Dossie Brasilia

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rediscutida Símbolo de ruptura com o Brasil velho, Brasília, quase meio século depois de criada, reafirma a possibilidade de uma nova prática urbanística Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle


Ricardo Labastier

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Brasília (no Plano Piloto) é um caso de urbanismo racionalista onde não há lugar para a anarquia da cidade espontânea

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ruto da determinação de Juscelino Kubitschek, realizava-se em 18 de abril de 1956 o concurso para o Plano Piloto da nova capital brasileira, cuja proposta vencedora de Lucio Costa, para quem a nova arquitetura e as transformações sociais faziam parte de um mesmo projeto, concretizaria o ideal urbanístico da cidade funcional do Movimento Moderno. No urbanismo racionalista de Brasília não há lugar para a anarquia da cidade espontânea onde a falta de planejamento O presidente gera o caos urbano e multiplica ma- Juscelino Kubitscheck les como esgotamento dos equipamentos urbanos e de infra-estrutura, o congestionamento do tráfego, a ausência de áreas verdes, de luz, de ar, a poluição ambiental, visual e sonora, e principalmente a cosmética urbana da ornamentação dos edifícios. Símbolo de ruptura com o Brasil velho, em Brasília nasce a possibilidade de uma nova prática urbanística. Idealizada para 500 mil habitantes (hoje com mais de 2 milhões) e concebida como um imenContinente abril 2006

so parque com extensos gramados e generosas áreas livres, Brasília rompe com o conceito da cidade tradicional de ruas, quarteirões e lotes. Lucio Costa, mais do que um plano urbanístico, propõe uma nova maneira de viver e de morar, que tira partido da imensidão da paisagem belíssima do cerrado onde edifícios de seis a oito pavimentos são distribuídos em espaços fluídos e amplos cheios de luz e verde e de horizontes. Estigmatizada pela crítica como cidade artificial, recebe de Clarice Lispector Reprodução uma defesa fulminante em sua crônica “Abstrata Brasília Concreta”: “Brasília é tão artificial quanto devia ter sido o mundo, quando foi criado”. O plano de Lucio Costa, estruturado no traçado de dois grandes eixos – cardum e decumanum –, a exemplo das cidades imperiais romanas, é essencialmente clássico e traz ainda a pureza, simetria e regularidade geométrica presente nas cidades ideais renascentistas, sendo entretanto moderna e contemporânea ao atender às doutrinas urbanísticas da Carta de Atenas (habitar, trabalhar, cultivar o corpo e o espírito, circular), documento resultante do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna de 1933.


Julieta Sobral/Reprodução do livro Brasília Abstrata Concreta

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Lucio Costa, mais do que um plano urbanístico, propunha uma nova maneira de viver e de morar

Críticas desautorizadas e arbitrárias referem-se à monumentalidade de Brasília como uma associação com o autoritarismo. Pura desinformação. A monumentalidade tem sido usada desde a antiguidade por regimes políticos de ideologia e orientação diversas para expressar o poder (religioso, político ou econômico) na forma urbana e arquitetônica das cidades. O absolutismo real em Versailles, o império colonial britânico em Nova Dehli, a “vitória do socialismo” (sic) em Bucareste ou as democracias de Washington e Canberra são alguns dos numerosos exemplos de cidades capitais que exibem desenho urbano, espaços e edifícios de escala monumental para simbolizar os rituais políticos dos centros de poder. Não esqueçamos que em 1989 François Mitterrand celebrou grandiosa e espetacularmente o bicentenário da Revolução Francesa, com uma nova Paris de arquitetura monumental, arrojada e contemporânea. Como tal, em Brasília, em seu eixo monumental uma grande ênfase é dada aos edifícios públicos representativos dos poderes que governam a nação brasileira. Afinal não se estava planejando um mercado ou centro de compras, nem tampouco se estava construindo uma cidade de província e, sim, o centro político de uma nação. Monumental, segundo Lucio Costa, “não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão pal-

pável, por assim dizer, consciente daquilo que vale e significa. Cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, capaz de tornar-se, com o tempo, além de centro de governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos do país”. A monumentalidade de Brasília celebra a nação brasileira e a identidade nacional e não é um capricho ou vaidade pessoal de um rei ou do culto de personalidade de ditadores totalitários. Em Brasília não há palácios para déspotas como Hitler, Stalin, Kim-IlSung, Ceausescu ou Saddam Hussein. Para Lucio Costa, a Praça dos Três Poderes é o Versalhes do povo e Brasília “foi concebida e nasceu como capital democrática e a conotação de cidade autocrática que lhe pretenderam atribuir, em decorrência do longo período de governo autoritário, passará”. O golpe de 1964, que instalou por 20 anos a ditadura militar no Brasil, usurpa não só o poder legítimo da democracia brasileira como se apropria de Brasília transformando-a no centro da arbitrariedade e da autocracia de generais truculentos que desvirtuaram as intenções do plano de Lucio Costa, acentuando tremendamente a desigualdade e a segregação social. Na Memória Descritiva do Plano Piloto, é clara a preocupação social do urbanista: “Deve-se impedir a enquistação de favelas tanto na Continente abril 2006

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Reprodução

periferia urbana quanto na rural. Cabe à Companhia Urbanizadora prover dentro do esquema proposto acomodações decentes e econômicas para a totalidade da população”. Ao contrário do previsto, os candangos (palavra oriunda do quimbundo kangundu, que segundo Hoaussis significa vilão, ordinário, ruim), denominação dada aos também brasileiros, na maioria oriundos do Nordeste, que construíram Brasília, foram os primeiros a serem segregados em guetos nas inúmeras cidades-satélites que rapidamente proliferaram em torno da capital, algumas como Taguatinga, já em 1958. Ao urbanismo moderno vem juntar-se a beleza plástica da arquitetura insólita de Oscar Niemeyer que produz obras líricas de concreto como a Capela Nossa Senhora de Fátima de 1958 (com afrescos de Volpi, infelizmente destruídos e azulejos de Athos Bulcão) e o Palácio dos Arcos, e o paisagismo exuberante de Roberto Burle Marx ao lado de numerosas esculturas de artistas como Alfredo Ceschiatti (autor de Os Candangos), Bruno Giorgio, Brecheret, entre outros. Era a afirmação da arte e arquitetura brasileira no panorama internacional que também atrairia a crítica furiosa (invejosa?) de Robert Hughes que a chama de utopian horror. Como bem disse Lucio Costa já em 1959: “já não exportamos apenas café,

Imagem de satélite do Plano Piloto Continente abril 2006

açúcar e cacau – damos também um pouco de comer à cultura universal”. A pedido do presidente Juscelino Kubitschek, a Sinfonia da Alvorada, depois conhecida como Sinfonia de Brasília, dividida em 5 partes – o planalto deserto; o homem; a chegada dos candangos; o trabalho e a construção; e, o coral – é composta por Tom Jobim e Vinícius de Morais em 1960. Era o Brasil moderno explodindo numa sinfonia rara e bela de arquitetura, urbanismo, artes plásticas, música e poesia. O reconhecimento das qualidades urbanísticas e arquitetônicas de Brasília como marco contemporâneo representativo do Movimento Moderno é consagrado em 1987, quando a Unesco a inscreve como Patrimônio Cultural da Humanidade. No Brasil, entretanto, somente em 1990, o governo federal vem reconhecer e proteger a cidade capital através de seu tombamento pelo Iphan como monumento nacional, quando Brasília já é mundialmente aclamada como uma das grandes realizações do urbanismo e arquitetura do século 20. “Deixem Brasília crescer tal como foi concebida, como deve ser – derramada, serena, bela e única”. (...) Não vale a pena visitar Brasília, se vocês já têm opinião formada e idéias civilizadas preconcebidas. Fiquem onde estão.” Este é o desejo de Lucio Costa •


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O homem que calculava

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ernambucano, nascido no Bairro do Zumbi em 1897, o matemático, engenheiro estrutural, poeta e artista plástico Joaquim Cardozo foi convidado, em 1941, por Oscar Niemeyer para calcular as obras da Pampulha, em Minas, iniciando uma parceria de gênios que permitiu trazer para o concreto a imaginação plástica e a liberdade de expressão do arquiteto que se afasta da rígida linguagem funcionalista européia, transgredindo assim os dogmas modernistas internacionais para explodir em uma poética combinação de plástica e técnica. Deste encontro de titãs, resultou a projeção e visibilidade definitiva da arquitetura moderna brasileira no cenário internacional. Joaquim Cardozo, com o arquiteto Luís Nunes, introduziu nos primeiros edifícios modernos, construídos no Recife, grandes vãos envidraçados, cobogós, novos tipos de esquadrias e as rampas e escadas de acesso. O calculista possibilitou que a audácia, a voluptuosidade e a sensualidade das formas terrivelmente belas, livres e insólitas idealizadas pelo jovem Oscar Nie-

meyer saíssem do papel para serem expressas no concreto, não sem desafiar as convenções e romper dogmas construtivos, celebrando assim a harmonia perfeita entre talento artístico e saber técnico e científico. Em Depoimento de uma Geração (Cosac & Naify, 2003), Joaquim Cardozo esclarece que o uso freqüente de linhas curvas aparece na arquitetura de Oscar Niemeyer não como uma textura decorativa e, sim, numa intenção de leveza, de desligamento do solo e das condições materiais e mais ainda uma sugestão de efeito dinâmico. Exemplo disso é a Catedral de Brasília, onde Niemeyer projeta um volume claro, puro e único, resultado da junção de superestruturas de elementos parabólicos que surgem do chão e se encontram no alto, dirigindo-se ao céu do cerrado, acentuando fortemente o caráter simbólico e religioso do edifício, cuja nave encontra-se parcialmente no subsolo. O testemunho de Niemeyer sobre o Joaquim Cardozo em Depoimento de uma Geração é definitivo: “(...) Passo em revista, mentalmente, todos os trabalhos que juntos realizamos, e não me lembro de um único caso em que ele se insurgisse contra o que meus projetos sugeriam, nenhum caso em que se fizesse cauteloso, propondo alterações de caráter econômico ou de prudência estrutural. Sua atuação se mantém, invariavelmente, num alto nível de compreensão e otimismo, interessado em fixar para cada problema a solução justa, a solução que preserve a forma plástica em seus mínimos aspectos, indiferente às dificuldades que poderão advir, certo, como eu, de que a arquitetura, para constituir obra de arte, deve antes de tudo ser bela e criadora.” •

Reprodução

Alberto Ferreira / Tyba

Joaquim Cardozo foi responsável por colocar no concreto a arquitetura poética de Niemeyer


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Analisando Oscar Niemeyer olhando a maquete: inspiração para obras internacionais

No caso de cidades planejadas, como Brasília, o que se julga, geralmente, não é a cidade em si, mas o seu projeto original, como promessa de paraíso Sonia Marques

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ois cenários, distantes há menos de uma década. Cenário 1. Estamos em 1998, ouço atônita os meus primeiros alunos do curso de arquitetura moderna e contemporânea, na UFRN. Segundo eles, Brasília é a expressão do equívoco do zoneamento, seguindo o modelo da Carta de Atenas de Le Corbusier, é uma cidade feita para o automóvel, sem esquinas, que despreza o pedestre, despreza o contexto. Cansada da basbaquice destes argumentos fáceis, contra-ataquei, escudada, matreiramente, na condição de forasteira: – Ah, aqui em Natal, vocês vivem nas esquinas? Vocês andam muito a pé? Vocês compram tudo no bairro, vivem a vida do bairro? O bairro de vocês não é só residencial? Tem um misto de atividades, sem o zoneamento modernista? Vocês vivem que nem gente humilde, na música de Chico, não é? Nas casas simples, com cadeiras nas calçadas...

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Cenário 2. Estamos em 2006. De volta ao Brasil, após um ano em Montreal, na ambiência de um seriado global, vejo Brasília aparecer majestosa, amada e aplaudida. Será que, nesta volta às aulas, no primeiro semestre de 2006, meus alunos amarão Brasília? Será que se decidirão a conhecê-la? Porque meus primeiros alunos não conheciam Brasília, me dei logo conta. Eles repetiam o que haviam ouvido ou lido. Quando desarmados, pela minha recusa de suas criticas epidérmicas, costumavam perguntar: Enfim, professora, a senhora acha que Brasília deu certo? Ora, avaliar cidades é tarefa complicada e que varia segundo os critérios utilizados. Por exemplo, o badalado índice de qualidade de vida é um atributo de cidades muito pouco interessantes, às vezes chatíssimas. Segundo ele, Seattle é melhor que Veneza. No caso de cidades planejadas, como Brasília, o que


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Ricardo Labastier

Mario Fontenele/ Reprodução do livro Brasília Abstrata Concreta

se julga, geralmente, não é a cidade em si, mas o seu projeto original, como promessa de paraíso. Os próprios urbanistas e planejadores urbanos são responsáveis, em grande parte, por este tipo de avaliação, uma vez que se colocam frequentemente como substitutos da mão divina, numa dimensão utópica. Ou, no mínimo, como médicos da cidade, na dimensão curativa. Meus alunos têm, assim, uma certa razão quando perguntam se a receita, o remédio aplicado deu certo ou não em Brasília. Educados na cultura do marcar um x, querem uma resposta curta: sim ou não. Difícil. Ouso uma contraproposta: uma avaliação em três ee: da estética, da ética, e da eficácia social. Do ponto de vista estético, Brasília, inaugurada em 1960, é um canto de cisne à altura da nossa excepcional arquitetura moderna brasileira, se admitirmos com Lauro Cavalcanti que moderna é a arquitetura do período 1930 a 1960. Publicada em todas as grandes revistas internacionais de arquitetura, figurando obrigatoriamente em todos os volumes de História da Arquitetura Moderna, Brasília serviu de fonte de inspiração a várias realizações internacionais, todas menos felizes. O Lincoln Center em Nova York, as grandes edificações em cidades francesas como Rennes, na Bretanha ou la Grande Motte no Midi comprovam a marcante influência, sobretudo da formada âncora dos primeiros palácios brasilienses. Também nas demais cidades brasileiras, as alusões a Brasília se multiplicaram.

O projeto urbanístico, sem paralelo no Ocidente, esmerado nos aspectos arquitetônico e urbanístico, não teve ações complementares ao planejamento físicoestrutural no âmbito sócio-espacial

O desenho urbano brasiliense é também de grande impacto visual. Cruz, pássaro ou avião, os dois eixos do Plano Piloto são um sucesso, e conferem à cidade uma identidade formal bem delimitada. Esta delimitação faz pensar na Paris, tal qual resultante da ação de Haussmann, no século 19. Em ambas as cidades, limites formais correspondem a limites sociais: uma vez atravessados os limites, há em geral um rebaixamento social. Sob o ponto de vista ético, o balanço de Brasília pode parecer amplamente negativo. É inegável o custo social da sua construção, como mostram documentários e exposições sobre o assunto. Explorados, morreram os candangos aos milhares para cumprir os prazos das obras, mais do que cabiam nas escavações dos prédios que construíam. Quanto às promessas de igualdade social, – os sonhos do candango morando ao lado do senador,– estas foram para o beleléu. Cruel, cruel. Mas, se a quantidade de vítimas – entenda-se, trabalhadores, claro – fosse o critério legitimador da engenharia civil humana, o que nos sobraria, desde os túmulos dos faraós, passando pelas nossas modernas torres e pontes? Quanto à utopia do convívio social: onde é que vocês já viram esta cidade sem segregação, esta coabitação de ricos e pobres? Avisem-me! Nas rajadas de balas anti-modernistas, desencadeadas por razões diferentes nos Estados Unidos e em alguns países europeus, principalmente na Itália, Brasília foi convocada como a expressão do fracasso das ambições modernistas, que pretendiam fazer a cidade para todos e

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Augusto Areal - www.infobrasilia.com.br

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Cidade-satélite de Tabatinga: planejamento superado pela realidade

resolver desigualdades sociais com uma proposta espacial. Mas, quando Holston, num dos mais consagrados livros sobre a cidade, fala da utopia socialista de Lucio Costa, contrariada na prática, comete, na minha opinião um erro primário para qualquer pesquisador: acreditar no discurso dos atores tal qual, sem tentar decodificá-lo através de uma análise. Para Brasilmar Nunes, “Brasília é mais um plano urbanístico do que propriamente um plano urbano”, pois “as interações humanas são aqui desproporcionalmente inferiores ao volume demográfico, fenômeno”. Mas de quem é a culpa? Para Nunes, da própria concepção urbanística, mas os autores preferem acentuar o distanciamento entre o pensado e o realizado, isto é, entre a imaginada cidade utópica, dita “socialista” e que se formou sob a batuta do capitalismo, com apartação social, como prefere denominar Cristóvam Buarque. Nesta linha de raciocínio, Padovani sustenta que o planejamento foi superado pela realidade “com o projeto de Taguatinga, em 1958, visando abrigar os habitantes excedentes do Núcleo Bandeirante. Ademais, o projeto urbanístico, sem paralelo no Ocidente, esmerado nos aspectos arquitetônico e urbanístico, não teve ações complementares ao planejamento físico-estrutural no âmbito sócio-espacial. “Assim, segundo Padovani, a rigor, Brasília, não é uma “cidade planejada”, pois a previsão era de “uma cidade compacta, delimitada ao Plano Piloto de Brasília em uma base democratizante “que seria completada no futuro com cidades-satélites. “Com a manutenção do plano piloto ‘fechado’, a democratização do espaço urbano se daria com maior socialização da cidade entre as classes sociais presentes, Continente abril 2006

contrariando o ‘normal’ desenvolvimento dos demais centros urbanos onde o padrão é o do uso capitalista da terra e a formação de periferias pobres e favelas, com segregação sócio-espacial. Por isso, a cidade utópica cedeu espaço à apropriação desigual do território, com os ricos ocupando o Plano Piloto e adjacências e os pobres, as cidades-satélites ou mesmo as muitas ‘invasões’ que permeiam o tecido urbano”. Como resultado, insiste Padovani, hoje o centro é um território elitizado, rígido, “tombado” e declarado “Patrimônio Cultural da Humanidade”, cunhado “ilha da fantasia”, enquanto nas demais cidades-satélites predomina o sentimento de exclusão. Erro de execução? Culpa do capitalismo? É difícil acompanhar este raciocínio generoso, compartilhado em grande parte por uma geração que conviveu na NovaCap com o Dr. Lucio e o Oscar, como eles costumam chamar. Mas este é o problema das bases do raciocínio dos urbanistas e dos arquitetos progressistas. Há sempre um condicional: o “se tivesse sido feito” ou “o deveria ser”. Enquanto que os conservadores e pragmáticos aceitam a segregação como um dado inevitável e partem do ponto de vista de que o que “dá certo” é o que se elitiza ou gentrifica, como diz o bom jargão urbanístico. Entre generosidade utópica, pragmatismo ou cinismo, a vida é mais forte que o planejamento, para o bem ou para o mal. Life is what happens when we had other plans. Parodiando a frase da música dos Beatles, eu diria que uma cidade é o que acontece no lugar para o qual os urbanistas tinham outros planos. Brasília aconteceu e virou manchete. •


Folha Press

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O olho do cineasta Alberto Cavalcanti, dublê de cineasta e arquiteto, pretendia fazer um documentário sobre Brasília. Em primeira mão, apresentamos um fragmento do roteiro que nunca foi filmado Fernando Monteiro

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o rol das muitas injustiças cometidas, no Brasil, contra a obra de Alberto Cavalcanti (cineasta de prestígio internacional e um dos maiores talentos nascidos no país de Macunaíma), avulta o filme que ele não conseguiu realizar sobre Brasília, um caso típico daquela estupidez que Osman Lins listou entre os “problemas inculturais brasileiros”. Nascido no Rio, em 1897 – de família pernambucana por parte da mãe (Anna Olinda do Rego Cavalcanti) –, Alberto diplomou-se em arquitetura pela Escola Superior de Genebra, em 1917, e chegou a trabalhar, logo depois de formado, nos escritórios do célebre arquiteto Alfred Agache. Sua iniciação no cinema se deu em 1923, como cenógrafo num filme do francês Marcel L'Herbier, daí partindo para uma nova carreira, ao abandonar a prancheta a fim de se dedicar à câmara cinematográfica como instrumento de um meio de expressão ainda engatinhando nos seus recursos de linguagem. O olho do arquiteto, porém, nunca perderia a agudeza no refinado e culto brasileiro com o qual pude conversar, em longas tardes do verão de 1972, no terraço da casa olindense da sua prima Gicélia Marroquim, ocasiões em que Brasília foi assunto mais de uma vez, e não só pelo lado estético. Cavalcanti desconfiava de um projeto com as características do concebido pelo gênio de Continente abril 2006

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Oscar Niemeyer – hoje na ordem do dia, pelas atuais celebrações dos feitos do presidente Juscelino. “Aquilo (Brasília) é uma nave espacial que fatalmente irá ficar cercada por todos os lados, um dia, do Brasil real e desorganizado” – resumia ele, falando como entendedor do riscado arquitetônico. Falecido em 1982, na mesma Paris dos primeiros passos no cinema (perguntas: com quem se encontra o vasto acervo de obras de arte e documentos deixados pelo solteirão? E onde estarão os originais do seu livro de memórias, quase terminado?), o arquiteto Cavalcanti certamente gostaria de ver Brasília, hoje mais do que nunca, disco urbano não-voador, mas preso à poeira vermelha do planalto onde o “Presidente Bossa-Nova” mineiramente a inaugurou no dia dedicado a Tiradentes, em abril de 1960. Seja como for, o diretor de O Canto do Mar acalentou o projeto de “um documentário de 20 minutos” sobre a capital, tendo concluído, em 1977, um Esboço de roteiro para um filme sobre Brasília (leia fragmento, a seguir), documento encaminhado à antiga Empresa Brasileira de Filmes. Infelizmente, o projeto não sairia do papel – mesmo com o interesse da Unesco. A Embrafilme, que havia frustrado o velho realizador empenhado no seu último projeto de longa-metragem – Antonio José, o Judeu –, também haveria de negar apoio à concretização do curta-metragem sobre a “ilha da fantasia” da política brasileira, a atual cidade já madura, aos 46 anos, para se impor aos riscados da arquitetura. Isso é o que prevalece, aliás, no filme que o carioca Antônio Carlos Fontoura realizou com base nas sugestões deixadas, neste “esboço” de roteiro, pelo cineasta falecido sem ver esta “homenagem”. Seja como for, perdemos a oportunidade de ver Brasília pelos olhos do rea-lizador pioneiro de Rien que les Heures (que influenciou o Ruttmann de Berlin, Symphonie einer Grosstadt), também considerado “insuficientemente ilustre”, pela ECT, para merecer um selo comemorativo do centenário do seu nascimento... • Continente abril 2006

Esboço de roteiro para um filme sobre Brasília Títulos em cor vermelha sobre fundo imitação mármore amarelo fade-in.

Música de abertura.

O quadrado centraliza a marca

EMBRAFILME

A inicial idem. A palavra “apresenta”. O título do filme vindo do fundo e avançando para a câmara. Um cartão com letras claras indicando a colaboração da “Fundação Cultural do Distrito Federal” e da Unesco. Subindo os créditos dos colaboradores técnicos do filme e a menção das gravuras de Jean Batiste Debret fade out.

Música de abertura cessa. Os agradecimentos aparecerão em título após a palavra "FIM".

Plano Geral fade in de uma maloca de índios.

(Caso necessário, obter da Funai viagem para a filmagem destes planos).

Três planos médios mostrando cenas da vida dos índios. Cozinha? Pinturas no corpo para o preparo de uma festa? Fade out (sépia)

Alternativa seria usar a maloca projetada, em Brasília, pela Fundação Cultural, se houver possibilidade de fotografá-la sem indicação do local.

Primeiro Plano fade in de Lucio Costa, com voz off, anunciando o seu nome.

Estas apresentações sonoras, tanto de Lucio Costa como de Oscar Niemeyer são, com o plano da Constituição, as únicas palavras que ficam na versão da Unesco, porque ela recusa-se a admitir comentários no filme.

A frase adequada não pôde ser encontrada nos documentos sobre Brasília. Propõe-se uma redação original, explicando que a vida de uma povo se reflete na arquitetura de seu habitat. (Caso Lúcio Costa não queira fazer esta afirmação,é possível encontrar uma personalidade conhecida internacionalmente, mesmo que não seja ligada à história de Brasília.) Frase sincronizada. Fade out. Corte em diagonal wipe de sete ou nove imagens.

A seqüência do estilo barroco seria organizada com o seguinte esquema de cores:

Prancha de Jean Batiste Debret – nº 5 – Parte II (com as cores originais). “Empregado do Governo saindo de casa com a família”. Corte franco. Vista geral de uma igreja barroca bem conservada.

Filmar no Museu existente no Rio (Fundação Castro Maia).

Reconstituição de uma missa em latim, no interior dourado de uma igreja barroca (elevação).

Plano servindo de contraste com o interior da Catedral de Brasília.


Cor amarela. Corte em diagonal wipe. Debret – prancha 8 – Parte III. “Escravos indo à igreja para serem batizados” (cores originais). Cor sépia. Corte em diagonal – Debret. Prancha nº ...– Parte II. “Uma senhora no interior de sua casa” (cores originais). Corte franco: Largo do Boticário. Corte franco – “Memória do Carnaval”. Obter de Alice Gonzaga Assaf cena movimentada de Carnaval antigo, no Rio de Janeiro. Corte em diagonal. Debret – Prancha 23 – Parte II. “Venda de escravos” (cores originais). Plano de Pelourinho, em Salvador. Fade in. Primeiro plano de Oscar Niemeyer. Voz off anunciando o seu nome. Sépia. Frase sincronizada (curta), referente às dificuldades encontradas pelo tráfego atual, dado a inadaptabilidade do urbanismo do passado: Três ou quatro exemplos de construções, estilo empreiteiro português, art nouveau – igreja, habitação etc. Sépia.

Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro? Plano prometido por Nelson Pereira dos Santos. Procissão em rua da Bahia. Alternativa: procurar no material existente no depósito/EMBRAFILME. Alternativa: pedir a Fernando Monteiro para filmar o mercado de escravos, em Olinda. Tradução a ser gravada p/ versões estrangeiras.

Esta seqüência deve ser apoiada de maneira muito enfática pela música. Cemitério de São João Batista, no Rio.

Vista tomada do alto, mostrando o atravancamento de túmulos pretenciosos. (NB: Este plano serviria de contraste com a vista do Cemitério de Brasília, na parte final do filme). Vista do alto de três ou quatro ruas estreitas, com a máxima dificuldade de tráfego, em São Paulo (idem: Copacabana). Três planos de um guarda de trânsito, com luvas, dirigindo o tráfego. Três primeiros planos, em cores originais, de luz de tráfego, passando do verde para o amarelo e deste para o vermelho. Três primeiros planos de transeuntes para montar fade out. Panorama fade in do Cerrado, sem nenhuma habitação, com leve ruído de vento. Procurar obter uma impressão de secura (manter a cor até o fim do filme).

NB: A montagem será feita em um crescendo. [Se possível, filmado antes das chuvas.]

Fusão lenta. Panorama da Cidade, com o Lago em primeiro plan.

Locais prováveis: SHIS-QL 9/3 ou QL 9/4 (em frente ao Clube Cota Mil), ou antes da Ponte "Costa e Silva". Música em um crescendo.

Plano da Esplanada dos Ministérios, começando com o enquadramento de um paredão lateral, e partindo, em movimento, com um ângulo de 45 graus, para mostrar o ritmo dos paredões sucessivos. (NB: Nesta parte do filme, mostrando a arquitetura moderna da Cidade, seria interessante usar o máximo de movimentos, o que evitaria vistas fixas reminiscentes de cartões-postais.)

A filmar num domingo, com ausência de tráfego. •

Corte – o texto sobre a Capital (achado por Juscelino Kubitschek).

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23 Betânia Uchoa

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CONTINENTEDOCUMENTO

Oscar Niemeyer 100 Anos Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle, de Lübeck – Alemanha


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scar Niemeyer, o último grande arquiteto vivo do Movimento Moderno e um dos maiores do século 20, ao lado de Le Corbusier, Walter Gropius, Mies van der Rohe e Frank Lloyd Wright, completa em dezembro 100 anos. São mais de 70 anos dedicados à arquitetura, mais de 500 obras e projetos no Brasil, Europa, Ásia e África. Para a geração modernista do Brasil, Niemeyer ainda hoje é um ícone da afirmação da arquitetura brasileira no cenário internacional. Sua arquitetura, que a partir de Pampulha estabelece o rompimento com os cânones do Movimento Moderno, provocou escândalos e forte criticismo ao ser por ele concebida como obra de arte plástica. Foi um dos poucos arquitetos que se libertou do racionalismo ortogonal, da adoção obrigatória do ângulo reto, ao lado do finlandês Alvar Aalto, do dinamarquês Jørn Utzon (autor da ópera de Sidney) e do alemão Hans Scharoun. Será a beleza uma funcionalidade da existência humana? Quando éramos estudantes nos fascinava a modernidade de suas formas, o delírio barroco (??) curvilíneo que tocava elegantemente o chão e a pura combinação de formas inusitadas cuja leveza quase etérea dos balanços generosos nos transladava a um mundo tectônico para nós, imaginário. Sonhávamos !!! Oscar Niemeyer era para nós, jovens estudantes de arquitetura, um mito, um monstro sagrado. Sua genialidade criadora e o revolucionário lirismo poético de Pampulha e Brasília apontavam para nós uma nova perspectiva para o aprendizado e o exercício da arquitetura. É inegável tanto quanto polêmica sua contribuição

ao desenvolvimento da arquitetura do século 20. Sua coragem em desafiar e desmistificar os dogmas modernos ortodoxos abriu novos caminhos para a arquitetura brasileira e mundial, influenciando arquitetos de várias gerações em todo o mundo. Niemeyer tem livros traduzidos em oito idiomas, inclusive japonês e grego, e recebeu inúmeros prêmios e condecorações ao longo de sua vida profissional. Entre eles, o Prêmio Lênin da Paz (1963), outorgado pelo Soviete Supremo, a homenagem do Museu de Artes Decorativas do Louvre, de Paris, que inaugura uma exposição de sua obra em 1965, o Prêmio Príncipe das Astúrias, da Espanha, e a medalha de Cavaleiro da Ordem de São Gregório, concedida pelo papa João Paulo II. Em 1996 ganha o Leão de Ouro, da Bienal de Veneza, e, em 1998, recebe a Royal Gold Medal, do RIBA (Royal Institute of British Architects). O reconhecimento internacional atinge seu ápice já em 1988, quando junto com o arquiteto norteamericano Gordon Bunschaft, recebe em Chicago, o Pritzker-Prize (instituído por Jay Pritzker, proprietário da rede mundial dos Hotéis Hyatt), o equivalente ao Prêmio Nobel de Arquitetura, feito que no Brasil só seria repetido pelo extraordinário arquiteto Paulo Mendes da Rocha que, sozinho, recebe o Pritzker-Prize de 2006 . A dedicação de Oscar Niemeyer à arquitetura é comovente como o é também sua defesa apaixonada pela necessidade da beleza e da liberdade formal e criadora. Muitas vezes malcompreendido, afirmava: "a função não é menos importante do que a estética. Podese ter as duas coisas". Ele alcança sua expressão própria e definitiva ao explorar a força plástica da forma livre que Fotos: Divulgação

Le Corbusier

90 CONTINENTEDOCUMENTO Agosto 2007

Lúcio Costa


Klaus Brendler/ Divulgação

Colunas do antigo Ministério de Educação e Saúde – atual Palácio Capanema. Ao fundo, painel de Portinari

o concreto possibilita, argumentando que os programas construtivos sugerem soluções inovadoras e recortadas. Em A Forma na Arquitetura, publicado pela primeira vez em 1978, contra-ataca: "Aos que reclamavam do arrojo de nossa arquitetura, não dávamos resposta. Deviam saber, como nós, que a arquitetura, quando o tema permite, deve exprimir o progresso técnico da época em que é realizada". As origens – Em todos os livros que publica, Oscar Niemeyer refere-se ao fato de ser mestiço, "como a maioria dos meus irmãos brasileiros". Assim é Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares Filho, de origem portuguesa, árabe e alemã, que viveu uma infância alegre na casa do avô em Laranjeiras, Rio de Janeiro, freqüentada por pessoas ilustres como Epitácio Pessoa e Tristão de Atayde. Quando pequeno, já desenhava bules, xícaras, estatuetas, e recorda sua mãe "a guardálos orgulhosa, sem saber que um dia eles me levariam à arquitetura". Às vezes ele "desenhava no ar", desligandose do mundo adulto exterior e mergulhando no seu mundo mágico, lúdico e particular. Como muitos meninos de sua época, estudou em colégio de padre e gostava tanto de jogar futebol que foi convidado para treinar no Flamengo. Em seu livro de memórias As Curvas do Tempo, Niemeyer recorda fatos deliciosos como o cinema com orquestra ao vivo, onde pedia ao pianista para tocar “Cuore Ingrato”. Do Liceu Francês, onde terminou seus estudos, ingressou na Escola Nacional de Belas Artes. Em 1935, recém-saído da Escola, decide trabalhar gratuitamente no escritório de Lúcio Costa e Carlos Leão: "Com eles aprendi a respeitar

o nosso passado colonial, a sentir como são belas as velhas construções portuguesas, sóbrias, rijas...Da arquitetura só me deram bons exemplos". Em sua juventude, Niemeyer foi contemporâneo da luta acirrada por uma genuína arquitetura brasileira e contra a importação de padrões estéticos europeus que produzia obras ecléticas acadêmicas como o Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e contra a corrente neo-colonial, anacrônica e historicista que encantava a burguesia desinformada, bruta e kitsch. A busca de uma arquitetura brasileira contemporânea era parte de uma luta maior por uma identidade cultural brasileira defendida apaixonadamente por Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Anita Mafalti, entre muitos outros artistas, escritores e intelectuais integrantes da Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, e depois por Gilberto Freyre no Manifesto Regionalista de 1926. A ascensão do regime autoritário de Getúlio Vargas nos anos 30, a exemplo dos regimes fascistas europeus, é acompanhada pela criação da imagem de um país moderno e industrializado. Nesse contexto surge o episódio do concurso para o Ministério de Educação e Saúde coordenado pelo jovem ministro Gustavo Capanema, que, corajosamente rejeita o projeto vencedor de características historicistas "marajoaras" (sic) do equivocado arquiteto Arquimedes Memória. Estava selado o destino da arquitetura moderna brasileira. Com o apoio de Lúcio Costa, Capanema consegue trazer Le Corbusier ao Brasil e em 1936 é formada uma cooperação com os jovens arquitetos Agosto 2007

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modernistas Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Afonso Reidy, Jorge Moreira e Ernani Vasconcelos que, juntos, são os autores do primeiro edifício público modernista da América Latina. Nas palavras de Niemeyer: "Com esse edifício e a presença oportuna de Le Corbusier, Capanema deu à arquitetura brasileira o ímpeto inicial que faltava, dissipando equívocos, mostrando a todos que a arquitetura moderna era uma imposição da técnica atual". O que a crítica conservadora local repudia como extravagante luxúria é no entanto saudado em 1942 pelo então vice-diretor do MoMA, o arquiteto americano Phillip Goodwin, co-autor de Brazil Builds como "the most advanced building in the Americas", numa época em que eram construídas nos EUA e Europa cópias grotescas e anacrônicas de edifícios clássicos de proporções gigantescas. O edifício do Ministério de Educação e Saúde, hoje Fotos: Divulgação Palácio Capanema, reúne os cinco pontos da doutrina de Le Corbusier – os pilotis, a janela-corredor, a planta-livre, a fachada-livre, o teto jardim –e seu sistema de brisesoleil ou quebra-sol que, adaptados por Niemeyer para o clima tropical, se torna e móvel para acompanhar os ângulos do sol e o fluxo das brisas. É dele a avaliação definitiva: "nunca considerei a sede do Ministério da Educação e Saúde como a primeira obra de arquitetura moderna brasileira, mas, sim, um exemplo da arquitetura de Le Corbusier, um arquiteto estrangeiro que esclareceu para todos as razões do movimento moderno, dos pilotis, da estrutura independente, do painel de vidro, e isso foi muito importante para nossa arquitetura. A primeira obra moderna e de vulto elaborada por arquiteto brasileiro foi a sede da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), no Rio de Janeiro, projetada pelos irmãos MM Roberto". Apesar das mudanças no edifício, que ele sugeriu a Le Corbusier, como, entre outros, aumentar a altura dos pilotis de 4 para 10 metros, onde entre eles é construído um jardim público com projeto do paisagista Roberto Burle Marx, que introduz o uso de plantas nativas brasileiras numa época em que seu uso era menosprezado, Niemeyer o considera uma obra conjunta. Sua primeira obra individual é por ele reconhecida como a creche Obra do Berço, de 1937, no Rio de Janeiro, onde emprega o brisesoleil vertical e articula dois volumes simples, leves e de proporções puras. Niemeyer parte em direção de um modernismo próprio e livre das regras corbusianas, o que significa a Obra do Berço, de 1937, é reconhecida por definitiva valorização da arquitetura como arte plástica, Niemeyer como sua primeira obra individual afasta-se gradativamente da rigidez cartesiana dos arquitetos racionalistas defensores da estética da máquina e se deixa seduzir pelas formas curvas. O Pavilhão do Brasil na Exposição Internacional de Nova York, de 1939, projeto conjunto de Niemeyer e Lúcio Costa, rompe o rigor funcionalista, mas guarda o forte componente racionalista na pureza, elegância e leveza de suas formas e proporções que o fez merecer o reconhecimento da crítica internacional como a nova linguagem arquitetônica brasileira. O encontro com Juscelino Kubitschek, em 1940, então prefeito de Belo Horizonte, é épico, pois selaria uma parceria incomum e duradoura cujo resultado, Pampulha e Brasília, produz as maiores ousadias de sua carreira. Pampulha surgiu como um bairro de lazer idealizado por JK para a elite e classes abastadas da capital mineira e abrigaria a Casa de Baile (um pequeno restaurante com pista de dança), o Iate Golf Clube, o Cassino e a igrejinha de São Francisco construídos à beira de um lago artificial. De uma leveza extraordinária, a pequena capela de São Francisco de Assis, toda em curvas, é tombada como monumento nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e

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Em Pampulha, Niemeyer penetra definitivamente no mundo das curvas

Artístico Nacional (IPHAN), em 1984, e marca a independência definitiva da arquitetura brasileira dos cânones internacionais. Sua nave feita a partir de uma casca de concreto parabólica se articula com quatro abóbadas auto-portantes que, juntas, formam o edifício que rompe com todos os dogmas racionalistas do Movimento Moderno. Niemeyer convida Cândido Portinari para pintar o painel dedicado à vida de São Francisco, com linguagem expressionista e cubista e forte apelo social, causando uma bizarra polêmica, pois o arcebispo de Belo Horizonte diante da obra de Portinari se recusa a consagrá-la. A igrejinha permanece profana até 1959, quando JK já presidente da República consegue finalmente sua inauguração dentro dos rituais católicos. Na Casa de Baile, não há linhas retas. Dois volumes cilíndricos são ligados por uma passarela sinuosa e irregular que parece dançar. Na verdade ela dança, com um ritmo e beleza plástica encantadores. Em cada projeto Niemeyer desafia a ortodoxia do funcionalismo cartesiano, ao se permitir sonhar e executar formas fantasiosas até então desconhecidas. "Eu me apaixonava pelas formas novas, sinuosas, belas e sensuais, capazes de suscitar emoções diversas.” Com Pampulha, Niemeyer aprofunda a investigação das potencialidades do concreto para dar forma ao seu furor escultórico. "Para mim, Pampulha foi o começo da minha vida de arquiteto. Era a oportunidade de contestar a

monotonia que cercava a arquitetura contemporânea, a onda de um funcionalismo malcompreendido que a castrava, dos dogmas de forma e função que surgiam, contrariando a liberdade plástica que o concreto armado permitia." A curva atraía Oscar Niemeyer e era para ele "livre e sensual", podendo "ser bela, lógica e graciosa, se bem construída". Assim ele escreveu: Não é o ângulo reto que me atrai nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, A curva que encontro nas montanhas do meu país, No curso sinuoso dos rios, Na sondas do mar, No corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo O universo curvo de Einstein. É em Pampulha que Niemeyer descobre e penetra definitivamente no mundo das curvas e adota para sempre a forma livre como vocabulário plástico de sua arquitetura. Descobre que a complexidade dos edifícios e os novos desafios projetuais vão exigir novas pesquisas técnicas. A presença do engenheiro pernambucano Joaquim Cardozo, com quem começa uma parceria de gênios em 1941, para calcular e sustentar suas Agosto 2007

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estruturas no ar, torna-se obrigatória. Agora ele combina retas e curvas "imprevisíveis" que sua imaginação cria. Le Corbusier lhe diz: "Oscar, tu as les montagnes de Rio, dans te yeux". A partir de 1945, o Brasil vai viver um curto período democrático, o Partido Comunista é legalizado e Niemeyer a ele se filia. Em A Forma na Arquitetura, Niemeyer revela: "Sobre minhas idéias políticas direi que sempre fui um revoltado. Depois foi a própria vida a evidenciar suas misérias: o patrão a oprimir o empregado, o amigo mais pobre preterido, o desamparo que aflige nossos irmãos brasileiros e a burguesia ignorante a oprimi-los, ou a se manifestar de forma paternalista. Não podia ter dúvidas sobre a posição a tomar, num país em que 70% da população sofre, explorada e perseguida". Logo cedo lhe é recusado um visto para ministrar um curso na Universidade de Yale nos Estados Unidos. Seu prestígio, no entanto, o faz conseguir um visto especial válido somente para Nova York, para integrar o grupo especial de arquitetos coordenados por Le Corbusier, para projetar o edifício sede da ONU. Seu projeto é escolhido pelos colegas

No Congresso Nacional, Niemeyer consegue uma dramática plasticidade na dialética tensão entre os dois altos volumes retangulares e as duas cúpulas assimétricas

como base para o projeto coletivo final e, em 1949, Niemeyer é eleito para a Academia Americana de Artes e Ciências. Em Brasília, cidade construída pela determinação política de JK, Oscar Niemeyer forma uma grande equipe e, como arquiteto-chefe, garante a expressão arquitetônica da cidade moderna do projeto urbanístico vencedor de Lúcio Costa. Projeto esse que segue os rígidos parâmetros do Movimento Moderno, preconizados pela Carta de Atenas e que vem a ser reconhecida pela UNESCO, em 1987, como Patrimônio Cultural da Humanidade. "Foi em Brasília que minha arquitetura se fez mais livre e rigorosa. Livre, no sentido da forma plástica; rigorosa, pela preocupação de mantê-la em perímetros regulares e definidos. Minha preocupação foi caracterizá-la com as próprias estruturas." A Praça dos Três Poderes é a expressão simbólica da Capital onde estão localizados os edifícios representativos dos poderes judiciário (Palácio da Justiça), executivo (Palácio do Planalto) e legislativo (Congresso Nacional). Todos eles têm uma característica comum: os edifícios são volumes únicos e geométricos,


suas formas puras e simples, e suas proporções precisas. Neles se contrapõem curvas e retas. No Congresso Nacional, contrastando com as duas grandes torres retangulares, Niemeyer consegue uma dramática plasticidade na dialética tensão entre os dois altos volumes retangulares e as duas cúpulas assimétricas (côncava e convexa). Na Esplanada dos Ministérios, Niemeyer projeta 11 blocos retangulares numa repetição harmônica, equilibrada e rítmica de volumes puros que constituem a espinha dorsal do Plano Piloto, onde se encontram ainda o Teatro Nacional e a Catedral de Brasília. A Catedral é uma obra-prima escultórica, imbuída de grande apelo cenográfico. Todas as funções encontram-se no subsolo para liberar todo o espaço e suas estruturas para o culto litúrgico. As colunas, concretadas no chão, induzem o olhar do observador para o alto do céu. A sua função e uso assim o exigem. "Afinal, é uma catedral, não uma estação ferroviária", diz o autor. A escala monumental necessária para expressar a representatividade e significado político de Brasília é adotada sem medos acanhados. A expressão urbana e arquitetônica da capital brasileira, produto do

Divulgação

encontro feliz de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, celebra com grandiosidade legítima uma nação, então democrática, em busca da modernidade. Em 1964, Brasília torna-se o palco da arbitrariedade e do despotismo da ditadura militar que se instala à força no país. A truculência dos generais comandantes do Brasil inaugura um longo período de perseguição, morte e tortura para muitos brasileiros. Nas universidades os estudantes militantes do movimento estudantil são sumária e arbitrariamente expulsos pelo AI5, e muitos são convocados para longos, violentos e humilhantes interrogatórios nos quartéis do país. Niemeyer foi muitas vezes convocado a depor. Comunista assumido, seu prestígio internacional evitou uma perseguição maior. "Lugar de arquiteto comunista é em Moscou", declara o Ministro da Aeronáutica, ao rejeitar seu projeto para o Aeroporto de Brasília. Em 1966, seu escritório é arrombado e revirado e ele deixa o Brasil por um período de 16 anos, passando a viver no exílio, na África e Europa. André Malraux, amigo pessoal e admirador de sua obra, consegue de Charles de Gaulle um decreto especial que o permite trabalhar como arquiteto na França. "Não posso dizer que foram tempos felizes. Naquele exílio inevitável uma simples palavra, uma música qualquer que lembrasse o meu país, me comovia, a pensar na família, nos amigos distantes, perseguidos pela ditadura. É claro que tinha os momentos de lazer, que seguia os amigos neste rir e chorar que é a vida." Sua filiação ao Partido Comunista vai ser duramente criticada por toda vida, pois seus maiores clientes são empresários capitalistas e chefes de governo, e nem todos necessariamente comungam de suas idéias. As contradições entre sua assumida ideologia e a sua prática profissional são constantemente questionadas. Afinal é um homem público e famoso. "Nos meus contatos profissionais nunca escondi a minha posição política. Mas muitos que gostam da minha arquitetura me julgam um equivocado, e deles penso o mesmo." O fato de ser ateu não o impede de respeitar a Igreja e quem nela acredita, afirma. E, na Catedral de Brasília, "os crentes olham pelos vidros transparentes os espaços infinitos onde acreditam estar o Senhor". Em seu projeto recente para o Caminho Niemeyer, em Niterói, ele projetou um templo batista com o maior vão livre de laje da América Latina. A partir dos anos 80, grandes projetos são encomendados a Niemeyer por governadores e prefeitos, como o Memorial da América Latina, o Sambódromo, o Museu de Arte Contemporânea e o Caminho Niemeyer, em Niterói, o Teatro de Araras, o Parque Dona Lindu, no Recife, a Estação Ciência, Cultura e Artes em João Pessoa, entre Agosto 2007

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Fotos:Divulgação

outros. Nesta última fase do arquiteto, os valores plásticos continuam sendo o foco principal de sua arquitetura, mas falta a pureza cristalina e lírica de suas primeiras criações. Volumes amorfos de grande apelo escultural são usados para compor espaços simbólicos e funcionais que, na verdade, se transformam em uma retórica visual de formalismo abstrato. Sem concurso público, esses projetos evidenciam o favoritismo dos políticos pelo arquiteto e seus edifícios, muitos dos quais se tornam imediatamente uma atração cultural e turística. Tudo isso tem sido muito criticado. Além disso, em uma democracia, a população tem o direito de discutir as prioridades dos projetos urbanos, que pode ser a construção de um hospital ou de casas populares, e não necessariamente de teatros, museus ou memoriais, obras que provocam fortes impactos na cidade e que envolvem muito dinheiro público. A obra de Oscar Niemeyer é, entretanto, maior. Ela transcende às contradições do ser humano e já está inscrita no imaginário brasileiro e universal pela sua revolucionária contribuição à história da arquitetura, e por ter inspirado o florescimento da arquitetura moderna brasileira. Por isso celebramos os 100 anos de Oscar Niemeyer, a legenda viva do Movimento Moderno. Acima, o Memorial da América Latina. Abaixo, o polêmico projeto do Parque Dona Lindu, no Recife


Catedral de Brasília – em detalhe, parte interna com vitrais de Marianne Peretti


Oscar Niemeyer no estrangeiro

Klaus Brendle, de Lübeck

N

iemeyer tornou-se conhecido na Europa através do edifício do Ministério de Educação e Saúde no Rio de Janeiro (1936), do Pavilhão Brasileiro para a Exposição Mundial de Nova York (projeto conjunto com Lúcio Costa, 1939) e dos edifícios de Pampulha em Belo Horizonte (1940). A recepção crítica dos participantes da Bienal de 1954 de seu projeto para sua residência de Canoas, Rio de Janeiro, um manifesto de liberdade formal, dinamismo e movimento, difunde ainda mais seu trabalho. A frutífera cooperação com o mundialmente conhecido arquiteto Le Corbusier, iniciada em 1936, seguida depois no projeto da sede da ONU em Nova York, em 1947, torna-o ainda mais conhecido na Europa, determinando seu primeiro trabalho individual no exterior, na Exposição Internacional de Arquitetura (Interbau-Internationale Bauausstellung) de 1957, em Berlim. Na Guerra Fria, a intervenção no Hansaviertel, bairro de Berlim, destruído no bombardeio da Segunda Guerra, seria a resposta da Alemanha ocidental, livre e democrática à gigantesca, suntuosa e retilínea avenida Stalinallee, situada na Berlim Oriental comunista, através de um conjunto residencial formado por unidades habitacionais implantadas organicamente no meio de generosas áreas verdes no limite do Tiergarten, parque municipal da cidade. Apesar de filiado ao Partido Comunista Brasileiro, Niemeyer desenvolve, ao lado dos outros arquitetos internacionais convidados (Le Corbusier, Walter Gropious, Klaus Brendler/ Divulgação

Casa da Cultura – detalhe – Le Havre


Alvar Aalto, entre outros), um edifício de apartamentos cujo projeto segue o modelo de Le Corbusier: o pavimento térreo livre, com expressivos e maciços pilotis, uma zona comunitária no quinto pavimento (que, para irritação do arquiteto, nunca foi construída), janelas, corredores e um forte coroamento superior na fachada. O edifício, recentemente restaurado para a celebração dos 50 anos do Hansaviertel, ainda hoje possui grande vitalidade de composição e força plástica. Ele se mostra leve com suas varandas contínuas no lado oeste ensolarado, e escultural, com a torre triangular da caixa de escada destacada do corpo principal, contrastando com a fachada leste plana. Em 1962, após seu sucesso de Brasília, sua carreira internacional se consolida a partir de seu projeto para a Feira Internacional do Líbano, em Trípoli. Logo depois ele desenvolve uma série de projetos para edifícios públicos e universidades na África e em Israel. Com a rápida e espetacular construção de Brasília, Niemeyer e o Brasil tornaram-se um exemplo inspirador e progressista para a cultura arquitetônica dos países recém-libertos do poder colonial, desejosos de se tornarem livres das influências européias e norteamericanas, e, como o Brasil, poderem traçar seus próprios caminhos. Com Niemeyer, as nações libertas do colonialismo, em muitos casos governadas por regimes autoritários, viam a possibilidade da afirmação de uma identidade nacional moderna, o fortalecimento de suas próprias culturas e potencial tecnológico e a aspiração do prestígio nacional. O chefe do governo argelino, Huari Boumédiene, solicita a Niemeyer, em 1968, o projeto de um novo centro governamental. Neste ano, ele faz contínuas viagens a Europa, visita entusiasmado a União Soviética e recebe convite da Arábia Saudita. No começo dos anos 60, torna-se membro de honra do American Institute of Architects. Em 1965 começa o projeto para a sede do Partido Comunista Francês, em Paris, onde vai viver no exílio após o golpe militar de 1964. Seu projeto se diferencia claramente da "linha reta" do funcionalismo moderno de então, através da cúpula plástica e das formas curvilíneas do bloco principal. Além de Niemeyer, o modernismo escandinavo de Alvar Aalto se desenvolve também livre dos dogmas do modernismo europeu, ao lado de Hans Scharoun e Hugo Häring na Alemanha, cuja concepção "orgânica" se posiciona fortemente contra a linha reta

Klaus Brendler/ Divulgação

Na Guerra Fria, a intervenção no Hansaviertel, bairro de Berlim, seria a resposta da Alemanha ocidental, livre e democrática à gigantesca, suntuosa e retilínea avenida Stalinallee

racionalista dominante da Bauhaus de Walter Gropious. Em Le Havre, cidade de um modernismo clássico e sóbrio, projetada por Auguste Perret, Niemeyer insere um centro cultural construído entre 1972–82, cujos edifícios rebaixados na praça – para proteção contra os ventos gelados do Atlântico Norte – e inseridos na rígida paisagem urbana ortogonal se espalham como uma ameba elevando-se em forma de vulcão. A cidade e o centro cultural se confrontam respeitosamente através do contraste acentuado entre as fachadas de tonalidade cinza do norte da França com o branco brilhante "brasileiro". Niemeyer declara ao Jornal do Brasil, em 1982, que, com as formas simples e abstratas de seus edifícios de Le Havre, ele procurou acentuar o impacto arquitetônico do novo conjunto sem no entanto estabelecer uma competição com a cidade de Perret. Em1968, Niemeyer projetaria a sede da Editora Mondadori em Milão. É possivelmente seu trabalho mais importante depois de Pampulha e Brasília. Considerando as exigências funcionais do complexo Agosto 2007

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Divulgação

editorial, ele concebe uma clara composição de formas variadas de edifícios e jardins. Aqui ele alcança um convincente jogo de formas livres e ortogonais e uma façanha construtiva. Apesar do repertório formal variado e do esforço estático da cobertura que sustenta os cinco pavimentos do edifício central, o resultado é uma expressão arquitetônica balanceada e harmônica. O grande espelho d'água do sistema de refrigeração atravessa livremente o edifício porque não há colunas no pavimento térreo. O edifício principal tem uma poderosa e lógica naturalidade apesar de sua colunata irregular e monumental. Um bloco baixo, sinuoso e contínuo, reservado para a redação e refeitório, se integra neste jogo de formas, volumes, jardins e com o edifício principal.

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A Universidade de Constantine, na Argélia, é construída em 1969. Niemeyer recebe de Boumédiene total liberdade projetual e ele a usa mudando a concepção original que previa vários edifícios espalhados pelo campus. Ele concentra a universidade em cinco edifícios e numa torre de 19 pavimentos (para abrigar a célula administrativa) que se agrupam em torno de uma grande área livre com vários espelhos d'água. Ele projeta uma revolucionária cobertura de enorme dimensão feita de uma casca delgada de concreto com 60 metros livres, uma obra espetacular calculada pelo engenheiro brasileiro Marco Paulo Rabello. Ao lado, o edifício para salas de aula sobre pilotis com vãos de 50 metros e balanços de 25. Nesta composição de edifícios com figuras abstratas,


Spassbad, centro de esportes aquáticos, projetado por Niemeyer em 2005, em Postdam

produzindo grandes sombras sob o escaldante sol norte-africano, as pessoas se movimentam como personagens clássicas da pintura surrealista de Giorgio de Chirico. Em 1972 é construído o edifício da Bolsa de Trabalho em Bobigny, França, e concluído o Centro Cultural de Le Havre que agora tem o seu nome. Em 1975 ele realiza vários projetos para a Arábia Saudita e o edifício sede da FATA em Pianezza, Turim. Finalmente é construído o edifício de apartamentos em Fonteney-Sous-Bois, na França. Até 2003, quando a Serpentine Gallery é construída em Kensington, Londres, nenhum outro projeto internacional é realizado. Para esta galeria, que convida anualmente arquitetos de todo o mundo para projetarem um pequeno pavilhão temporário para exposição e eventos, Niemeyer projeta uma escultura arquitetônica de aço, alumínio e vidro. Ela é construída pelo conhecido escritório de engenharia Arup e, como no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, possui uma rampa de entrada pintada em rosa-pink A realização do Spassbad, um centro de esportes aquáticos projetado por Niemeyer em 2005 para Potsdam, cidade próxima a Berlim, tornou-se há pouco tempo um grande fracasso. As razões do cancelamento do projeto foram o altíssimo custo da obra e a ambição do prefeito da cidade, que intencionava construir uma gigantesca obra pública com um "autêntico Niemeyer" usando politicamente seu nome. Ao ignorar os regulamentos jurídicos que, de acordo com a legislação da Alemanha e da Comunidade Européia, não permite a contratação direta de um projeto envolvendo tamanhos custos, ele inviabilizou a construção do complexo. Deveria ter sido realizada uma publicação oficial da intenção do projeto pela prefeitura de Potsdam, tornando-o público e possibilitando a outros arquitetos participar do processo. A interrupção do projeto evitou o pronunciamento público dos arquitetos da Alemanha sobre este último trabalho do arquiteto cuja repetitiva composição das cúpulas e de seus elementos de ligação mostram pouca força de design, se comparados com suas obras anteriores. Afinal, conhecemos bem as grandes qualidades, as fases brilhantes e as "curvas" da arquitetura do mestre brasileiro. Seu recente projeto encomendado por Hugo Chavéz para o Monumento a Simon Bolívar em Caracas, Venezuela, mostra a mesma romântica filosofia política e ideal social que o acompanharam toda a sua vida. A concepção do monumento como uma lança semelhante a um obelisco inclinado com mais de 100 metros de altura, lembra o esporão escultural de 300 metros "apontado para o ocidente", projetado para Boumédiene em 1968. Niemeyer parece não perceber que, após 40 anos, tais projetos perderam o significado, tornando-se objetos triviais e inanimados sem função social e política a não ser em países regidos por déspotas anacrônicos e demagogos. Niemeyer, que no início de sua carreira trabalhou conjuntamente com vários artistas e escultores em Pampulha e Brasília, não vê também que seus desenhos e esculturas estão na fronteira entre arte e decoração. Seus desenhos, entre outros, para o Grande Hotel de Ouro Preto, para a Agosto 2007

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Serpentine Gallery em Londres, e para Teatro Popular do Caminho Niemeyer em Niterói, bem como suas esculturas figurativas de Le Havre e do Memorial da América Latina, são gestos patéticos que carregam mais valores afetivos que artísticos, e como as pinturas de Le Corbusier, não podem ser comparados com sua grande obra arquitetônica. Nos últimos anos, no exterior e também no Brasil, deflagrou-se uma corrida desenfreada em busca de seus projetos para os mais variados usos e funções. Ter uma obra de Oscar Niemeyer tornou-se a ambição de várias cidades no mundo inteiro. Projetos que realizados rapidamente têm atropelado o processo de discussão e reflexão técnica e da participação popular e suscitado complexas polêmicas éticas. Isto reflete o uso indevido da personalidade de Oscar Niemeyer por autoridades governamentais e grandes empresários para conferir prestígio e legitimidade à suas intervenções urbanas nos espaços públicos e expressar no concreto e vidro as suas ambições políticas. O que fica claro para nós é que no tempo de Juscelino Kubitschek e de outros clientes responsáveis para quem ele trabalhou ao longo de sua vida profissional, havia um ideal utópico de construir um mundo mais justo e melhor. Eles possibilitaram a Niemeyer realizar suas idéias arquitetônicas, dando-lhe então espaço para projetar a beleza do futuro que até hoje nos encanta e fortalece pela ausência de modismos e pelo seu vigor plástico. (traduzido do alemão por Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle) Catálogo da Exposicao Niemeyer 90 anos/Reprodução

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Oscar Niemeyer, na cobertura do edifício Sede do Partido Comunista Francês, em Paris


Depoimentos Exclusivos para Continente Wandenkolk Walter Tinoco

Arquiteto pernambucano formado em 1958 pela Escola de Belas Artes da UFPE, foi professor da Faculdade de Arquitetura da UFPE e coordena o escritório de arquitetura WWTinoco no Recife. A sua instigante arquitetura nos tem deixado o exemplo inovador que, se por vezes nos parece contestável, se impõe pela coragem das propostas que seguem modificando, como se faz necessário, os conceitos e parâmetros estabelecidos por outras culturas. Obediente à sinuosidade da nossa geografia e à sensualidade de nosso povo, faz conviver intimamente a curva ousada e a linha reta, tornando-as cúmplices de uma nova linguagem, que rompe preconceitos e inclui a volumetria tanto externa quanto atmosférica, como uma das mais importantes funções do projeto, confortando o espírito de quem as usa ou observa. Sendo assim, o invólucro de uma função corretamente posta é capaz de expressar a mensagem desejada, razão do objeto arquitetônico. Outra característica inequívoca da sua obra é o enorme poder de síntese que deixa transparecer uma linha espiritual identificável em poucos traços, que nos revela mais uma vez a força de expressão dos grandes projetos. Todos estes valores, somados a uma grande inquietação, demonstram desde a Obra do Berço até o Parque Dona Lindu a particularização de conceitos que foram crescendo na direção de uma arquitetura da qual nos devemos orgulhar e seguir buscando, cada vez mais, a consolidação da sua identidade.

Natália Vieira

Arquiteta, doutora em Conservação Urbana e coordenadora do Curso de Arquitetura da Faculdade Damas, Recife. É unânime o reconhecimento da importância de Oscar Niemeyer para a afirmação da arquitetura moderna brasileira no cenário internacional. Entretanto pouco se comenta sobre seu pioneirismo na intervenção em áreas históricas. O Grande Hotel Ouro Preto (1940), construído poucos anos depois da fundação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937), é um exemplo paradigmático da inserção da arquitetura contemporânea em um contexto histórico e antecipa as orientações do

Klaus Brendler/ Divulgação

O Museu de Arte Contemporânea – MAC – fica em Niterói


Klaus Brendler/ Divulgação

O Copan é um dos mais importantes e conhecidos edifícios de São Paulo

restauro crítico proposto por Cesari Brandi em sua Teoria do Restauro nos anos 60. Niemeyer respeita a instância histórica ao inserir uma edificação francamente moderna no casario antigo de Ouro Preto, e ao mesmo tempo considera a instância estética, ao utilizar elementos tradicionais locais como a telha de barro, as varandas, os azulejos e os muxarabis numa linguagem moderna sem cópias, imitações ou pastiches. Ele nos mostra que é possível a convivência respeitosa e dialética da arquitetura contemporânea de qualidade com a arquitetura do passado.

Álvaro Siza

Arquiteto português professor da Escola de Belas Arte do Porto, recebeu o Pritzker-Prize em 1992. No princípio era Corbu... As novas publicações davam conta do que se fazia, onde, como e quem. Reconstruía-se a Europa. Um dia, de chofre, surgiu a América do Sul na Architecture d'Aujour d' hui. E logo inúmeras publicações sobre o Brasil e mais ainda sobre "um" Oscar Niemeyer. As revistas pousadas sobre as nossas mesas de trabalho (monografias de Gropious, de Neutra, de Mendelsohn, de Mies) foram misteriosamente substituídas. Surgiram no papel, como nos desenhos de Niemeyer que nos fascinavam - pilares como pontos, paredes como finas linhas ondulantes, quase dissolvendo a forma, contudo tão nova e tão evocativa. Bailavam na mente Pampulha e Canoas.

Zaha Hadid

Arquiteta iraquiana de nacionalidade britânica, radicada em Londres, recebeu o Pritzker-Prize em 2004. É uma das maiores personalidades da arquitetura contemporânea mundial. Meu trabalho teve uma influência profunda de Oscar Niemeyer. Eu visitei muitas de suas obras no Brasil e tive também o privilégio de encontrá-lo pessoalmente em diversas ocasiões. Sua originalidade, sensibilidade espacial e seu talento virtuoso são simplesmente únicos e insuperáveis. Sua obra me inspirou e encorajou a buscar a minha própria arquitetura, seguindo-o na conquista da fluidez total em todas as escalas.

Günter Behnisch

Arquiteto alemão, professor emérito da Universidade de Darmstadt, autor, entre outros, do Centro Olímpico de Munique. Oscar Niemeyer é para mim o último grande arquiteto do Movimento Moderno do século 20. Através de suas criações individuais, ele consegue tornar qualquer lugar em alguma coisa especial, única e imutável. É o poético que em seus edifícios nos fascina. O jogo com as formas esculturais e com a luz, as linhas suaves e fluentes e seus vigorosos e rítmicos movimentos. Um dos objetivos de sua arquitetura é exercer a mínima pressão sobre as pessoas. A liberdade que dela resulta contribui para o florescimento individual de cada um.


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ESPECIAL


ALEX LARBAC / TYBAFOTOS

O jornal inglês Daily Telegraph concedeu ao o título de “visionário". Uma longa entrevista com nosso personagem um título pomposo, num artigo ele, no escritório em que trabalha até hoje, aos 93 publicado no ano passado: Oscar Niemeyer é o anos de idade, pode trazer surpresas. Comunista “último grande arquiteto modernista visionário". renitente, recusa-se a aceitar o fim inexorável da O Oscar Niemeyer que aparece nas enci- União Soviética. Corre o risco de segurar o bastão clopédias pode ser descrito como um gigante da ar- de último comunista incondicional do planeta. Gilquitetura mas, pessoalmente, exala uma certa fragi- berto Freyre disse uma vez que Niemeyer, arquiteto lidade. É baixo. Fala com voz contida. Declara-se genial, era um homem ignorante porque vivia olimpicamente desinteressado das glórias terrenas. repetindo palavras de ordem marxistas (Niemeyer É provável que a alegada modéstia esconda, na ver- dá, nesta entrevista, uma resposta mineira quando dade, uma ponta de justificada vaidade. Arquitetos confrontado com a crítica). A bem da verdade, desenham casas, prédios, praças. Niemeyer conce- diga-se que Niemeyer não é cem por cento prebeu uma cidade: visível em suas declarações de princípios. Exemplo: – Quando chego perto de Brasília, parece é um pessimista que, contraditoriamente, gosta de um milagre. Fico pensando que seria quase impos- falar em esperança. Um diálogo com ele pode ser sível Juscelino ter feito aquela obra toda em três rico e surpreendente. O ateu Niemeyer emocionaanos e meio. Hoje, para fazer uns dez edifícios, le- se ao descobrir, através de um amigo cientista, que vam-se três anos. Em Brasília, era preciso fazer tu- o Homem e as estrelas são feitos da mesma mado: uma cidade inteira. Aquilo foi uma cruzada que téria. Nem tudo é amargor na cartilha do mais cémostrou que nós, brasileiros, podemos fazer algu- lebre dos arquitetos brasileiros. Pelo contrário. Aos ma coisa. Brasília foi um momento importante para noventa e três anos, é um apóstolo devotado da o povo brasileiro. seita dos que nunca deixaram de acreditar nesta Quando recita sobre Brautopia de seis letras chamada sília, Niemeyer parece encarnar Geneton Moraes Neto Brasil.

meyer

Ateu, comunista, solidário, pessimista, genial, o mais famoso arquiteto brasileiro celebra uma utopia chamada Brasil

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“Influência de Le Corbusier foi apenas no conceito de arquitetura-invenção”

O senhor sempre disse que via o homem como um bicho “terreno, biológico, sem mistérios". Depois dos noventa anos de idade, esta visão de mundo mudou de alguma maneira ? A visão do mundo, não. O pessimismo é coisa antiga – antiquíssima – que, no entanto, não leva ao niilismo. Jean-Paul Sartre era pessimista: dizia que toda existência é um fracasso. Mas ele gostava da vida. Apoiou todos os movimentos populares e progressistas de libertação. Dizia aos amigos que gostava de ter dinheiro no bolso pra dar de esmola. Então, uma coisa – o pessimismo – não tem a ver com a outra – o niilismo. O que acho – 6 Continente Multicultural

AFP

O senhor transmite uma visão pessimista da vida – um certo enfado diante das coisas. Como é que se justifica tanto pessimismo num homem tão bem-ssucedido ? Sou pessimista diante da idéia de que o homem, quando nasce, já começa a morrer, como notou Jean-Paul Sartre. Mas, na vida, caminhamos rindo e chorando o tempo todo: é preciso, então, aproveitar o lado bom da vida, usufruir o melhor possível e aceitar os outros como eles são. Sempre digo: o importante é o homem sentir como é insignificante, é o homem olhar para o céu e ver como somos pequeninos. Ultimamente, no entanto, tenho me espantado como a inteligência do homem é fantástica! Tenho conversado sobre astronomia. Como é imprevisível o que ele pode criar! Numa dessas conversas que tenho tido com um amigo sobre o cosmos, ele me explicou que o homem é filho das estrelas. A matéria é a mesma! Então, é mais emocionante ser filho das estrelas do que ser filho da terra. Eu sempre dizia que a vida não teria sentido, o homem é filho da terra, como os outros bichos, os outros animais. Mas acho que o futuro será melhor. Os mais inteligentes se queixam do mundo. Acham que o mundo tem prazeres e alegrias, mas a razão de a gente estar aqui é precária. Em todo caso, ninguém quer abandonar o espetáculo. Entre os homens, a maioria é formada pelos que lutam, os que estão sofrendo, os que são humilhados. O drama do ser humano é ver o homem nascer e morrer. Ninguém quer nem pensar sobre este assunto. Os mais ricos estão se divertindo. Não querem pensar em nada: só querem usufruir as boas coisas da vida. Os outros nem têm nem tempo para conseguir viver um pouco.

sempre – é que o homem tem de viver dentro da verdade, saber que não é importante. A disseminação dessa crença levaria o homem a uma posição mais modesta. Porque o homem precisa saber que a vida é curta mesmo. Isso não quer dizer, no entanto, que a vida deva ser marcada pelo niilismo. Não! O homem continua a sonhar, a pensar nas coisas boas – de braços dados uns com os outros. Se o senhor fosse chamado a escrever sobre Oscar Niemeyer numa enciclopédia, qual seria o primeiro verbete? Eu diria que é um ser humano como outro qualquer – que nasceu, viveu e morreu. Sou um homem comum – que trabalhou como todos os outros. Passou a vida debruçado sobre uma prancheta. Interessou-se pelos mais pobres. Amou os amigos e a família. Nada de especial. Não tenho nada de extraordinário. Acho ridículo esse negócio de se dar importância. Eu consegui manter, a respeito dos homens, uma posição que me tranqüiliza muito: vejo os homens como uma casa, em que você pode consertar as janelas, acertar o aprumo das paredes, pintar. Mas, se o projeto inicial foi ruim, fica prejudicado. Aceito as pessoas como elas são. Todo mundo tem um lado bom e um lado ruim. O homem nasce numa loteria: é bom, é ruim, é inteligente ou não. Se a gente aceita este fato como uma condição inevitável, a gente tem de ser mais paciente com as pessoas, aceitá-las como elas são.


O senhor escreveu: “Sempre admiramos as pessoas que são o que nós gostaríamos de ser". Quem é que o senhor gostaria de ser hoje ? Não vou citar ninguém. Mas gostaria de ser um sujeito normal – que tem prazer de ser útil e ajudar os mais pobres. É o mais importante na vida. O seu medo de viajar de avião é famoso. A que grande encontro o senhor faltou por ter medo de viajar de avião ? Eu tinha combinado com Assis Chateaubriand de me encontrar com ele em Pernambuco . Ele foi na frente, eu iria depois. Mas ele foi – e eu não. Quando ele se encontrou comigo, dias depois, disse: “Você agiu como um verdadeiro comunista!". Mas ele gostava de mim; nos dávamos bem. O medo de viajar de avião me atrapalhou muito. Um dia, eu estava em Brasília, JK me telefonou para que eu viesse com ele de avião para o Rio de Janeiro. Não vim. Viajei de automóvel. Houve, então, um acidente com o carro em que eu viajava. Passei quinze dias no hospital. O medo de avião não vem de nenhum raciocínio . É coisa minha mesmo. Não viajo quando não quero. Mas muitas vezes invento essa historia de medo de avião, porque não quero viajar. O senhor disse que tinha uma certo “ sentimento de culpa” por ter tanto medo de avião. É verdade ? Mas eu não gosto desse negócio de altura! Tantas vezes voltei do caminho... Deixei de viajar. Uma vez, eu estava na Argélia. Quando chegou a hora do avião sair – eu já tinha posto aquele balinha na boca –, eu disse : “Não vou !". Peguei o meu colega e saí. Isso criou uma dificuldade, porque a mala já estava no avião. Mas viajei muito. Já embarquei três vezes num Concorde! É um sistema prático – que a gente tem de aceitar. O senhor se lembra quando foi a primeira vez em que Juscelino Kubitscheck falou ao senhor sobre o sonho de construir Brasília? Eu me dei com Juscelino desde o primeiro dia .O primeiro trabalho que fiz como arquiteto foi a Pampulha – a primeira obra que ele construiu. Pampulha, então, foi o início de Brasília: a mesma pressa, a mesma correria, os mesmos problemas

econômicos para fazer a obra. Quando veio a idéia de Brasília, JK foi à minha casa, nas Canoas, no Rio. Descemos junto para a cidade. Juscelino vinha dizendo: “Oscar, vou fazer Brasília! Vai ser a capital mais bonita do mundo!” O senhor tem alguma dúvida sobre as circunstâncias da morte de JK ? Não. Nenhuma. Acho que foi um acidente. Qual foi o último encontro entre os dois ? Quando Juscelino estava em Paris, estive com ele. Eu ia ao apartamento em que ele vivia. Juscelino foi uma pessoa muito importante para a vida brasileira. A construção de Brasília foi um momento de otimismo e de esperança. Brasília foi aquele luta: a terra vazia, tudo por começar, sem estrada, sem conforto. Mas havia entusiasmo. Havia pressão de Juscelino e de Israel Pinheiro. A meta era: terminar de qualquer maneira. O prazo foi cumprido. Brasília foi um momento estranho: vivíamos junto aos operários, freqüentávamos as mesmas coisas, as mesmas boates, com a mesma roupa. Aquilo dava uma idéia de que o mundo estava evoluindo, o tempo estava melhorando. Iria desaparecer aquele barreira de classes. Mas era um sonho. Depois, vieram os políticos, vieram os homens do dinheiro. Tudo recomeçou: essa injustiça imensa, tão difícil de reparar. O poeta Joaquim Cardoso vivia dizendo ao senhor que era importante visitar os observatórios para estudar o céu. É esse o motivo que o levou a se interessar por astronomia? Tenho conversado, no meu escritório, com um cientista que vem falar sobre o cosmos. É um assunto que interessa a gente – principalmente quando a conversa se encaminha para a esperança e a invenção. A gente vê como tudo é possível ! O homem, que parece insignificante, tão pequenino quando visto do céu, na verdade é o único elemento de inteligência no universo. Tudo é possível, então! A gente lembra de que há cinqüenta anos não existia televisão. Agora , a gente já admite a transposição da matéria ou que o homem possa viajar entre as estrelas. Pode até habitar outros planetas. Um mundo novo vem surgindo. E é fantástico.

Croquis de Niemeyer

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REPRODUÇÃO

Esboço do Museu de Arte Moderna de Niterói

O senhor, que é um homem sem crença religiosa, em algum momento teve a tentação de acreditar em Deus? Venho de uma família católica – que veio de Maricá, eram fazendeiros. O meu avô foi do Supremo Tribunal. Tínhamos missa em casa, com a presença de vizinhos. Mas, quando saí para a vida, superei tudo isso. Vi que o mundo era injusto. Não acredito em nada. Acredito na natureza: tudo começou não se sabe quando nem como. Eu bem que gostaria de acreditar em Deus. Mas não. Sou pessimista diante da vida e do homem. O que o levou a não acreditar em Deus foi essa constatação de que o mundo era injusto ? O mundo é injusto, sem perspectiva. A indagação que a gente faz os pintores antigos já escreviam nos quadros: “De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?" Quando eu era pequeno – tinha uns quatorze anos – já pensava na morte. Ficava meio desesperado quando pensava que o sujeito vai desaparecer, não vai pensar mais nada. Mas a vida é assim: o que a gente deve é procurar ser útil e dar as mãos.

vão usufruir nada desse edifício, mas sei que, se o edifício for bonito, os pobres vão parar e ter um momento de espanto e alegria ao ver uma coisa diferente. O senhor não vive na casa que o senhor projetou. Por que é que o homem Oscar Niemeyer não vive na casa que o arquiteto Oscar Niemeyer criou? Eu gostaria. Vivi lá dez anos. Lá, JK foi me procurar. Mas é longe, num lugar um pouco deserto. Nesse clima em que vivemos – com assaltos e insegurança – o pessoal prefere ficar mais no centro. A casa ficou vazia. Quase todo dia vem visitante para vê-la. Eu mantenho a casa porque é um bom exemplo de arquitetura, o lugar é bonito. O senhor – que gosta de futebol – participou do concurso para escolha do projeto para a construção do estádio do Maracanã. Como seria o Maracanã de Oscar Niemeyer? O meu estádio seria pior. Naquele tempo, a idéia que tínhamos de arquitetura em relação a estádio de futebol era fazer uma única arquibancada do lado em que o sol não batesse na cara do espectador. Depois, ao começar a freqüentar estádios, vi como era importante existir arquibancada também do outro lado. O sujeito vê o campo, vê o jogo, mas precisa ver também a alegria do estádio! Então, um estádio circular, como o Maracanã, é a solução melhor. Passaram-se alguns anos, eu estava na casa de Maria Martins, em Petrópolis, quando chegou Getúlio Vargas, a quem eu nunca tinha encontrado. Getúlio olhou para mim e disse: “Se eu tivesse ficado no governo, teria feito o seu estádio". Tive vontade de dizer: “Era ruim. O outro projeto era melhor” .

O senhor uma vez escreveu “minha posição diante do mundo é de invariável revolta". Onde é O senhor, como noventa e nove por cento que nasceu esse sentimento ? Veio da miséria que nos cerca. Ninguém dos brasileiros, pensou em ser jogador de futebol. resolve. É uma luta de milhares de anos: a gente vê O senhor tentou a sério? os mais ricos usufruindo tudo. Quando O meu Maracanã seria pior. A idéia que faço um projeto de um tínhamos em relação a estádio de futebol prédio público – por era fazer uma única arquibancada do exemplo – procuro fazer algo bonito. Primeiro, porlado em que o sol não batesse na que esse é o caminho da arquitecara do espectador tura. Eu sei que os mais pobres não 8 Continente Multicultural


ROGÉRIO REIS / TYBAFOTOS

Eu jogava bem no colégio. Eu me lembro de que um grande goleiro do Flamengo, o Amado, foi do meu tempo de colégio. Uma vez, ele veio me procurar para treinar no Flamengo. Joguei numa preliminar Flamengo e Fluminense. Fiquei espantado com o estádio cheio de gente – por causa do jogo seguinte. Eu só pensava em futebol no meu tempo de colégio. Joguei pelo Fluminense – como atacante. Gostava de driblar.

Diz a lenda que o senhor já teve nas mãos um pedaço da lua, trazido por um astronauta americano. É verdade? Quando eu estava em Paris, andava sempre com um grupo do qual fazia parte Ubirajara Brito, um cientista, um físico muito inteligente que tinha sido incumbido de estudar a Lua, no laboratório em que trabalhava. Ubirajara Brito nos mostrou pedrinhas brancas da lua. O engraçado é que era uma pedrinha como outra qualquer. Tive vontade de ficar com uma daquelas pedrinhas... É verdade que o senhor projetou uma casa para o seu motorista numa favela no Rio ? O meu motorista mora na favela da Rocinha, em São Conrado. É um amigo: trabalha comigo há quarenta anos. Fiz uma casa para ele lá, porque me dá prazer ser útil. A gente se sente mais tranqüilo quando colabora. O fato de comprar um apartamento para Luís Carlos Prestes também me agradou (N: Niemeyer deu de presente um apartamento ao líder comunista, na rua das Acácias, na Gávea, zona sul do Rio). É como encontrar com uma pessoa na rua e dar dinheiro. De vez em quando, um colega me diz : “É besteira, não adianta nada". Ora, eu sei que não adianta, mas estou dando um momento de alegria para a pessoa. Não importa que ela vá usar o dinheiro para beber.

Em termos arquitetônicos, qual foi a preocupação que o senhor teve ao desenhar a casa para o motorista, na favela? Ser útil! Saber que ele agora tem um teto. O problema brasileiro é esse. O movimento que nos entusiasma hoje no Brasil é a luta pela reforma agrária. O mais importante no momento é o movimento dos sem-terra. Quando o movimento começou, fiz uma espécie de estandarte para eles. Mas, já na primeira briga, o estandarte foi estraçalhado. Os integrantes do movimento vieram ao meu escritório, fizeram um pequeno comício. Isso entusiasma a gente: mexer no mundo, mudar um pouco, acabar com essa miséria.

Niemeyer no escritório com foto antiga de Prestes ao fundo

Uma década depois da queda do Muro de Berlim, o senhor continua comunista. Mas o chamado “socialismo real", feito à base de partido único e economia centralizada, ruiu. O senhor não teme ser considerado um dinossauro ? Não. Nunca passou por minha cabeça a idéia de que o que houve na União Soviética tenha sido uma coisa definitiva. Aquilo foi um acidente de percurso muito natural. Foram setenta anos de luta e glória. Os soviéticos viajaram para o espaço. Marx inventou uma história fantástica, criou uma esperança nos homens. Por que pensar que tudo acabou? Quem leu os clássicos soviéticos sabe que eles são patriotas demais para aceitar essa humilhação. Quando deixou o Brasil durante um pe-

A ríodo do regime militar, o senhor disse: “Resolvi viajar para o Exterior com arquitetura não é o mais as minhas mágoas e a minha arimportante para mim, é a vida, quitetura". A arquitetura de são os amigos. A grande obra é aquela Oscar Niemeyer todo mundo conhece. Quais em que a gente sente um momento de eram as mágoas ? esperança, como aconteceu em Brasília. Continente Multicultural 9


“Quando a arquitetura é bem feita, é fácil de compreender”

O senhor uma vez chorou ao ouvir uma música de Ataulfo Alves. A música faz o senhor chorar ainda hoje? A música me trazia lembranças de casa, lembranças de amigos. Além de tudo, é bom chorar: às vezes, é preciso. hoje?

O que é, então, que faz o senhor chorar

Qualquer sentimento de pesar ou de saudade; um amigo que desaparece. Uma vez, eu estava subindo para o escritório quando um garoto, pobrezinho, veio vender uns biscoitos. Dei um dinheiro para ele. Peguei o elevador. Quando cheguei aqui em cima , a miséria daquele garoto parecia que era a miséria do mundo. Fiquei tão perturbado que mandei chamar o garoto. Aqui combinamos que ele sairia da rua para estudar. A cozinheira logo achou que ele poderia ficar na casa dela por uns dias. O menino ficou uma semana, mas, depois, fugiu outra vez. Coisas assim é que deveriam incomodar todo mundo. Sempre digo: o sujeito para ser feliz tem de ter saúde e dinheiro, mas tem de ser burríssimo, porque pode viver como um bi10 Continente Multicultural

DIDA SAMPAIO / AE

O clima no tempo do governo Médici ficou ruim. Tive de ir para fora. Os que queriam me paralisar me deram a oportunidade de mostrar no Exterior a minha arquitetura. Era o que eu precisava. Mas o exílio – até quando é voluntário – é muito duro. Você tem de aproveitar os momentos de calma para se divertir; a vida exige. Mas há momentos de pessimismo e de saudade. Você fica comovido com uma palavra, uma coisa qualquer que lembrasse o Brasil, lembrasse a família, lembrasse o que estava acontecendo aqui: aquela miséria imensa, aquela perseguição. A gente se sentia infeliz, queria voltar. Mas a vida é assim. Quando cheguei ao Brasil, fui direto ao quartel. Perguntaram numa sala fechada: “Doutor Niemeyer, o que é que vocês querem?" Eu disse: “Queremos mudar a sociedade". O policial que me perguntava disse ao crioulinho que batia à máquina: “Escreve aí: “Mudar a sociedade!" Ele, então, olhou para trás e disse: “Vai ser difícil..." Eu até achei graça. O que a gente queria era mudar a profissão daquele homem – por exemplo – para que ele tivesse um ofício melhor. A ignorância é que contribui para a manutenção do clima de injustiça – que não se modifica.

cho. Mas, desde que olhe em volta e veja que existe tanta gente sofrendo, a vida fica mais amarga. O senhor sempre combateu os conservadores. Qual foi o brasileiro mais reacionário que o senhor já conheceu ? São tantos... Mas nunca me indispus por questões de divergência política. Tive amigos integralistas. Achava que eles estavam equivocados. Com certeza, eles pensavam a mesma coisa de mim. Mas podíamos conviver perfeitamente. O importante é que haja liberdade para que cada um pense o que quiser. A gente luta pelas coisas em que acredita. Mas o tempo muda as coisas. Eu nasci protestando; vou protestar a vida inteira. O sujeito vem, me pede um protesto, eu às vezes assino sem nem ler direito. Nunca esteve tão ruim, mas a gente precisa ter esperança. Podem ter vendido tudo, a violência pode ter assumido níveis nunca visto antes, mas tem de existir esperança. É preciso brigar, discutir, tomar posição de acordo com o que a situação exige: que todos fiquem contra. Todo mundo tem um museu imaginário na cabeça. Qual é a grande obra do museu imaginário de Oscar Niemeyer? Sempre digo que a arquitetura não é o mais importante para mim. O importante é a vida, os amigos. Mas a grande obra é aquela em que a gente sente um momento de esperança, como aconteceu em Brasília. A gente achava que o mundo iria


mudar; o preconceito de classe iria desaparecer. Momentos de esperança é que são importantes. Que comentário o então presidente Juscelino Kubitscheck fez ao senhor, ao ver Brasília tomando forma ? Uma noite, quando estava sozinho no Palácio, Juscelino me chamou para conversar. Ficava divagando sobre as metas que iria cumprir. Já eram duas horas da manhã quando saímos. Juscelino nos acompanhou até o lado de fora do Palácio da Alvorada. Como era noite, o Palácio, branco, se destacava na escuridão. Juscelino, então, me pegou pelo braço e me disse: “Que beleza!" O trabalho era duro, dia e noite, mas ele nos entusiasmava com a liberdade que nos dava para que fizéssemos o que bem entendíamos. Era um momento de otimismo. Um dia, ele me telefonou: “Você tem problema de dinheiro. Eu queria que você fizesse, pela tabela do Instituto de Arquitetos, os projetos do Banco do Brasil e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico". Eu disse: “Não faço; sou funcionário". Indiquei amigos que fizeram. Mas o convite de Juscelino mostra que ele se preocupava com a gente: estava querendo ser solidário. Tive a chance de lidar com pessoas que me compreendiam e me aceitavam. Agora, por exemplo, tenho o apoio do prefeito de Niterói – que fez um museu na cidade. Fará outras obras. Pediu-me para projetar um Centro de Convenções em Niterói – um prédio para três mil pessoas. A gente tem de trabalhar, a vida obriga. Além de tudo, o sujeito, na minha idade, não pode ficar parado: precisa ficar atento. Ou então finge que é moço, diz besteira, sacanagem..... Por que é que o senhor resolveu aprender a tocar cavaquinho? Eu freqüentava o Clube de Regatas Guanabara. Tinha amigos lá. Os nomes eram engraçados. “Gastão Vida de Cão” era um sujeito que apareceu no clube com um violão; não tinha trabalho, não tinha onde morar: ficou morando lá. Tinha o “Siri Buceta” (ri). A gente então ficava no Clube brincando e tocando violão . Saquarema era o roupeiro. Jacobina, campeão brasileiro de natação, era músico. Sempre gostei desse negócio de música. Em Brasília, tinha Lelé, Marçal. É um momento de descanso. Eu sabia tocar umas coisas de violão, mas já esqueci muito.

A Arquitetura tem de ser bonita. Se é mais justa, é ainda melhor. A arquitetura que faço é livre. Mas é É discriminatória. É verdade que existe uma fita em outro problema

que o senhor toca com Tom Jobim ? Uma vez, na brincadeira, gente viu se eu acompanhava Tom Jobim... Era fantástico, assim como Chico Buarque, Vinícius de Morais. Darcy Ribeiro era um companheiro bom: vivo, inteligente, seguro. Quando veio o golpe, ficou firme no Palácio, na tentativa de resistir. A vida às vezes faz a gente mais otimista quando gente boa se revela cheia de qualidades. Gilberto Freyre disse numa entrevista que o senhor era um arquiteto genial, mas era muito ignorante, porque passou a vida repetindo chavões marxistas. Críticos assim incomodam o senhor? Não. Eu li Casa Grande & Senzala e gostei. É um livro muito bem escrito. Gilberto Freyre era um grande escritor... cas?

Mas como é que o senhor recebia essas críti-

Cada um pensa o que quer. Nunca conversei com ele. Eu me lembro de ter me encontrado com ele uma vez – corrida – em Pernambuco. É verdade que houve uma festa com a participação do senhor, o compositor Ari Barroso, o pintor Di Cavalcanti, arquitetos estrangeiros que tinham vindo ver o projeto de Brasília e seis mulheres? Conversa assim não é para entrevista (irritado)... E essa sua pergunta me chateou.... (pausa) Uma vez, veio um sujeito aqui para fazer uma entrevista. Fez uma pergunta e eu disse: acabou a entrevista....(nova pausa). Vamos em frente... Quais serão os próximos projetos ? Fiz um projeto que me interessou para Londres: um hotel situado a cem metros de altura. Aqui no Brasil, tenho dois projetos que me ocupam Continente Multicultural 11


ANTÔNIO SCORZA / AFP

“A arquitetura que faço é livre, de acordo com o clima do país, um pouco ligada às velhas igrejas de Minas Gerais”

Croquis de Niemeyer

com todo interesse: o Centro Cultural de Brasília, que o governador Roriz pensa em realizar, para completar o eixo monumental. É importante para Brasília porque o cartão de visita da cidade é chegar e ver os palácios- o Eixo Monumental. O projeto para a Prefeitura de Niterói é ambicioso, com igreja, catedral, teatro. O terreno fica de frente para o mar: é bonito, um espetáculo de arquitetura. Os prédios vão ter uma unidade. Quando a arquitetura é bem feita, é fácil de compreender. A arquitetura é verdadeira quando é fácil. A minha arquitetura é assim: feita com a preocupação da beleza. Quer ser bonita, ser lógica e, principalmente, ser inventiva. Quem vai a Brasília pode gostar ou não do Palácio. Mas não pode dizer é que viu antes coisa parecida. Quem é que fez um Congresso com aquelas cúpulas? Quem é que fez as colunas do Palácio do Planalto? Aquilo é invenção, é arquitetura. O senhor nunca abriu mão do sentimento de beleza na arquitetura ? O caminho da arquitetura é esse: a arquitetura tem de ser bonita. Se é mais justa, é ainda melhor. A arquitetura que faço é livre – de acordo com o clima do país –,um pouco ligada às velhas igrejas de Minas Gerais, numa relação com o passado. Mas é discriminatória, o que é outro problema. Se a gente quiser fazer uma arquitetura que chegue ao povo, não é um problema de arquitetura: é um

problema de revolução. Porque a verdade é que só os ricos é que usufruem.

Em que momento da vida o senhor adquiriu a certeza de que a arquitetura precisa ser bonita – e não apenas funcional? Tive pouca influência de Corbusier. Mas fui influenciado por ele no dia em que ele me disse: arquitetura é invenção. Eu saí procurando esse caráter inventivo da arquitetura. Quando eu me lembro da Pampulha ou de Brasília, vejo que eu fazia as formas mais diferentes. Perguntaram a mim o que significava. Eu tinha de ficar dando explicações. É como digo: os mais pobres não usufruem. Mas, quando a arquitetura é bonita, os pobres podem parar e ter aquele momento de prazer ao ver algo diferente. O senhor hoje mudaria a concepção dos Palácios de Brasília? Não. Naquele momento foi o que me ocorreu: eu quis fazer uma arquitetura mais leve, os prédios como se estivessem apenas tocando o chão. Joaquim Cardozo entendia e se esmerava, para fazer o mais fino possível. Quando fui para a Europa, eu já estava preocupado com a engenharia do meu país, para mostrar que nós não somos bobos. A gente sabe das coisas. Diante de suas obras, Darcy Ribeiro disse que o senhor é o único brasileiro que será lembrado daqui a quinhentos anos. O senhor concorda ? Darcy Ribeiro era meu amigo. E os amigos dizem tudo". O senhor conseguiria definir o Brasil numa só palavra ? Esperança. É o que a gente tem de ter. Geneton Moraes Neto é jornalista e chefe de redação do programa Fantástico, da TV Globo


REPRODUÇÃO

Meu amigo Joaquim Cardozo Niemeyer lembra os últimos dias do poeta que calculava seus palácios

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urante 30 anos o poeta pernambucano e também engenheiro Joaquim Cardozo foi o calculista de obras idealizadas por Oscar Niemeyer. Só em Brasília, o Palácio da Alvorada, a Catedral, o Palácio do Planalto, a Igreja N. S. de Fátima e o Congresso, entre outros, foram edificados com base nos cálculos estruturais de Cardozo. No dia 4 de fevereiro de 1971, entretanto, o Pavilhão de Exposições da Gameleira, em Belo Horizonte, desabou, matando 86 operários. Joaquim Cardozo foi acusado de ter errado nos cálculos, o que teria provocado a tragédia. Apesar de ser finalmente inocentado do suposto erro, o sensível poeta nunca mais seria o mesmo, passando por um processo de lento desmoronamento até a morte.

Sobre seus últimos dias, escreveu o amigo Oscar Niemeyer: “É velho retrato amarelado pelo tempo. Estamos sentados num banco do Jardim Público de Belo Horizonte e Cardozo olha a máquina com um ar distante e constrangido Está magro. Os ossos à flor da pele. Quantos anos andamos juntos neste velho planeta? Quantas viagens juntos fizemos pelo Brasil afora? Quantas coisas conversamos, quanta amargura levantamos diante deste mundo absurdo; às vezes do terraço do nosso escritório, Cardozo, olhando o céu (...) Há mais de um ano meu amigo se foi. Magoado com a vida e com os homens. Magro, quase de vidro. Lembro-me quando doente e ofendido, ele me telefonou do Recife: “Oscar, manda alguém me buscar!" Atendi-o hospedando-o no Hotel Miramar, perto do escritório, onde todas as manhãs o apanhava. E Cardozo passava o dia inteiro entre nós, com a memória mais fraca, mas ainda sorrindo, contando histórias do Recife, do Bar Gambrinos, do velho meretrício, onde gostava de passear, explicando: “Só para ver o colorido!..." À noite, eu o levava de volta e muitas vezes jantava com ele, no quarto do hotel, pesaroso de deixá-lo sozinho. Era um homem sensível e solitário que a mim se apegou como quem encontra e não quer perder o seu derradeiro amigo. (...) Mas a doença seguia seu curso inexorável e, como sua permanência no hotel se tornasse impossível, levei-o para a Casa de Saúde Eiras (...) A princípio, Cardozo parecia se adaptar naquele ambiente tranqüilo e confortante. (...) Mas as condições de saúde se agravavam, os doentes do quarto vizinho e até os que eventualmente o procuravam, começaram a irritá-lo. (...) Dois meses depois, a direção da Casa de Saúde, como ocorrera no Hotel Miramar, insistia que eu o internasse na seção de psiquiatria. Triste mundo... Onde estavam os amigos, devedores de tanto apoio e atenção? Junto dele, acompanhando-o nos seus desesperos, éramos cinco ou seis no máximo. Fretei um avião e Cardozo, acompanhado de seu médico, seguiu para o Recife. Onde, pouco depois, faleceu num hospital da cidade". Fonte: Joaquim Cardozo – Ensaio Biográfico, de Maria da Paz Ribeiro Dantas (Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1985, 83 páginas).

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Versos brasílicos de João Cabral Aqui, as horizontais descampinadas farão o que os alpendres sem ânsia, dissolvendo no homem o agarrotamento que trouxe consigo de cidade cãibra. Mas ela já veio com o lhano que virá ao homem daqui, hoje ainda crispado: em seu estar-se tão fluente, de Minas, onde os alpendres diluentes, de lago.

* No cimento de Brasília se resguardam maneiras de casa antiga de fazenda, de copiar, de casa-grande de engenho, enfim, das casaronas de alma fêmea. Com os palácios daqui (casas-grandes) por isso a presença dela assim combina: dela, que guarda no jeito o feminino e o envolvimento de alpendre de Minas.

Enquanto com Max Bense eu ia como que sua filosofia mineral, toda esquadrias do metal-luz dos meios-dias, arquitetura se fazia: mais um edifício sem entropia, literalmente, se construía: um edifício filosofia. Enquanto Max Bense a visita e a vai dizendo, Brasília, eu também de visita ia: ao edifício do que ele dizia: edifício que, todavia, de duas formas existia: na de edifício em que se habita e de edifício que nos habita.

Mesma mineira em Brasília

À Brasília de Oscar Niemeyer

No cimento duro, de aço e de cimento, Brasília enxertou-se, e guarda vivo, esse poroso quase carnal da alvenaria da casa de fazenda do Brasil antigo. Com os palácios daqui (casas-grandes) por isso a presença dela assim combina: dela, que guarda no corpo e receptivo e o absorvimento de alpendre de Minas.

Eis casas-grandes de engenho, horizontais, escancaradas, onde se existe em extensão e a alma todoaberta se espraia.

Aqui, as horizontais descampinadas farão o que os alpendres remansos, alargando espaçoso o tempo do homem de tempo atravancado e sem quandos. Mas ela já veio com a calma que virá ao homem daqui, hoje ainda apurado: em seu tempo amplo de tempo, de Minas, onde os alpendres espaçosos, de largo. Desenho de Niemeyer

Acompanhando Max Bense em sua visita a Brasília, 1961

(De A Educação Pela Pedra)

Não se sabe é se o arquiteto as quis símbolos ou ginástica: símbolos do que chamou Vinícius “imensos limites da pátria” ou ginástica, para ensinar quem for viver naquelas salas um deixar-se, um deixar viver de alma arejada, não fanática. (De Museu de Tudo) Todos os poemas integram o volume Obra Completa, João Cabral de Melo Neto, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1994

ANTONIO SCORZA / AFP

Uma mineira em Brasília


“É

o acuso! que hoje faço aos arquitetos responsáveis por uma Goiânia e principalmente por uma Brasília talvez já difíceis de ser retificadas em alguns dos seus erros de caráter ecológico ou de ordem sociológica. Faço-o como uma espécie de advogado do diabo que devesse opor a um abstracionismo criador de grandes belezas de tipo escultural em arquitetura – belezas, no caso de Brasília, das maiores e das mais puras que já se criaram em qualquer parte do mundo (...)". Este é um dos trechos mais veementes contido no livro Brasís Brasil Brasília, de Gilberto Freyre. Ele critica, como se vê, não a cidade enquanto monumento arquitetônico, mas sim por ter sido planejada sem a visão multidisciplinar que lhe era tão cara. Ou seja, em total descaso com os aspectos social, cultural e ecológico. Preocupa o antropólogo a própria falta de um passado, “um pouco desse passado útil, vivo,

Gilberto Freyre

brasileiro – passado não só erudito como folclórico – suscetível de projetar-se em futuro, abrasileirando-o, caracterizando-o, impedindo-o de ser indistintamente cosmopolita no pior sentido de cosmopolita, é preciso que se torne uma presença inconfundível tanto em Goiânia como em Brasília, para que nem Goiânia nem Brasília dêem ao brasileiro ou ao estrangeiro a impressão de cidades construídas no vácuo cultural dentro do próprio Brasil". Valendo-se do seu conceito de ambiente rurbano – ou seja, que mescla características rurais e urbanas – Gilberto reclama: “Não se compreende que, em cidades como Goiânia e como Brasília, urbanistas e arquitetos deixem de tirar todo o partido técnica e sociologicamente possível, de circunstância de espaço que favorecem, de modo especialíssimo, num Brasil ainda rústico na sua tropicalidade, o desenvolvimento dessas cidades novas, como cidades idealmente rurbanas – mesmo que isso importe em serviços públicos um pouco mais dispendiosos que os verticalmente urbanos".

Além da Arquitetura


16 Continente Multicultural

desenvolvessem uma sistemática de integração de novas cidades num espaço natural, social e cultural, caracteristicamente tropical, atendendo-se o mais possível ao futuro das cidades como cidades modernas no trópico e dentro de um país já com tradições válidas (...) Isto o que tenho procurado opor de concreto aos abstracionistas que, contrariando os próprios desígnios do ex-presidente Juscelino Kubitschek, julgam possível a um país pobre como é o Brasil, dar-se ao luxo de levantar uma cidade só de arquitetura escultural, com a sua edificação ordenada exclusivamente por arquitetos – aliás, ilustres – como por uma casta de sacerdotes sagrada, toda-poderosa e onisciente; e dentro de um plano apenas urbanístico que, exceção feitas das estradas Belém-Brasília e Belo Horizonte-Brasília e da comunicação aérea, não está integrando num sistema inter-regional de ecologia que desde já lhe assegure a posição de centro desse sistema. Um sistema em que os Brasis mais diversos se encontrariam, uns em Goiânia, todos em Brasília – a sua própria arquitetura, que talvez devesse ser, por isto mesmo, plural, como sugeriu o escritor francês André Malraux; e não dirigida conforme um esquema mais abstrato, no seu afã universalista, do que telúrico ou ecológico, na sua relação com a experiência mais profundamente brasileira do trópico. Um sistema que formasse a base, projetada sobre o futuro, de uma nova e mais dinâmica articulação de Brasís em Brasil, tendo por centro Brasília. A base de um Brasil mais que o de hoje uno ao mesmo tempo que plural na sua tropicalidade tanto quanto na sua modernidade". DIDA SAMPAIO= / AE

Prosseguindo, Freyre se sente “obrigado a estender o acuso! leal, embora desautorizado (...) ao próprio Juscelino Kubitschek , por não ter convocado, para auxiliá-lo no tremendo esforço de se construir, no interior do Brasil, a cidade-base de uma mais moderna civilização brasileira no trópico, ao lado de artistas, de estetas, de críticos de arte – de tendências, alguns deles, sectariamente abstracionistas ou modernistas ou esteticistas – e ao lado de engenheiros do saber e da visão de um Lucas Lopes e de um Regis Bittencourt, de físicos de renome mundial de um César Lattes, de sanitaristas do entusiasmo e da atividade de um Mário Pinotti, ecologistas e cientistas sociais que associassem aos arrojos desses artistas e desses técnicos outra espécie e saber ou outra espécie de conhecimento: o que, por um lado, orientasse e sistematizasse a integração desses arrojos na realidade brasileira e na ecologia tropical, da qual alguns estetas tendem a desgarrar-se por esteticismo puro; e, por outro lado, projetasse tais arrojos sobre o futuro social do Homem de um modo que lhes dê uma nova dimensão, da qual nem sempre artistas, técnicos, físicos, químicos, engenheiros, se antecipam aos cientistas e aos pensadores especificamente sociais, em se aperceber". Gilberto Freyre cita o Seminário Internacional sobre “criação de cidades novas", promovido pela Unesco, no Rio de Janeiro, em 1968, reafirmando o que ele próprio já vinha dizendo: “que como cidade nova, Brasília não é para ser considerada um puro problema de arquitetura ou, sequer, de urbanismo, mas de ecologia. De ecologia tropical em toda sua complexidade. Deveriam, por isso, estar-se levantando, não apenas como obras de arquitetos, mas de arquitetos ligados a ecologistas e a cientistas sociais que juntos

Fonte: Brasís Brasil Brasília, de Gilberto Freyre (Gráfica Record Editora, Rio de Janeiro, 1968, 271 páginas)


Depoimentos

ROGÉRIO REIS / TYBAFOTOS

O reconhecimento dos pares Marco Antonio Borsoi

A poesia da Arquitetura “Niemeyer é o expoente maior da Arquitetura brasileira. Hoje se analisa a obra dele por uma característica muito brasileira, que é a questão da criatividade. Ele consegue obter a grande síntese, usando condições tecnológicas limitadas para extrair o máximo do potencial que a Arquitetura pode dar como expressão artística. O concreto armado nas mãos dele vira uma coisa no limite da possibilidade da estática, de ficar em pé o edifício, sessões delgadas, balanços enormes, vãos grandes. A pedido sempre da poesia da Arquitetura, ele busca o impacto, a beleza do edifício, a inserção na cidade, a surpresa. O assombro, como muitos estrangeiros dizem. Esse é o maior legado dele. O reconhecimento de Niemeyer como um grande mestre da Arquitetura deste século que

passou vem da capacidade de transcender o excesso de racionalidade do Iluminismo. A Arquitetura moderna tinha, entre outras coisas, uma ideologia muito forte de que a forma deveria seguir a função. Era um modo de dizer que a estética não era a função principal. Niemeyer defendeu que a beleza inerente do objeto também é uma função da Arquitetura". Marco Antonio Borsoi é arquiteto e professor do Deptº de Arquitetura e Urbanismo da UFPE e presidente do IAB-PE

Geraldo Santana

A obra do Século 20 “A união de Oscar Niemeyer e Joaquim Cardozo resultou em momentos de rara felicidade para o Brasil, que teve a sorte de vê-los trabalhando juntos em Pampulha e em Brasília.

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“Ele consegue obter a grande síntese, usando condições tecnológicas limitadas para extrair o máximo do potencial que a Arquitetura pode dar como expressão artística”

Geraldo Santana é arquiteto e professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE Catedral de Brasília, com vitrais de Marianne Peretti: surpresa e assombro

Amélia Reynaldo

Reencontro em Barcelona “Niemeyer é uma grande contribuição que o Brasil deu ao mundo. Com relação à forma na Arquitetura – deixando de lado, por um momento, as suas convicções políticas – ele fez escola, uma geração inteira de arquitetos foi influenciada pelo que ele produziu. Agora, quanto às suas convicções políticas, Niemeyer foi muito questionado por suas obras monumentais, excepcionais, sem fazer, no entanto, Arquitetura de massa, que era o que se esperava de um eterno filiado ao Partido Comunista. Então a minha geração, na época da nossa formação profissional, virou as costas para Niemeyer – e eu me incluo nesse grupo. Só vim fazer as pazes com Oscar Niemeyer quando da minha tese de doutorado, em Barcelona, talvez por começar a enxergar a Arquitetura moderna de fora. Passei a perceber como a Arquitetura e o Urbanismo modernos influenciaram a concepção de cidades inteiras – Brasília sendo o modelo perfeito. Além do mais, a Arquitetura moderna e o racionalismo corbusierano já nasceram no Brasil com matizes brasileiros, com cores locais. Como Pampulha. Isso de certa forma resolveu os confliREPRODUÇÃO

O Conjunto da Pampulha representa um momento de grande importância na formação da Arquitetura moderna brasileira. Niemeyer soube explorar, com o seu talento, os princípios básicos do modernismo, interpretando-os e ajustando-os às condições ambientais e culturais brasileiras. A ele, Cardozo se integrou magistralmente, acompanhando-o à altura, no arrojo estrutural e refinamento formal, enriquecendo os riscos originais com detalhes construtivos indispensáveis para a nova Arquitetura que surgia: uma Arquitetura moldada em concreto, de formas ricas e livres, que rompiam com os dogmas do funcionalismo ortodoxo. Com Joaquim Cardozo, os estudos de viabilidade construtiva e macroconcepção estrutural, o refinamento formal, a definição geométrica e o dimensionamento de cada forma e de cada peça estavam exigindo investigação imediata e em certos casos antecipada. Os casos mais complexos de concepção estrutural foram a cúpula da Câmara do Palácio do Congresso, a Catedral de Brasília e o Palácio da Alvorada, que me toca mais profundamente.”.


tos que eu tinha com relação a Niemeyer, me fez olhar em retrospecto e perceber como as obras dele são geniais." Amélia Reynaldo é arquiteta, urbanista e projetou o Plano de Revitalização do Recife Antigo

Vital M. T. Pessoa de Melo

Um trabalho único “Eu acho que independente do trabalho em Arquitetura, Oscar Niemeyer merece o respeito como uma das maiores personalidades que esse país já teve. Afinal de contas são mais de 65 anos de dedicação intensa e permanente ao trabalho. Muito poucos conseguem essa marca, principalmente com a coerência que Oscar manteve por esse tempo todo. Ele é de uma coerência ideológica, de uma firmeza de pensamento, que o torna aquela pessoa absolutamente previsível. Ele nunca surpreendeu ninguém, nunca titubeou. Sempre foi fiel aos seus princípios. E também uma coerência dentro da Arquitetura, porque surgiu com uma Arquitetura já formulada. Também é admirável o seu lado humanista, sempre em defesa dos menos favorecidos, cujos problemas a Arquitetura não resolve. São problemas para outra esfera de preocupação. Esses pontos, a meu ver, já fazem dele, independente da sua produção em Arquitetura, merecedor do respeito de todos os brasileiros. Lucio Costa diz que o melhor resultado da vinda de Le Corbusier ao Brasil, em 1936, para traçar o risco original do edifício do Ministério da Educação e Saúde, foi ter permitido desabrochar a criatividade de Oscar Niemeyer. E, realmente, a gente vê que Niemeyer foi a principal mão daquele trabalho. E desabrochou explosivamente. Oscar

não tem trabalhos de iniciante. Seus primeiros trabalhos são de grande maturidade. Em 37 ele fez o edifício do Ministério, em 39, o pavilhão da Feira de Nova York, e logo depois Pampulha, em 42, 43. O crítico inglês Kenneth Frampton observou que aí ele atingira a maturidade, o seu apogeu profissional. A repercussão internacional de sua obra sempre foi grande. A execução do Ministério da Educação foi um fato importantíssimo em todo o mundo. Não sei de outro arquiteto com produção individual de tal extensão. Digo individual porque Arquitetura sempre é um trabalho de grupo. Não acho que Niemeyer deixou escola, porque, como diz um amigo meu, “o rastro dele é de fogo, quem for atrás se queima". Vital M. T. Pessoa de Melo é arquiteto

Eduardo Galeano

Capitalismo e ângulo reto Niemeyer: Odeia o ângulo reto e o capitalismo. Contra o capitalismo não é muito o que pode fazer; mas contra o ângulo reto, opressor do espaço, triunfa a sua Arquitetura livre e sensual e leve como as nuvens. Niemeyer concebe a morada humana em forma de corpo de mulher, costa sinuosa ou fruta do trópico. Também em forma de montanha, se a montanha se recorta em belas curvas contra o céu, como é o caso das montanhas do Rio de Janeiro, desenhadas por Deus naquele dia em que Deus se criou Niemeyer." (Do livro Memórias del fuego, III, El siglo del viento. Siglo veintiuno de España Editores, 15ª ed., Madri, 1998)

Croquis de Niemeyer

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A

o lado do trabalho como arquiteto, Oscar Niemeyer vem exercendo sua criatividade em esculturas monumentais. “Quando um arquiteto projeta um edifício e olha seus desenhos na prancheta, ele vê a planta projetada como obra já construída. Em transe, se o projeto o apaixona, ele nela penetra curioso, a examinar formas e espaços livres, a considerar os locais onde pensou um painel mural, uma escultura ou simplesmente um desenho em preto e branco", diz ele. E complementa: “É o ato da criação, a integração tão procurada das artes plásticas com a arquitetura". A primeira escultura criada por Niemeyer, em 1980, em Brasília, foi no monumento JK: o alto fuste terminado em curva, protegendo e realçando a figura do ex-presidente, esculpida por Honório Peçanha. “O protesto foi contrariar os que o desprezavam – a ditadura vigente –, obrigando-os a vê-los todos os dias, sorrindo vitorioso sobre a cidade que construiu e que eles desdenhavam". A segunda, criada em 86, no Rio de janeiro, foi também ligada a uma motivação de cunho político. Trata-se do monumento Tortura Nunca Mais. Segundo Niemeyer, ela “representa aquele longo e negro período de tortura que pesou durante 20 anos sobre nós. E a imaginei com a figura humana traspassada pelas forças do mal: uma lança com 25 metros de extensão". Mais uma vez a consciência sociopolítica norteou a elaboração de mais uma escultura-monumento: a Mão executada em 1988. Conta o arquiteto: “A terceira escultura foi a grande mão que desenhei, construída no Memorial da América Latina, em São Paulo, com o mapa do continente a escorrer sangue e esta frase elucidativa –'Suor, sangue e pobreza marcaram a

história dessa América Latina tão desarticulada e oprimida'. Agora urge reajustá-la uni-la, transformála num monobloco intocável, capaz de fazê-la independente e feliz". Três outros grandes trabalhos escultóricos, marcam a continuidade da preocupação das questões sociais e políticas na obra de Niemeyer. O monumento 9 de novembro, em memória dos três operários mortos na greve de novembro de 1988, em Volta Redonda. A obra era tão dramática e contestatória que “no dia seguinte à sua inauguração já estava no chão espatifado. Era a direita que surgia com suas bombas e seus desesperos", conta ele. Sua reação foi propor “que o pusessem de pé outra vez, com as fraturas à mostra e uma frase: ‘Nada, nem a bomba que destruiu este monumento, poderá deter os que lutam pela justiça e liberdade". Outro, é o memorial Gorée-Almadies, erguido em 1991, em Dakar, no Senegal. É uma figura de negro cortada numa placa com 80 metros de altura, lembrando os escravos. Segundo Niemeyer, “denuncia a deportação de milhares de escravos africanos para as Américas. Gosto muito dela como brasileiro, pois temos uma grande dívida de reconhecimento para com os negros". Finalmente, o monumento Eldorado Memória, projeto doado por Niemeyer em 1996, ao Movimento dos Sem Terra, em homenagem aos trabalhadores rurais mortos no conflito de terras em Eldorado dos Carajás, no Pará. São trabalhos veementes em sua denúncia contra a repressão à liberdade, fazendo contraponto a outra atividade de Niemeyer como artista plástico: a do lúdico desenhista de mulheres, em traços delicados e cores suaves. Exemplos da múltipla criatividade de um gênio exercendo-se em formas múltiplas.

No alto e ao lado, desenhos de Oscar Niemeyer

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ALEX LARBAC / TYBAFOTOS

A arquitetura moderna no Brasil

Especialista argentino considera o principal êxito da Arquitetura brasileira, especialmente a de Niemeyer, a superação dos limites do racionalismo modernista, incorporando um funcionalismo que une Arte e Natureza

S

em dúvida a Arquitetura brasilei- drigo Mello Franco de Andrade permitiu o cresra constituiu o principal aporte cimento do movimento moderno. americano ao movimento moderMas é certo que também o movimento esno durante o período 1940-1970 e tava amadurecendo, porque no mesmo ano de repercutiu internacionalmente. 1936 o concurso da Associação Brasileira de ImTodos concordam em afir- prensa (ABI) congregou uma série de projetos mar que a catalização de forças com estruturas independentes, plantas livres, facriadoras e as idéias centrais ao movimento foram chadas de fenestração corrida e o desenho triunajustadas por Le Corbusier em sua visita de 1936, fador de Marcelo e Milton Ribeiro eram considequando em pouco mais de uma semana de traba- rados uma inovação absoluta em seu volume sem lho intensivo, fez os esboços do Ministério da janelas aparentes. Educação e da Cidade Universitária. A obra do Ministério da Educação recorTodos estão de acordo em afirmar que a ria a soluções corbusierianas dos pilotis, os brisecatalização das forças criadoras e os ideais princi- soleil na fachada castigada pelo sol e a carpintaria pais do movimento foram ajustados por Le Cor- acristalada sobre a área de trabalho (que hoje está busier em sua visita de 1936. Em pouco mais de sendo renovada por sua acelerada destruição por uma semana de trabalho intenso realizou os esque- causa da salinidade do ar carioca). A integração mas para o Ministério da Educação e a Cidade das artes na Arquitetura contemporânea, uma das Universitária. premissas que os mexicanos já haviam empuA tarefa comum, junto a Le Corbusier de nhado, se verifica nas contribuições de Roberto Lucio Costa e Oscar Niemeyer, entre outros, ga- Burle Marx nos jardins e varandas, de Cândido rantiu que a semente frutificasse, não só na obra Portinari nos murais e azulejaria de antiga traindividual, mas também na prédica teórica. Os ar- dição lusitana, nas esculturas de Bruno Giorgi, tigos de Lucio Costa, entre eles Razões da Nova Celso Antonio e Lipchitz. A equipe de arquitetos Arquitetura, alcançaram ressonância e a liberdade se integrou com Costa, Niemeyer, Alfonso Edude ação política com que os brindaardo Reidy, Carlos Leão, Jorge vam o ministro Capanema e Ro- Ramón Gutiérrez Moreira e Ernani Vasconcelos. 22 Continente Multicultural


DIDA SAMPAIO / AE

O entusiasmo dos jovens arquitetos pela obra se deve não só à repercussão da mesma, mas à liberdade de que dispuseram para realizá-la. Lucio Costa escrevia que a sugestão de Le Corbusier para outra localização serviu de referência, mas que “tanto o projeto como a construção do atual edifício, desde o primeiro esboço até a conclusão definitiva, foram levados a cabo sem a mínima assistência do mestre e como espontânea Rino Levi (Instituto Sedes Sapiantiae, Oficinas contribuição nativa para a pública consagração dos Stig, Teatro de Cultura Artística e Banco Paulista, princípios pelos quais ele sempre lutou". todos em São Paulo) – assinala que a projeção da Afirmava Lucio Costa que “construído na Arquitetura brasileira estava implícita em sua mesma época, com os mesmos materiais e para um própria realidade e que os aportes externos de Le mesmo fim utilitário, o edifício do Ministério se Corbusier, Marcello Piacentini, Franco Albini e a destaca, não obstante, posterior permanência em meio à espessa vulde Giancarlo Palanti A Arquitetura brasileira garidade da edificação somente viriam consonasceu de sua própria circunvizinha, como allidá-la. go ali alojado severaTalvez o êxito realidade e as mente, só para o comocontribuições externas de Le da Arquitetura brasivido êxtase do tranleira consista em que Corbusier, Marcello seunte despreocupado seu período racionalisPiacentini, Franco Albini e a e, de vez em quando, ta foi breve, que dele se surpreendido, pela visdecantou um funcioposterior radicalização ta de tão sublimada nalismo que, elaborado de Giancarlo Palanti manifestação de purecom sensibilidade essomente vieram consolidá-la pacial, em uma conza, forma e domínio da razão sobre a inércia da tundente força expresmatéria". siva integrando artes e natureza, superou criativaCosta considera-o um edifício “formoso e mente as imagens estereotipadas do movimento simbólico", porque “sua construção foi possível moderno. na medida em que se atropelou tanto a legislação Se esta sensibilidade plástica, esta afeição pemunicipal vigente, como a ética profissional..." la curva e a natureza são herança de uma virtualiEnfim, lições de um duvidoso conteúdo que to- dade histórica barroca ou de um vanguardismo madas como exemplo podem contribuir para fo- formalista que caracteriza a arquitetura das décadas mentar a habitual forma de trabalho dos especu- 1950-70, está ainda por resolver-se, e é provável ladores imobiliários... que ambos componentes desempenhem um papel A configuração do trabalho de um grupo de relevante. arquitetos – que simultaneamente realizou obras Não cabe dúvida, em homens como Lucio de grande qualidade, como os irmãos Roberto Costa, da vigência da idéia e preocupação de ligar (aeroporto Santos Dumont, Liga contra a tubercu- o movimento moderno à própria história cultural. lose), Atílio Correia Lima e Renato Soeiro (Esta- Os “neocoloniais", como Mariano Filho, não enção de hidroaviões e Estação Marítima Rodrigues tenderam que a reivindicação do passado não se Alves), Henrique E. Mindlin (Hotel Copan), efetuava na cópia, mas na preservação do autênti-

Sensibilidade plástica é herança barroca ou vanguardismo formalista?

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CLAUS MEYER / TYBAFOTOS

Lucio Costa: arquitetura moderna deve preservar, mas não copiar

(1937) e continuando pelos conjuntos que lhe encomendara Kubitschek, à época prefeito de Belo Horizonte, para Pampulha. O cassino (atual Museu de Arte Moderna), o Iate Clube, o Pavilhão de Danças e a igreja de São Francisco de Assis foram realizados entre 1942 e 1943.

A projeção internacional do movimento se produziu com o Pavilhão Internacional da Feira de Nova York, desenhado por Lucio Costa e Niemeyer, num surpreendente traçado de liberdade formal co, como vinha fazendo excelentemente a Diretoria do Patrimônio Histórico Nacional desde os tempos de Rodrigo Mello Franco de Andrade, Edson Motta, Renato Soeiro, Augusto da Silva Telles, Aloisio Magalhães, Luis Saia, Mario Mendonça de Oliveira, e outros técnicos e especialistas. Cabe mencionar muito especialmente neste sentido a tarefa da Fundação do Pelourinho, na Bahia, e os trabalhos de inventário concretizados por Paulo de Azevedo. A projeção internacional do movimento se produziu na realidade com o Pavilhão Internacional da Feira de Nova York (1939), desenhado conjuntamente por Lucio Costa e Oscar Niemeyer em um surpreendente traçado de liberdade formal. A crise da Segunda Guerra Mundial, que devastou países e idéias, situava o Brasil e os Estados Unidos como novas plataformas do lançamento da arquitetura moderna. Isso explica as preocupações de suas propostas nos livros de Goodwin (1943), a exposição de Russel-Hitchock (1945) e os escritos de Bardi e Papadaki (sobre Niemeyer, 1950). A obra de Oscar Niemeyer constitui o eixo de referência central da arquitetura brasileira, começando com seu edifício da Obra do Berço

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Silva Teles destaca sua representatividade como expoente desse período em suas “curvas de traçado fluido e ritmos concêntricos, formas que interpretam definindo paredes externas e internas, além de rampas e escadas. Foram freqüentes também os revestimentos de azulejos, o jogo dos quebra-sóis em ritmos variados, que em alguns casos foram substituídos por elementos celulares de cimento e cerâmica". A identidade entre a proposta formal de Niemeyer na Casa de Baile (1942) e os desenhos de jardins de Burle Marx indicam a sensibilidade de integração cultural da natureza como tema e a total e desinibida liberdade do arquiteto para plasmar formas. A qualidade escultórica desta Arquitetura transcende o mero organograma funcionalista do racionalismo, introduzindo uma variável de riqueza expressiva que potencializa as qualidades conceituais da Arquitetura moderna sem entrar em contradição com ela. Ramon Gutierrez é catedrático de História da Arquitetura na Universidade Nacional do Nordeste, pesquisador do Conselho de Pesquisa Científicas da Argentina, e consultor da Unesco em questões de preservação arquitetônica e urbana. Este texto foi extraído do seu livro Arquitectura e Urbanismo em Iberoamerica. Manuale Arte Cátedra, 3a ed,. Madrid, 1997


Cronologia 15/12/1907 – Nascimento de Oscar Niemeyer Soares Filho no Rio de Janeiro. 1934 – Formatura em Engenharia e Arquitetura pela Escola Nacional de Belas Artes. 1936 – Projeto do Ministério da Educação, no Rio, cujo consultor é Le Corbusier. 1939 – Projeto do Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova York. 1940 – Projeto do Conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte. 1947 – Projeto da sede da ONU. 1952 – Projeto da casa na Estrada das Canoas, no Rio. 1954 – Programa de reconstrução de Berlim. 1955 – Fundação da revista Módulo. 1956 – Início dos projetos de Brasília. 1960 – Inauguração de Brasília. 1962 – Coordenador da Escola de Arquitetura da UnB. Projeto do Centro Esportivo e da Feira Internacional de Trípoli, Líbano. 1963 – Prêmio Lênin Internacional, na URSS. Membro honorário do Instituto Americano de Arquitetos. 1964 – Suspensão da revista Módulo pelo Governo Militar. 1965 – Afastamento da UnB, em protesto contra o regime militar. Exposição no Museu do Louvre, Paris. Projeto da sede do Partido Comunista Francês. 1967 – Exílio em Paris. 1968 – Projeto da sede da editora Mondadori, em Milão, Itália. 1969 – Projeto da Universidade da Argélia. 1978 – Fundação do Centro Brasil Democrático – Cebrade, do qual é eleito presidente. 1979 – Condecoração com a Legião da França. Exposição em Paris, Veneza e Florença.

1982 – Projeto do Sambódromo, no Rio. 1983 – Retrospectiva no Museu de Arte Moderna, no Rio. Mostra em Nova York. Criação, com Darcy Ribeiro, dos Cieps, no Rio. 1987 – Projeto do Memorial da América Latina, em São Paulo, e da sede do jornal L´Humanité, em Paris. Exposição em Turim, Bolonha e Pádua, na Itália. 1989 – Prêmio Príncipe de Astúrias, na Espanha. 1990 – Comendador da Ordem de São Gregório Magno, Vaticano. Exposição em Barcelona, Londres e Turim. 1991 – Projeto do Museu de Arte Contemporânea, em Niterói. 1992 – Grã-Cruz da Ordem de Rio Branco. 1996 – Monumento Eldorado dos Carajás, doado ao Movimento dos Sem-Terra. Prêmio da Bienal de Veneza. 1997 – Projeto do Museu de Arte Moderna, de Brasília.

1998 – Medalha de ouro do Real Instituto dos Arquitetos britânicos. Livros: Niemeyer, Oscar. Minha arquitetura, Revan, Rio de Janeiro, 2000 Niemeyer, Oscar. Curves of Time, Phaidon Press, Incorporated, 2000 Costa, Lúcio. Com a palavra, Lucio Costa, editora Aeroplano, 2000 Niemeyer, Oscar. Meu sósia e eu, Revan, Rio de Janeiro.

Mindlin, Henrique. Arquitetura moderna no Brasil, editora Aeroplano, 1999 Niemeyer, Oscar. Diante do nada, Revan, Rio de Janeiro, 1999 Niemeyer, Oscar. As curvas do tempo – memórias, editora Revan, Rio de Janeiro, 1998 Niemeyer, Oscar. Diálogo pré-socrático, Instituto Lina Bo, São Paulo, 1998 Niemeyer, Oscar. Conversa de arquiteto, editora Revan, Rio de Janeiro, 1997 Costa, Lucio. Registro de uma vivência, São Paulo, Empresa das Artes, 1997. Sá Correa, Marcos. Oscar Niemeyer, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1996. Courcelles, Pierre. Oscar Niemeyer – déssin. Paris, Fondation Revolution, 1987. Puppi, Lionello: Guida a Niemeyer. Milão, Mondadori, 1987 Jait, Vladimir Lvovitch. Oskar Niemeyer. Moscou, Stroiizdat, 1986. Fils, Alexander. Oscar Niemeyer. Münster, Frölich und Kaufmann, 1982. Evenson,N. Two brasilians capitals. Achitecture and urbanism in Rio de Janeiro and Brasília. New Haven e Londres, Yale University, 1973 Niemeyer, Oscar. Quase memórias: Viagens, tempos de entusiasmo e revolta, 1961-66. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. Yoshizaka, Takamasa. Oscar Niemeyer. Tóquio, Bijutsu-ShuppanSha, 1960. Papadaky, S. Oscar Niemeyer. Work in Progress, New York, Reinhold, 1956. Internet Fundação Oscar Niemeyer – www.niemeyer.org.br Fundação Memorial da América Latina – www.memorial.org.br Info Brasília – www.infobrasilia.com.br Continente Multicultural 25


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