caso concreto, ou seja, na possibilidade do atleta profissional poder submeter à arbitragem seus conflitos trabalhistas. Ademais, quanto aos métodos de procedimento, tais serão variados, de acordo com a classificação de Lakatos11, pois utilizará o histórico e o comparativo. Assim seja: como determinado instituto evoluiu (modificou-se) no decorrer do tempo; e como este instituto é em diferentes lugares, ou épocas, mostrando as semelhanças e diferenças. Por fim, cumpre salientar que as demais técnicas de investigação também deverão ser definidas pelo doutorando e por seu orientador, levados em consideração os parâmetros adotados pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade. Pretende-se para a pesquisa, quanto à estrutura básica do relatório final, que o mesmo constitua-se numa Tese de Doutorado, que possuirá a seguinte estrutura básica: a) Introdução, na qual será exposto o Referente, através da explicitação do Objeto, dos Objetivos, do Produto Desejado, do Problema e da(s) Hipótese(s) bem como a identificação da Metodologia empregada na Investigação, no Tratamento dos Dados Colhidos e no Relatório, além da indicação de como constará o rol das Categorias básicas e seus Conceitos Operacionais; b) Desenvolvimento, o qual apresentar-se-á na forma de distribuição dos capítulos, já apresentada no item II; c) Conclusões, a qual conterá a discussão das hipóteses estabelecidas, seguida de uma síntese do trabalho apontando quais as principais conclusões apuradas, seguida ou não de sugestões e/ou de estímulos ao prosseguimento de novas pesquisas sobre o Tema, sendo, ainda, fundamental a discussão sobre a demonstração da tese e os principais pontos da investigação que permitiram a sustentação da proposta teórica, amparando-se, também, na bibliografia ou linhas teóricas que não foram abordadas com as devidas justificativas; e por fim, d) Referências das fontes citadas, as quais constarão, em 10 João Álvaro RUIZ, Metodologia Científica, São Paulo, Atlas, 2006, p. 138. 11 Eva Maria LAKATOS e Marina de Andrade MARCONI, Metodologia Científica, 6ª edição, São Paulo, Atlas, 2011.
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obediência às normas pertinentes, tão-somente os livros e demais fontes que vierem a ser utilizados na pesquisa.
4. Discussão Considerando que no ordenamento jurídico português a arbitragem no âmbito desportivo possui previsão legal, através do Tribunal Arbitral do Desporto, assim como o surgimento de teorias que admitem a resolução alternativa de conflitos trabalhistas, mesmo que tratem de direitos tidos como indisponíveis, através deste método, observa-se que a efetividade da decisão arbitral em tais casos se torna evidente. Entretanto, no ordenamento jurídico brasileiro a Justiça Desportiva tem caráter iminentemente administrativo, devendo as questões trabalhistas dos atletas profissionais serem decididas na esfera trabalhista. Ocorre que, mesmo a arbitragem possuindo previsão legal, e a classe trabalhadora objeto desta pesquisa tendo regulamentação específica, não há notícias que tal instituto seja utilizado, sequer de forma semelhante à portuguesa. Sendo assim, é que segue o presente projeto para analisar e comparar o ordenamento jurídico luso-brasileiro que envolva o presente tema. Atualmente, em uma breve investigação, constatou-se que em Portugal a divergência está no requisito arbitrabilidade. A doutrina diverge no sentido de admitir ou não a utilização da arbitragem para solucionar conflitos que envolvam direitos indisponíveis, direitos estes geralmente inerentes às relações trabalhistas. Embora exista tal divergência doutrinária, cada vez mais o Tribunal Arbitral do Desporto tem tutelado tais situações. No Brasil, mesmo com a arbitragem possuindo regulamentação, e se tratando de um instituto semelhante ao português, não se tem notícia de sua utilização na esfera desportiva. Mesmo havendo uma entidade específica que cuide de conflitos desportivos, como é o caso da Justiça Desportiva, além da mesma não admitir discussões do âmbito trabalhista, qualquer decisão não é passível de execução em virtude de seu caráter meramente administrativo. Em tempo, deve-se destacar que o instituto da arbitragem no direito trabalhista brasileiro divide-se em duas vertentes, quais sejam: nos dissídios individuais e nos dissídios coletivos12, sendo, a princípio, admitida a utilização da arbitragem apenas nos dissídios coletivos. Assim, embora exista essa divergência doutrinária no ordenamento jurídico paradigma, acredita-se que os conflitos trabalhista-desportivos brasileiros 12 Francisco José CAHALI, Curso de Arbitragem, 6ª edição, revista, ampliada e atualizada, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2017.
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poderiam ser diretamente solucionados através da arbitragem, assemelhando-se às soluções dadas no ordenamento português. Portanto, a pesquisa incisiva na legislação portuguesa e da União Europeia a respeito deste tema certamente contribuirá para o conhecimento jurídico luso-brasileiro e eventuais mudanças.
5. Resultados Considerando que a pesquisa ainda se encontra na fase inicial, não se pode falar em resultados efetivos. O único resultado obtido foi um breve conhecimento teórico a respeito de alguns temas, bem como a estrutura que o relatório final provavelmente conterá. Estruturalmente pretende-se concluir a pesquisa com três grandes capítulos: O Atleta Profissional (Evolução histórica do profissionalismo no esporte, Os atletas profissionais no Brasil e em Portugal, O contrato e as características específicas da profissão nos países comparados), A Arbitragem (A arbitragem no Brasil e em Portugal, analisando os aspectos gerais, conceito, natureza jurídica, arbitrabilidade, convenção arbitral, os árbitros, o procedimento arbitral e a sentença arbitral), e por fim A Arbitragem nos dissídios trabalhistas dos atletas profissionais.
Conclusão Acreditando-se no êxito do desenvolvimento da pesquisa, buscar-se-á a efetividade da utilização do instituto da arbitragem na solução de controvérsias tão específicas quanto as questões laborais dos atletas profissionais. A importância da utilização do instituto em voga é notória em ambos os ordenamentos investigados. Assim, mesmo que ainda haja controvérsia na utilização plena, a investigação certamente auxiliará na efetividade e aplicabilidade da decisão arbitral nestes casos. Mesmo se tratando de um campo novo, bem como que a pesquisa esteja na fase inicial, espera-se que ao final o estudo conclua pela utilização e eventual regulamentação da arbitragem no âmbito desportivo laboral.
Referências Bibliográficas BRASIL, Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, Dispõe sobre a arbitragem, Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9307.htm>, Acesso em 10 jul 2017, às 19:20.
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BRASIL, Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, Disponível em <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9615Compilada.htm>, Acesso em 10 jul 2017, às 18:00. BRASIL, Lei nº 13.129, de 26 de maio de 2015, Altera a Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996, e a Lei no 6.404, de 15 de dezembro de 1976, para ampliar o âmbito de aplicação da arbitragem e dispor sobre a escolha dos árbitros quando as partes recorrem a órgão arbitral, a interrupção da prescrição pela instituição da arbitragem, a concessão de tutelas cautelares e de urgência nos casos de arbitragem, a carta arbitral e a sentença arbitral, e revoga dispositivos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996, Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13129.htm>, Acesso em 10 jul 2017, às 19:15. CAHALI, Francisco José, Curso de Arbitragem, 6ª edição, revista, ampliada e atualizada, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2017. LAKATOS, Eva Maria, e MARCONI, Marina de Andrade, Metodologia Científica, 6ª edição, São Paulo, Atlas, 2011. PASOLD, Cesar Luiz, Metodologia da Pesquisa Jurídica: teoria e prática, 13ª edição, revista, atualizada e ampliada, São Paulo, Editora Conceito, 2015. PORTUGAL, Lei nº 5/2007, de 16 de Janeiro, Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto. Disponível em <goo.gl/YxYsEV>. Acesso em 19 dez 2016, às 11:00. PORTUGAL, Lei nº 28/1998 de 26 de junho, Estabelece um novo regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo e do contrato de formação desportiva e revoga o Decreto-Lei n.º 305/95, de 18 de Novembro, Disponível em < https://www.tribunalarbitraldesporto.pt/files/Lei_28-98.pdf >, Acesso em 10 jul 2017, às 18:30. RUIZ, João Alvaro, Metodologia Científica, São Paulo, Atlas, 2006.
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UM OLHAR PARALÁTICO DA VIOLÊNCIA, DO DESEJO MIMÉTICO E DA JUSTIÇA RESTAURATIVA: O SENTIDO DAS RESTAURAÇÕES POSITIVISTA E COMUNITÁRIA Fabiano Oldoni1 Mário Ferreira Monte2
1. Introdução Sabe-se que o sistema de controle penal (Direito Penal e Processo Penal) estrutura-se com a função de proteger o indivíduo do poder punitivo estatal e, por isso, sua função primordial é ser instrumento de garantias. Contudo, apesar desta premissa, é comum utilizar-se o Direito Penal como instrumental de contenção do avanço da violência, seja com a proliferação de criminalização de condutas, muitas vezes sem qualquer embasamento científico, apenas por clamor popular, seja pelo aumento das penas. Isso tem causado vários problemas já denunciados pelo movimento criminológico crítico, o qual teve um papel importante ao questionar os motivos e as intenções da criminalização de certas condutas e pessoas.
1 Doutorando em Ciências Jurídicas pela Escola de Direito da Universidade do Minho. Mestre em Ciência Jurídica pela UNIVALI, Professor de Direito Processual Penal, Advogado e autor do livro Para que(m) serve o Direito Penal?, além de vários outros escritos sociológicos e jurídicos. 2 Professor Doutor Orientador.
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A equivocada utilização da punição como método preventivo da violência e os obscuros motivos da criminalização de certas condutas e pessoas tem gerado um aprisionamento seletivo e um efeito diminuto no controle do crime. Nesse sentido, o Direito Penal tem se mostrado bastante eficiente no Brasil, a contar os 715 mil presos, alçando o país o terceiro entre os que mais aprisionam no mundo3. Some-se a isso o caos penitenciário que se estabeleceu no país, com superlotação e ausência completa de estrutura básica para uma vivência humana digna. O efeito é notório: o cárcere tem gerado mais violência4. Não há dúvida de que é preciso um instrumento mais humano e que efetivamente possa ajudar os envolvidos a compreenderem as causas não apenas do crime, mas da violência em geral, seja ela conhecida ou não pelas agências de controle penal. O movimento restaurativo5 se apresenta como um caminho que pode se apoderar dessas funções. Surgido em comunidades específicas, tem resquícios em civilizações antigas, que preferiam a restauração/acordo à punição. No presente estudo, a superação do punitivismo pelo método restaurativo é justificado a partir da necessidade de se compreender o desejo mimético triangular, causador de muitos desvios, o que só é possível por meio de uma visão da violência em paralaxe. A violência, originada pelo desejo mimético6 ou pela reciprocidade, que também não deixa de ser mimese e, como tal, inerente às relações humanas e que 3 Informação disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-01/mas-condicoes-das-prisoes-facilitam-crescimento-de-faccoes-dizem-especialistas. Acessado em 20 de março de 2017. 4 No início de janeiro deste ano (2017), uma rebelião no Complexo Penitenciária Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, Brasil, deixou 56 detentos mortos (Disponível em http://brasil.elpais.com/ brasil/2017/01/02/politica/1483358892_477027.html). Também no mesmo mês de 2017, uma rebelião na Penitenciária de Alcaçuz, em Natal/RN, deixou mais 26 presos mortos (Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/1850078-rebeliao-em-presidio-deixa-ao-menos-27-mortos-diz-governo-do-rn.shtml). Até o momento (março de 2017) o Brasil já apresenta um saldo de 134 presos mortos no interior das prisões (Disponível em http://www.correio24horas.com.br/detalhe/brasil/noticia/numero-de-mortos-em-presidios-brasileiros-chega-a-134-em 2017/?cHash=f9072cd60180fa310a2d75fd83f1cfc1). 5 Ver ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2008 e WARAT, Luis Alberto. “Pensemos algo diferente em matéria de mediação”. In SPENGLER, Fabiana Marion; LUCAS, Doglas Cesar (org.). Justiça Restaurativa e mediação: políticas públicas no tratamento dos conflitos sociais. Ijuí: Editora Unijuí, 2011. 6 Sobre desejo mimético ver GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca. Tradução de Lilia Ledon da Silva, São Paulo: Realizações, 2009 e GIRARD, René. O bode expiatório. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004.
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são, por natureza, imitativas, precisa ser desmistificada. Ela jamais desaparecerá, antes precisa ser compreendida. A visão em paralaxe da violência7 desloca o olhar linear entre a vítima e o autor para a relação triangular entre mediador, mediado e objeto, onde a compreensão do desejo mimético, enquanto origem da violência, permite que as partes percebam os motivos e, através do diálogo voluntário, consigam perceber que antes de haver a dualidade fática – autor-vítima – todos colaboram para o surgimento do conflito. Mais distante, mas não menos importante, está o retorno à tribalização8 e a regra particularista9 também como aportes teóricos para a legitimação do método restaurativo de solução de conflito. A tribalização, enquanto retorno do individual ao coletivo, reaproxima os sujeitos, que tendem a buscar uma solução viável coletivamente, numa percepção do outro, que passa a ter voz e vez. O outro não é mais o estranho, e sim alguém que pode integrar o grupo. As diferenças são encurtadas e antes de serem causas de divisão, incentivam a re-união. Já o mecanismo de delegação das decisões para os envolvidos no conflito penal possibilita que os diretos interessados assumam o compromisso perante si, o outro e a coletividade, de encontrar uma solução que diminua as diferenças, encurtem os laços, e tenha reflexos positivos para todos os interessados. A regra particularista legitima a tomada de decisão dos envolvidos, sempre em respeito ao interesse alheio. Não se desconhece que o método restaurativo procura respeitar as individualidades e compreender a origem do ato violento, oferecendo aos envolvidos um ferramental mais eficiente para amenizar os efeitos do desvio que o oferecido pelo Direito Penal tradicional. Contudo, o método restaurativo judicializado é bastante limitado, alcançando apenas os conflitos penais, não se estendendo aos desvios sociais não criminalizados ou não captados pelas agências estatais, além de apresentar as mesmas características do direito penal tradicional.
7 A violência em paralaxe foi trabalhada a partir de ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões. Tradução de Miguel Serras Pereira, São Paulo: Boitempo, 2014 e ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2008. 8 MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. 9 SCHAUER, Frederik. Las Reglas en Juego: Un examen filosófico de la toma de decisiones basada en reglas, en el Derecho y en la vida cotidiana. Madri: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, 2004.
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2. Objetivos O objetivo da pesquisa traduz-se na necessidade de investigar se o método restaurativo judicializado, por apresentar as mesmas características e limitações do direito penal tradicional, é capaz de perceber a violência em paralaxe e agir preventivamente ao desvio.
3. Metodologia O trabalho serviu-se de várias fontes que, aparentemente distantes, possuem particularidades que se complementam. Assim é que a criminologia, a sociologia, a psicologia, a psicanálise, a teoria analítica, a filosofia da linguagem, a literatura e a arte cinematográfica apresentam-se como embasamento teórico do estudo. Quanto à Metodologia empregada, registra-se que na Fase de Investigação foi utilizado o Método Indutivo, na Fase de Tratamento de Dados o Método Cartesiano, e o Relatório dos Resultados expresso no presente trabalho é composto na base lógica Indutiva.
4. Discussão Para a elaboração da pesquisa, foram levantados os seguintes problemas: 1 O desejo mimético, enquanto causa da violência, pode ser compreendido pelo sistema penal tradicional e pelo método restaurativo judicial? 2 O método restaurativo judicializado apresenta-se com as mesmas características e limitações do direito penal tradicional? Esses problemas deram origem às hipóteses: 3 A percepção da violência em paralaxe descortina o desejo mimético como uma importante causa do desvio. 4 O método restaurativo judicializado legitima o positivismo criminológico. 5 A compreensão do desejo mimético enquanto origem da violência só é possível por métodos restaurativos comunitários.
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A pesquisa foi desenvolvida em três capítulos, sendo que o Capítulo 1 buscou demonstrar que o direito penal tradicional se estrutura em uma concepção equivocada de prevenção da violência; evidenciar que o sistema penal é tanto limitador do Estado, quanto do cidadão; listar as funções declaradas da pena; questionar a necessidade de se utilizar no Direito Penal a lógica fundante do liberalismo (Estado Mínimo); diferenciar a Justiça Restaurativa da Justiça Retributiva e apresentar os movimentos restaurativos no mundo e no Brasil. O Capítulo 2 buscou compreender a ideia de retorno a tribo de Maffesoli, movimento que evidencia a necessidade pós-moderna de re-união dos indivíduos em um coletivo. Na sequência demonstrou-se, a partir de Zizek, a violência em paralaxe, onde foi possível perceber que ela nasce, em sua maioria, do desejo mimético, numa relação triangular. Para isso, pesquisou-se o sentido do desejo mimético e a relação com a violência, com embasamento teórico em René Girardi. Também se verificou a motivação da criação de bodes expiatórios, bem como sua utilização como fator de controle da violência. O capítulo termina questionando se o método restaurativo é capaz de perceber a sistemática da relação mimética triangular que origina a violência. Com esse propósito iniciou-se o Capítulo 3, esclarecendo-se que o desejo mimético não afasta a teoria criminológica crítica, mas antes a complementa, justamente porque a primeira explica a violência social e a segunda a criminalização de algumas dessas violências e desvios. Seguiu-se justificando a legitimidade de se delegar aos particulares o poder de tomar decisão, o que é típico do método restaurativo, ideia que se aproxima da norma particularista de Scherer. Por fim, foi pesquisado qual o local da restauração: judicializado ou comunitário?
5. Resultados Até o presente momento, constatou-se que a violência mimética é a causa de muitas violências, cuja compreensão só é possível a partir do deslocamento do objeto, numa percepção paralática, resultado esse que não é alcançado pelas técnicas tradicionais do sistema penal, seja ele punitivista ou restaurativo judicializado. Com as bases teóricas já delineadas, demonstrou-se que a restauração judicializada legitima o positivismo, apresenta-se também como punição, sem potencialidade preventiva e não possui voluntariedade real dos envolvidos, especialmente do autor do fato, contendo as mesmas deficiências que critica no Direito Penal tradicional. A legitimação do positivismo ocorre pelo fato da restauração judicializada, enquanto modelo estatizado e pertencente ao sistema penal, aplicar-se
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apenas aos selecionados, o que a torna também seletiva, atuando nos mesmos clientes do sistema penal tradicional. A restauração judicializada não age preventivamente nas demandas sociais, por não enfrentar as verdadeiras causas dos desvios. O método restaurativo dentro do direito penal vivifica o positivismo, pois ao justificar-se pela restauração do fato-crime, assim o faz internamente ao sistema penal, precisando da criminalização para ser aplicada. Legitima porque necessita que o Estado capture (processualmente) o “criminoso”, para que ela possa ser chamada a mediar. A punição também está presente na restauração judicial e a preocupação com a reparação e a vítima recebem mais destaque que as causas do conflito. As propostas restaurativas sugerem uma substituição da pena de prisão por outra mais leve, ou seja, a ideia de retribuição ainda é bastante presente, mesmo que consensual, como se da com a reparação patrimonial, por exemplo. O método restaurativo judicializado se distancia da liberdade, posto não haver uma livre aceitação da restauração, já que as partes optam por compor uma “solução”, primeiro porque foram “descobertos”, depois para evitar uma pena maior (autor) e garantir a reparação de um dano (vítima). Ou seja, cada um está a pensar em seus próprios interesses e vantagens, não havendo uma vontade genuína em restaurar a relação. O ato aproxima-se do imperativo hipotético de Kant, pois a restauração é feita com finalidades diversas da simples vontade de restaurar. Por isso é necessário utilizar métodos restaurativos que permitam às partes compreenderem os motivos reais da violência e do desvio sem intenções paralelas e ocultas. O autor do fato deve mudar sua postura e entender a importância sem uma contrapartida externa. Ele deve entender que, enquanto humano, tem o dever de agir com respeito com o outro, por ser essa a essência virtuosa (Kant). Logo, para que esse ato seja o imperativo categórico de Kant, é preciso uma atuação comunitária e sem a intervenção estatal, que não passe a ideia de controle e punição. A restauração comunitária, atuando numa fase antecedente à captura do fato crime pelo Estado, alcança muitos dos fatos que, pelo sistema tradicional, apenas constariam nas estatísticas da cifra negra da criminalidade. A restauração não pode ser do crime, mas da violência em si. Os métodos restaurativos não devem ser aplicados apenas aos desvios conhecidos pelo sistema penal e, por isso, criminalizados, pois estaria, nesse caso, agindo pós crime, não se diferenciando do direito penal tradicional.
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Sua ingerência preventiva no seio da comunidade, por meio de organismos sem qualquer pretensão punitiva ou moralista, faculta aos opositores a busca por uma mediação verdadeira em atos iniciais de conflito, que se não compreendidos podem gerar uma violência mais séria. Assim pensa-se que a restauração possa ser um método preventivo eficaz. Sua atuação, repita-se, é sobre o desvio social e não apenas sobre o crime selecionado pelas agências penais. Por isso, afirma-se que a verdadeira restauração deve estar alinhada à uma ideia de justiça virtuosa, ou seja, deve-se restaurar porque compreendeu a importância e a necessidade de todos agirem a partir do exercício da “pura razão prática” (Kant) para se buscar um coletivo harmônico, sem se esquecer de que essa harmonia não é sinônimo de ausência de violência, já que essa é inerente ao ser humano. A proposta que seguiu foi a necessidade de uma restauração comunitária, afastada dos meios estatais, onde os envolvidos voluntariamente busquem a restauração para satisfazer um desejo interno e verdadeiro de mudança e não porque foram capturados pelas agências e estão a mercê de uma punição. Essa restauração, regrada, mas não estatizada, é um canal aberto ao diálogo para resolver desvios sociais locais e, a princípio, leves, mas que se não solucionados podem levar a atos de violência que venham a ser percebidos pelo Estado, através do mecanismo da criminalização. De forma alguma essa restauração seria um aumento de controle sobre as condutas sociais. Primeiro porque ela não é uma imposição, mas voluntária. O movimento restaurativo é convidado a conhecer a situação conflituosa que envolve os sujeitos e esses são convidados pelo movimento comunitário à mediação. Abrem-se os canais de comunicação a todos que queiram verdadeiramente reconstruir as relações. Segundo porque ela não é punitiva, e mesmo que conheça e atue em uma gama de atos maiores que a restauração judicial, não estigmatiza os envolvidos e não os controla. Em resumo, não é uma instância de poder.
Conclusão A restauração judicializada é um começo, um movimento que demonstra a necessidade de superar-se o modelo tradicional. Mas ela não é suficiente, justamente por trazer consigo os miasmas do sistema de controle penal. Ela é importante por traçar novas rotas à justiça criminal. É esse movimento que demonstrou a necessidade de substituir a pena pela mediação. Na sequência
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será preciso um movimento mais radical, que desloque essa “mediação” para a comunidade. Retirar o poder de decidir do judiciário contraria toda a estrutura estatal de solução de conflito e por isso é preciso avançar lentamente, papel esse que a restauração judicial está fazendo, mesmo que com algumas simbologias e vícios iguais ao modelo retributivo. Não se desconhece o seu valor na atual quadra da história, mas também não se desconhece suas mazelas e limitações.
Referências Bibliográficas AGENCIA BRASIL. Más condições das prisões facilitam crescimento de facções, dizem especialistas. Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-01/mas-condicoes-das-prisoes-facilitam-crescimento-de-faccoes-dizem-especialistas. Acessado em 20 mar. 2017. CORREIO 24 HORAS. Número de mortos em presídos brasileiro chega a 134. Disponível em http://www.correio24horas.com.br/detalhe/brasil/noticia/numero-de-mortos-em-presidios-brasileiros-chega-a-134-em2017/?cHash=f9072cd60180fa310a2d75fd83f1cfc. Acessado em 20 jun. 2017. EL PAIS. Massacre em presídio de Manaus deixa 56 detentos mortos. Disponível em http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/02/politica/1483358892_477027.html. Acessado em 20 jun. 2017. FOLHA. Rebelião em presídio deixa pelo menos 27 mortos. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/1850078-rebeliao-em-presidio-deixa-ao-menos-27-mortos-diz-governo-do-rn.shtml. Acessado em 20 jun. 2017. GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca. Tradução de Lilia Ledon da Silva, São Paulo: Realizações, 2009. _____________ O bode expiatório. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. SCHAUER, Frederik. Las Reglas en Juego: Un examen filosófico de la toma de decisiones basada en reglas, en el Derecho y en la vida cotidiana. Madri: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, 2004.
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WARAT, Luis Alberto. “Pensemos algo diferente em matéria de mediação”. In SPENGLER, Fabiana Marion; LUCAS, Doglas Cesar (org.). Justiça Restaurativa e mediação: políticas públicas no tratamento dos conflitos sociais. Ijuí: Editora Unijuí, 2011. ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2008. ____________. Violência: seis reflexões. Tradução de Miguel Serras Pereira, São Paulo: Boitempo, 2014. ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2008.
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O TELETRABALHO E A CONTEMPORANEIDADE Francisco de Assis Barbosa Junior1 Teresa Alexandra Coelho Moreira2
1. Introdução A presente Tese busca analisar as relações trabalhistas após o advento da massificação do Teletrabalho, tendo por foco a constatação de que a atuação estatal não mais é suficiente para regulá-las e fiscalizá-las, pois não acompanha a evolução do mundo do labor. A ineficiência do Estado nesta atuação mostra-se presente não em apenas um, mas nos três poderes como pensados por Montesquieu3. As mudanças nas relações laborais são indeléveis, substanciais e claras, não obstante, a adaptação dos estados a esta nova realidade mostra-se tímida e ineficaz na maioria dos casos. Embora não seja um fenômeno recente, o Teletrabalho ganhou corpo e importância recentemente, trazendo consigo transformações definitivas nas relações de labor. Antes relacionado principalmente com o trabalho de nível intelectual, o mourejo à distância com uso de meios telemáticos foi aos poucos galgando espaços, estando hoje espalhado por toda
1 Juiz do Trabalho do TRT da 13ª Região, professor da UNIFACISA, professor da pós-graduação e Direito do Trabalho e Processo do Trabalho do UNIPE, Mestre em História do Direito pela UFCG., doutorando em Direito pela Universidade do Minho, especialidade em Ciências Jurídicas Privatísticas. 2 Professora auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho e orientadora. 3 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
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a cadeia produtiva, abrangendo trabalhadores do primeiro, segundo, terceiro e, naturalmente, do quarto setor4. Nesta nova ordem trabalhista mundial, na maioria absoluta das vezes, a atuação estatal tem-se mostrado insuficiente para regulamentar, fiscalizar e julgar as situações e casos dela decorrentes. A legislação clássica existente, calcada na antiga realidade das relações de labor, não mais é suficiente para gerir as questões do Teletrabalho e da Gig Economy, o que acaba lhe diminuindo a eficácia e tornando real a aplicação prática da transconstitucionalidade, a qual pode ser entendido como a existência de diversas ordens jurídicas, não só estatais, as quais buscam reger um mesmo fato jurídico5, principalmente porque mais ágil na sua atualização e capacidade de reger fatos novos. Verifica-se hoje o fim do velho catálogo estadualista das fontes de direito, substituído por um outro no qual surgem novas formas de manifestação direta do direito, identificadas com as normas que presidem ao mundo globalizado dos negócios e outras formas de autorregulação, como as normas prudenciais e técnicas6. Noutra linha, a fiscalização do Teletrabalho mostra-se ainda pífia, pois na maioria dos países ainda se adota um sistema de análise da realidade do labor no local da fábrica, modo que naturalmente não aborda aquela espécie de mourejo. A possibilidade de haver mourejo em “qualquer lugar”, sem respeito às fronteiras nacionais, acaba por mostrar a forma obsoleta com a qual tem fiscalizado a maioria dos estados o teletrabalho, pois baseada essencialmente no contato direto entre empresa e empregado, sendo premente a mudança de rumo e métodos de ação neste campo. Também a atuação judicial mostra-se defasada, principalmente no campo da cooperação internacional, a qual não se tem mostrado eficiente na adoção de procedimentos judiciais e julgamentos concretizantes do principal elemento que une as legislações trabalhistas através do mundo, qual seja, o da proteção dos trabalhadores. A ação coordenada e de forma colaborativa dos membros do poder judiciário dos países tem um papel fundamental na proteção e concretização dos 4 Jean Fourastié no seu livro A Grande Esperança do Século XX (Paris: Gallimard, 1963) classificou as atividades econômicas em três setores: primário(agricultura, pecuária e atividades extrativas), secundário (indústria) e terciário (comércio e serviços). Posteriormente, houve uma expansão desta teoria para se incluir um quarto setor (ou um setor “terciário superior”), o qual engloba atividades de geração e compartilhamento de informações, educação, telecomunicações, pesquisa e desenvolvimento, consultoria, etc. Este setor abarca as atividades da era pós-industrial, iniciada com a massificação da alta tecnologia. 5 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2013. 6 HESPANHA, Antônio Manuel. “Terão Os Juízes Voltado ao Centro do Direito”. Scientia Ivridica, Revista de Direito Comparado Português e Brasileiro, Tomo LXII, n 332, p. 225-254, maio-agosto 2013.
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direitos dos teletrabalhadores. A máxima da inexistência de fronteiras para o trabalho deve ser assimilada e a convivência com a mesma desenvolvida pelos juízes com a finalidade de materializar os princípios da dignidade da pessoa humana e da finalidade social do trabalho, basilares nas constituições ocidentais, tornando efetivos os direitos dos teletrabalhadores e real a isonomia do tratamento protetivo deles em cotejo com os demais obreiros.
2. Objetivos Ante a situação exposta, buscou-se na tese responder a alguns questionamentos: a) Qual a evolução do conceito de classe adotado pelas teorias sociológicas após o advento da massificação das novas formas de trabalho ligadas aos meios telemáticos? b) Qual a evolução do teletrabalho no universo laboral? c) Qual a eficácia da legislação estatal quanto à regulamentação do teletrabalho e como formatar um sistema legal aplicável ao mesmo o qual seja ágil o suficiente para não ser superado pela rapidez da evolução tecnológica? d) Qual a eficácia dos métodos de fiscalização do trabalho na contemporaneidade e qual a melhor forma de procedê-la quanto ao teletrabalho? e) Qual a importância da cooperação judiciária para a efetivação da proteção dos teletrabalhadores e como evoluir o seu sistema para permitir a atuação concreta de um juiz do país da sede da empresa noutro onde labore o teletrabalhador quando for necessária a aplicação da lei vigente naquele país? Os objetivos específicos da tese são: 1) Apresentar a evolução do conceito de Classe à luz das teorias sociológicas e sua necessidade de adaptação diante das novas formas de trabalho. 2) Descrever os conceitos e a evolução do teletrabalho no mundo sob a ótica das relações humanas líquidas da atualidade. 3) Analisar a legislação atual concernente ao teletrabalho e examinar a possibilidade de criação de sistemas legais nacionais e internacionais capazes de se manterem atuais em face das mudanças tecnológicas que impactam e transformam constantemente aquela espécie de labor. 4) Vislumbrar os métodos de fiscalização do trabalho na contemporaneidade e propor um modelo eficiente relacionado ao teletrabalho. 5) Verificar a importância da cooperação judiciária para a efetivação da proteção dos teletrabalhadores e sugerir meios de aperfeiçoamento desta
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cooperação entre países procurando diminuir os impactos negativos do teletrabalho internacional.
3. Metodologia Tendo em mente a nova ordem trabalhista mundial e a realidade da atuação estatal no Brasil, na União Europeia (principalmente em Portugal), na África e na América do Norte, esta tese utilizou um método de pesquisa bibliográfica, descritiva, exploratória e qualitativa, buscando entender a atual realidade do trabalho no mundo com base teórica não apenas jurídica, mas, também, de outros ramos do conhecimento, como a sociologia, a economia e a Tecnologia da Informação.
4. Discussão 1) Nova ordem trabalhista mundial; 2) Ver a eficácia da legislação estatal quanto à regulamentação do teletrabalho e como formatar um sistema legal aplicável ao mesmo o qual seja ágil o suficiente para não ser superado pela rapidez da evolução tecnológica. 3) a atuação estatal tem-se mostrado insuficiente para regulamentar, fiscalizar e julgar as situações e casos dela decorrentes. 4) legislação clássica existente, calcada na antiga realidade das relações de labor, não mais é suficiente para gerir as questões do Teletrabalho e da Gig Economy, o que acaba lhe diminuindo a eficácia e tornando real a aplicação prática da transconstitucionalidade; 5) fim do velho catálogo estadualista das fontes de direito, substituído por um outro no qual surgem novas formas de manifestação direta do direito, identificadas com as normas que presidem ao mundo globalizado dos negócios e outras formas de autorregulação, como as normas prudenciais e técnicas. 6) A insistência na manutenção de uma regulamentação estatal pouco ágil, engessada, calcada em paradigmas superados, firmados em maior ou menor escala na estabilidade das relações de labor, mostra-se equivocada e insuficiente para enfrentar as mudanças do mercado de trabalho, cada vez mais dinâmico e líquido. 7) Analisar a legislação atual concernente ao teletrabalho e examinar a possibilidade de criação de sistemas legais nacionais e internacionais capazes de se manterem atuais em face das mudanças tecnológicas que impactam e transformam constantemente aquela espécie de labor. 8) Investigar a possibilidade de criação de sistemas legais internamente em cada país, assim como de forma internacional, os quais sejam capazes de se
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manterem atuais apesar da rapidez das mudanças tecnológicas que impactam e transformam constantemente o teletrabalho. 9) A noção do novo universo do trabalho será avaliada para se propor um paradigma moderno de legislação a qual seja capaz de regular as efêmeras relações de trabalho decorrentes do mundo moderno. 10) Vislumbrar os métodos de fiscalização do trabalho na contemporaneidade e propor um modelo eficiente relacionado ao teletrabalho. 11) Verificar a importância da cooperação judiciária para a efetivação da proteção dos teletrabalhadores e sugerir meios de aperfeiçoamento desta cooperação entre países procurando diminuir os impactos negativos do teletrabalho internacional.
5. Resultados O Teletrabalho ao invés de diminuir, aumentou o tempo de disponibilização de mão-de-obra do empregado para a empresa, pois os obreiros diminuíram o tempo de desconexão com relação ao trabalho, mantendo-se ligados ao trabalho mesmo em seus supostos momentos de lazer.
Conclusão Impossível não inserir o trabalho como uma das mais nobres relações humanas, assim, se estas mudam, certamente o universo do labor também sofrerá uma metamorfose. Destarte, a liquidez das relações humanas atuais tão bem delineadas pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman7 acaba se espalhando pelo teletrabalho, o qual possui na sua essência o distanciamento entre seus atores, com fragilidade e efemeridade do contato entre eles, e a pequena duração do vínculo firmado. Porém, apesar da mutação do labor em decorrência da proliferação do teletrabalho ser global, tal fato ainda não ensejou as mudanças legislativas necessárias para bem regular o tema. Igualmente não há uma movimentação clara estatal no sentido de aprimorar a cooperação judiciária internacional e melhorar a fiscalização relacionada ao teletrabalho. Embora seja o direito do trabalho um dos dinâmicos do direito, ainda há a insistência na manutenção de uma regulamentação estatal pouco ágil, calcada em paradigmas superados, firmados em maior ou menor escala na estabilidade das relações de labor, a qual mostra-se equivocada e insuficiente para enfrentar as mudanças do mercado de trabalho, cada vez mais dinâmico e líquido. 7 BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
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A realidade, embora traga grandes promessas de desenvolvimento, também origina muitos desafios para empresas, governos, indivíduos e trabalhadores. Como pontua Moreira: Estamos perante uma mudança que não é somente estrutural mas, também, e principalmente, funcional, no sentido de que mudou profundamente a maneira de efetuar a prestação laboral. Esta situação implica uma mudança capital e um redimensionamento do Direito do trabalho, já não tanto em sentido material de alteração da sua extensão ou volume, mas um processo de revisão do seu âmbito ou extensão, da sua intensidade e do nível que se deve adotar na sua regulamentação, podendo falar-se de uma nova dimensão da sua disciplina8.
As colocações acima mostram-se precisas e corretas. As mudanças no universo laboral são indeléveis, tendo a forma de prestação de trabalho sofrido uma metamorfose profunda, sem precedentes, a qual enseja um redimensionamento do próprio Direito do Trabalho, o qual passa a ter uma nova conotação. As atuais linhas desse ramo jurídico são originárias do final do século XIX e nasceram na busca de regulamentar as relações de trabalho de então, com legitimação da subordinação direta do empregado ao seu patrão. Destarte, a teoria ligada ao direito do trabalho baseia-se num modelo firmado antes da quarta revolução digital, com ela não se adaptando corretamente. Não há como se regular as novas relações de trabalho sob a égide clássica daquela teoria, especialmente quanto aos chamados trabalho 4.09 e a gig economy. As expressões “flexibilização”, “desemprego”, “globalização” e “negociação coletiva” integram essas novas relações de labor. Mannrich10 chama a atenção de que estas relações apontam para um universo mais liberal e flexível, com menor interferência estatal, numa economia onde a competitividade cada vez mais encontra-se ligada ao binômio alta tecnologia e baixos salários. Neste universo, parece mostrar-se ineficiente se tentar impor as regras tradicionais do direito do trabalho aos teletrabalhadores, principalmente ante as barreiras nacionais para aplicação das mesmas. Dentro da problemática exposta, esta tese busca defender a aplicação do transconstitucionalismo de maneira global, garantindo o mínimo de direitos aos 8 MOREIRA, Teresa Alexandra Coelho. “Algumas questões sobre Trabalho 4.0 e privacidade dos trabalhadores”. In: A. A. V. V. Temas de Investigação em Direitos Humanos para o Século XIX. Edição comemorativa do 10º anivérsário do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade do Minho. Braga: Direitos Humanos - Centro de Investigação Interdisciplinar, 2016, p. 02. 9
Este termo provém de um programa comum lançada pelo Governo alemão e pela indústria alemã em 2011. Mais tarde, foi utilizado no léxico da Comissão Europeia bem como noutras regiões. O termo preferido no ordenamento jurídico norte-americano é de smart manufacturing - MOREIRA, Algumas questões sobre Trabalho 4.0... op. cit., p. 02.
10 MANNRICH, Nelson. A modernização do contrato de trabalho. São Paulo: Ltr, 2002.
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O teletrabalho e a contemporaneidade
teletrabalhadores, os quais sejam capazes de garantir sua dignidade, utilizando-se para reger o caso concreto diversos ordenamentos jurídicos, estatais ou não, tudo para se achar a regulamentação e solução mais justa. Neste universo, a cooperação judiciária internacional deve ser aprimorada para melhor concretizar as normas aplicáveis. Igualmente na proteção dos teletrabalhadores deverá ser melhorada a estrutura estatal de fiscalização dos empregados, diminuindo a mácula aos seus direitos, que estão mais expostos a desrespeito ante o local de mourejo. Busca-se justificar a tese na necessidade de adequação do direito ao atual contexto das novas relações de trabalho, pois as ordens jurídicas existentes isoladamente e a atuação judicial sem cooperação não mais acompanham a evolução destas relações, devendo ser adotadas as regras do transconstitucionalismo em escala global, abarcando ordens jurídicas distintas, notadamente porque não há mais limitação de lugar para o exercício do mister dos trabalhadores via meios telemáticos. Seu trabalho é no globo, devendo as regras deste ser aplicadas no caso concreto. A adoção dessa nova diretriz encontrará naturais dificuldades de execução, não obstante, olvidar a realidade inédita dos teletrabalhadores e tentar impor-lhes regras traçadas ainda no século XIX parece mostrar-se um procedimento equivocado na medida em que não há mais espaço para tanto. A inefetividade dessas regras tradicionais no novo mundo do trabalho, onde o lugar da sua execução adotou um patamar de efemeridade único, parece restar transparente, o que enseja sua mudança, sob pena de se chegar rapidamente à sua própria inexistência.
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DIREITOS DAS CRIANÇAS E POLÍTICAS EUROPEIAS. A DIMENSÃO JUSFUNDAMENTAL DO “INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA” À LUZ DO ARTIGO 24.º DA CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA Helena do Passo Neves
1. Introdução Trata-se de pesquisa para obtenção do Grau de Doutor em Direito, área de especialidade Ciências Jurídicas Públicas, na Escola de Direito da Universidade do Minho, mediante a qual se pretende analisar interesse superior da criança, no intento de garantir os direitos fundamentais infanto juvenis, no âmbito das políticas internas e externas da União Europeia. O estudo está delimitado ao interesse superior e proteção de crianças e sua operacionalização nas políticas da União Europeia e da Jurisprudência dos Tribunais nela localizados. O artigo 24º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), com força jurídica vinculativa desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa em 2009, estabelece a primazia do “interesse superior da criança” relativamente a todos os atos praticados por entidades públicas e privadas.
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No artigo 24.º, n.º 1, da CDFUE, identificam-se três direitos das crianças que consagram 1) o direito à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar, 2) o direito a exprimir livremente a sua opinião e de que esta seja tomada em conta nos assuntos que lhe digam respeito, 3) o direito a manter relações pessoais e contactos diretos com ambos os progenitores. Nessa esteira, assumiu-se formalmente a proteção dos direitos das crianças entre os principais objetivos nas políticas internas e externas da União Europeia (artigo 3º, nº 3 e 5 do Tratado da União Europeia). Nem sempre foi assim; historicamente, pelo fato de que as crianças não são economicamente ativas, não desfrutavam de posição prioritária no seio das políticas regionais e no cenário mundial. Com a evolução dos valores sociais e da legislação correspondente, a União Europeia começou a incluiu na sua política externa de direitos humanos, a promoção e a proteção de todos os direitos das crianças; ou seja de todas as pessoas com menos de 18 anos de idade (artigo 1º da Convenção sobre os direitos das crianças) salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo. O Conselho da União Europeia adotou as “Orientações da UE em matéria de promoção e proteção dos direitos da criança” e a Comissão Europeia conferiu “Um lugar especial para as crianças na ação externa da União Europeia” para integrar os direitos da criança em todas as atividades da UE. Em 2006, o Conselho da Europa lançou o programa “Construir uma Europa para e com as Crianças”, plano de ação transversal, consagrado às questões relativas aos direitos da criança com o propósito de eliminar todas as formas de violência contra as crianças, ressaltando o interesse superior da criança na tomada de decisões. Tal iniciativa levou à adoção de Diretrizes da União Europeia sobre os direitos da criança, aprovadas pelo Conselho em 10 de dezembro de 2007, norteadoras de suas políticas e ações externas – e o Grupo dos Direitos do Homem do Conselho (COHOM) ficou responsável por acompanhar e avaliar a execução do cumprimento dessas diretrizes. Outros avanços importantes se relacionam com a Diretiva referente à luta contra o abuso e exploração sexual de crianças e a pornografia infantil e com a Diretiva relativa à prevenção e luta contra o tráfico de seres humanos e à proteção das vítimas, incluindo infantis. As ações gerais para aplicação dessas Diretivas englobam a disponibilização de recursos suficientes à promoção e proteção dos direitos da criança e ao combate à violação dos direitos da criança e à sua participação no processo de tomada de decisões. O pressuposto fundamental é de que crianças e adolescentes constituem grupo extremamente vulnerável, o que impõe a todos, União Europeia, Estados,
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instituições de ensino, família e comunidade, o dever de proteção contra todas as formas de violência. No entanto, nesse aspecto, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia merece análise sistemática, para verificar sua eficácia e eficiência. Nesse contexto, cumpre avaliar sua contribuição para a redução das diversas formas de violência: física, mental, psicológica e sexual, tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, destacando-se o abuso e exploração, a tomada de reféns, o tráfico ou até venda de crianças e de seus órgãos, a pedofilia, a prostituição e a pornografia infantil, o turismo sexual, vitimando crianças, além de castigos corporais nas escolas e nos lares. Como é cediço, não se imagina que medidas legislativas ou de outra natureza tenham o condão de acabar com a violência contra a criança. Para que se avalie a dimensão do desafio, basta refletir sobre dados da Atualização de 16 de junho de 2008, os quais reforçam a importância da reformulação das políticas europeias para proteção das crianças, alusivos a conflitos armados, como resumido a seguir: Calcula-se que só no último decénio os conflitos armados tenham custado a vida a mais de dois milhões de crianças e mutilado mais seis milhões. O conflito priva as crianças dos pais, de prestadores de cuidados, de serviços sociais elementares, de cuidados de saúde e de educação. Há cerca de vinte milhões de crianças deslocadas e refugiadas, bem como de um milhão de crianças órfãs, enquanto outras são mantidas reféns, raptadas ou vendidas. Os sistemas de registo de nascimentos e os sistemas de justiça de menores estão a soçobrar. Seja qual for o momento considerado, calcula-se que haja pelo menos 300 000 crianças-soldados a participar em conflitos.1
1 https://www.consilium.europa.eu/uedocs/cmsUpload/10019.pt08.pdf, p. 1
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2. Estado da arte No artigo 24.º do Título III, relativo à Igualdade, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, sobressai, desde 2000, os Direitos das Crianças, tratadas como “sujeito igual e privilegiado” de direito. Da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: Artigo 24.º Direitos das crianças 1. As crianças têm direito à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar. Podem exprimir livremente a sua opinião, que será tomada em consideração nos assuntos que lhes digam respeito, em função da sua idade e maturidade. 2. Todos os atos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança. 3. Todas as crianças têm o direito de manter regularmente relações pessoais e contactos diretos com ambos os progenitores, exceto se isso for contrário aos seus interesses. A CDFUE sublinhou a condição da criança como ser humano em desenvolvimento, vulnerável e dotado de capacidade progressiva, o que justifica a defesa de seu melhor interesse em qualquer circunstância. De pronto, cumpre mencionar que o melhor interesse da criança é conceito vago, o qual, em situações de conflitos, pode ensejar dificuldade na aplicação, exigindo bom senso na análise do caso concreto, levando sempre em consideração os cuidados necessários ao bem-estar da criança. Diante dessa limitação, cumpre deslindar conceito jurídico operativo o qual ofereça alguma segurança a quem o aplica no intento da proteção do grupo em tela. Os parâmetros de avaliação estão calcados nos princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade, liberdade, solidariedade, democracia, justiça social e todos os direitos humanos, incluindo as medidas protetivas necessárias ao seu pleno desenvolvimento. Nesse espectro, inclui-se o acesso a bens e serviços essenciais, como a saúde, educação e nutrição. Como se expôs, o nº 3 do artigo 24º da CDFUE estabelece que todas as crianças têm o direito de manter contatos e relações pessoais com ambos os progenitores, exceto nos casos de risco, reconhecidos em lei ou pelo judiciário. 98
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Destaca-se também, o direito de acesso gratuito ao ensino obrigatório (artigo 14º, n.º 2), a proibição da discriminação em razão da idade (artigo 21º) e a proibição da exploração do trabalho infantil (artigo 32º), todos da Carta constitucional supramencionada. Em face da problemática aqui exposta em largos traços e na ausência de estudos consistentes sobre o tema, elaborou-se o presente projeto de Tese de Doutorado, cuja questão norteadora é a seguinte: Tomando como referencia princípios derivados da teoria dos Direitos Humanos, quais os fundamentos que propiciam densidade ao sentido do critério orientador fundamental do “superior interesse da criança”, tal como ele resulta do art. 24.º da CDFUE, e perceber em que medida ele se repercute nas políticas internas e externas da União Europeia?
3. Objetivos Identificar, na teoria dos Direitos Humanos e dos Fundamentais previstos para vigorar na União Europeia, a proteção de crianças, por meio de políticas públicas. Analisar, à luz dos princípios da teoria dos Direitos Humanos e da teoria dos direitos fundamentais na União Europeia, iniciativas em termos de políticas públicas, da ação da família e da sociedade, quanto à proteção do melhor interesse de crianças e adolescentes. Discutir a jurisprudência no que concerne às políticas públicas com parceria da família e de instituições sociais, no que tange à garantia do melhor interesse de crianças na União Europeia. Propor reformas, nomeadamente legislativas e de políticas públicas, tendo em vista a participação das famílias e outros atores sociais no sentido da efetividade e concretização do melhor interesse de crianças no contexto da União Europeia e respectivos Estados-Membros. A justificativa da investigação repousa principalmente em argumentos como os apresentados a seguir. Os direitos da criança constituem questão horizontal e multidimensional e precisam ser integrados nas políticas europeias e nacionais. Sob esse enfoque, a mera previsão legal é condição necessária, mas não suficiente para que sejam concretizados no cotidiano desse grupo social, particularmente vulnerável. Nessa linha de raciocínio, é de particular relevância que sejam analisados à luz da teoria dos direitos humanos, direitos e garantias fundamentais e da legislação específica da União Europeia. Na mesma perspectiva é fundamental buscar pilares legais e doutrinários relativos aos deveres e funções da família, do
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Estado, da sociedade, das instituições de ensino formal e daquelas encarregadas de acolhimento na busca da proteção desse grupo social que se encontra em fase de desenvolvimento.
4. Metodologia da Investigação Trata-se de pesquisa descritiva, indutiva, baseada no modelo crítico dialético, eis que parte do pressuposto de que a teoria dos Direitos Humanos e, nesse cenário, a proteção do melhor interesse de crianças e adolescentes, bem como o princípio da integração da União Europeia mantêm relação de mútua influência com valores e paradigmas sociais dominantes na sociedade em cada período da história da civilização. Nessa linha de entendimento, a análise do assunto precisa ser devidamente contextualizada, eis que a evolução conceitual guarda importantes vínculos com a evolução da sociedade e seus valores. As fontes dos dados serão constituídas por doutrina e legislação referente à doutrina dos Direitos Humanos, precipuamente aqueles documentos referentes à garantia do melhor interesse da criança em quaisquer circunstâncias. Serão igualmente consultadas decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia, no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sobre casos que se refiram à garantia “interesse superior da criança e adolescente”, através das bases de dados jurídico-documentais das instituições europeias, e eventualmente de consulta no local, o que permitirá também aprofundar a recolha bibliográfica nas respectivas Bibliotecas. O tratamento e a análise destes diferentes elementos bibliográficos, jurisprudenciais e normativos serão feitos tendo em conta o contexto específico em que se processa a aplicação do Direito da União Europeia. O levantamento de dados será realizado junto aos seguintes órgãos: Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Conselho Português para os Refugiados (CPR), Centro para Crianças Refugiadas, Grupo de Trabalho para a Agenda Europeia para as Migrações, Gabinete de Apoio à Integração do Refugiado (GAIR), Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ), UNICEF, APAV. Metodologicamente, essa premissa implica a premência de levar em conta, por um lado, as necessidades de respeitar as especificidades nacionais, quando da aplicação administrativa do direito da União Europeia e, por outro, de enquadrar a autonomia institucional e processual/procedimental dos Estados-Membros em seu dever de garantir a efetividade do direito da União Europeia, e, em especial, o “interesse superior da criança”.
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PARA ONDE CAMINHA A CONSTITUIÇÃO? Larissa A. Coelho1
1. Introdução No âmbito do desenvolvimento da tese de doutoramento sob o título “Os movimentos constitucionais na modernidade líquida: a teoria da constituição entre a política e o poder”, a investigação encontra-se na fase de caracterização da teoria da constituição delimitando-se assim à construção histórica do constitucionalismo moderno. Uma vez que a pesquisa se desenvolve no campo da atualização da teoria da constituição, a abordagem histórica se faz não apenas no intuito de se compreender a evolução do constitucionalismo ao longo do tempo, mas sobretudo verificar se a ideia de Constituição permanece constante em sede da teoria da interconstitucionalidade. Sendo certo que muito se tem escrito acerca da teoria da constituição, sobretudo a partir do século XVIII com os movimentos liberais, entender a natureza da Constituição é determinar a essência do constitucional. Sob a ótica da história o desenvolvimento do constitucionalismo pode ser observado em três momentos: a) na sequência e desencadeada pelas revoluções oitocentistas; b) a produzida no pós Primeira Guerra Mundial e c) a desenvolvida com o fim da Segunda Guerra e os processos de descolonização2.
1 Doutoranda em Ciências Jurídicas Públicas na Universidade do Minho. Mestre em Direitos Humanos e Licenciada em Direito pela UMinho. Investigadora-colaboradora nos centros de pesquisa CEDU e DH-CII. 2 Cf. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. “Teoria geral do constitucionalismo”. Revista de Informação Legislativa Brasileira, Brasília, ano 23, n.º 91, jul./set., 1986, p. 30 – 39.
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Atualmente o constitucionalismo tem se encontrado sob a ótica de dois paradigmas – ou movimentos – um com maior desenvolvimento nos países da América do Sul, e que tem sido designado de neoconstitucionalismo e outro que decorre da globalização e do processo de integração no espaço europeu, a teoria da interconstitucionalidade. Deste conjunto de fatores, pretende-se compreender qual ou quais os caminhos que segue o constitucionalismo na era pós-moderna. Deste modo, a investigação em sua fase preliminar tem por objetivos compreender a partir de uma análise histórica, a evolução do constitucionalismo desde a antiguidade clássica até à era moderna, enquanto que em relação aos atuais movimentos, nossa atenção inicial será dispensada para a construção teórica da teoria da interconstitucionalidade com vista a determinar se a ideia de constituição atualmente nesta sede permanece inalterada. Assim, através de um estudo descritivo-exploratório adota-se como método de investigação o hipotético-dedutivo, pois que com base em conhecimentos prévios e com o surgimento de conflitos, pressupõe-se soluções iniciais a partir de conjecturas que se encontram sujeitas a testes3. Associa-se ainda para o desenvolvimento do estudo o método histórico-jurídico, analisa-se a evolução do constitucionalismo, visando determinar se as suas causas e efeitos tendem a permanecer constantes, especialmente neste primeiro momento, no contexto da teoria da interconstitucionalidade. Como procedimento de pesquisa aplica-se o método histórico-comparativo pelo qual se investiga fatos e acontecimentos passados para verificar-se as consequências e influências destes na atualidade4.
2. Discussão e Resultados Ao empreender um estudo sobre o constitucionalismo, nos deparamos com termos como Carta Magna, Lei Maior, Lei Fundamental utilizados pela doutrina jurídica para referir-se à Constituição, no entanto, através da interpretação verificamos que esses termos se referem à constituição na época áurea do Estado-Nação. Por isso, diante da atual conjuntura de crise do Estado a pesquisa tem buscado esclarecer as implicações produzidas no constitucionalismo, mas para tal é necessário primeiramente compreender a sua origem. O constitucionalismo significa a limitação do poder e supremacia da lei, embora implique na existência de uma Constituição escrita, essa verdade não é absoluta, como exemplifica o constitucionalismo britânico. Enquanto que a 3 Cf. GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. 3ª ed., rev. e atual., Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 20 – 23. 4 Cf. LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia científica. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1991.
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expressão limite ao poder é compreendida em três aspectos: material, orgânica e processual5. Entretanto esse entendimento do constitucionalismo corresponde a acumulação das finalidades que a Constituição passa a ter em função dos acontecimentos históricos, assim, de forma sumária nota-se que a Constituição na Antiguidade Clássica tinha por finalidade organizar a comunidade política, estando em causa determinar a função dos cidadãos, a forma, a estrutura e a organização do governo. Já na Idade Média, como esclarece Barroso “[…] o ideal constitucionalista, que vinha dos gregos e havia sido retomado pelos romanos […] desapareceria do mundo ocidental por bem mais de mil anos, até o final da Idade Média”6. A Era Moderna, tendo como marco o século XVI e o fim do feudalismo ergue-se a figura do Estado em sua versão absolutista ganhando força o conceito de soberania absoluta e indivisível. Deste período destaca-se três movimentos que contribuem para a consolidação do constitucionalismo moderno. Logo, da Revolução Inglesa, como ensina Dieter Grimm, cabe depreender que […] nos países anglófonos, “constitution” de início designa apenas uma lei individual formalmente promulgada […]. Em contrapartida, o modo do exercício do poder é denominado “form of government”. No século XVII “constitution” aparece com um novo significado, em parte idêntico ao de “form of government”, em parte idêntico ao de “fundamental laws”7. 5 Seguindo os ensinamentos de BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo mundo. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 29 – 30, a) o limite material corresponde aos valores básicos e direitos fundamentais que devem ser preservados como dignidade da pessoa humana, direitos à liberdade de religião e associação; b) por limite orgânico entende-se que legislar, julgar e administrar são funções que devem ser atribuídas a diferentes órgãos independentes, mas também interdependentes (checks and balances) e por fim c) o limite processual pressupõe que além de uma atuação em conformidade com a lei, os órgãos do poder devem atuar de acordo com o processo legal, ou seja, respeitando princípios processuais como do contraditório, ampla defesa, inviolabilidade de domicilio, vedação de provas obtidas por meio ilícito, como também sua adequação ao princípio da proporcionalidade. 6 Cf. BARROSO. Curso de direito constitucional… op. cit., 2015, p. 32. 7 Cf. GRIMM, Dieter. “Constituição, lei fundamental (leis fundamentais) da Ilustração até os dias atuais”. In: MOHNHAUPT, Heinz; GRIMM, Dieter. Constituição: história do conceito da antiguidade aos nossos dias. Belo Horizonte: Livraria Tempus, 2012, p. 151. Esta alteração de interpretação decorre dos fatos decorridos a partir de 1628, quando o Parlamente submete o rei à Petition of Rights e por consequência se limita o poder do monarca, desencadeado na sequência a guerra civil (1642 – 1648), a execução do rei Charles I (1649) e a implantação da República liderada por Oliver Cromwell (1649 – 1658). Outro momento historicamente importante foi marcado pela Revolução Gloriosa quando William de Orange derruba James II, “[…] já sob um regime de supremacia do Parlamento, com seus poderes limitados pela Bill of Rights (1689)” (cf. BARROSO. Curso de direito constitucional… op. cit., 2015, p. 35). Configura-se assim a afirmação do Parlamento e a implantação da monarquia constitucional.
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Do outro lado do Atlântico, a Revolução Americana é desencadeada a partir da insurreição das treze colônias contra a metrópole inglesa em razão da alta carga tributária e a restrição a atividades econômicas e de comércio rompendo com as relações até então amigáveis. Dos diversos fatores gerados a partir deste processo, em 1781 foi ratificado os Articles of Confederation que deram origem à confederação entre as treze colônias, projeto que em sede de revisão nos anos que se seguiram foi abandonado em prol da Convenção Constitucional, sendo aprovada a primeira constituição escrita no mundo moderno em 1787. Em 1791 é introduzida na Constituição uma declaração de direitos (Bill of Rights) como as primeiras dez emendas8. No contexto revolucionário americano, a constituição era entendida como “[…] um sistema de princípios estabelecidos para garantir ao súdito a posse e o gozo de seus direitos e privilégios contra quaisquer usurpações por parte do governo”9. De volta ao continente europeu, a Revolução Francesa atribui um sentido moderno ao termo revolução. Origina-se em razão de uma crise financeira do Estado que naquele momento apoiava a guerra de independência americana, implicando por sua vez numa alta carga tributária ao povo francês. Com uma nobreza que se recusava a reduzir seus benefícios fiscais é convocado os Estados Gerais, uma espécie de assembleia que integrava representantes do clero, nobreza e terceiro estado. Insurgindo-se contra os privilégios dos demais estados, o terceiro estado autoproclama-se Assembleia Nacional, tornando-se rapidamente uma Assembleia Constituinte. Sob o lema da igualdade, liberdade e fraternidade iniciou-se uma grande reforma, tendo entre suas medidas a promulgação da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão e a elaboração de uma nova Constituição. A Revolução prosseguiria ainda outras fases. Em termos gerais de todo o processo revolucionário se destacam quanto ao constitucionalismo e à implementação das instituições políticas o sufrágio universal, a separação de poderes, a proteção aos direitos individuais e às liberdades públicas e a soberania popular10. Enquanto isso, na Alemanha, o cenário revolucionário não se fazia presente, o entendimento da Constituição enquanto “[…] quintessência das
8 Cf. BARROSO. Curso de direito constitucional… op. cit., 2015, p. 39 – 42. Cabe destacar que foi do Segundo Congresso Continental, datado de 1775 a 1788, que se efetivam as seguintes decisões: a) organização de um exército cujo comando foi entregue a George Washington; b) adoção de constituições escritas pelas ex-colônias e c) a principal medida: a elaboração de uma Declaração de Independência cujo redator nomeado foi Thomas Jefferson, assinada em 4 de julho de 1776. 9 Cf. Resoluções do Concord Town Meeting, Massachusetts, 1776, citado por GRIMM, Constituição, lei fundamental… op. cit., 2012, p. 154. 10 Cf. BARROSO. Curso de direito constitucional… op. cit., 2015, p. 47 – 52.
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leis fundamentais do Estado”11 só foi cunhado em 1798, passando o Direito do Estado a compreender o direito constitucional, dedicado ao poder do Estado ou formas de governo e do Direito de Governo, onde se estabelecia o exercício do poder do Estado. Com base num entendimento contratual em que a Constituição é “[…] um acto de vontade geral, pela qual a massa se torna um povo”12, é entendida como uma lei que fixa o […] modo pela qual a soberania deve ser exercida, [assim] um país pode, portanto, ter bem uma constituição de governo; mas uma Konstitution ele recebe apenas se as regras, segundo as quais ele deve ser governado, podem ser tidas como o contrato celebrado voluntariamente pelos cidadãos, que o povo decidiu nas suas assembleias diretas13.
O constitucionalismo moderno na Alemanha toma também por parâmetros a divisão dos poderes e os direitos humanos, deste modo, o conceito de Verfassung passou a ser o “[…] acordo dos cidadãos para a garantia dos direitos humanos e civis segundo determinadas leis ou prescrições”14. Entendida como o meio para se garantir a liberdade, os princípios do constitucionalismo passam a ser ensinados à população. Em termos históricos, apenas após a unificação alemã é promulgada a primeira Constituição do Império, chefiado por Otto von Bismarck em 1871, que ficaria em vigor até a consagração da Constituição de Weimar em 1919, tornando-se na opinião de Barroso um dos documentos mais influentes da história, pois procura conciliar a organização do Estado com a consagração de direitos fundamentais, mas com a novidade, pois que este catálogo era composto tanto por direitos individuais quanto por direitos sociais15, marcando o inicio do constitucionalismo social. Percorrendo os fatos históricos, é no século XIX que há uma “tendência geral à juridificação do poder do Estado”16, bem como do conceito da constituição, em que a Constituição passa de costumes jurídicos a uma lei escrita, formal. Neste contexto Ferdinand Lassalle no discurso Über Verfassungswesen proferido no ano de 1862, traduzido para língua portuguesa como “A essência da Constituição” ou pelo interrogativo “O que é a Constituição?”, afirma que os problemas constitucionais são problemas de poder pois que devemos ter uma 11 Cf. GRIMM. Constituição, lei fundamental… op. cit., 2012, p. 157 – 158. 12 Cf. KANT, Immanuel. Zum ewigen Frieden. 1795, tradução portuguesa por Artur Morão, A paz perpétua: um projecto filosófico. Covilhã: LusoSofia, 2008, p. 13. [consult. 10.07.2017]. Disponível em: <http://www.lusosofia.net/textos/kant_immanuel_paz_perpetua.pdf>. 13 Cf. Wedekind, 1791, apud GRIMM. Constituição, lei fundamental… op. cit., 2012, p. 161. 14 Cf. GRIMM. Constituição, lei fundamental… op. cit., 2012, p. 163. 15 Cf. BARROSO. Curso de direito constitucional… op. cit., 2015, p. 58 – 59. 16 Cf. GRIMM. Constituição, lei fundamental… op. cit., 2012, p. 148.
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Constituição que reflita a realidade social, assim “[…] a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país regem […]”17, configurando-se em um problema quando as Constituições reais e escritas não se entrelaçam (o que a torna uma mera folha de papel). Este estudo é associado ao sociologismo constitucional. Já sob o domínio da ideologia positivista, no século XX, é construída a concepção jurídica, em que a Constituição é entendida como a norma suprema de um Estado. Esta corrente tem como principal teórico Hans Kelsen, que na obra Teoria Pura do Direito pretende compreender o direito sem ligações a quaisquer elementos de outras ciências (como a sociologia, filosofia e política). A norma é entendida como o dever-ser18. Com o século XX adentramos ao período designado de contemporâneo, em que, adotando um discurso socializante, a essência da Constituição passa a estar ligada a questões como desenvolvimento econômico, liberdades individuais, criação e gestão de oportunidades aos cidadãos, “[…] as Constituições passaram a se apresentar como programas de reforma social, e ocuparam o centro de um projeto coletivo de ação política cuja aspiração é determinar a atuação dos Poderes Públicos, a fim de materializar direitos”19. Em razão deste contexto as normas jurídicas passam a comentar não apenas a política, mas também as relações econômicas e sociais20. Desde modo, em razão dos processos históricos, as constituições contemporâneas podem ser entendidas como um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regulam a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do
17 Cf. LASSALLE, Ferdinand. Über die verfassung, tradução portuguesa por Hiltomar Martins Oliveira, O que é uma Constituição? Belo Horizonte: Cultura Jurídica Ed. Líder, 2004, p. 40. 18 A Constituição para Kelsen seria “[…] uma estrutura formal, cuja nota era o caráter normativo, a prescrição do dever-ser, independentemente da legitimidade ou justiça de seu conteúdo e da realidade política subjacente. A ordem jurídica é um sistema escalonado de normas, em cujo topo está a Constituição, fundamento e validade de todas as demais normas que o integram”, cf. BARROSO. Curso de direito constitucional… op. cit., 2015, p. 104. 19 Cf. SIQUEIRA, Júlio Pinheiro Faro Homem de. “A ideia de constituição: uma perspectiva ocidental - da antiguidade ao século XXI”. Cuestiones Constitucionales, Ciudad de México, n.º 34, enero-junio, 2016, p. 195 – 197. 20 Cf. BARACHO. Teoria geral do constitucionalismo… op. cit., 1986, p. 44.
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homem e as respectivas garantias21 . Assim, conclui-se que a constituição não trata apenas do Estado, mas também de toda a sociedade22. Neste início do século XXI, o constitucionalismo relaciona-se com a implementação dos processos de integração regionais como a União Europeia (UE) e o Mercado Comum do Sul (Mercosul), que em razão do crescimento dos fluxos migratórios, da comunicação, transportes e tecnologia, levam a que a soberania e independência do Estado vá se reduzindo apenas à sua capacidade de repressão23. Neste cenário em que o Estado perde a centralidade, a vigência da constituição dissocia-se de certos elementos considerados basilares como o seu poder de advir de um momento constituinte, a abdicação voluntária da soberania nacional como decorre da Constituição Europeia, em que os Estados signatários do projeto europeu transferem poderes e competências para uma entidade supranacional, a Europa, associado com a própria mudança no entendimento de Estado, que deixa de ser um Estado-Nação e torna-se um Estado-Membro. Nesse contexto, as constituições dantes exclusivamente nacionais, passam também a integrar-se, a entrar em diálogo com textos constitucionais de outros Estados-Membros e com os textos constitucionais supranacionais. Para explicar este processo, Daniela Ribeiro e Malu Romancini argumentam que as constituições “supranacionalizaram-se ou internacionalizaram-se”24 quando os Estados se integraram em comunidades políticas supranacionais, forçando suas constituições a se adaptarem e flexibilizaram-se à nova realidade. Em razão dessas alterações a teoria da interconstitucionalidade busca construir uma doutrina atualizada para a teoria da constituição. Cientes de que hoje está em crise “[…] um conceito de constituição referido exclusivamente ao estado”, a teoria da interconstitucionalidade tem sido definida como o diálogo constitucional, ou ainda como a “[…] influência recíproca de certas Constituições ou das jurisprudências constitucionais de uns países
21 Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª ed., rev. e atual., São Paulo: Malheiros Editora, 2005, p. 37 – 38. 22 Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4ª ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 5; CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 12. 23 Cf. BAUMAN, Zygmunt. Globalization: the human consequences, tradução portuguesa por Marcus Penchel. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 72. 24 Cf. RIBEIRO, Daniela Menengoti; ROMANCINI, Malu. Sistema interamericano de direitos humanos: a efetivação dos direitos da personalidade pela interconstitucionalidade. Maringá, PR: Vivens, 2015, p. 75. (e-book). [consult. 10.07.2017]. Disponível em: <http://www.humanitasvivens.com.br/livro.php?id=285>.
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sobre as de outros países”25. Segundo Gomes Canotilho esta teoria dedica-se ao estudo das relações “[…] da concorrência, convergência, justaposição e conflito de várias constituições e de vários poderes constituintes no mesmo espaço político”26 sendo este um termo preferível ao termo constitucionalismo multilateral. Esta ideia foi cunhada por Francisco Lucas Pires na obra Introdução ao Direito Constitucional Europeu. Mas é preciso ter ciência de que o quadro da teoria da interconstitucionalidade não pretende criar um novo constitucionalismo, apenas adequar “[…] a correlação entre várias Constituições”27, pois não estamos diante da criação de um novo direito constitucional fruto do desenvolvimento da sociedade pós-moderna. O termo interconstitucionalidade explica-nos Silveira incorpora “[…] uma proposta teorética a partir da qual pode e deve estudar-se o processo de integração europeia, ocupando-se, pois, do enquadramento/tratamento da fenomenologia do ´pluralismo constitucional` ou das ´constituições em rede`”28. A teoria da interconstitucionalidade se faz presente com a fusão do patrimônio jurídico comum, ou seja, existe uma aproximação conceitual e interpretativa para os conteúdos que compõem as constituições ocidentais em matérias como direitos fundamentais, separação de poderes, princípio da legalidade e controle da constitucionalidade29. Entretanto trata-se do diálogo entre textos constitucionais, essencialmente as constituições dos Estados-Membros e a Constituição Europeia.
Considerações Finais Assim, a partir dos movimentos liberais o conceito tradicional da Constituição pode ser construído sob a ótica política e jurídica. Do ponto de vista político afirma Barroso, é vista como um conjunto de decisões do “poder constituinte ao criar ou reconstruir o Estado, instituindo os órgãos de poder e disciplinando as relações que manterão entre si e com a sociedade”; a visão jurídica é por sua vez composta pela vertente material (“quanto ao conteúdo de suas normas […] 25 Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 7ª ed., rev. e actual. Coimbra: Coimbra Editora, 2013, Tomo II, p. 69. 26 Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 266; CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed., 15ª reimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1425. 27 Cf. PIRES, Francisco Lucas. Introdução ao direito constitucional europeu: seu sentido, problemas e limites. Coimbra: Almedina, 1997, p. 18. 28 Cf. SILVEIRA, Alessandta. “International Constitutional Court e integração (constitucional) europeia”. International Studies on Law and Education, São Paulo, 24, CEMOrOC-Feusp/IJI – Univ. do Porto, set. – dez., 2016, p. 73. 29 Cf. PIRES. Introdução ao direito constitucional… op. cit., 1997, p. 19.
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organiza o exercício do poder político, define os direitos fundamentais, consagra valores e indica fins públicos a serem realizados”) e a vertente formal (“quanto à sua posição no sistema […] é a norma fundamental e superior, que regula o modo de produção das demais normas do ordenamento jurídico e limita o seu conteúdo”)30. Sobre a teoria da interconstitucionalidade, embora ainda se encontre em desenvolvimento, já podemos concluir que estamos diante de um constitucionalismo que não pretende repetir as mesmas fórmulas aplicadas ao Estado-Nação, sendo este o ponto em que mais se distingue da teoria clássica da constituição, uma vez que o diálogo entre as constituições dos vários Estados-Membros, no caso europeu, permite que estejamos diante de uma pluralidade de fontes constitucionais que juntas têm que dar soluções e respostas a problemas como da convivência entre Constituições, da aplicação de normas preferentes derivadas de ordenamentos distintos, ao problema do nível de proteção mais elevado dos direitos fundamentais, entre outros31. Deste modo, apesar da discussão extrapolar os limites fronteiriços dos Estados, a essência da constituição ainda permanece a mesma. Face ao exposto, verificamos que o pensamento de Von Stein em princípios do século XIX continua atual, pois que a constituição compreendida enquanto “[…] resultado de ações humanas […] é um degrau, que o gênero humano precisa vencer, mas um degrau que ele em breve deverá transpor e no qual não poderá ficar eternamente”32.
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30 Cf. BARROSO. Curso de direito constitucional… op. cit., 2015, p. 99. 31 Cf. SILVEIRA, Alessandra. “Constitucionalismo estadual e constitucionalismo europeu: a superação do complexo de ´eterno marido`”. Revista Jurídica UNIARAXÁ, Araxá, v. 14, n.º 13, p. 205 – 224, 2010, p. 209 – 210. [consult. 10.07.2017]. Disponível em: <http://www.uniaraxa.edu. br/ojs/index.php/juridica/article/view/49/41>. 32 Cf. Karl Fr. von Stein zum Altenstein, 1807, apud GRIMM. Constituição, lei fundamental… op. cit., 2012, p. 170.
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Para onde caminha a constituição?
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CONTRAORDENAÇÕES: DA PROTEÇÃO DOS BENS JURÍDICOS À PROTEÇÃO DOS DIREITOS E DEVERES. EPÍLOGO DA RELAÇÃO ENTRE O DIREITO PENAL E O DIREITO CONTRAORDENACIONAL Maria Angelina Ferreira Teixeira1
1. Introdução Vivemos numa época marcada por profundas transformações socioeconómicas, políticas e, sobretudo jurídicas. Foi em busca do almejado tema para a nossa investigação que acabaríamos por encontrá-lo na disciplina de Direito Probatório Penal2. Cumpre-nos, antes de mais, fazer um breve enquadramento. Foi sobretudo após a Revolução Francesa que a Administração estadual iluminista passou a estender o seu manto interventivo a áreas como economia, concorrência, saúde, consumo, educação, cultura, ecologia, circulação rodoviária e laboral, numa atuação preventiva de perigos. Tal intervenção foi-se intensificando nos pós-guerras, impondo uma modificação da Administração estadual para uma Administração atuante, dita de “bem-estar social”, importando, pois, darlhe eficácia, criando sanções para as injunções da Administração. 1 A frequentar o 3.º ciclo de Estudos em Direito na Universidade do Minho (Ciências Jurídicas Públicas). Advogada, Formadora em Direito, Mestre em Direito Administrativo, Pós-Graduada em Direito da Contratação Pública Prática e Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente. 2 A cargo do Prof. Doutor Mário João Ferreira Monte (aqui orientador).
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Num primeiro momento tivemos o chamado Direito Penal de polícia contravencional, mas tal tese foi, paulatinamente, sendo derrotada pela criação da ideia da proteção de bens jurídicos. Por essa altura, era premente retirar dos quadros penais das inúmeras infrações sem relevância ética importando recolocar o Direito Penal na sua função de ultima ratio sancionatória. E é sob este pano de fundo, sobretudo na esteira do pensamento de um advogado alemão e professor de Direito Penal e Direito Processual Criminal que, na República Federal Alemã, vieram a ser promulgadas as 1ª e 2ª Leis-Quadro. Neste contexto viria mais tarde o Direito Penal conduzir a uma indesejável “hipertrofia do Direito criminal”, insurgindo-se, por assim dizer, um claro movimento de descriminalização com a consequente criação de um novo enquadramento jurídico. Entre nós, Eduardo correia, então Ministro da Justiça, traz ao lume o DL n.º 232/79, de 24-07 que permitiu introduzir a figura das Contraordenações. Porém o diploma que viria a materializar o ilícito de mera ordenação social (imos)3 foi o DL 433/82, de 27-10, diploma que se revelou, o primeiro input para a nossa investigação. Para tal, recorremos à leitura mais atenta do seu preâmbulo, sendo que, o legislador da década de 80, não deixa dúvidas quanto à necessidade de encontrar respostas que, curiosamente, volvidas quatro décadas padecem da análoga pertinência. O Direito Contraordenacional deve a sua origem ao crescente intervencionismo do Estado contemporâneo, alargando o seu campo de acção conformadora em vários domínios da atualidade. Tal característica é comum à generalidade dos Estados das modernas sociedades técnicas, primando pela necessidade de dar consistência prática às injunções normativas. A isto acresce, a incontestável, degradação do Direito Penal, irreparável perda de força de persuasão e prevenção da criminalidade mais grave. Mas, este ramo do Direito, tem vindo a colocar em crise, a segurança dos cidadãos, bem como a integridade das suas vidas e bens, em suma: a qualidade de vida. Daí a urgência de conferir efetividade, que, parece firmar-se num direito autónomo face ao Direito Penal. É premente concretizar no ordenamento jurídico português tal característica em prol da política equilibrada na descriminalização. Não ficamos por aqui. A exigência de reformar (em vários domínios) é indiscutível e imprescindível ao Direito Contraordenacional que, assume maior relevância no quotidiano, gerador de conflitos cada vez mais complexos e presentes na vida das pessoas (singulares e coletivas). Aliás, um olhar mais atento, denota que é o legislador nacional a ser mestre em derrapagens dogmáticas, além das soluções substantivas e processuais desfasadas. E aqui, partimos da própria noção de contraordenação conhecida no Regime Geral (facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima). 3 Falaremos indistintamente de imos ou contraordenação (tradução mais literal da figura germânica).
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Chegados aqui, a nossa investigação partiu da reflexão em torno do qual os bens jurídicos não são o motivo da proteção do Direito das Contraordenações, mas antes os Direitos e Deveres. E, nessa medida, apenas reflexamente, como que por efeito, só depois de proteger os direitos e deveres, é que o Direito das Contraordenações protege os bens jurídicos, ao invés do Direito Penal que – elege – em primeira linha os bens jurídicos que são objeto da proteção. Este é, então, ao que acreditamos, o cerne da distinção entre os dois ramos do direito, cada vez mais desvirtualizados.
2. Objetivos Cada momento histórico tem um ordenamento jurídico construído à sua imagem e semelhança, sendo necessário conhecer o seu património dogmático. Em Portugal, rompendo-se com a influência francesa, bebendo-se da figura germânica, conhecemos a figura das contra-ordenações, eliminando a figura das contravenções que, verdadeiramente desapareceu no ano de 2006. Atualmente o modelo (regime geral) funciona como legislação subsidiária dos regimes sectoriais contraordenacionais, assistindo-se à limitação de direitos, liberdades e garantias. O campo de atuação das contraordenações é transversal na relação entre os cidadãos e a Administração nas suas mais variadas vestes. Não esquecemos o reconhecimento constitucional que este ramo de Direito é detentor, bem como a previsão do artigo 8.º/2 da Constituição da República Portuguesa, consagrando o princípio em nome do qual a doutrina penal vem sustentando a sua subsidiariedade perante o direito criminal. É que, por um lado, a Lei Fundamental “empurra” o ilícito de mera ordenação social para o Direito Penal (basta olhar para a matéria das garantias constitucionais). E nesta roda viva, apercebemo-nos da existência de várias normas na ordem jurídica nacional que parecem revelar-se «mais lúcidas». Ou seja, parecer dizer melhor o que deve fazer o Direito das Contraordenações do que o próprio Regime Geral vigente. Impõe-se assim a questão de saber onde paira a proteção dos bens jurídicos, sabendo de antemão, que pela frente teremos vários institutos que merecerão um tratamento aprofundado. Destacamos um deles (a culpa) que nos obrigará a sair da concepção tradicional para um tratamento em função dos direitos e dos deveres e não em função dos bens Jurídicos. É que tratar a culpa pelo não cumprimento de direitos e deveres é uma coisa e outra é tratar no plano da proteção dos bens jurídicos. Pairam, assim, as maiores incertezas relativamente aos limites e identidade deste ramo de Direito que nos desafia e inquieta da mesma forma.
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3. Metodologia No que toca à metodologia adotada (e adoptar) encontramo-nos a ultrapassar as primeiras barreiras do conhecimento, discorrendo a legislação, jurisprudência e doutrina, para depois ingressar além-fronteiras. Partiremos da cultura jurídica adquirida, da análise dos princípios estruturantes para o método de preparação e redação da investigação escrita. É nosso objetivo, apresentar respostas, cultivadas pelo pensamento crítico a que este ramo de Direito cada vez mais obriga a concretizar. Apesar de jovem, permanece um tanto ou quanto desconhecido, merecendo o reconhecimento das teses reconhecidas, mas sobretudo do direito a constituir. Reconhecida a dificuldade, uma tese analítica e argumentativa será um dos nossos propósitos, escortinando a bibliografia, artigos periódicos, teses, documentos avulsos de diversa índole que se refletirá num mapa do «investigador», não esquecendo as fichas de leitura, fontes de pesquisa, métodos tradicionais e informáticos para a evolução de ideias/maturação de pensamento. Elaboraremos um “mapa de notas” de leitura escritas e com a maior precisão possível, para ulterior tratamento, seguidas de fichas de leitura que conterão, essencialmente, a reflexão sobre o tema, as fontes de pesquisa, avaliação dos métodos tradicionais e informáticos, conclusões iniciais, ideias-chaves e a tradução, o mais fiel possível.
4. Discussão A presença cada vez mais marcante do Direito das Contra-Ordenações no quotidiano, traz à estampa os sinais de conflitualidade que, entre as pessoas (singulares e coletivas) e as entidades administrativas, tendem a multiplicar-se. Sabemos que investigamos um ramo de Direito controverso, com muitas janelas difusas, algum cujo fecho não será tão célere, como se desejaria. É nossa convicção embarcar numa viagem em busca de respostas, a problemas concretos. Sentiremos a pressão de desviar as atenções com problemas colaterais, mas o foco passará pela firme convicção de que, os bens jurídicos não são o motivo da proteção do Direito das Contraordenações, mas - antes - os direitos e deveres. Ora, a ideia de que o crime lesa bens jurídicos fundamentais e não direitos remonta a BIRNBAUM (SÉC. XIX), não sendo realidades palpáveis, concretas, mas sim valores da existência social (organizada em termos do Estado) e os comportamentos que agridam, lesem, coloquem em causa, falam perigar tais interesses devem ser objeto de uma reação. Recordaremos as teses liberal ou individual (Füerbach) que nos conduz à ideia de que, há crime quando se verifica uma lesão de bens jurídicos que estão concretizados na esfera jurídica de um determinado indivíduo. Portanto, uma lesão de valores ou interesses que correspondem a bens jurídicos subjectivos; metodológica de bem jurídico que olha para o bem
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jurídico como um papel voltado para a função interpretativa, fornecendo fórmulas para interpretar as normas, como um instrumento de interpretação dos tipos legais de crimes; social que vê o bem jurídico independentemente destes valores e interesses estarem subjetivados, concretizados na esfera jurídica de um indivíduo, podendo estar efetivamente imanentes à comunidade. Nessa medida, não necessitam, de ser individualmente encabeçados na esfera social de um determinado sujeito em concreto, sendo os bens jurídicos vistos numa ótica social, como bens universais; funcional, ou seja, olhar para os bens jurídicos nas funções desempenhadas para o desenvolvimento da própria sociedade; e mista, afirmada pelo entendimento de que os bens jurídicos são uma combinação de valores fundamentais, por referência à axiologia constitucional (por referência à Constituição) que visam o bom funcionamento da sociedade e das suas valorações éticas, sociais e culturais, em harmonia com o princípio da representatividade política e com o princípio da reserva de lei formal que pertence à Assembleia da República que deve efetivamente escolher quais esses valores, quais esses interesses que carecem de tutela jurídico-penal. Nessa medida, os princípios da necessidade, proporcionalidade, entre outros mais, serão chamados à nossa investigação. Destacar-se-á a relação das ordens jurídicas, o Direito Penal Secundário, tratado em legislação avulsa, partindo da constituição das contraordenações (facto típico, ilícito e censurável que se consubstancie na violação de uma norma que consagra direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito de uma relação e que seja punível com coima)4. O direito de audição e à defesa ao abrigo do atual art.º 50.º do Regime Geral não será descuidado, bem como a instrução do processo contraordenacional, os processos especiais, a decisão, levantando-se algumas nuances merecedoras de especial atenção quando analisadas do ponto de vista da proteção dos direitos e deveres. Os custos têm sido severos para a harmonia dos sistemas, sinónimo de vazios, aparências de reformas. Um dos maiores problemas tem sido a criação de mecanismos jurídicos de atribuição de responsabilidade penal – essencialmente, a condutas (quer por ação, quer por omissão), de pessoas humanas, colocando em crise a própria eficácia que a todos deve preocupar. Pretendemos contribuir para a dogmática não nos limitando a uma importação (acrítica) de regime e figuras
4 Para um melhor ensaio atenderemos aos regimes procedimentais, à disciplina dos preceitos reguladores nos processos de contraordenação previstos no Regime Geral, à identificação dos sujeitos e as soluções apresentadas pelo legislador, relacionando o instituto da responsabilidade (tipos) ao dolo, negligência e culpa.
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5. Resultados Propomo-nos a elaborar uma tese – que começará com uma introdução, sujeito à rescrição em todo o percurso de duração da investigação. Não será uma mera descrição circunstanciada do conteúdo e, em todas as secções pensamos incluir, notas prévias às conclusões finais que se espera dar lugar ao texto final, cujos argumentos se vai defender com firmeza. Descrever-se-á com pormenor a questão a tratar, o estado atual do conhecimento sobre a questão e a importância de se tratar – agora – da mesma. Reconhecemos não estarmos preparados (ainda) para elaborar, ao pormenor, como desejaríamos uma descrição concisa do problema/questão a tratar, a justificação da pertinência da tese.
Conclusão Abordar o tema de investigação em tão parcas páginas, exige colocar a tónica nalguns pontos, que apesar de genéricos, quisemos ainda assim partilhar. A natureza da escolha do tema passa também por se discutir que o Direito das Contraordenações deveria ser substituído, por exemplo, por outro ramo do Direito. Aliás, algures na história, foi apontado pela doutrina, que o Direito Sancionatório é visto como um Direito de Intervenção, discutindo-se se estamos perante um Direito Administrativo ou Direito Penal ou outra coisa que ainda não se sabe bem do que se trata. Para além disso, discute-se se vale a pena discutir ou se é algo tão bizarro que não merece ser discutido, porquanto são poucos os ordenamentos jurídicos que tenham esta figura tão próxima da nossa figura (à exceção da Alemanha). O ilícito de mera ordenação social além da inspiração direta alemã, em alguma medida consegue inspirar-se na italiana. Entre os vários panos de fundo que incidirá a nossa investigação, teremos sempre presente a Lei Fundamental, que em 1796 não fez qualquer menção neste campo. Aliás, como se disse, o primeiro diploma legal a regular esta matéria remonta a 1979, tendo cabido ao DL 483/82 o papel principal. Recorde-se que nos termos do art.º 168.º do Regime Geral, as contraordenações passaram assumir-se através do Direito Processual Penal, estando relacionados com a matéria reservada da Assembleia da República, sendo que nessa altura não se ressentiram dúvidas dessa harmonia (hoje desarmónico). Se estivermos atentos ao pensamento do legislador constitucional, pensemos na letra do pedido de inconstitucionalidade de uma norma ao abrigo do art.º 282º/3, 2ª parte da CRP. É que temos aqui, a afirmação, de que a declaração de uma norma como inconstitucional não afeta o caso julgado, podendo, contudo, ser afastado se o Tribunal Constitucional se entender que a norma declarada inconstitucional se revelou de aplicação menos favorável ao arguido. Nesta esteira, parece que o legislador quis aliar o direito de mera ordenação social ao princípio da proteção da lei de tratamento mais
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favorável, basilar no Direito Penal e com assento, como se sabe, constitucional. Posteriormente, também é conhecido, o facto de, em sede de revisão através da Lei de 1989 ter sido aditado ao artigo 32.º sob a epígrafe «garantias» o então n.º 8 e atual n.º 10, plasmando nos processos de contraordenação os direitos de audiência e de defesa. Desde essa altura, parece clarividente que este direito contenderia com direitos fundamentais e direitos sancionatórios, originando uma espécie de blindagem com a previsão da matéria reservada legislativa. A isto acresce, a (aparente) ausência de hesitação na importação de alguns princípios do Processo Penal para o direito de mera ordenação social. Temos vindo a ser assolados pelas condutas que colidem com a matéria dos direitos à defesa, o que desde logo, nos conduzirá ao raciocínio de que, o Direito sancionatório é um direito - muito ténue – ao Direito Penal, vivendo na retina deste ramo. Escriturando aquele que se conhece como Regime Geral, vigorando entre nós já com alguma longevidade (desde 1983) sentimos a tentação de ouvir o legislador dessa altura, e pegando na nota preambular, caímos nalgumas pistas que, desde então, não soltamos do olhar. Cremos que o nosso legislador se tornou «perito» em mesclar, pois, se por um lado trata de trazer um diploma de enquadramento, por outro lado, lançava já a intenção de sedimentar, clarificar, instituir aquilo que, à data, já resultada da Lei fundamental nesta matéria. Sucede que, para espanto dos olhares mais atentos, o DL 483/82 não se declara como uma verdadeira Lei-Quadro, ou seja, não se trata de uma lei de valor reforçado que, em larga medida possa servir de vinculação em torno do clausulado que dela se faz constar, tratando-se de uma caminhada que, embrionariamente sofreu alguns sobressaltos. Será indiscutível a sua importância, pois passamos a dotar a ordem jurídica nacional de um novo direito sancionatório, que analisado com pormenor, é, no nosso entendimento, distinto (em muitos aspetos) do Direito Penal, distanciando-se do Direito Administrativo, servindo para despenalizar algumas condutas. O panorama nacional encontra (alguma) vantagem em relação a outros ordenamentos5, percorrido que se encontra o trajeto desde 1981. Até o legislador italiano, sem demora, recebe a lei das contraordenações alemã, criando uma lei “um pouco” à sua imagem e semelhança, tal como a nacional. Partindo do Regime Geral, o legislador, em certa medida, apoiou-se “nele próprio” para regular
5 A título exemplificativo, o ordenamento Espanhol com um direito administrativo sancionador, munido de um conjunto de princípios associados a norma de direito administrativo, trazendo uma celeuma significativa. O cenário não é tão diferente em Itália, não existindo propriamente uma contraordenação propriamente dita. Não nos parece, pelo menos em plano nacional, que se possa dizer que não temos um regime consolidado.
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outros sectores de atividade, acabando por conformá-los, atribuindo às suas normas a eficácia de que qualquer conduta violadora seria punida com uma coima. Singelamente, O DL 483/82 confirma a dívida ao «pendor concretamente intervencionista do Estado contemporâneo» conduzindo às conhecidas repercussões em áreas como a economia, saúde, cultura, entre outros. Volvidas algumas décadas, os objetivos mantêm-se plenamente válidos6, reafirmando a existência deste direito de mera ordenação social, confirmando-se a sua magnitude a todas as áreas que o legislador de 1982 pensou, bem ainda muitas outras contemporâneas. Atualmente o regime tem aplicação, não apenas, àqueles sectores que o legislador originário pensou, mas também (e em crescendo), aquilo que de uma forma geral chamamos aos sectores regulados e a outros, como o Direito Fiscal, segurança alimentar, proteção do consumidor, lei dos estrangeiros, estatuto do medicamento. Poder-se-á afirmar que este ramo do Direito está por toda a parte. A vida em 1982 era menos complexa, nem se falava em criminalidade informática, menos ainda de prevenção e hoje, perante o desenvolvimento veloz e feroz de outras realidades exigem da comunidade jurídica um redobrar de atenções. À velocidade cruzeiro com que temos vindo a deparar com as novas realidades, não negamos a curiosidade (necessidade de alargar a investigação a outros ramos de direito). Há efetivamente um problema de (in)definição dos contornos do Direito das Contraordenações, trazendo a necessidade de uma maior objetividade. Em virtude de os conceitos jurídicos não serem unívocos, será inevitável que o trabalho tendencialmente descritivo conduza a tomadas de posição. Sem entramos em grandes detalhes quanto às motivações pessoais, movemo-nos sobretudo, pela seriedade em tentar fortalecer a Academia e a comunidade jurídica. Há uma nova era a emergir, tudo mudou e precisa de todos nós, cada um na sua área disciplinar, tentar contribuir da melhor forma. Somos cada vez mais assolados pela necessidade de prevenção, alargadas às matérias ambientais e ao direito da concorrência e tudo, continua a emergir. Tudo mudou! Toda a reflexão impõe-se. “Todo o argumento permite sempre a discussão de duas teses contrárias, inclusive este de que a tese favorável e contrária são igualmente defensáveis.” – Pitágoras.
6 Não tendo um Estado intervencionista, temos um outro Estado, apelidado por alguma doutrina de «um Estado Regulador ou um Estado Regulatório».
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O BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS E O DESENVOLVIMENTO Miguel Mussequejua1
1. Nota Introdutória O problema do desenvolvimento tem sido colocado como um dos maiores desafios do estado moderno. A localização geográfica, os problemas culturais, as relações internacionais, entre outras exigem que os estados se coloquem na vanguarda do desenvolvimento com vista a assegurar o almejado bem-estar das suas populações. Aliás, a promoção do bem-estar é um dos objectivos do Estado. O investimento privado é normalmente decorrente de determinados grupos económicos cujo interesse real muitas vezes é desconhecido pelo país de acolhimento. Por exemplo, uma rede de tráfico de armas pode decidir construir um hotel numa zona turística, através de um intermediário, com o objectivo final de realizar um exercício de dissimulação da verdadeira origem do capital investido, ficando esta oculta. Assim, passam os lucros de tal actividade a ser havidos como sendo de origem lícita, propiciando-se com efeito que a actividade criminal original floresça e que o país de destino do investimento se mantenha como um receptador de fundos de origem criminosa, não abonando com efeito a reputação do país a nível internacional, bem como prejudicando a concorrência do mercado, pois o investimento realizado com recurso a capital de origem ilícita contrapõe-se aos esforços que os agentes económicos realizam dentro das limitações legais, o que torna tal actividade de dissimulação não só ilegal, mas também injusta.
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Doutorando em Direito pela Universidade do Minho, Mestre em Direito pela Universidade Eduardo Mondlane, Assistente Universitário da Universidade Zambeze e Advogado.
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É, portanto, em linhas gerais este conjunto de discussões que se pretende levar a cabo neste breve artigo, onde faremos uma abordagem teórica de alguns dos principais pontos relativos à linha condutora da nossa reflexão, designadamente do desenvolvimento ao branqueamento de capitais
2. Desenvolvimento O fenómeno da globalização, visto na dimensão de aldeia global tem, desde os finais do séc. XX promovido um conjunto de acções dos estados com vista a uma maior aproximação das suas gentes, nações e respectivas economias. Foi com efeito decorrente da globalização realizada uma abertura dos países, enquanto mercados, para a ideia de uma economia global, onde os estados pudessem, à luz do fim da bipolarização ora referida, negociar livremente entre uns e outros. De facto, com a globalização e consequente a abertura dos mercados nacionais ao mundo, efectivou-se uma clara concorrência entre as nações com o objectivo de se promover, com a maior celeridade, o desenvolvimento económico. Entendido o desenvolvimento numa dimensão de realidade económica, e com a mudança ocorrida na realidade pós 1990 emergiram novos desafios, novos compromissos entre os diversos actores do âmbito económico político e social. Este conjunto de mudanças atingiu também o mundo científico particularmente na área do direito económico e da Economia, onde se viu emergir nesta última um campo de conhecimento com a finalidade de observar, descrever e explicar o fenómeno do desenvolvimento denominado de Economia do Desenvolvimento2. Entretanto, no desenvolvimento deste campo científico coube alguma crítica ao pensamento latino-americano relativo ao conceito de desenvolvimento, com ênfase apenas na evolução do sistema produtivo e de acumulação de capital, sem um olhar para as melhorias das condições sociais da população, contribuíram para que a dimensão social ganhasse relevância no conceito de desenvolvimento. Relativamente ao continente africano o desenvolvimento colocando como paradigma Moçambique, o saudoso economista José NEGRÃO, disse o seguinte:
2 SANTOS, Elinaldo Leal [et all]. “Desenvolvimento: um conceito multidimensional”. Revista Desenvolvimento Regional em Debate, Ano 2, n. 1, jul. 2012, p. 1, disponível em http://www.periodicos.unc.br/index.php/drd, acessos a 20 de Agosto de 2016, p. 49.
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Como induzir o desenvolvimento em África? Deriva daqui que a alternativa viável passa por duas componentes essenciais: (i) a adopção de uma abordagem neo-keynesiana, onde se tem a poupança agregada como determinada e não determinante do investimento, competindo ao sistema bancário o financiamento do investimento o que possibilitará o aumento da poupança através do efeito multiplicador; (ii) a urgência da criação de unidades de intermediação entre o sector financeiro formal e o informal, provedoras de crédito, com vista à inovação tecnológica e consequente desenvolvimento3.
A temática respeitante ao desenvolvimento também conheceu especial atenção por parte de organizações internacionais, tendo sido desde logo referenciado o surgimento da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico)4. No mesmo sentido, nota-se que vários os governos e certas organizações internacionais como ONU, entre outras introduzem instrumentos de medidas para quantificar o desenvolvimento económico5 e social.6 Desde 1990, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)7, tem efectuado um exercício de acompanhamento do desempenho dos países na promoção de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento das pessoas, por meio do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), desenvolvido em 1990 pelos economistas Amartya Sen8-9 e Mahbub ul Haq10. Neste contexto, o desenvolvimento é associado a uma referência de benefícios resultantes do crescimento e que determinam a ampliação das escolhas e das oportunidades do indivíduo, possibilitando uma vida longa, sau3 NEGRÃO, José. “Como induzir o desenvolvimento em África? Reflectindo sobre o Norte de Moçambique”. Revista World Development, 2001, p. 20, disponível em http://pascal.iseg.utl.pt/~cesa/files/Doc_trabalho/61.pdf, acesso a 20 de Agosto de 2016. 4 Como se sabe a OCDE foi criada em 1960 pelos Estados Unidos da América, Canadá e mais dezoito países europeus com vista a promover o o desenvolvimento económico dos países, cf. www.oecd.org., acesso a 12 de Setembro de 2016. 5 OLIVEIRA, Juliana Melo. “Indicadores de desenvolvimento: uma resenha em construção”. Revista de Economia Mackenzie, Volume 8, n. 1, p. 82 e ss. 6 SANTOS. op. cit. p. 55. 7 UNDP. Human Development Report 1990. New York, 1990. 8 MALIK, Khalid. Advancing, sustaining human progress: From concepts to policies, Director. Human Development Report Office, UNDP, Inaugural Mahbub ul Haq-Amartya Sen Lecture, University de Geneve, 2014. 9 SILVA, João Oliveira Correia. Amartya Sen, Desenvolvimento como Liberdade. Disponível em: http://www.fep.up.pt/docentes/joao/material/desenv_liberdade.pdf, acesso a 15 de Agosto de 2016. 10 SANTAGADA, S. Indicadores Sociais: Contexto Social e Breve Histórico. Revista FEE, Porto Alegre, v 20, n 18, p. 245-255, 1993 apud, SANTOS. op cit., p. 54-55.
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dável, com acesso a recursos necessários para um nível de existência digno da geração actual e futura11. A consequência do desenvolvimento seria essencialmente vista a estabilidade de preços, taxas de juros moderadas e taxas de câmbio competitivas, e de políticas industriais que favoreçam as empresas nacionais na concorrência internacional12.
3. Investimento e Desenvolvimento A globalização não deve ser dissociada do desenvolvimento. A crescente perseguição do desenvolvimento promoveu necessariamente uma concorrência entre as nações fazendo com que estas pautassem por atitudes criativas de modo a estabelecer elementos de diferenciação entre umas e outras e assim conseguir perfilhar o almejado crescimento económico13. O desenvolvimento pode resultar com efeito, quer o investimento público, quer do investimento privado14. Relativamente ao investimento público, para além das grandes linhas de investimento directo da administração directa ou autárquica, que se mostram como o principal catalisador da actividade económica intra estadual, encontramos o Sector Empresarial do Estado, que conforme definido no artigo 103 da Lei n.º 7/2012, de 8 de Fevereiro, compreende “todas as unidades produtivas ou comerciais que são maioritariamente participadas pelo Estado e adoptam a forma de organização e funcionamento empresarial ”. É certo que as origens das formas actuais de organização do Estado encontram-se nos serviços públicos económicos entretanto, os mesmos foram sendo transformados ganhando a subsequente autonomia e se destacaram da rigidez da administração directa rumo à empresarialidade propriamente dita, cujo primeiro expoente é a empresa pública, que em Moçambique tem o seu regime ínsito na Lei n.º 6/2012, de 8 de Fevereiro. A actividade económica exercida pelas empresas públicas visa, apoiar os demais sectores do Estado na busca de um caminho pelo desenvolvimento
11 SANTOS. op cit., p. 55. 12 BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. O conceito histórico de desenvolvimento econômico, Textos para Discussão – 157 – EEFGV, 2007, p. 3, disponível em https://core.ac.uk/download/ pdf/6485398.pdf, acesso a 20 de Agosto de 2016, p. 10. 13 BRESSER-PEREIRA. op cit, p. 3. 14 Aqui ver, entre outros, SANTOS, António Carlos [et alii]. Direito Economico. 5ª Edição Revista e Actualizada, Almedina, Coimbra, 2004, p. 142 e ss.
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económico, actuando muita das vezes em sectores estratégicos e sob um regime de exclusividade15. O investimento pode estar ou não sujeito a registo, dependendo da sua origem e montante, independentemente de ser estrangeiro ou nacional. O desenvolvimento pode resultar com efeito, quer o investimento público, quer do investimento privado16.
4. A origem dos capitais Como foi referido acima, o desenvolvimento arrima-se com alguma proeminência no investimento que é realizado pelas diversas entidades com interesse no sector económico, designadamente as que se reproduzem da actividade económica antecedente, bem como as que são resultado da iniciativa económica inicial. Num e noutro caso, reputa-se necessário o estabelecimento de canais lícitos de financiamento tais sejam o acúmulo de capital licitamente adquirido, obtenção de créditos de origem lícita ou acordos comerciais em que os parceiros serão sempre organizações legitimas que operam num quadro de legalidade independentemente do país em que se encontrem. O que sucede entretanto é que pela extrema necessidade de promover o desenvolvimento económico, e apesar do grau de legalidade e compliance17 que ocorre no âmbito institucional público e privado verificam-se algumas falhas18. Estas falhas mostram ou pelo menos promovem uma sensação de improbidade de alguns actores do giro económico onde as suas actividades e principalmente 15 No caso moçambicano encontramos as empresas de telecomunicações (TDM), de electricidade (EDM), de fornecimento de água, de distribuição de combustíveis fósseis (Petromoc) como entidades que terão operado e actualmente operam em regime de actividade económica exclusiva. 16 Aqui ver, entre outros, SANTOS. op. cit., 2004, p. 142 e ss. 17 Aqui assume um papel relevante sobre a legalidade e compliance de operações financeiras respeitantes ao investimento privado. 18 Vide o caso paradigmático da acusação que os departamento de Estado dos EUA listou um proeminente empresário moçambicano como barão de drogas. Nesta situação vê-se uma ligação entre a actividade económica aparentemente lícita e uma acusação gravosa de tomar parte do tráfico de drogas, associado ao alto investimento na actividade económica ora exercida pelo mesmo. Tal acção conforme esclarece o Centro de Integridade Pública em Moçambique, resultou da acção de uma Task Force cuja “constituição dessa task force é enquadrável no direito internacional sobre matéria de narco-tráfico, criminalidade organizada e lavagem de dinheiro. Refere a mesma publicação que Moçambique ratificou (pela Resolução n.° 11/96, de 4 de Maio) a Convenção das Nações Unidas sobre o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas, de 1988, a qual veio reforçar a Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961 e a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, que ja haviam sido ratificadas pelas Resoluções 7/90, de 18 de Setembro, e 8/90, de 12 de Setembro, respectivamente. Os Estados Unidos da América ratificaram a convenção em 1990.”
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as suas fontes de financiamento onde se reputa a possibilidade de terem uma origem ilícita. A reflexão sobre a origem dos capitais funda-se na grande capacidade de criação de riqueza, que algumas actividades criminosas detém. Por exemplo o tráfico de droga gera anualmente mais riqueza que o conjunto das nações mais pobres do mundo. O Fundo Monetário Internacional calcula que todos os anos sejam branqueados a nível mundial cerca de 600 biliões de dólares americanos19. A presença de novas e variadas formas de exteriorização da riqueza deve estar sempre associada a um processo produtivo de riqueza claro e evidente, que, aliás seja inspirador para as gerações vindouras como motivo de orgulho e criador de uma convicção de caminho a seguir – the chosen path. Por isso, hoje o Código Penal aprovado pela Lei n.º 35/2014, prevê o enriquecimento ilícito cujos termos de incriminação se encontram vertidos no artigo 511 do mesmo diploma. O enriquecimento ilícito corresponderá, pelo texto legal, à presença ou detenção a título de propriedade, de património que provadamente não corresponde ao seu rendimento legítimo.
5. Branqueamento de capitais e desenvolvimento Vimos supra que é uma tendência hodierna das nações uma busca permanente de melhores condições existenciais para os seus cidadãos, o que se reconduz ao puramente as várias matrizes conceptuais relativas ao desenvolvimento. Entretanto, o desenvolvimento em causa fundamentalmente é associado somente à sua vertente económica, negligenciando frequentemente a componente humana a se. A Lei n.º 14/2013, de 12 de Agosto, veio aprimorar o regime de combate do branqueamento de capitais em Moçambique. A doutrina tem confluído na definição de branqueamento de capitais. Assim podem-se encontrar por exemplo JORGE GODINHO que o define como “um processo destinado a um certo fim, a ocultação ou dissimulação de um conjunto de características de bens de origem ilícita (origem, localização, disposição, movimentação, propriedade)”, ou mais propriamente, compreende “o processo pelo qual se procura «distanciar» um bem da sua origem ilícita, conferindo-lhe uma aparência lícita ou, por out-
19 DAVIN, João. Criminalidade Organizada e Transnacional, A Cooperação judiciária internacional. Coimbra, Almedina, 2007, p. 39. Sobre o mesmo assunto vide As obrigações do Estado no caso MBS assente no comunicado do CIP (Centro de Integridade Pública) de Moçambique datado de 7 de Julho de 2010, disponível em http://www.cip.org.mz/cipdoc%5C13_As%20Obriga%C3%A7%C3%B5es%20do%20Estado%20no%20Caso%20MBS%20.pdf, acesso a 1 de Agosto de 2016.
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ras palavras, dissimulando a sua origem ilícita”20. Também, ao nível dos Estados Unidos da América, a President’s Comission on Organized Crime, em 1984, definiu o branqueamento de capitais como “the processes by which one conceals the existence, ilegal source or ilegal application of income, and then disguises that income to make it appear legitimate”21. O branqueamento de capitais de capitais cria condições para uma utilização lícita de bens ou produtos obtidos através da prática de factos ilícitos típicos. Para tanto a estratégia utilizada é efectivada a ocultação que consistirá numa dissimulação geral de todo o curso do capital sujeito a tal procedimento ilícito. O desenvolvimento do fenómeno de branqueamento de capitais reflecte alguma internacionalização bem como algum profissionalismo para a sua execução com sucesso nos dias actuais22. Assim sucede porque o branqueamento de capitais tem um mercado internacional, se sobrepondo às fronteiras de modo que se expanda para países onde o desenvolvimento seja um chamariz para a ocorrência de investimentos. Para tanto criam-se grupos aparentemente económicos que se especializam no oferecimento de oportunidades para os grupos criminosos23. É de alguma forma pacífico24 quer na doutrina, quer no âmbito das instituições de controlo financeiro, que o branqueamento de capitais compreende, regra geral, três fases. Há ainda próximo a esta concepção a apresentada pelas NAÇÕES UNIDAS que considera que “o branqueamento de dinheiro é um processo dinâmico, constituído por três etapas, que supõe, primeiramente, a dissociação dos proveitos económicos da infracção de cuja prática resultam, em segundo lugar, o apagar do respectivo rasto para iludir as investigações, e, finalmente, a sua recuperação pelo criminoso, já após ter sido dissimulada a sua origem económica e geográfica”, ou seja, o branqueamento pode compreender
20 GODINHO, Jorge. Do Crime de «Branqueamento» de Capitais – Introdução e Tipicidade. Coimbra, Almedina, 2001, p. 13. 21 Cfr. President’s Comission On Organized Crime, 1984, The cash connection, organized crime, financial institutions and money laundering, apud GODINHO. op. cit., 2001, p. 37. Vide ainda Jay S. ALBANESE. North American Organised Crime, Global Crime, Anderson Publishing, 2011, p. 13-20. E ainda VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Branqueamento (de capitais): da metáfora à legitimidade da incriminação (que tutela jurídico-criminal?)! In: Volume Comemorativo dos Vinte Anos do ISCPSI, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 8–18 22 CORDERO, Isidoro Blanco. El delito de blanqueo de de capitales. Pamplona, Aranzadi Editorial, 1997, p. 52. 23 SAVONA, Ernesto Ugo [et alii]. Organised crime across the borders, Preliminary results. European Institute for Crime Prevention and Control, affiliated with the United Nations, n. 6, 1995. pp. 19-25. 24 Aqui cabe recordar de facto a existência de várias classificações proposta nos anos 90, onde se destacaram Bernasconi, Zünd, Ackerman, Müller.
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três fases25, nomeadamente a colocação – onde se procura de todo o modo introduzir o capital decorrente de práticas criminais – tipificadas na Lei n.º 14/2013, de 12 de Agosto; a camuflagem – nesta fase o que sucede é a ocorrência de sucessivas operações de transferência ou transformação do dinheiro de modo a apagar o rasto do dinheiro26. Na expressão de Isidoro Blanco CORDERO27, são usados profissionais designados cambistas, cuja missão única é realizar as operações de camuflagem da origem dos fundos. Nos dias actuais a camuflagem fica ainda mais facilitada pela existência de regimes de ocultação de identidade dos verdadeiros titulares de fundos, tais são os paraísos fiscais – hoje veja-se os Panamá papers28 e a integração – este momento compreende a utilização dos bens e produtos já branqueados nomeadamente pela aquisição de bens de alto valor económico, designadamente, jóias, viaturas de luxo, imóveis, construção de condomínios, hotéis, órgãos de comunicação social, investimento em actividades económicas. O desenvolvimento não pode entretanto, em circunstância alguma ser a moeda de troca relativamente às pretensões desenvolvimentistas das nações.
Síntese Conclusiva Seguindo o pensamento do economista indiano Amartya Sen29, o desenvolvimento é de facto um direito, uma liberdade que merece ser alcançada por todos os povos, sendo entretanto necessário que se respeite o quadro institucional e legal relativo ao mesmo de modo a evitar que as redes criminosas tentaculares e financeiramente poderosas se apoderem das expectativas das nações e as transformem em pólos de desregramento, conduzindo assim à sua falência. A ausência de um quadro legal adequado para suster as investidas de tais organizações criminosas, que utilizam fundos decorrentes de varias actividades criminosas, desde o tráfico de drogas, de órgãos humanos, corrupção, tráfico de seres humanos, escravatura, entre outros, permite vezes sem conta a ocorrência de casos de branqueamento de capitais nos países que almejam o desenvolvimento. 25 Ver GIFIM www.gifim.org. no mesmo diapasão ainda Jorge GODINHO. Do Crime de «Branqueamento» de Capitais – Introdução e Tipicidade. Coimbra, Almedina, 2001, p. 39 e ss. 26 DUARTE, Jorge Manuel Vaz Monteiro Dias. Branqueamento de Capitais. O regime do DL. 15/93, de 22 de Janeiro e a Normativa Internacional. Porto, Publicações Universidade Católica, 2002, p. 33-39. 27 BLANCO. op. cit. p. 80. 28 Os Panamá papers, constituem uma publicação de um consórcio internacional de jornalistas que expôs diversas personalidades mundiais numa rede clara de manifestação de branqueamento de capitais através do uso de milhares de empresas offshore localizadas no mesmo escritório de advogados Mossack Fonseca. 29 SILVA. op. cit., p. 5.
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Tal ocorrência muitas vezes decorrerá também pela fragilidade das entidades de administração da justiça. A indução do desenvolvimento sendo necessária, deve conformar-se com o quadro jurídico normativo vigente num dado Estado de modo a evitar as arritmias do mercado e como consequência directa a perturbação dos sistemas económicos, a corrupção do Estado e por fim a sua definitiva lesão. O Estado de Direito Democrático e as suas instituições devem funcionar sem qualquer condicionalismo e acima de tudo sem qualquer interferência dos actores dos mercados ilícitos. É por isso fundamental a referência de que o Estado não se acha isento de tentativas de sua captura por parte da criminalidade organizada, devendo, com efeito, dispor de meios de autodefesa de natureza jurídica e assim aquilatar-se aos padrões de eficácia contra as elites de tal tipo de criminalidade que progressivamente se aproveitam das fragilidades que vislumbram nas instituições democráticas. Só assim que se poderá evitar que os tentáculos dos agentes de branqueamentos de capitais se sobreponham aos Estados evitando assim a sua captura.
Bibliografia ALBANESE, Jay S. North American Organised Crime. Global Crime, Anderson Publishing, 2011. CORDERO, Isidoro Blanco. El delito de blanqueo de de capitales. Pamplona, Aranzadi Editorial, 1997. DAVIN, João. Criminalidade Organizada e Transnacional, A Cooperação judiciária internacional. Coimbra, Almedina, 2007. GODINHO, Jorge. Do Crime de «Branqueamento» de Capitais – Introdução e Tipicidade. Coimbra, Almedina, 2001. HEUNI Papers, The European Institute for Crime Prevention and Control, affiliated with the United Nations, n. 6, 1995. pp. 19-25. DUARTE, Jorge Manuel Vaz Monteiro Dias. Branqueamento de Capitais. O regime do DL. 15/93, de 22 de Janeiro e a Normativa Internacional. Porto, Publicações Universidade Católica, 2002. SAVONA, Ernesto Ugo [et alii]. Organised crime across the borders, Preliminary results. European Institute for Crime Prevention and Control, affiliated with the United Nations, 1995.
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Revistas e outros documentos electrónicos BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. O conceito histórico de desenvolvimento econômico, Textos para Discussão – 157 – EEFGV, 2007, p. 3, disponível em https://core.ac.uk/download/pdf/6485398.pdf, acesso a 20 de Agosto de 2016. CIP (Centro de Integridade Pública) de Moçambique, comunicado disponível em: http://www.cip.org.mz/cipdoc%5C13_As%20 Obriga%C3%A7%C3%B5es%20do%20Estado%20no%20Caso%20MBS%20. pdf, datado de 7 de Julho de 2010 intitulado, acesso a 1 de Agosto de 2016. MALIK, Khalid. Advancing, sustaining human progress: From concepts to policies, Director. Human Development Report Office, UNDP, Inaugural Mahbub ul Haq-Amartya Sen Lecture, University de Geneve, 2014, disponível em: http:// hdr.undp.org/sites/default/files/malik_mahbubulhaqlecture_2014.pdf, acesso a 28 de Agosto de 2016. NEGRÃO, José. “Como induzir o desenvolvimento em África? Reflectindo sobre o Norte de Moçambique”. Revista World Development, 2001, p. 20, acessível em http://pascal.iseg.utl.pt/~cesa/files/Doc_trabalho/61.pdf, acesso a 20 de Agosto de 2016. OLIVEIRA, Juliana Melo. “Indicadores de desenvolvimento: uma resenha em construção”, Revista de Economia Mackenzie, Volume 8, n. 1., disponível em: http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/rem/article/view/1459, acesso a 25 de Agosto de 2016.
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SANTOS, Elinaldo Leal [et all]. “Desenvolvimento: um conceito multidimensional”. Revista Desenvolvimento Regional em Debate, Ano 2, n. 1, jul. 2012, p. 1, disponível em http://www.periodicos.unc.br/index.php/drd, acessos a 20 de Agosto de 2016. SILVA, Tadeu Silvestre da. “Notas sobre a economia Ricardiana”. Revista Pensamento e Realidade, Ano VI, Nº 13, 2003, disponível em: http://revistas.pucsp. br/index.php/pensamentorealidade/article/viewFile/8462/6274, acesso a 19 de Agosto de 2016. SILVA, João Oliveira Correia. Amartya Sen, Desenvolvimento como Liberdade, disponível em: http://www.fep.up.pt/docentes/joao/material/desenv_liberdade. pdf, acesso a 15 de Agosto de 2016. UNDP. Human Development Report 1990. New York, 1990, disponível em: http://www.gifim.gov.mz/, acesso a 22 de Agosto de 2016.
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PERSONALIDADE E IDENTIDADE INFORMACIONAL NO CONTEXTO DA PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS: UMA ANÁLISE LUSO-BRASILEIRA Raphaela Sant´Ana Batista Toledo1
1. Nota Introdutória O exercício dos direitos de personalidade está relacionado com a autonomia de cada indivíduo, sendo, pois, pré-requisito para o exercício dos direitos da personalidade no plano jurídico. Nesse contexto, em primeiro lugar, faz-se necessário delimitar, enquanto objeto de investigação circunscrito à ideia de autodeterminação informativa, um conteúdo mínimo atribuível à personalidade exercida num ambiente informacional, analisando, inclusive, a natureza jurídica desses bens jurídicos que compõem o núcleo existencial da personalidade humana categorizados enquanto direitos fundamentais. As questões enfrentadas pelos tribunais parecem, pois, orbitar em torno da necessária preservação da esfera da autonomia da vida privada por um lado, envolvendo questões relativas ao sigilo de dados pessoais na internet e a reparação civil pelo uso indevido de dados pessoais diante da publicação e disseminação de informações pessoais atinentes à honra, ao nome e à vida privada das pessoas.
1 Doutoranda em Direito pela Universidade do Minho, na linha de pesquisa Ciências Jurídicas Gerais. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Professora Titular Adjunta dos cursos de Direito do Centro Universitário Tiradentes (Brasil) e Centro Universitário Cesmac (Brasil).
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Noutro passo, num contexto informacional, ganham relevância também direitos relacionados com a garantia das liberdades de informação – de informar sobre si e de ser informado, assim como de exercer controle sobre as informações pessoais difundidas, o que vem sendo delineado como um critério de autodeterminação informacional2. Desta feita, pretende-se que a presente investigação permita analisar um conteúdo mínimo atribuível à personalidade sob a perspectiva do direito à autodeterminação informacional enquanto direito decorrente desta personalidade e quanto manifestação desta personalidade em ambiente virtualizado. A partir desta perspectiva, impende analisar, ainda, uma conceituação dos dados pessoais e sua proteção enquanto exercício da própria personalidade ou enquanto manifestação de direitos inerentes a esta personalidade. Pretende-se, portanto, uma análise, num plano ontológico, do que vem a ser a personalidade informacional e quais são os bens ou atributos que compõem a personalidade informacional enquanto manifestação individual numa ambiência em rede virtualizada, tendo em vista que a personalidade, vista sob o plano dos direitos da personalidade, confere não somente a atribuição individual e intransferível de ser a pessoa titular de direitos e obrigações, como se refere ao direito subjetivo conferido à pessoa de defender aquilo que lhe é próprio. Portanto, há a necessidade de ao menos lançar luzes e problematizar não somente a necessidade de garantia da preservação de direitos de personalidade relacionados com a exposição da imagem e da intimidade dos indivíduos, mas também o reconhecimento de uma identidade informacional que permita uma autodeterminação do indivíduo e o exercício de direitos relacionados com a personalidade estendidos a um ambiente virtualizado. Diante disso, impende questionar qual a natureza da personalidade informacional enquanto extensão da personalidade humana, sendo necessário, para tanto, diferenciar conceitos jurídicos relativos à matéria tais como identidade informacional, proteção de dados pessoais e personalidade informacional. Para tanto, acredita-se que o direito de se autodeterminar num contexto de rede decorre da extensão da própria personalidade humana exercida por meio de uma plataforma virtual e dos direitos ou bens que decorrem desta personalidade. A proteção de dados pessoais, aqui considerada, servirá como instrumento de análise da tutela protetiva aos bens da personalidade exercidos em ambiente virtualizado ou informacional. Vale ponderar, de início, que a expressão “dados pessoais” que são de objeto de proteção, ao invés de centrar-se apenas na ideia de guarda e tratamento de dados constantes em bancos de informações pessoais e ficheiros a serem objeto de tratamento por terceiros responsáveis, deve 2 Pedro PINA, <<Direitos de autor, autodeterminação informativa e panoptismo digital>>, in Direito da Sociedade da Informação, vol. VIII, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p.16.
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Personalidade e identidade informacional no contexto da proteção de dados pessoais: uma análise luso-brasileira
ser enxergado sob um prisma mais amplo, a abranger qualquer relação por meio da qual se promova o tratamento de dados relativos a um indivíduo. Isso porque as relações jurídicas estabelecidas por meio informatizado superam a questão relativa à coleta e tratamento de dados pessoais disponibilizados pelo usuário em rede. Mais do que isso, num contexto de amplíssimo alcance das redes sociais, por exemplo, a simples disponibilização de dados através de perfis relacionais escapa à proteção de bens de caráter extrapatrimonial relacionados com a personalidade, tais como a intimidade, a imagem e a honra. Este conceito, quando integrado ao de autodeterminação informacional, sugere que o indivíduo possua a liberdade de se autodeterminar de acordo com o que informa ou sobre o que é informado. Diante da discussão ora proposta, tem-se que uma análise da personalidade para os objetivos aqui expressados, perpassa por uma breve análise histórica acerca do instituto jurídico da personalidade e que se orienta por um revolvimento do próprio processo de codificação e sistematização do Direito Privado ao longo dos anos. Passa, ainda, pela concepção, no Direito Civil, da personalidade como sendo composta por dois sentidos ou atribuições: a capacidade ou designação genérica de ser o indivíduo titular de direitos e obrigações, bem como os direitos subjetivos dados à pessoa para defender aquilo que lhe é próprio3, ou seja, a sua personalidade, bem como os bens inerentes a ela. No Direito Romano, a caracterização da pessoa – assim como os direitos relativos a esta personalidade - era restrita aos indivíduos que obtivessem os status libertatis, status civilitatis e status familiae4, não havendo, pois, um pleno reconhecimento estendido a todos que não possuíssem liberdade e cidadania. Na Idade Média, sobretudo durante o período de destaque do feudalismo, o papel da pessoa humana enquanto figura de proteção e tutela pelas normas jurídicas restou relegado a uma regulação de cunho eminentemente patrimonialista, de modo que o atributo de pessoa também não era conferido a todos. Por óbvio, esta ainda era uma abordagem e reflexão que praticamente desconhecia a subjetividade do indivíduo, cabendo ressaltar que o sentido atribuído à noção de pessoa como ente dotado de subjetividade apenas surgiu por influência cristã, como perceptível pela influência das obras de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, diante da ruptura com a tradição clássica e a instauração da doutrina de Salvação da Igreja e o contrato pessoal para a submissão às regras divinas.
3 Maria Helena DINIZ, Curso de Direito Civil Brasileiro, 24ª edição, 1º volume, São Paulo, Saraiva, 2011, p. 133 e 134. 4 Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 47.
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Uma maior atribuição no que pertine à personalidade jurídica e o reconhecimento dos direitos de personalidade se devem às doutrinas germânica e francesa entre os séculos XVI ao XX. Durante este longo período nasceu o gérmen dos direitos de personalidade enquanto direitos subjetivos, muito embora esta ideia não sido aceita inicialmente em razão de não poder ser admitido um direito ínsito ao homem sobre a própria pessoa. Assim, a ideia de direitos de personalidade não obedecia a um mínimo de logicismo tendo em vista que não se poderia admitir um direito ao ser homem ao mesmo tempo em que a assunção da personalidade importaria num ter direitos relacionados a ser juridicamente uma pessoa. Em relação ao processo de codificação do Direito Privado, assume proeminência o Code Napoleon e seu caráter racionalista e liberal em relação à regulação que atendia, basicamente, às relações intersubjetivas e entre os indivíduos para com os seus bens, assumindo uma forte preocupação patrimonial decorrente das relações obrigacionais, representada pela dedicação do código à disciplina jurídica da propriedade em mais de oitenta por cento dos seus dispositivos5. A pouca intervenção estatal nas relações privadas e uma exarcebação da autonomia individual fizeram com que a personalidade, no plano da regulação em direito privado, fosse resumida à caracterização da pessoa como sendo aquela que detinha a aptidão genérica de titularizar direitos e obrigações, com uma feição de proteção de cunho essencialmente patrimonialista. A legislação portuguesa sofreu grande influência romano-germânica no que diz respeito à sistematização do direito privado, tendo Dom João I implementado em Portugal o Corpus Juris Civilis como direito subsidiário, além de, posteriormente, terem as Ordenações Afonsinas e Manuelinas6 terem influenciado substancialmente o anteprojeto do Código Civil Brasileiro de 1916, este sob a influência de Teixeira de Freitas no projeto definitivo proposto por Clóvis Beviláqua, que trouxe em suas raízes uma preocupação essencial à época de proteção de índole patrimonial nas relações privadas7. Após a Segunda Grande Guerra, e dos destroços de ordem social provocados por sua ocorrência, além do desenvolvimento tecnológico em crescente avanço, trouxeram inúmeras interferências na vida privada dos indivíduos. Some-se a isso as mudanças já operadas no constitucionalismo e a previsão nas 5 Eugênio FACCHINI NETO, A constitucionalização do direito privado, Revista do Instituto de Direito Brasileiro, Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano 1, nº 1, 2012, p 212. 6 J. C. Moreira ALVES, Panorama do Direito Civil Brasileiro: das Origens aos dias atuais, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1993, p. 188, disponível em https://www. revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67220/69830 , acesso em 28/07/2017. 7 Carlos Alberto BITTAR, Os direitos da personalidade, 5ª Edição, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001, p. 19.
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cartas constitucionais escritas, desde a Constituição Alemã de Weimar de 1919, a qual passou a incluir um catálogo não só de direitos fundamentais individuais, mas sociais, exigindo-se uma atuação positiva do Estado, inclusive na vida privada, de modo a deslocar o eixo de proteção para a pessoa humana8. Diante do que se pode considerar como um processo de constitucionalização das relações privadas e, ao mesmo tempo, de despatrimonialização do direito privado9, tem se que o instituto da personalidade passou a ser regulado, diante da previsibilidade da dignidade humana como fundamento central da proteção constitucional, num autonomizado bem jurídico que passou a ser tutelado não somente como uma aptidão genérica de figurar como sujeito de direitos a partir de um determinado marco inicial previsto da legislação – o nascimento com vida -, mas, também, como um conjunto de bens jurídicos inerentes à esta aptidão, os chamados direitos de personalidade. Sendo assim, a personalidade se refere tanto à capacidade jurídica de titularizar direitos e obrigações na ordem civil – consoante os arts. 66º e 67º do Código Civil Português, bem como o art. 2º do Código Civil Brasileiro -, como também se refere a um conjunto de autonomizados bens jurídicos decorrentes da personalidade e que compõem a sua esfera de proteção. Não por outro motivo, o Capítulo II referente aos direitos de personalidade somente foram incluídos no Código Civil Brasileiro de 2002 – pós Constituição Federal de 1988 – visto que o Código Civil de 1916 não trazia tal previsão por influências das ideias liberais e patrimonialistas dos diplomas privatísticos vigentes à época. Após esta breve digressão histórica, é possível perceber que a personalidade jurídica atribuível ao indivíduo é consubstanciada em dois sentidos, a partir dos quais é construída. Quanto à capacidade de titularizar direitos e obrigações, esta tem clara previsão legislativa, inclusive quanto ao seu marco inicial de tutela e proteção. Noutro passo, os direitos de personalidade assumem certo caráter contingencial na medida em que traduzem-se em bens jurídicos que em um dado momento histórico, social e cultural representam aquilo que, inerente à personalidade humana, deve ser protegido9. Nesse sentido, Capelo de Sousa define os direitos de personalidade como sendo “subjetivos, privados, absolutos, gerais, extrapatrimoniais, inatos, perpétuos, intransmissíveis, relativamente indisponíveis, tendo por objeto os bens e as manifestações interiores da pessoa humana, visando tutelar a integridade e o desenvolvimento físico e moral dos indivíduos e obrigando todos os sujeitos 8 Gustavo TEPEDINO, Temas de Direito Civil, 3ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2004, p. 50 9 Eugênio FACCHINI NETO, Op. Cit, p. 218. 9 Rabindranath V. A. Capelo de SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 56.
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de direito a absterem-se de praticar ou deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender a personalidade alheia sem o que incorrerão em responsabilidade civil e/ou na sujeição às providências cíveis adequadas a evitar a consumação da ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa cometida”10. Diante dessa natureza contextual que assumem os direitos de personalidade, tem se que a conceituação da personalidade se dá a partir dos bens que a compõem num dado espaço de tempo, tendo em vista que “o conteúdo da ideia de personalidade vem intencionado em função da resolução de problemas jurídicos concretos” 11. Em apertada síntese, Capelo de Sousa enfrenta os direitos de personalidade como sendo “o conjunto autónomo, unificado, dinâmico e evolutivo dos bens integrantes da sua materialidade física e do seu espírito reflexivo, sócio-ambientalmente integrados”12. A complexidade, pois, de situar o direito à proteção de dados pessoais enquanto direito subjetivo decorrente da personalidade se dá na análise e investigação se é ou não a personalidade informacional um instituto distinto de personalidade ou se é, pois, a personalidade jurídica do indivíduo manifestada sob um novo espectro ou nova realidade a partir dos bens que a compõem, no caso, num ambiente virtualizado. De início, é possível se referir à personalidade informacional como sendo um conjunto de bens da personalidade atribuídos à condição do indivíduo poder se autodeterminar de acordo com suas informações e dados pessoais disponibilizados em rede. A autotedeterminação informacional é um conceito-chave que permite identificar uma garantia e liberdade fundamentais que permitem ao indivíduo uma proteção de ordem negativa, de modo a impedir ingerências indevidas na esfera privada por parte de outros indivíduos, assim como uma outra feição de ordem positiva, que permite à pessoa exercer efetivo controle e liberdade sobre os dados que pretenda disponibilizar virtualmente. Com isso, evita-se que a pessoa se transforme em mero “objeto de informações”, atribuindo um poder de dispor de suas informações pessoais, preservando, assim, a sua própria identidade informacional13.
10 Rabindranath V. A. Capelo de SOUSA, Op. Cit, p. 58. 11 Diogo Costa CONÇALVES –, Pessoa e direitos da personalidade: fundamentação ontológica da tutela, Op. cit., p. 108. 12 Rabindranath V. A. Capelo de SOUSA, Op. Cit., p. 72. 13 Catarina SARMENTO, <<O direito à autodeterminação informativa e os novos desafios gerados pelo direito à liberdade e à segurança no pós 11 de setembro>>, in Derecho constitucional para el siglo XXI: actas del VIII Congreso Iberoamericano de Derecho Constitucional, Madrid, Editorial Aranzadi, 2006, p. 1639-1662.
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A proteção de dados pessoais, nesse contexto, além de objeto de proteção no âmbito regulatório, oferece sua tutela de proteção como garantia dos bens da personalidade que compõem o que se pode chamar de personalidade informacional. A proteção de dados, embora tenha contornos mais bem definidos no âmbito da União Europeia e na legislação portuguesa, no Brasil ganha sua proteção em razão da salvaguarda conferida aos direitos à privacidade, à honra e à vida privada transportados a questões de violação a esses direitos na internet14. Algumas incompatibilidades em relação aos bens que vêm a compor a personalidade informacional e a caracterização clássica dos direitos de personalidade podem ser verificadas para melhor e necessária análise. A primeira delas se dá em razão do caráter extrapatrimonial dessa categoria de direitos. Há de se ressaltar que muitos perfis relacionais em redes sociais, por exemplo, são dotados de extremo caráter econômico em razão das repercussões de ordem financeira que possam ensejar, na medida em que se traduzem não somente em expressão pessoal de seu titular, mas num meio de exposição comercial da sua imagem ou de produtos e num modo de travar relações comerciais e exercer influência na rede, e cuja violação pode e deve ensejar a necessária reparação. Tem-se, pois, que este atributo ou característica dos direitos da personalidade se refere à possibilidade de mensuração de um valor econômico atribuível a tais direitos ou à própria personalidade, o que difere da possibilidade de repercussões financeiras decorrentes da violação a esses bens, o que não descaracteriza, por si só, a extrapatrimonialidade. Não se pode negar, portanto, que uma violação desta natureza repercute numa violação direta à identidade e à personalidade informacionais deste indivíduo, no âmbito da extrapatrimonialidade, maculando a sua liberdade de dispor efetivamente das informações que lhe digam respeito. Um segundo atributo seria o caráter absoluto ou a oponibilidade erga omnes dos direitos de personalidade. Tal questionamento se faz necessário em razão de o Regulamento 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho que regula a proteção de dados pessoais no âmbito da União Europeia dispor categoricamente que a proteção de dados pessoais é um direito fundamental de caráter não absoluto. Assim, tem-se que distinguir a absolutividade dos direitos 14 A proteção de dados ganha contornos diferenciados no Brasil e em países da União Europeia, submetidos a regras comunitárias a exemplo das diretivas e regulamentos do Parlamento Europeu, como é o caso de Portugal.No caso brasileiro, a proteção de dados está circunscrita no âmbito de proteção da inviolabilidade da intimidade e proteção da vida privada, na medida em que não há regulamentação específica sobre a matéria embora o país pareça ainda caminhar nesta direção. Nesse sentido, DONEDA, Danilo – Da privacidade à proteção de dados pessoais, Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 407.
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de personalidade enquanto característica que impõe um dever negativo de observância de tais direitos por terceiros15 de um lado, e do outro o caráter não absoluto da fundamentalidade da proteção de dados pessoais, tendo em vista que sua aplicação deve observar um equilíbrio e razoabilidade em relação a outros direitos igualmente fundamentais. Noutro passo, como traçado em linhas anteriores, ainda que comumente se atribua uma feição negativa à tutela da personalidade, consubstanciada num dever de abster-se de atos atentatórios aos direitos ou bens de cunho personalíssimo, uma tutela da personalidade informacional, em função de seu dinamismo, reclama um conteúdo mais extenso e, portanto, de ordem positiva, no sentido de garantir aos indivíduos não somente uma proteção contra ingerências indevidas relacionadas à sua esfera privada, mas também a liberdade de controle de suas informações pessoais difundidas sob qualquer forma. Com efeito, uma conceituação atribuível à personalidade, em razão dos bens que tal instituto protege, se dá em função da interpretação dada ao instituto em razão dos problemas jurídicos concretos enfrentados pelo Direito todos os dias. Em razão disso, buscou-se enxergar a personalidade à luz dos bens jurídicos que orbitam em torno de um poder individual de autodeterminação informativa, ou seja, da liberdade e autonomia dos indivíduos não só de terem protegidas as suas informações, mas de efetivamente exercer controle sobre as mesmas. Assim, a personalidade informacional traduz-se numa manifestação de efeitos jurídicos relativos aos bens da personalidade relacionáveis a um contexto de sociedade em rede e exercidos num ambiente diferenciado que é o ambiente virtual, e que, por isso, reclama uma adaptação dos institutos jurídicos de modo a preservar a segurança, estabilidade e o livre exercício de direitos individuais. Para tanto, a legislação brasileira quanto a regulação existente no âmbito da União Europeia e, especificamente no caso de Portugal, preveem um imperativo geral de segurança e estabilidade nas relações travadas por meios eletrônicos oponível aos responsáveis por tratamentos de dados pessoais, o que inclui os responsáveis por serviços de redes sociais. Esse imperativo de segurança gera um dever de proteção dos dados pessoais contra investidas ilícitas no âmbito da personalidade informacional que, caso não observado, coloca os indivíduos numa posição de extrema vulnerabilidade em rede. Esse quadro ainda se agrava em se tratando da violação de direitos de cunho extrapatrimonial que podem repercutir em prejuízos de ordem patrimonial incalculáveis, como é o caso da utilização de perfis informacionais com fins econômicos, cada vez mais usuais nos dias de hoje, em que as relações sociais virtuais se dão num nível mais frequente e intenso. 15 Pablo Stolze GAGLIANO; Rodolfo PAMPLONA, Novo curso de Direito Civil , vol. 1, 19ª Edição, São Paulo, Saraiva, 2017, p. 208.
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Deve-se ter em mente que, em razão do seu caráter dinâmico, a tutela da personalidade informacional sugere que tal instituto deve ser tratado como um bem jurídico autônomo e de conteúdo diferenciado de outros bens da personalidade, tais como a intimidade e a honra, e por isso mesmo devem ter tratamento distinto.
Referências Bibliográficas BITTAR, Carlos Alberto, Os direitos da personalidade, 5ª Edição, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001. CASTRO, Catarina Sarmento e, <<O direito à autodeterminação informativa e os novos desafios gerados pelo direito à liberdade e à segurança no pós 11 de setembro>>, in Derecho constitucional para el siglo XXI: actas del VIII Congreso Iberoamericano de Derecho Constitucional. Madrid, Editorial Aranzadi, 2006, p. 1639-1662. DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, 24ª edição, 1º volume, São Paulo, Saraiva, 2011. DONEDA, Danilo, Da privacidade à proteção de dados pessoais, Rio de Janeiro, Renovar. FACCHINI NETO, Eugênio, <<A constitucionalização do direito privado>>, Revista do Instituto de Direito Brasileiro, Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano 1, nº 1, 2012. GONÇALVES, Diogo Costa, Pessoa e direitos da personalidade: fundamentação ontológica da tutela, Coimbra, Almedina, 2008. ALVES, J. C. Moreira, Panorama do Direito Civil Brasileiro: das Origens aos dias atuais, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1993, p. 188, disponível em https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67220/69830 , acesso em 28/07/2017. PINA, Pedro, <<Direitos de autor, autodeterminação informativa e panoptismo digital>>, in Direito da Sociedade da Informação, vol. VIII, Coimbra Editora, Coimbra, 2009. SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de, O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 2011.
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STOLZE Pablo; PAMPLONA, Rodolfo, Novo Curso de Direito Civil, vol. 1, 19ª edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2017. TEPEDINO, Gustavo, Temas de Direito Civil, 3ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2004.
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Título
Encontro de Investigadores da Escola de direito da Universidade do Minho 2017
Edição
Escola de Direito da Universidade do Minho
Comissão Organizadora
Larissa Coelho | Ana Carolina Cohen | Raphaela Toledo
Apoio
JusGov - Centro de Investigação em Justiça e Governação
Data
Junho 2018
ISBN
978-989-99766-6-5