Aikido

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aiki do a

georges

stobbaerts

procura

da

unidade



aiki do

a procura da unidade

georges stobbaerts


AIKIDO, A PROCURA DA UNIDADE

Shité: Georges Stobbaerts

Tradução: Fátima Patriarca

© Georges Stobbaerts, 2001 Aité: Stéphan Goffin

Ilustração da capa: Miguel Raposo

Eric Begin

Desenhos e Caligrafia: Georges Stobbaerts

Edição com o apoio de:

João de Almeida

Ten Chi International

José António Filho

Aguarela final: Autor chinês Fotografias: Paulo Andrade

Pedro Pinto Manuel Guerreiro 1ª Edição — Julho de 2001 Lisboa — Portugal

Projecto gráfico: Alexandra Paulino Coordenação de Produção: Vera Bettencourt Triacção - Publicidade, Arquitectura e Promoções, Lda.

Depósito Legal 167140/01 ISBN 972-95475-2-1

2

Impressão: Guide, Artes Gráficas, Lda.


índice pág.

Prefácio

5

pág.

XIV .1

Irimi Nage Te n C h i N a g e

Introdução

11

.2

O Guerreiro

15

XV

O Medo

17

XVI

III

O Aiki Do — o gesto do instante

19

IV

O Kamae — Migi Kamae

I II

V VI VII VIII IX X XI XII XIII

No coração da Técnica

69

Te m o s n ó s o u v i d o s ?

73

O futuro é das crianças

75

XVII

A forma do movimento. Mas qual?

81

23

XVIII

Os três movimentos

89

Abordar a prática do Aiki Do

25

XIX

A domesticação do Búfalo

95

Para um ensino mais avançado. O Zen

33

XX

Ken Zen Chi

35

.1

Ta k u a n

Activo-Passivo

39

.2

Miyamoto Musashi

Ko Kyu

45

.3

A arte de Ding

A respiração e a sua utilização

47

.4

História chinesa da dinastia Song

Concentração

55

XXI

A Energia Criadora

61

Sentir

65

Os escritos do passado. O Budo

105

O Mestre, artesão sem objecto

117

Glossário

121

Bibliografia

129

3


Agradeço aos meus mestres e alunos que, em grande número, quiseram interessar-se pelos meus projectos desde o ínicio da minha vinda para Portugal. Os seus encorajamentos, sugestões e chamadas de atenção permitiram que esta obra pudesse aprofundar o ensina-mento e a Via do Budo. Pela realização deste livro, e a esse título, quero agradecer mais particularmente à Fátima Patriarca pelos seus preciosos conselhos, sem nunca se poupar a esforços, dirigindo com competência a tradução do livro, ao Jorge Trigo de Sousa pelas suas críticas esclarecidas, à Ana Oliveira e ao Miguel Raposo por me terem encorajado na elaboração deste livro.

Georges Stobbaerts

4


prefácio

Ao deixarmos esta torrente libertar-se, há quem pense que o outro a vai utilizar contra si. Nessa altura, não só nos encerramos sobre nós mesmos, como somos o primeiro a atacar. in “Introdução”

I

res, originados por entes malfazejos e geradores do pecado e da sub-

Vistos de longe, o Oriente, o Budismo, o Yoga, o Zen, con-

versão, conforme estejam em causa questões religiosas ou políticas.

têm valores e propõem experiências que lembram o Cristianismo, na-

Esta atitude, do culto da rejeição, melhora aparentemente a

quilo em que, precisamente, este é acusado de ter falhado: acompa-

coesão de civilizações, igrejas, ideologias políticas, ou simplesmente

nhar a evolução espiritual do homem.

de associações, clubes ou famílias; no seu incitamento à desconfian-

Cristianismo também visto de longe, no tempo; o homem su-

ça do outro, permite a recusa concreta e real do universalismo.

posto ter de evoluir, como já terá evoluído, de animal para antropói-

O exotismo é ainda um culto da rejeição. Não se procura a

de, de antropóide para ser primitivo ou selvagem, de selvagem para

compreensão de outros seres, reconhecendo neles semelhantes; pro-

bárbaro e civilizado, de civilizado para... para quê?

cura-se, com superioridade, um teatro travesti ou um circo, diverti-

Expectativa sentida agora como vã, vazia de valores e de objectivos, mal-estar da civilização, diria Freud.

mento cómico inócuo ou jogo infantil. Estes, digamos, contravalores, encerram porém aspectos que

Mas as civilizações também se definem por aquilo que rejei-

contrariam a almejada coesão: exercem fascínio! Fascínio pelo des-

tam, que odeiam, temem ou mesmo abominam. E o mesmo nas pes-

conhecido, pelo diferente, curiosidades que levam à exogamia inte-

soas e nos grupos sociais, onde o comportamento é, em grande par-

lectual e afectiva. Como do homem para a mulher oculta, da mulher

te, determinado pela rejeição de valores considerados alheios, opos-

para o homem esperado, do urbano perante o deserto ou do pro-

p

tos, rejeitáveis. Valores que mais são considerados como contravalo-

vinciano perante a cidade.

5


O homem move-se, quando pode e quando o deixam, na direcção do que pode ser o perigo e o abismo; nunca se sabe o que se perde, ou se se perde alguma coisa, ignorando o proibido.

e nos Estados Unidos. No Ocidente pós-colonial desenvolvem-se movimentos universalistas, a que poderíamos chamar neo-humanistas. Esquece-se fa-

Mas abismo, qual abismo?

cilmente o passado, ou dele nunca se teve conhecimento, considera-

O perigo foi o Ocidente para o Islão, para os Chineses, para

-se louvável tratar por igual todas as raças, todos os povos, classes e

os Japoneses, e os mesmos para o Ocidente; em nome desses “ini-

valores. É o chão que facilita a transformação de qualquer valor ou

migos” cometeram-se não poucas barbaridades.

qualquer novidade em desporto, competição, espectáculo, seita reli-

Onde é que existe, objectivamente, o perigo e a perdição? Em grande parte é apenas um temor mental e afectivo, sem raízes reais, fruto do desconhecimento, da desinformação, facilitado pelas carências morais e físicas. O Japão vem a propósito e a calhar como um bom exemplo.

giosa ou produto comercial. Isto do lado material. Do lado espiritual, o quase desaparecimento da espiritualidade num Ocidente cada vez mais rico, mais atemorizado, mais infeliz, à deriva moral e afectiva.

Isolou-se durante mais de duas centenas de anos, considerou os estrangeiros como inferiores e bárbaros. No xintoísmo não há lugar pa-

II

ra os outros povos, salvo raras excepções, é uma religião para os ja-

Mas vejamos outros aspectos.

poneses, tal como o judaísmo, também salvo raras excepções, é uma

As artes marciais japonesas fazem parte duma cultura não oci-

religião para os judeus. Ao contrário do Budismo, do Cristianismo e,

dental mas não são japonesas de origem. Como o Mestre Stobbaerts

de certa maneira, do Islamismo, que se consideram religiões univer-

tem feito notar, a componente e origem chinesas e mesmo indiana

sais.

do Budo são decisivas para o seu desenvolvimento no Japão. Como é então possível, ou mesmo desejável, a prática de ar-

E o que é o Japão actual? Um sincretismo de Oriente antigo

tes japonesas no Ocidente? Que significado pode ter a absorção du-

e do Ocidente recente, resultado do enxerto do industrialismo oci-

ma cultura milenária, de nós afastada e pouco conhecida, que até há

dental no tronco japonês. A própria evolução do Budo, após a aber-

poucos anos se considerava superior e não passível de ser transmiti-

tura do Japão ao exterior, na segunda metade do século XIX, é con-

da a outros povos?

dicionada pela reacção aos valores e ideias ocidentais, que começam

Diferentes circunstâncias movimentaram o Budo, Artes Marciais

a entrar, acompanhando a indústria, a técnica e o comércio.

Japonesas, para fora do Japão, dispersando-o por quase todo o mun-

As reformas do Mestre Jigoro Kano, criando o Judo a partir do

do. Por um lado, o fascínio e a curiosidade por práticas, ainda miste-

Jiu Jitsu, e do Mestre Funakochi, criador do Karaté moderno, são dis-

p

riosas e envoltas numa aura de eficiência sem limites. Por outro lado,

so exemplo. O extraordinário desenvolvimento do Kendo, integrado

6

o Japão, com intenções várias, intensificou essa divulgação na Europa

no sistema de ensino desde a mais tenra idade, obrigatório para crian-


ças e adolescentes, é fruto duma deliberada reforma governamental.

guerra colonial dos anos 60/70 as nossas tropas aprenderam noções

São reacções contra a ginástica e o desporto ocidentais... de

elemen-tares de Jiu Jitsu, incluindo projecções, quedas enroladas e

que o Japão mais tarde se torna campeão em muitas modalidades!

placadas e “atemi”.

Reacção também contra o poderio militar da Europa e dos

Nos jogos de 1964, o Judo já é um desporto olímpico. E lo-

Estados Unidos, de que o Japão iria conhecer as funestas conse-

go a seguir começam a ser criadas federações mundiais de diversas

quências. Reacção contra as invasões ideológicas: cristianismo, de-

artes marciais.

mocracia, e contra a entrada de produtos que se propunham alterar

A partir dos anos 70, os filmes de “artes marciais”, leia-se

o quotidiano japonês. O próprio xintoísmo, religião de japoneses pa-

“porrada”, proliferam, primeiro chineses e mais tarde americanos, su-

ra japoneses, conhece uma reforma profunda e uma restauração sem

cedâneo, em parte, dos filmes de capa e espada e dos western. Os

precedentes.

heróis modernos já não sabem Boxe ou Greco Romana, sabem Karaté,

O impacto do Ocidente no Japão é então ainda maior que

Jiu Jitsu ou Aikido.

quando dos “descobrimentos”: estudo exaustivo da perspectiva re-

Por outro lado, o Japão adopta o sistema político e económi-

nascentista europeia, absorção apressada da ciência e tecnologia oci-

co do ocidente: parlamentos democraticamente eleitos, liberalização

dentais, revolução industrial tardia mas rápida, construção de navios

económica, novas formas de gestão de empresas, separação de po-

de grande porte e de aviões, introdução do cinema, curiosidade pe-

de-res. Desenvolve o gosto pelo golfe, pelo futebol e outros despor-

la literatura ocidental.

tos, tornando-se exímio e mesmo campeão em alguns, o seu cinema torna--se numa das principais cinematografias mundiais, em quanti-

III O Budo Japonês começa a ser conhecido e praticado na Europa no início do século XX. Mas são praticantes isolados, não prolifera,

dade e em qualidade. As civilizações, como os povos, são assim o resultado do que vai ficando das trocas que as cruzam.

poucas escolas datam dessa altura. Em larga escala, só se desenvol-

As supostas genuinidades, particularismos, identidades, são

ve na Europa e na América depois da segunda guerra mundial, in-

agora abaladas, como sempre. Mas hoje mais rapidamente, com os

fluen-ciado pelos contactos em massa que este conflito provoca. O

novos meios de comunicação. Fica, porém, uma atitude mental e uma

exército americano iniciou treinos de Jiu Jitsu ainda nos anos qua-

assunção exterior de determinadas características herdadas, resulta-

renta, para melhor preparar os soldados para as longas batalhas do

do de quem não quer aceitar que muito mudou.

Pacífico.

Os anos 50 assistem a um grande desenvolvimento do Yoga

A pouco e pouco, são os guarda-costas, os polícias, os agen-

e do Budismo Zen, nos Estados Unidos e na Europa. Figuras tão opos-

tes especiais, os arruaceiros, que vão usando cada vez mais o Karaté

tas como Gandhi e Mao Tse Tung exercem grande fascínio. O maoís-

p

e o Judo em substituição do Boxe e da Greco Romana. Durante a

mo alastra na Europa, espécie de ricochete da acção dos ocidentais

7


Marx e Lenine. O Aikido é introduzido em Portugal por Mestre Georges Stobbaerts, que acaba por se fixar no nosso país.

ou mesmo anular esse ímpeto de recusa. Saber lutar sem destruir é então uma grande conquista, repetida através da vida e dos séculos. Saber ver no outro um igual, com os mesmos direitos, é ou-

Funda o Dojo Budokan de Portugal e mais tarde o Dojo Ten

tra grande conquista. Saber lutar como que jogando a vida, parar

Chi, Honbu do Ten Chi Ryu, escola de artes marciais reconhecida pe-

quando necessário, diluir o eu até ao mínimo sem perder a identida-

la Dai Nippon Butoku Kai, de quem o Mestre é representante em

de, são já passos duma evolução posterior, que muitos não arriscam

Portugal.

por a conside-rar perigosa. Arriscando, os gestos de luta e de morte

Patrocina e ensina diversas disciplinas Budo, bem como Yoga e Zen, e cria o Tenchi Tessen, arte que embora baseada na tradição do Japão bem pode ser considerada portuguesa. No Japão ficaram palavras, gastronomia e costumes portugueses.

poderão assumir--se em gestos de compreensão, de amizade, de amor no sentido lato. Contrariando Mário de Sá Carneiro, posso ser o “eu” e o “outro”, num caminho não fácil mas promissor, com menos “tédio” do que o do genial poeta a quem faltou o golpe de asa para ir mais além... As artes marciais podem ensinar a disciplina do corpo e da

IV

mente, eventualmente dois aspectos da mesma realidade, que per-

Shri Aurobindo, Yogi de formação oriental e ocidental, con-

mite sentir-se parte do mundo sem nele se diluir, parte da sociedade

si-dera que o pensamento e a filosofia da Grécia e Índia antigas eram semelhantes e só divergiram a partir de Sócrates.

8

Não há amor sem luta. No fluxo que circula entre seres todo

Assim as civilizações terão tido troncos comuns, mais tarde

o ciclo tem altos e baixos, empatias e aversões, júbilos e sofrimentos.

divergentes, influenciaram-se, mutuamente ou não: acusaram-se por

Parar a meio do ciclo é catastrófico, repeti-lo infinitamente vai for-

vezes de serem subalternizadas ou destruídas por outras, com razão

mando a espiral que, assente na memória, temperada pela sensibili-

ou não. Criaram mitos para explicar as suas origens divinas e exem-

dade e empurrada pela coragem, se aproxima da plenitude que é o

plares, por contraste com as “outras” e os “outros”, com más ori-

gosto de repetir e rever, como num “kata” pessoal.

gens ou mesmo sem origens.

p

sem ficar anónimo, amigo ou amante sem deixar de contrariar.

Perder o medo, um primeiro passo. Para continuar até pres-

O homem cresce e desenvolve-se em grande parte em luta

sentir o prazer de se sentir dependente na independência. Aqui a uto-

contra o exterior, sempre adverso, que o limita na sua infantil ambi-

pia não é apenas uma inatingível meta, é também um método, uma

ção de ser o único e o senhor do Universo. Ambição sempre frustra-

atitude, uma relação, que ao assumir o poder ser, desvenda uma in-

da pelos outros, que já cá estavam ou que vão chegando e importu-

suspeita (ou não) realidade, um conhecimento jorrante e permanen-

nando.

te dessa mesma realidade, na qual o próprio se inclui, agora com ouÉ sinónimo de ser adulto e de ser civilizado o saber moderar

tros olhos, outros ouvidos, outras sensibilidades. Para crer é preciso... crer! Este livro ajuda, e um mestre também.


Se te amarras à Técnica, perdes a Via.

9


É na disponibilidade que a experiência do vazio se constrói.

10


introdução

As Leis Universais não pertencem mais ao Oriente do que ao Ocidente. O Sopro é de Todos...

O estudo em comum das Artes do Movimento faz parte da utopia da escola Ten Chi International. Aspiramos a que os problemas filosóficos, científicos e culturais, que este estudo em particular coloca, bem como os que ulte-

deste estudo permitirão interpelar o praticante de uma maneira ob-

Ai

jectiva e imparcial. Apesar das dificuldades e dos obstáculos que a

significa

prática levanta, carrearemos, lenta mas seguramente, elementos úteis

harmonia

para a construção de um Budo que desejamos sereno.

riormente venham a surgir, sejam tratados no espírito da mais ampla

Se, por falta de experiência, a nossa utopia a alguns parece

tolerância. Tomámos igualmente consciência, no plano pedagógico,

incerta, menos incerta se tornará na exacta medida do progresso que

energia,

da importância de definir a particularidade do nosso ensino.

cada um fizer. Impregnada de realismo humano e de esperança, ela

respiração

Este estudo sobre o Aiki Do é uma fonte de documentação que irá sendo publicada sob a égide de Ten Chi International.

Ki

não se funda na demissão do Eu em proveito exclusivo das regras económicas, antes se baseia na manifestação do Eu profundo e na igual-

Do

A secção Aiki Do de Ten Chi International criará ”um colégio”

dade intrínseca do Eu. Um Eu virgem, de onde sejam afastadas as ne-

via,

destinado à análise, aprofundamento e acompanhamento da peda-

fastas influências da violência, que é frequentemente o sintoma ac-

caminho

gogia da escola.

tual das Artes Marciais.

Um das características-chave do Aiki Do é a que faz dele uma

O espírito da prática deve estar imbuído de bondade, de to-

Via. No que se refere ao alimento espiritual, cabe a cada um lançar

lerância e do espírito ”Do”, praticado por excelência na liberdade, is-

as sementes à terra, fazê-las crescer e colher os seus frutos.

to é, no amor, numa procura do impecável. No mais íntimo de cada

Os critérios definidos e a descrição das etapas da progressão

homem, ferve uma torrente de bondade, calor e amor.

i 11


Ao deixarmos esta torrente libertar-se, há quem pense que o

universal. Evitando a mecanização do gesto, será mais fácil estabele-

outro a vai utilizar contra si. Nessa altura, não só nos encerramos so-

cer uma ponte com o pensamento oriental. Uma autêntica Via pode

bre nós mesmos, como somos os primeiros a atacar. Cada um vira as

abrir-se, graças à realização da prática do Aiki Do.

costas à sua verdade. É preciso não esquecer que as Artes do

Se se partir de um busca séria, liberta de um ego rei, a técni-

Movimento participam na obra de educação individual, colectiva e

ca será um meio de fazer convergir em nós a nossa ”verdadeira na-

permanente, sem a qual nenhuma evolução é possível e duradoura.

tureza interior”.

A Arte do Movimento, tal como a música, não visa apenas a procura da forma, ela é também comunicação, linguagem. Esta linguagem pode ser imediatamente acessível à sensi-bilidade, mas a partir do momento em que se intelectualiza, ela precisa, como qualquer linguagem, de ser ensinada...

forço se dissolve em veleidade decepcionante. Para viver esta abertura sobre o universo, que é uma experiência, é preciso saber harmonizar o seu espírito com o seu projecto. O Aiki Do não é o saber fazer de um acrobata susceptível de aperfei-

quer dizer signo (ainda hoje, a palavra token é utilizada neste senti-

çoar a sua técnica. O Aiki Do põe em causa o praticante em todas as

do). A missão do ensino é observar aquilo que passa despercebido

suas virtualidades, explora todos os aspectos da sua personalidade.

aos demais. Ele é o intérprete dos signos .

O aikidoca2 deve combinar, simultaneamente, o equilíbrio cor-

Os conselhos que dou para seguir um caminho como o ”nos-

poral do dançarino, a vigilância e a competência do guerreiro, a pre-

so” estão longe de constituir um método. Representam antes a preo-

cisão do gesto do pintor, o rigor do médico ou do arquitecto, a pre-

cu-pação de uma clarificação da escola. O meu propósito não é for-

sença de um grande homem do teatro, a visão interior do poeta e a

necer uma visão exaustiva dos problemas do Aiki Do. Conheço de-

concentração de um yogi...!

masiado bem a realidade do ensino para admitir que se possa aprender através de um livro. Aquilo que é vivo, sempre novo num ensino

12

É ele que dá a força, o entusiasmo, o interesse, sem o qual todo o es-

A raiz do verbo inglês to teach vem do gótico taiku, que

1

i

Uma única força pode provocar esta metamorfose: o amor.

Trata-se de um projecto ambicioso, mas estes são os primeiros passos para o questionamento da prática.

oral, torna--se facilmente dogmático quando o fixamos por escrito.

Tudo faremos para que este projecto signifique um pôr à pro-

Corre-se, aliás, o risco de nos darmos por satisfeitos com uma com-

va dos seus protagonistas, mas dentro de um clima de tolerância. Esta

preensão puramente intelectual, quando a única coisa que conta é a

prática consciente compromete muito mais do que o poderia fazer

experiência vivida. Identificando e distinguindo o essencial do aces-

por si só um arsenal técnico. Ela põe em acção o ser humano na sua

sório, gostaria de contribuir para uma reflexão sobre a maneira de en-

totalidade. Ela postula por princípio que nós temos em nós mesmos

sinar os programas técnicos (para as passagens dos graus).

todas as virtualidades que nos permitem ser os melhores portadores

Vivido do interior graças a uma experiência individual, o Aiki Do renova o seu carácter fundamental e encontra a sua expressão

da nossa arte e que nos é possível fazê-las emergir desde que encontremos as vias de acesso ao nosso ser profundo.


Graças à possibilidade que temos de conhecer a nossa pró-

Sei Katsu - A Vida

pria realidade física e psíquica, a prática propõe o desenvolvimento de um estado interior criativo. Esta abordagem é essencialmente uma Via de despertar e de conhecimento do Eu, uma procura do movimento que vai do interior para o exterior, do centro para a periferia e que reúne todas as nossas energias desordenadas ou dispersas numa única corrente de força (Ai Ki). Está fora de questão procurar para além de si uma técnica exterior, feita de sistemas e de meios arbitrários. Trata-se antes de revelar as nossas potencialidades adormecidas ou ignoradas a fim de descobrir a expressão que nos é própria. A abordagem consciente desta prática requer uma disponibilidade e a aplicação de energias para as quais raramente estamos preparados e das quais dependem tanto a qualidade dos resultados como o tempo necessário para os alcançar. Não é pois supérfluo fazer inflectir os nossos prognósticos interiores através de uma reflexão prévia, a fim de conciliar o nosso espírito com esta nova maneira de proceder (e isto é tão válido para uma pessoa como para o dojo3).

1.

Sybil Mohol Nagi, Introduction to the pedagogical sketchbook of Paul Klee, 1925.

2.

Um aikidoca é alguém que possui vários anos de experiência.

3.

Local onde se pratica uma Via (Cerimónia do Chá, Caligrafia, Aiki Do…)

i 13


A imobilização no Budo: quem imobiliza, não se imobiliza.

14

O olhar: a distância na vigilância.


I

o guerreiro

A aprendizagem e o desenvolvimento da vida interior cruzaram--se frequentemente com a formação dos guerreiros e dos caçadores (no tempo em que os homens se batiam, de igual para igual, com os animais ferozes). O caminho do guerreiro e o do contemplativo parecem ser, à primeira vista, completamente opostos. Mas um olhar mais atento

ça também pelo encetar de um diálogo interior e pelo pôr termo à representação de um mundo ilusório. O objectivo desta aprendizagem é o domínio da junção daquelas atitudes. Este domínio permite transformar a visão do mundo e a visão que se tem de si mesmo, para, enfim, dar os primeiros passos na Via ”que tem coração”.

pode verificar que existe um ponto comum: um e outro vivem em es-

Atravessar os obstáculos para lhes compreender a essência

tado de alerta. Algo pode surgir do exterior para o combatente e al-

permite encontrar a chave de todas as junções perceptivas e fazer a

go do interior para o que medita e a ambos convém não falhar o que

experiência da realidade. Só uma preparação rigorosa pode dar hi-

pode advir. A vigilância do guerreiro faz dele alguém que está sem-

póteses... A Via não pertence aos fracos. Os Mestres de Artes do Budo

pre de atalaia, a do caçador alguém que ronda e persegue, e a do

ou do Zen são duros para com os seus discípulos. Mas alguns dos ca-

contemplativo alguém que permanece desperto. Para estes homens,

minhos que se consideram um ”Do” têm uma convicção comum:

destinados a viver na vigilância da atenção, o seu pior inimigo é ”o medo”. Tudo começa, assim, pela aprendizagem deste confronto com o terror, a angústia, a dúvida... Na formação de um verdadeiro Mestre do Budo, tudo come-

”A formação espiritual não consiste em espalhar planos inclinados por todo o lado para fazer subir lesmas4.” Com efeito, se o caminho é difícil, também é um ”caminho de doçura”, o que não impede o vigor.

I 15


Existe a meditação Zen ou Dhyana que permite enfrentar o inimigo interior e tomar consciência dos seus próprios demónios que poderíamos designar em japonês por Makyo5. É um trilho cheio de luz no qual pode abrir-se o Satori! A Arte do Aiki Do, ligada a esta procura interior, pode demons-trar, à sua maneira, o que pode ser um ”homem”.

I 16

4.

Maurice Cocagnac, Le Zen, Mesnil-sur-l´Estrée, Plon/Mame, 1996, p. 134. Maurice Cocagnac é dominicano e docente no Seminário sobre “Civilização Indiana e Sânscrito” na Ecole des Hautes Etudes, Paris.

5.

O termo Makyo vem de Ma, Akuma, que significa “diabo”, e de Kyo que significa “fenómeno, mundo dos objectos”. Ele corresponde, aproximadamente, a “fenómenos psíquicos”, ao conjunto de sensações e de fenómenos ilusórios (designadamente alucinações tanto visuais, como olfactivas; ou ainda de carácter profético), que podem manifestar-se durante o Zazen. Medonhos ou atraentes, estes fenómenos não têm em si nada de “diabólico”, desde que o praticante os deixe passar e prossiga infatigavelmente o seu exercício. Para o Zen, Makyo é, em sentido mais geral, o mundo da “consciência vulgar”. A verdadeira natureza dos fenómenos só pode ser apreendida através de uma profunda iluminação. V. Dic-tionnaire de la sagesse orientale, Paris, Robert Laffont, Bouquins, 1989, p. 346.

O um é o todo e o todo é um.


II

o medo

A primeira necessidade que se impõe a um praticante dese-

de os resolver de imediato. Esconder-se ou fugir mais ou menos cons-

joso de mudar a sua abordagem é vencer o medo de ser posto em

cientemente da realidade corresponde a agravar o mal que furtiva-

causa, sobretudo por aquele que atingiu um grau (Dan).

mente continua a atormentar-nos.

É desagradável, por vezes, renunciar a um modo de pensar e

Tomar consciência do erro é o melhor trampolim para alguém

de agir alimentado por anos de hábito. Aquele que tomou a decisão

se agarrar, de forma duradoura, a uma busca do verdadeiro. O co-

de tal renúncia agarra-se, conscientemente ou não, à sua construção

nhecimento de uma verdade supõe, de algum modo, o erro prévio.

anterior, resistindo ao que pensa ser um desmantelamento. Para além

E o ser verdadeiramente sensível utiliza este erro em vez de perante

de uma pequena mudança da ”técnica” ou de algumas abordagens

ele sucumbir. Nenhum defeito, nenhuma barreira aparentemente in-

novas, o medo domina-o. É justamente superando esta barreira e re-

transponível tem para ele valor de limite definitivo. Ele está em cons-

considerando honestamente os diferentes comportamentos do espí-

tante devir.

rito e do corpo que se forjarão a intenção e o desejo de trabalho mais decididos. Para adquirir uma percepção das coisas tal como elas são é

Mas este olhar sobre nós mesmos e sobre os nossos erros deve sobretudo exercer-se no presente e não em relação a ideias ou a uma erudição acumulada...

preciso evitar estar permanentemente na defensiva, intelectualizan-

Um espírito sobrecarregado de passado está sempre em so-

do perante as dificuldades, refutando ou argumentando. Quando en-

frimento. Só a observação lúcida, franca e honesta do instante pre-

II

frentamos os obstáculos, o medo desaparece para dar lugar à urgência

sente permite colocar-se na disposição de aprender. O espírito deve

17


também estar liberto da rede de opiniões e de juízos de valor que o mantêm num estado estático. É preciso voltar a ser criança. Com o espírito puro, pode-se de repente mudar de mentalidade, pode-se de súbito estar ”pronto” quando o ontem deixou de pesar, quando o que se crê saber foi esquecido. Se não somos amantes do belo e do verdadeiro, se não nos sentimos atraídos para o ”alto”, se não temos curiosidade por todas as manifestações da vida, que razão nos leva a comprometermo-nos numa Via de ”questionamento” que só o amor justifica? Aquele que não se põe ao serviço dos esplendores da natureza que nele dorme na esperança de ser despertado, por que se haveria de lançar na Via (Do) que apenas lhe traria, por aquele facto, desilusões? O prazer é a motivação mais construtiva na conquista da Arte do Movimento. Está completamente fora de causa encarar a nossa prática como um dever. Não é possível educar o corpo e tornar os seus membros ágeis se nenhum prazer resultar dessa actividade. Para repetir incansavelmente um dado gesto em diferentes ritmos, é preciso que uma verdadeira paixão alimente a paciência. É preciso que uma carga afectiva em contínua renovação — a do dojo é também a do ambiente do curso — incite sempre a uma maior finura e subtileza. Uma riqueza interior só se pode exprimir na Arte do Movimento através de uma via corporal livre, sem constrangimentos, que não entrave nenhum gesto e dê uma total liberdade de acção.

II 18

O sopro é uma palavra à beira do silêncio.


III

o aiki do — o gesto do instante

O movimento do Aiki Do permite traduzir a ”beleza” da mes-

2.

Estar em perfeita conformidade com a fisiologia do

ma maneira que o movimento do pintor ou o do escultor. É, de cer-

praticante, fazendo agir os órgãos adequados: a aprendizagem do

ta forma, a eloquência do praticante. Ele desenha a linguagem que

gesto consiste em libertar um funcionamento natural e não em im-

assimilou, liberta uma Energia. Quando ele se encontra ajustado ao

por de fora um movimento ou uma atitude, por sedutora que seja.

seu projecto, a intervenção dá forma à expressão. Mas se um movi-

Uma tal procura só pode ser fundada num total respeito do corpo.

mento é ”violento”, esta mania tornar-se-á num obstáculo.

3.

O movimento deve procurar sempre realizar uma eco-

É raro um movimento falhar por causa da sua dificuldade. Ele

nomia de meios, isto é, accionar o menor número de elementos pos-

falha sobretudo ou porque não assimilámos a sensação que lhe cor-

sível a fim de obter um determinado resultado. O movimento correcto

responde, ou porque ele não está adaptado à realidade da ”forma de

é pontual, não pode ceder nem aos automatismos, nem às precipi-

ataque”. Os nossos desajeitamentos, manifestem-se eles em torno

tações da mente que parasitam a acção.

da correcção ou da leveza, decorrem frequentemente da nossa igno-

Para cada forma de ataque existe um gesto exacto que res-

rância quanto ao movimento correcto, da nossa impaciência, ou ain-

ponde de forma harmoniosa a todas estas exigências. Aquele que do-

da do nosso mau equilíbrio corporal.

mina cada um dos seus gestos, consciente do espaço no qual eles se

Um movimento com êxito deve combinar três critérios:

inscrevem e da estabilidade dos pontos de apoio que lhes conferem

1.

a precisão desejada, esse poderá praticar com facilidade e à-vontade,

III

sem trair as suas intenções.

19

Responder à intenção que o guiava, o que implica um

perfeito conhecimento da forma de ataque e a atitude interior.


Também a aprendizagem do movimento é importante para os

ta, o praticante pode responder melhor à questão ”que fazer” em vez

que desejam eliminar definitivamente a sua insegurança e dominar o seu

de se inquietar com o ”como vou eu fazer”. O problema não é, por

medo de acção. Perante um movimento, são possíveis duas abordagens:

exemplo, ”como é que eu vou fazer funcionar o meu punho a fim de

1.

A abordagem analítica, que é uma decomposição do

movimento, uma concentração sobre o seu próprio mecanismo. 2.

A abordagem espontânea, que resulta da nossa rela-

ção com o outro (Aité ). Ela é uma adaptação rápida à acção. Quando 6

conseguir um Ni Kyo7?”, mas sim ”que espécie de Energia, Ura ou Omote, devo usar?” ou então ”qual o encadeamento que, de uma maneira fluida, traduzirá melhor a alegria que dimana desta passagem?”

sobre o tapete eu digo: ”reencontrar o espírito da criança” é desta

Quando todos os gestos foram examinados lucidamente, cria-

compreensão intuitiva do ”objectivo a atingir” que falo. Esta repre-

se uma acção global que integra cada pequeno movimento exacto,

sentação imediata é aquela que permite o encadeamento rápido e

que activa antes de mais a energia interna, da qual decorre uma im-

fluido dos mais variados movimentos e aquele em que o pensamen-

pressão de facilidade e de evidência.

to deixa de poder dominar os acontecimentos.

O que é verdade para o equilíbrio é-o igualmente para o mo-

No entanto, para restabelecer um gesto correcto, para ad-

vi-mento: um gesto não tem existência separada do todo e a inde-

quirir uma nova ”praxis”, o praticante adulto não pode passar sem a

pendên-cia das diferentes partes do nosso corpo é devida à sua soli-

aborda-gem analítica que decompõe o movimento, tal como não po-

dariedade. A evocação de uma ligação possível entre os movimentos

de passar sem a sensação do movimento que deve ser analisado, vi-

ou entre as partes do braço, por exemplo, faz com que os professo-

sualizado, depois, sentido e ”vivido”.

res de ”Budo” insistam na sua muito legítima obsessão relativamen-

A realização propriamente dita deixa, então, de ser ”pensa-

te à ”rigidez”. ”O teu punho está rígido, não te preocupes com o teu

mento”. Ela passa a ser materialização daquilo que foi imaginado e

braço, deixa-o tranquilo, descontrai os teus ombros” é o erro tipo,

antecipado. À semelhança do karatéca que tenta prever os golpes

nascido do desconhecimento da Arte do Movimento. (Um parêntese

do adversário e colocar-se em função do acontecimento, o aikidoca

útil, a este respeito: o punho não é rígido, a não ser que se aperte a

também deve antecipar o que vem (Sen no Sen), e, ao mesmo tem-

pega ou caso a mão não esteja no eixo do braço. O punho, em si mes-

po, manter uma vigilância contínua (Zanshin).

mo, é perfeitamente flexível. Basta sabê-lo utilizar).

Trata-se aqui de uma verdadeira ”ciência da antecipação” que

Somos chamados a analisar gestos isoladamente, segundo o

permite ao praticante libertar-se da consciência dos movimentos. A

lado direito ou esquerdo do ”Kamae”8, responsável pelas deslocações.

imagem bem conhecida ”da centopeia que às tantas já não sabe qual

É necessário nunca perder de vista que cada gesto põe em jogo a to-

das patas avançar em primeiro lugar”, exemplificando a ausência des-

talidade do corpo, tanto no seu aspecto estático como dinâmico. Não

III

ta libertação, ensina-nos como podemos facilmente tornarmo-nos re-

há deslocação por mínima que seja, mesmo a que é provocada ape-

20

féns deste tipo de ignorância. Com a atenção consciente assim liber-

nas pela articulação, que não arraste consigo a acção dos músculos


mais poderosos que a sustêm e lhe dão uma liberdade de acção. De

centrípetas e centrífugas se concretiza, isto é, quando o movimento

igual modo, o fenómeno de cinestesia prova que toda e qualquer ac-

em vez de perturbar o equilíbrio estático, se integra num equilíbrio

ção muscular referente a um lado do corpo tem repercussões idênti-

dinâmico, os gestos podem então ser eficazes e autênticos.

9

cas sobre o seu homólogo do lado oposto, o que reforça, aliás, a ideia

Os braços, que são a própria expressão deste circuito de Energia

de uma simetria fundamental do corpo (conhecida desde há séculos

dirigida para a extremidade dos dedos, funcionam exactamente se-

pelo Yoga).

gundo o modelo de forças opostas, de dinamismos contrários. Eles

A solidariedade dos movimentos deve-se igualmente à ori-

estão em relação constante um com o outro. É preciso não esquecer

gem comum da Energia (Chi ou Ki ) que a todos alimenta sob for-

o papel dos braços, que não desempenham apenas o papel de força

mas diversas. Devemos tomar consciência de uma realidade que é

pura (muscular). Eles são os transmissores de Energia. Fazer da mão ”Te

particularmente esclarecedora: toda a força está concentrada num

Katana”12 e do antebraço um segmento isolado é um grave erro. Nos

ponto, num foco irradiante. É o nosso centro de gravidade situado

movimentos de Aiki Do, as mãos e os braços são sempre o resultado

entre a terceira e a quinta vértebras lombares da coluna vertebral ou

manifesto das técnicas. Eles desempenham o papel de linha de trans-

cerca de 3 cm abaixo do umbigo (Seika Tanden ), impropriamente

missão, ligando as mãos ao corpo e levando-lhes a Energia necessá-

traduzido por Hara/ventre.

ria.

10

11

É a partir deste ponto que surge toda a nossa Energia.

À esquerda como à direita, é o braço inteiro que deve inter-

A procura de gestos correctos corresponde à busca das me-

vir na acção, apoiado por um dorso firme que actua como ponto de

lhores correntes de Energia, a partir deste ponto, que sejam suscep-

apoio, articulado ligeiramente em torno dos ombros baixos, de um

tíveis de fornecer às pontas dos dedos a sensibilidade e a força de que

cotovelo que transmite a Energia pela sua face exterior (meridiano do

eles precisam.

coração13) e de um punho que o prolonga até à ponta dos dedos.

Mas o movimento nunca é unilateral, dirigido unicamente pa-

É indispensável que os músculos de apoio (em particular, os

ra o exterior. Todo o gesto procede à combinação de duas forças con-

do dorso) desempenhem o seu papel, libertando as extremidades de

trárias, uma de expansão e outra de resistência à expansão, assumi-

toda a sobrecarga (libertando assim o Ki), dando-lhes a independên-

das por dois grupos de músculos diferentes.

cia e leveza necessárias e conferindo ao braço uma flexibilidade até

O equilíbrio geral do nosso corpo baseia-se na associação des-

então desconhecida. Os fisiologistas não conseguem entender-se

tas duas dinâmicas cuja combinação assegura a perfeita harmonia

quanto às prioridades respectivas do braço e da mão nos movimen-

dos movimentos.

tos que lhes dizem igualmente respeito. Mas seja o impulso transmi-

A cada força saída do nosso Centro (o ponto!) e dirigida pa-

tido do braço para a mão ou da mão para o braço, uma coisa importa

ra o exterior corresponde uma força oposta que nos reconduz a nós

reter em todas as circunstâncias: é o braço que conduz sempre a mão

III

e evita a dispersão de energia. Quando o equilíbrio entre as forças

para o seu objectivo, e à mão cabe traçar do mais amplo ao mais pe-

21


queno de todos os movimentos.

6.

A tradução literal de Aité é a mão que está perante mim. Este termo é também utilizado, na pedagogia do Aiki Do, para designar o parceiro.

7.

Ni Kyo é uma técnica de imobilização.

8.

O Kamae é a posição de guarda.

9.

Cinestesia é o sentido pelo qual se percebem os movimentos musculares, o peso e a posição dos membros.

10. Chi ou Ki, respectivamente, do chinês e do japonês, significam, em ambos os casos, Energia. 11. Seika Tanden vem de Seika (local de nascimento, casa paterna) e de Tanden (bacia, “fontes de riqueza”, lugar de onde brota a Vida). Seika Tanden subentende a noção de recentragem, de equilíbrio físico e psíquico, de harmonia da potência. O ponto sobrepõe-se, sensivelmente, ao centro de gravidade.

III

12. Ou seja, fazer da mão Sabre.

22

13. Meridiano do coração, segundo a medicina tradicional chinesa.

Só o presente existe.


IV

o kamae — migi kamae

Penso ser útil compreender a etimologia do termo Kamae na

Hammi).

língua japonesa. Kamaeru significa preparar, construir, alcançar com

O lado esquerdo tem por natureza um carácter estático. O

vigilância. No ideograma kanji há a ideia da união de uma estrutura

movimento não está, porém, ausente: quer se trate de uma protec-

em madeira. Trata-se, portanto, de uma consolidação, de algo que

ção baixa (pontapé) ou de movimentos laterais, o lado esquerdo nun-

reconcilia diferentes elementos.

ca é passivo. Para encarar os gestos que lhe dizem respeito, convém

Kamae não é uma forma. É um estado de espírito que envolve a Energia e a percepção. Podemos resumir brevemente o Kamae a partir da postura correcta em pé (Shizentai): as pernas afastadas a uma distância se-

eviden-temente não perder de vista a necessidade de uma boa colocação do corpo em geral e de um posicionamento apropriado dos braços. Este raramente é satisfatório do lado esquerdo, muitas vezes descaído, o que cria automaticamente um desequilíbrio.

me-lhante àquela em que se encontram os ombros. No caso de avan-

É preciso portanto tonificar o lado esquerdo, endireitá-lo para

çarmos, deslizando o pé direito, que forma com o pé esquerdo um

que ele transmita bem a força vinda do dorso, por intermédio do bra-

triângulo (Sankaku-Tai) — pé esquerdo que constitui a sua base —,

ço, até à ponta dos braços, até à ponta dos dedos. Sem braço, não há

estamos perante o Migi Hammi. No caso contrário, estamos perante

mo-vimento eficaz, visto que não existe Energia activa. Além disso, as

o Hidari Hammi. A posição de guarda em perfil é o Hammi no Kamae

possi-bilidades de expressão aumentam quando o braço esquerdo exer-

do Aiki Do (em Iai Do, há formas de Kamae em que o corpo está de

ce de baixo para cima um ”gesto de contrapeso” ao peso do braço di-

IV

frente, mas a posição de guarda fundamental do Sabre é o Migi

reito. Falei do lado esquerdo no caso do Migi Kamae para que os pra-

23


ticantes tomem consciência da globalidade dos movimentos em geral. A imagem de todos os posicionamentos do corpo ou das mãos, assim como das técnicas do Go Kyo, isto é, das técnicas base do Aiki Do, e as próprias deslocações tornam-se evidentemente meros gestos exteriores se eles não corresponderem a sensações precisas: o gesto deve ser vivido do interior para poder ser previsto e tornar-se um reflexo infalível. Se, no caso deste Migi Kamae, o lado esquerdo representa a espera (o aspecto ”integrado do trabalho”) — o braço aguarda ser solicitado — em contrapartida, a mão e o braço direitos serão sempre a expressão imediata de uma decisão consciente. O lado direito será o reflexo instantâneo do nosso estado interior para criar (De Ai), tal como o pincel exprime as visões pictóricas que habitam o pintor. Lugar da nossa eloquência, o nosso lado direito é pois mais vulnerável às emoções que podemos sentir. Atribuo uma grande importância ao Kamae e, bem entendido, à posição do braço direito avançado, a este despertar de funções muitas vezes adormecidas, que se revelam de uma riqueza e de uma eficácia frequentemente inesperadas. Digo sempre que o verdadeiro Kamae é a guarda sem guarda, é o estado de vigilância tranquila. Podemos, a este título, lembrar os ensinamentos de um Mestre Zen ao seu aluno. Depois de ter passado vários anos junto do seu mestre, o discípulo, que se prepara para o deixar, pede-lhe uma mensagem. O mestre pega no seu pincel, num rolo de papel arroz e desenha de um só traço, o Kanji ”Atenção”. O aluno, embaraçado, pede-lhe

uma

outra

mensagem.

De

imediato,

o

mestre

IV

retoma: ”Atenção”. Pela última vez, o discípulo renova o seu pedido.

24

O mestre, em silêncio, volta a desenhar: ”Atenção”…

Ver a sua natureza no movimento.


V

abordar a prática do aiki do

Não é a técnica que representa o verdadeiro perigo para a civilização, é a inércia das estruturas.

No Aiki Do, a prática é muitas vezes entendida como um encarniçamento e uma soma de esforços fora do comum. Para ob-

pessoa que age com sequência e coordenação a fim de produzir um resultado útil?

ter ”uma Boa Técnica” são precisas horas de trabalho, à custa de uma

As exigências do trabalho numa repetição de movimentos são

aprendizagem quase bárbara, que pretende dar ao praticante uma

particulares a cada praticante, dependendo do nível e do estádio em

segunda natureza...

que ele se encontre (saber onde estás, a fim de saber para onde vais...).

Muitos praticantes de idade avançada vivem ainda sob este

Para uns, o que estará em causa será o questionamento das bases de-

regime de trabalho obstinado. Repetir indefinidamente os mesmos

masiado frágeis dos movimentos; outros considerarão um problema

movimentos, sem nunca abrandar as rédeas para galopar (caso o abor-

particular que nunca terão ultrapassado; outros ainda penderão pa-

recimento destas repetições, sempre no mesmo sentido, não tiver, en-

ra os Kata14... Estas disparidades tornam felizmente impossível uma

tretanto, morto o desejo de continuar). A isto chamo eu perseverar

solução que se queira global, uma receita universal! E, no entan-

numa luta incansável ”contra a Arte do Movimento”.

to, o papel da técnica tal como a necessidade de um trabalho inteli-

Não se trata aqui de defender uma liberdade absoluta que conduziria a fazer desaparecer os constrangimentos e a disciplina que

gente são os mesmos para todos, sejam quais forem o talento e a competência de cada um.

são o tributo consentido para atingir um certo grau de perfeição.

Nascemos todos com uma capacidade criadora natural. Se to-

Trata-se sim de pôr em causa a concepção estereotipada do trabalho

marmos a palavra grega technos, a verdadeira técnica é uma arte

V

em Aiki Do. Ora, o que é ”o trabalho” senão a actividade de uma

que consiste em fazer com que nos tornemos nós mesmos, procu-

25


rando restaurar esta capacidade natural corrompida por um estudo

perior àquela que era a sua, o seu poder criador encontrará um cam-

exagerado e mal concebido.

po de expressão mais largo no Kokyu Nage15. A sua liberdade depen-

A uma chamada de atenção de um professor, ouvem-se por vezes alguns alunos responder: ”Trabalhei muito!”. Uma pedagogia

de dos seus poderes e é pelo domínio da sua visão global dos movimentos que poderá revelar a espontaneidade e a riqueza interior.

elementar impede que se replique: ”Justamente, teria sido melhor praticar menos, do que praticar tão mal!”.

Suprimir toda a dualidade entre meios técnicos e uma formali-dade gestual eis o que é próprio da execução perfeita de um movi-

Falhas como estas seriam certamente evitadas se uma técni-

mento. A actividade pela qual pensamos o movimento ganha corpo

ca inteligível fosse proposta ao aluno desde que este se mostre capaz

na activi-dade que a realiza! O valor de uma concepção testa-se nas

de levar a cabo um trabalho consciente.

realidades da técnica e uma riqueza interior que não adquire forma

A melhor técnica adaptada a cada um é aquela que desen-

acaba por se esgotar. Ao contrário, uma subtileza de pensamento que

volve as disposições naturais em vez de as combater (este género de

tem a possibi-lidade de se exprimir plenamente vai aprofundar-se de

erro é cometido de boa fé, seja por ignorância, seja por falta de sen-

forma contínua, criando de novo a necessidade de afinar os seus meios

sibilidade).

de expressão.

A melhor técnica consiste em accionar meios físicos suscep-

Sabemos que o Aiki Do, como toda a actividade que põe em

tíveis de dar forma a sentimentos invisíveis: por um lado, através da

jogo o corpo, requer um gasto de Energia seja sob a forma de ener-

educação do seu corpo em função das leis da natureza e da fisiolo-

gia muscular, seja sob a forma de atenção persistente. Ora, sendo a

gia; por outro, através da assimilação consciente das exigências pró-

nossa quantidade de Energia disponível limitada, devemos evitar o

prias ao Aiki Do.

desperdício provocado pela dispersão. A inquietação ou o nervosismo

O praticante pode adquirir o que se chama uma ”técnica” no

decorrentes da insegurança de uma técnica mal assimilada vão pro-

sentido forte do termo, aquela que possui um estado de alma! Ela

vocar esta diminuição de Energia onde e quando ela era absoluta-

não é um mecanismo ou um automatismo dominado à custa de um

mente necessária para a execução correcta do movimento.

constrangimento maior, alegadamente, necessário para a passagem

A técnica está longe de ser uma perda de Energia do ponto

de grau... Técnica e interpretação da forma estão indissoluvelmente

de vista do número de horas que lhe deve ser consagrada. De facto,

ligadas (fundo + forma).

ela é o meio de realizar, num prazo mais ou menos longo, uma eco-

Um ataque é, por exemplo, o que informa, isto é, o que dá

nomia de trabalho considerável. É, pois, importante, orientar o inte-

forma a um poder técnico. Para tanto, é preciso que o pensamento

resse dos alunos para as subtilezas da técnica, mostrando-lhes bem

não esteja asfixiado por um jogo em que rivalizam parasitas e inter-

que esta técnica é já uma arte e um trabalho estético e não mecâni-

V

fe-rências de toda a espécie, uma das quais é o medo de fazer mal.

co.

26

A partir do momento em que o praticante adquire uma precisão su-

Isto significa que mesmo o trabalho enraizado ”num desejo


de praticar” não deve ser a negação do prazer: ele é a fase do parto preparada pela inspiração primeira que culmina com o sentimento de

zes do que se pensa). 3.

O professor deve ajudar, com doçura, os alunos a to-

plenitude do movimento. O prazer do movimento harmonioso ou

marem consciência do material com que vão trabalhar, isto é, eles

do movimento circular, como o Tai Sabaki , ou mais tarde o Aiki Nage ,

próprios.

16

17

é o prazer de uma justeza perfeitamente expressiva com o seu dei-

É impossível haver empenhamento numa nova prática na es-

xar--se ir, o largar da mão, ou a capacidade para se abandonar ao mis-

perança de nela progredir, sem que quem o faz se conheça exacta-

tério do movimento, movimento que ”se faz por si só” no tempo

mente, sem que veja claramente as compensações, as tensões e os

exacto e se apodera do nosso ser, apagada toda a vontade.

sinais do seu mal-estar. Estas dificuldades são frequentemente mal

Sem prazer, regressamos a este trabalho triste e monótono

percebidas ou mesmo completamente ignoradas. As suas causas per-

que decepciona porque nada cria e é fecundado apenas por um con-

manecem obscuras e esta avaliação da situação não é muitas vezes

trolo ilusório (Ni Kyo). Esta maneira de praticar cria mesmo um obs-

senão um sentimento difuso de mal-estar e de insegurança, ligado

táculo à expressão interior, afastando-se da atitude lúcida e criativa

ao temor e a uma prática anterior mal assimilada.

que caracteriza um trabalho consciente.

Uma ajuda externa é então preciosa para o praticante dese-

Como em todos os outros domínios da actividade humana, a

joso de entender claramente um determinado problema, distinguin-

prática do Aiki Do desenrola-se em várias fases. As suas diferentes

do-o dos restantes. O diagnóstico do professor, ao ser mais fino do

componentes são as de qualquer estudo.

que o sentimento intuitivo do aluno, permitir-lhe-á isolar estes pro-

Poder-se-ia comparar o praticante a um computador. Tendo em conta as suas capacidades, tentar-se-ia obter dele o melhor re-

blemas ao mesmo tempo que os liga ao estudo do movimento visto na sua globalidade.

sultado possível, porque esta prática ou este trabalho, organizados

Identificadas, assim, as dificuldades, importa enfrentá-las, ten-

em função de um resultado (cuja definição acima referimos), nada são,

tando não se deixar possuir pela angústia que decorre de uma luci-

se não se revelarem fecundos. De igual modo, quando se pratica, to-

dez demasiado rápida acerca da sua própria realidade. É a partir

do o prati-cante deveria ter constantemente presente estes princípios

deste trampolim que tudo se inicia e que se poderá enfim começar a

de bom senso sem os quais o resultado corre o risco de ser muito de-

pensar numa nova maneira de agir. A partir do momento em que o

cepcionante.

praticante de Aiki Do toma consciência da situação, pode abandonar

A primeira necessidade que se impõe é ponderar a situação:

o presente imediato e empregar a sua Energia em função do objec-

1.

tivo visado: tal como o computador, as informações recolhidas só têm

Avaliar o estado presente (sem informações coeren-

tes e suficientes, um computador não pode dar respostas).

sentido se forem orientadas para um resultado preciso.

O praticante que não sente nada em relação à sua

Mas esta tomada de consciência das situações por parte do

V

prática criará obstáculos ao progresso (isto acontece muito mais ve-

praticante requer calma e silêncio interior. Nem a agitação, nem a in-

27

2.


quietação permitirão alguma vez precisar, de forma saudável, o pro-

desejo e bloqueia de novo a situação.

jecto de uma prática correcta.

É a descoberta desta distância que constitui o motor da prá-

Qual é o meu objectivo? O que é que procuro? Eis algumas

tica e que faz dela um processo de aperfeiçoamento por aproxima-

questões que estão longe de ser questões resolvidas por tantos pra-

ções sucessivas. Esta retroacção, para empregar um termo apropria-

ticantes alienados pela rotina ou mal orientados.

do aos objectos cibernéticos, torna-se possível pela observação do mo-

A prática não se justifica senão em função de um objec-

vimento, que é o elemento essencial desta tomada de consciência, e

tivo preciso. Será que se pode saber o que se encontra se não

que pode ser reforçada pela escuta do Mestre... Mas as informações

se sabe o que se procura?

sensoriais apreendidas pelo sistema proprioceptivo18 permitem igual-

É impossível avaliar os seus progressos num caminho (Do) a

mente com-parar a desadequação entre uma imagem mental e a sen-

partir de acções vagas e ambíguas. Também não basta saber o que

sação realmen-te percebida (os movimentos em espiral, de que são

se quer; é preciso ainda decidir exactamente qual o resultado que se

exemplo as técnicas de Aiki Do: Irimi Nage, Kaiten Nage, Kokyu Nage

pretende obter, o que exige tomar partido e colocar a fasquia a uma

e Aiki Nage).

determinada altura pessoal, e examinar, com sensatez, o que se pode e quer atingir.

Se existe diminuição de energia, haverá certamente, um tal fosso.

Decidir-se a agir por si só é coisa difícil. É, no contacto com o

Só então se pode começar a fase de programação que é a ba-

professor, que o aluno, ao descobrir que não sabe ainda realmente o

se de trabalho do aprendiz aikidoca. O computador, de que se espe-

que quer, conseguirá conceber e formular a sua pesquisa.

ra o resultado, deve organizar um pedido, cujas etapas são claramente

É evidente que o praticante cujo único desejo é transpirar e quanto à sua técnica, ”passa”, não poderá obter resultados muito

estabelecidas e escalonadas no tempo. Uma grande parte do caminho já se encontra percorrida quando o praticante, lúcido em relação a si mesmo, acciona de forma me-

subtis. Se ele não se entregar por inteiro ao que experimenta, ou se

tódica os meios adaptados ao objectivo que persegue. Cada aluno

ele não tiver decidido ainda firmemente um objectivo, a comparação

tem o seu próprio ritmo e uma maneira igualmente própria de abor-

entre o resultado obtido e a sua primeira e vaga intenção não será fe-

dar a sua prática. Ele é o único a conhecer a dinâmica das suas per-

cunda. A escuta não poderá desempenhar a sua função crítica, isto

cepções e do seu comportamento real. Mas ainda aqui, a sensibilida-

é, comparar o resultado e o objectivo procurado.

de de cada um, a sua liberdade de acção não estão em contradição

Com efeito, a fase seguinte consiste em tomar consciência do

com a lógica dos movimentos. Harmonizar o seu corpo, como se diz

fosso que subsiste entre o desejo e a realidade. A adequação perfei-

muitas vezes no tatami19, é uma acção prévia necessária. A prepara-

V

ta entre o projecto e a sua concretização é algo impossível: ela signi-

ção física no trabalho é portanto fundamental. Infelizmente fazemos

28

ficaria que o praticante teria atingido um topo, o que esgota todo o

enormes erros nos exer-cícios preliminares da prática, que deveriam


ser antecedidos de descon-tracção e de um condicionamento corpo-

Então, e só então, a repetição pode desempenhar o papel que

ral adequado. O praticante deveria concentrar-se (Dharana ), verifi-

é o seu. Ela já não constitui a própria essência do trabalho, antes per-

car a liberdade da sua respiração, assegurando-se assim do seu bom

mite a aquisição de sensações reflexas.

20

equilíbrio em termos de posturas: eixo vertical; firmeza dos pontos de

Estamos longe do Uchikomi21 que se faz demasiadas vezes de

apoio; boa fixação no solo; braços relaxados, independentes para dei-

uma maneira ”automatizada”, e, contudo, a dificuldade na concre-

xar passar a Energia até à ponta dos dedos; ombros baixos; corpo em

ti-zação de um gesto fica a dever-se mais à opacidade de uma ima-

vigília, punhos flexíveis, percebidos como o resultado do pensamen-

gem mental do que a uma incapacidade mecânica.

to e da Energia. O sentimento de inutilidade e de perda de tempo

A repetição deve ser, portanto, consciente e obedecer a um

desta tomada de consciência frequen-temente associada a esta veri-

funcionamento correcto. Ela não deve ser cega e mecânica em mo-

ficação desaparecerá logo que o praticante tome consciência da sua

vi-mentos mais ou menos exactos. É ela que, reforçando a sugestão,

necessidade e da sua eficácia absolutas.

cria uma nova via cerebral. Uma acção assinalada fixa-se na memó-

Uma tal preparação pode durar apenas alguns segundos co-

ria, torna-se mais rápida e fácil e cada vez menos pesada para o es-

mo pode exigir mais tempo, tudo dependendo da integração da sua

pírito. É assim que uma vez a atenção liberta, esta pode virar-se para

prática.

os elementos primordiais da prática: estilo não pensado (que envolEis-nos, enfim, chegados à fase mais longa da prática, aque-

ve a noção de silêncio interior, ligado à disponibilidade e à consciên-

la que corresponde à prática do movimento correcto. É aqui que

cia), sensação ou contacto correcto com os parceiros. Além disso, a

tem sentido a procura da qualidade e da justeza de um movimento.

repetição permite ao praticante adquirir uma segurança e uma con-

Uma técnica bem escolhida trata o problema em profundi-

fiança que o tornam menos dependente de circunstâncias exteriores.

dade, o problema em si, como se poderia dizer. É preciso também es-

Ela corres-ponde igualmente a reconhecer uma forma e a aperfeiçoar

colher, e de forma judiciosa, a forma de ataque. É preciso evitar trans-

esta ou aquela técnica e a conduzi-la a um estádio de perfeição... É

formar um curso numa sucessão de técnicas que correm o risco de ”des-

sobre uma experiência ”sentida” que outras podem criar raízes. Chamo

gastar e esvaziar” o conteúdo destas mesmas técnicas e também de

a isto a ”referência interior”.

esgotar o prazer...

Da mesma maneira que um curso não pode começar sem con-

Quaisquer que sejam as soluções escolhidas, o exercício de-

centração, ele não deverá acabar num estado de fadiga: o espírito

ve, em todo o caso, incidir sobre um único problema, a fim de ser

deve estar ainda suficientemente lúcido para tirar a conclusão e as li-

realmente profícuo. Compreende-se aqui a necessidade de uma ava-

ções do trabalho empreendido. Isto é muito importante, porque es-

liação lúcida, analisando separadamente cada uma das dificuldades

ta análise permitirá uma maior motivação para os cursos seguintes:

encontradas pelo praticante. Pode ser útil criar uma nova imagem

haverá um optimismo justificado que fará acreditar no valor da prá-

V

mental à qual o praticante tentará fazer corresponder o que sente.

tica realizada.

29


Em caso algum a fadiga deve levar a melhor e restituir à prá-

A partir de um certo nível, o exercício técnico, enquanto tal,

tica o carácter mecânico de que nos tentamos desfazer na nossa es-

pode desaparecer, sendo substituído por um Geiko23 livre e será o

cola.

próprio facto de praticar livremente que vai recriar e alimentar de noA fadiga muscular leva o organismo a fazer trabalhar múscu-

los inadequados ao trabalho requerido, o que se traduz inevitavel-

vo a intensidade do vivido a um outro nível, que será o sustentáculo da técnica.

mente por uma perda de qualidade e pelo aparecimento de falsos

Contudo, é sempre essencial, mesmo a um nível elevado, con-

problemas que teimamos inutilmente em querer resolver. É pois im-

servar um contacto frequente com a técnica pura (as bases, por exem-

portante assegurar sempre um bom encaminhamento da Energia (Ki),

plo), a fim de poder, se necessário for, retomar um exercício destina-

em particular em direcção às mãos. É esta economia da energia que

do a refrescar uma sensação. A isto chamo regressar regular-mente

torna, no essencial, uma técnica correcta.

às ”raízes da competência”, a fim de evitar este desmazelo insensí-

Se a prática conduz à consciência de si (que é fonte de cal-

vel que estraga tantas qualidades.

ma), ela acaba por se reflectir seguramente na beleza dos movimen-

É indispensável nunca suprimir o papel da atenção e das suas

tos. É o momento de utilizar durante os cursos o que normalmente

funções conscientes. Ao criar automatismos, é preciso evitar cortar as

será difícil realizar na vida ”stressante” do quotidiano.

vias que ligam ao cérebro director, caso contrário, estamos perante o

É no dojo que se podem reunir as condições favoráveis à livre circulação da Energia e à eliminação das tensões. A boa organi-

praticante estilo ”Rambo”. Uma tal privação de fontes novas conduz seguramente a uma degenerescência da Via (Do).

zação no domínio da postura da cabeça e da coluna vertebral, o centramento no Hara e a respiração que descansa, a polarização da 22

Na Índia, diz-se: ”Aquele que deve percorrer cem mil considera noventa mil como a metade.” Quanto mais alguém progride na sua técnica e no domínio da

atenção numa acção instantânea, a aceitação deste aqui e agora são o melhor meio de cortarmos com as nossas preocupações e inquie-

sua arte, mais cuida das suas qualidades interiores. Considera-se frequentemente o início do ensino o mais duro.

tações. É preciso também não esquecer que o progresso, seja ele téc-

Na verdade, são ”os últimos mil” que são os mais duros. É um traba-

nico ou interior, é a motivação essencial (muito mais do que as gra-

lho incessante (até à morte) se se quer ser verdadeiramente autênti-

duações). Isto exige evidentemente um certo nível de maturação e

co.

manifesta-se por vezes quando menos se espera.

Por fim, quando se tiverem explorado todas as possibilidades

A ausência aparente de progresso não corresponde a uma es-

técnicas e quando a habilidade tiver sido dominada, a prática passa a

tagnação definitiva e é preciso, sem perder a coragem, aceitar passar

fazer-se de uma maneira menos metódica. O Aiki Do conduzirá o es-

V

por zonas de obscuridade e de contradição, que correspondem a uma

tudante à ”realização de si mesmo”.

30

germinação silenciosa.

A prática far-nos-á tomar consciência de nós mesmos, porque


seremos confrontados com os problemas da nossa mente. Perante os

Encontrar a energia na consciência plena.

obstáculos com que deparamos na estrada da vida (no tatami ou fora dele), este conhecimento é o penhor da permanência e da estabilidade das nossas aquisições. Ao longo deste percurso, é a tensão dirigida para um objectivo que dá o máximo de alegria, procurando por vezes o que os psicólogos chamam ”as experiências superiores”. O praticante torna-se então aikidoca (termo que designa no Japão o praticante confirmado e que é aquele que anulou completamente a distância entre concepção e realização). Quando o esquecimento do Eu passa a ser total, quando o praticante se integra no acontecimento instantâneo e ao mesmo tempo conserva uma vigilância do espírito, então a Arte do Aiki Do pode revelar toda a sua dimensão: ele torna-se a Via real, em que se superaKata a técnica. 14. significa literalmente forma, conjunto de movimentos codificados onde se estuda a essência de uma Arte. 15. Kokyu Nage é a técnica de Aiki Do baseada na noção de respiração/movimento. 16. Tai-Sabaki é, a um primeiro nível, a aprendizagem da espiral. 17. Aiki Nage é um estudo sobre o registo da harmonia. 18. Trata-se de uma informação que provém do corpo e que fornece elementos sobre o movimento, a atitude, o equilíbrio, etc. 19. O tatami, na sua forma clássica, é formado por esteiras constituídas por palha de arroz, cozidas e reunidas, de maneira a formar módulos de 1, 95 metros por 0, 95 metros. Elementos que faziam parte do mobiliário tradicional da aristocracia de Kyoto no século XV, eles eram dispostos segundo uma simbologia que representava um labirinto iniciático (Mandala – Do). Hoje, os Budos utilizam tatamis especiais, frequentemente, fabricados a partir de matéria sintética, e envolvidos por uma forte cobertura, a fim de amortecer os eventuais choques provocados pelos movimentos de projecção. 20. Dharana é um termo sânscrito. O sentido desta palavra é incompletamente dado pela tradução: concentração. 21. Repetição de um mesmo movimento. 22. Noção de centro que não faz obrigatoriamente referência à geometria.

V

23. Trata-se de uma prática em que a concentração desempenha papel fundamental.

31


Presença, espírito e alma.

32

As aves do lago sobrevoam-no sem deixar rasto.


VI

para um ensino mais avançado — o zen

Dizemos no Zen que a prática de uma arte pode ser um meio

que o ser é o devir...

de ”formar a mente e de a pôr em contacto com a realidade última”.

É uma intuição, que pode surgir de forma súbita; quem vê

Aquele que projecta e aquele que cai não são duas entidades

que zero é o infinito e que o infinito é zero, vê que isto não constitui

opostas, mas uma única e mesma realidade. Aquele que projecta não

uma indicação simbólica ou matemática, mas antes um facto da ex-

deveria ter consciência de si. Este estado só se obtém quando o pra-

periência, resultado de uma percepção directa. A prática da Arte do

ti-cante se desembaraçou do seu ego e quando ele e a sua técnica se

Movimento pode levar a descobrir, sem meditação de qualquer es-

fundem. Há nesta habilidade técnica qualquer coisa de ordem muito

pécie, a essência sem fundo e sem forma, ou melhor ainda, a sua

diferente, que nenhum estudo metodológico do Aiki Do pode ofere-

identificação com a realidade última.

cer.

Segundo os Mestres Zen, o Zen consiste em ver a sua própria Esta qualquer coisa de ordem muito diferente é o que se cha-

natureza. Esta é a expressão mais significativa da abordagem. De fac-

ma a “intuição”. Mas não se trata de uma intuição vulgar. No Yoga,

to, o Zen significa dirigir os nossos esforços e representá-los na nos-

esta intuição designa-se pelo termo “prajnâ”, que é uma intuição

sa consciência.

que capta ao mesmo tempo a totalidade e a individualidade das coi-

Mas isto é uma outra história.

sas. Esta definição ultrapassa os limites do ego. De um ponto de vista lógico, corresponde à síntese da afirmação e da negação; de um

VI

ponto de vista metafísico, é saber por intuição que o devir é o ser e

33


A sabedoria não se obtém por mérito de uma conduta moral, mas pela maneira como o corpo e o espírito permanecem na consciência do ser.

34


VII Durante demasiado tempo, no Ocidente, deu-se pouca importância à experiência e à busca interior em detrimento do intelecto.

ken zen ichi

o Aiki Do não é uma prática religiosa, xintoísta ou outra. A perspicácia e uma acuidade trabalhada assiduamente pouparão ao aluno ou ao professor cair no marasmo de um esoterismo

É na compreensão da aparente oposição do preceito do Budo

mal assimilado.

— Ken Zen Ichi Nio (Sabre e meditação formam uma unidade) — que

A prática do Aiki Do é uma abertura ao Universo.

se pode descobrir a harmonia.

Por diversas razões, verifiquei que os japoneses controlam me-

Ao criar por vezes um efeito de espelho, as oposições revelam insuspeitados contornos da nossa personalidade. Se, perante eles,

lhor esta atitude reflexa que consiste em obedecer à hierarquia sem nela aparentemente reflectir demasiado.

nos refugiamos invariavelmente num comportamento dogmático, o

Esta evolução das mentalidades nem sempre é bem seguida

medo é proporcional à nossa rigidez. Em contrapartida, se desenvol-

nas Artes Marciais. Muitas vezes, confrontado com perguntas sem

vermos a comunicação com nós mesmos e com os outros, é plausí-

resposta ou repleto de respostas pouco credíveis, permaneci incré-

vel que descubramos soluções adequadas, que nos permitam adap-

dulo e perplexo.

tar a novas situações. Este processo servirá, indirectamente, a inicia-

A prática de uma Via exige o empenhamento total do Ser,

ção ao Aiki Do. Num plano completamente diferente, a vocação pri-

uma dose de autenticidade e o sentido da justa medida. Simular um

meira de um dogma religioso não é propriamente a de servir o ego

empenhamento é alterar os tempos de certas respostas.

ou os interesses ligados a um grupo étnico particular. Seja como for,

Um empenhamento pressupõe a existência de princípios e de

VII 35


uma disciplina funcional em relação aos objectivos que se visam. A

meus alunos... Mas foi preciso predispor-me a aceitar a experiência

obediência servil e destituída de sentido nunca constituiu um mode-

pessoal dos meus alunos e deixar que essa experiência ocupasse um

lo a seguir. Inspirar uma obediência absurda, a fim de obter benefí-

lugar central nas preocupações da minha vida particular. Escutava, ob-

cios de ordem social ou monetária, é o atributo de uma espécie de

servava, estando tanto quanto possível cada vez mais presente.

inte-ligência perversa.

Dialogando com eles, esforçava-me, com os que o desejavam, por tor-

Para resolver de forma duradoura um problema técnico ou

nar claros os seus problemas.

mental, é preciso compreender o ”porquê”. Ao esforço de anos de

Partindo do mais íntimo de mim mesmo e com a penetração

procura por parte de um indivíduo que percorre a Via com autentici-

de que era capaz, investiguei, estudei, examinei a natureza e o im-

dade e devoção correspondem respostas que um Mestre assinalará

pacte destes problemas, totalmente empenhado nesta busca. Durante

no momento certo. O silêncio que corresponde a uma condescen-

estes anos, fui-me apercebendo pouco a pouco de que se tratava, de

dência de quem se pretende omnisciente é uma caricatura que o tem-

facto, de uma pesquisa, de uma investigação, acerca da dimensão da

po se encarrega, aliás, de desestabilizar.

expe-riência do Zen na Arte do Movimento, através do Budo japo-

Estas observações, que pude fazer ao longo das minhas via-

nês e do Yoga. Não sou intelectual, não elaborei uma ciência do mo-

gens ao Japão, permaneciam interiores e raramente se exprimiam em

vimento, antes me integrei no movimento, vivendo-o ao fio dos dias.

palavras, dada a distância inviolável que separava o Mestre do seu

Devo muito a todos os meus alunos, dos mais recalcitrantes

aluno. E, no entanto, um certo optimismo fundamental levava-me a

aos melhores — mas haverá melhores? — porque me interpelaram.

acreditar que, num céu carregado de nuvens, a mais pequena nesga

A eles devo o ter sido obrigado a procurar, a procurar sempre mais, a

de céu azul era uma promessa...

começar por vezes tudo de novo e, deste modo, a evoluir.

Quando a minha confiança e o meu discernimento se forta-

Não valeria mais convidar os interessados a transpor o limiar

le-ceram, a necessidade de ver claro, de compreender, tornou-se ir-

das técnicas e oferecer definições aparentes, sem delas fazer méto-

re-sistível. Encontros fortuitos e decisivos permitiram-me, então, abrir

dos, dado que toda a prática vivida no coração conduz naturalmente

os olhos e, ao mesmo tempo, trabalhar sobre mim mesmo a fim de

à via da unidade, e portanto à da clareza luminosa do ser?

explorar todos os arcanos, à maneira de uma evidência lógica, como

Não se pode falar desta ”claridade unificadora do ser”, senão

uma Via de conhecimento inesgotável. Para citar o poeta Kabir: ”Aquilo

para dizer que ela se exprime sob a forma de uma abertura e do dom

que eu procurava veio ao meu encontro e transformou-se no Eu a

de Si, uma vez que o ego, lugar de todos os medos, dos constrangi-

que eu chamava Outro.”

mentos, do racional e das inúmeras retracções do homem moderno,

De descoberta em descoberta, passando por todos os ques-

desapareceu para dar lugar à emergência do ser. O Aiki Do, como to-

VII

tio-namentos, a minha vida tornou-se uma apaixonante e intermi-

da a sabedoria, é uma aplicação da Energia fundamental do Universo.

36

nável procura. Iniciada comigo mesmo, ela prossegue agora com os

Todo o ensino pressupõe etapas, graus, numa progressão que requer


tempo, em que o objectivo a atingir não é propriamente ganhar umas

a potência do tao

tantas coisas, nem mesmo um combate. O importante nesta abordagem é chegar ao momento em que a mutação sobrevem, a maior parte das vezes de forma inesperada. É o movimento que faz nascer o outro movimento, é criar toda uma vida em que o homem se torna senhor de si próprio. É por isso que a Prática é tão importante e tão bela.

O príncipe maravilha-se perante tanta habilidade; mas não se apercebe do seu fundamento, nem do seu alcance. Ding lembra-lho: a habilidade não é nada; ela pode mesmo provocar uma admiração indevida, tão superficial como a da destreza, a do golpe de força, a do show. A verdadeira habilidade exprime a realidade profunda; ela é, assim, uma arte. A beleza resulta da sua relação com o real. A arte não é senão unidade e harmonia no Tao. Não se admira a destreza por si mesma, mas pelo que ela revela. Inseparável da beleza, o seu valor decorre de nos fazer sentir e pressentir Aquilo que existe e faz existir. O Tao confere à arte a sua potência, ultrapassando toda e qualquer arte.

Claude Larre e Elisabeth Rochat de la Vallée De vide en vide. Zhuangzi – La conduite de la vie Paris, Desclée de Brower, 1995.

VII 37


Calma e vigil창ncia.

38


VIII A experiência quotidiana leva por vezes a aprofundar fenó-

activo — passivo

disponível.

menos sobre os quais pouco teríamos reflectido se a realidade não no-lo obrigasse a fazer. É o problema da passividade, isto é, da des-

Ora, a disponibilidade (distendida) é uma necessidade absoluta!

contracção, problema ao qual, nas Artes Marciais, se atribui gran-de

No praticante que atinge um certo grau, o movimento é be-

importância. Mas as observações diárias da pedagogia vêem nele al-

lo porque o gesto vai buscar a sua fonte aos recônditos da sua alma

go mais do que um ponto importante!

seguindo esquemas interiores — e nunca recebidos do exterior, por

Um número inimaginável de praticantes estão de tal manei-

imitação ou submissão a estereótipos. Todas as formas “de ataque”,

ra contraídos (a maior parte sem o saberem) que alguns nem sequer

todas as respostas ao ataque, todas as impulsões do corpo devem

são capazes de separar os braços do corpo ou de desbloquear as an-

partir de dentro. Mas, partindo de dentro, a Energia (Ki) que se ele-

cas. Estes praticantes terão evidentemente enormes dificuldades em

va do nosso íntimo desloca-se ao longo de uma rede de nervos e mús-

executar as mais simples técnicas do Go Kyo. Certos defeitos, mes-

culos. Esta Energia é portanto particularmente sensível a todas as con-

mo entre os mais antigos, podem atenuar-se ou desaparecer graças

tracções desta rede energética e aos obstáculos provenientes das com-

a um trabalho apropriado. Mas nenhum verdadeiro equilíbrio, ne-

pensações no domínio das posturas.

nhum movimento harmonioso, em suma, nenhum progresso real po-

Sempre que um praticante vive uma crispação geral — o que

dem ser realizados enquanto o praticante permanecer crispado,

é, repito-o, um facto corrente — está fora de causa qualquer hipóte-

VIII

ignorando o que possa ser um comportamento descontraído, isto é,

se de expressão; o seu movimento bloqueia-se, fecha-se a qualquer

39


per-cepção sensorial. Um único músculo contraído (ou mais?) basta para

são. Poderíamos ler estas últimas linhas de uma forma subjacente: is-

des-regular a prazo tanto as suas faculdades físicas como a sua sen-

to é, aquilo que é válido em relação a um praticante é igualmente vá-

sibilidade.

lido em termos da harmonia entre Aité e Shité21. A dança clássica, pa-

Daí a importância da descontracção, não no sentido em que

ra citar um exemplo mais comum, é o modelo perfeito de uma arte

eu lhe atribuiria um lugar particular, na medida em que para isso es-

do movimento em que nada é possível nem na moleza nem na ten-

tou sensibilizado, mas no sentido em que ela é muito frequentemente

são.

o problema crucial tanto dos novos como dos mais antigos... Sem ela,

Certos “pesos pesados” do Budo resistirão a aceitar esta apro-

não há respiração, nem concentração, nem beleza do gesto (há por-

xi-mação à dança. Contudo a Arte do Aiki Do está bem perto dela e,

tanto um “Ki” geral disperso).

evidentemente, muito mais do que eles o imaginam.

Em que consiste, na prática da nossa Escola, esta descon-tracção ideal? Antes de mais, ela não é um estado de passividade (como se

Se o Aiki Do não se orienta para a competição ou não se subordina à “razão do mais forte”, também não podemos conceber um acrobata a efectuar um “salto perigoso” com o corpo tenso...

ouve dizer) ou de moleza, mas ao contrário um estado perfeitamen-

A nossa prática requer as qualidades que no dançarino dão

te dinâmico (activo) que resulta de uma justa tonicidade da postura.

uma tão grande impressão de harmonia e fluidez... Não lhe reduzin-

Ela é uma disponibilidade física e mental capaz de tornar to-

do o alcance, é a descontracção a melhor garantia do dinamismo tão

da a acção fluida e harmoniosa.

necessário à prática.

Muitos alunos confundem leveza com moleza, firmeza com

A descontracção é um estado que se adquire: não se pode

crispação, porque não conhecem os gestos e a organização espacial

estar descontraído no momento, no instante da prática, quando anos

susceptíveis de produzir uma Energia ou uma determinada acção, per-

de um estudo crispado nos afastaram deste equilíbrio feito de tonici-

manecendo ao mesmo tempo relaxado.

dade e de disponibilidade.

O nosso estado ideal deve ser tónico e descontraído e não

Do mesmo modo, para um praticante que adquiriu consciên-

tenso e relaxado. Um movimento descontraído não pode ser nun-

cia dos seus problemas e que os tenta solucionar, assimilando, com

ca relaxado, porque ele reclama constantemente uma Energia reno-

maior ou menor convicção e ardor, os princípios já evocados de equi-

vada e posta em movimento contínuo (por exemplo, respostas a for-

líbrio corporal, de abordagem interior no estudo do movimento e na

mas de ataques sucessivas). Ora, para que haja Energia, é preciso que

percepção das sensações, importa desenvolver uma abordagem a lon-

haja tensão correcta entre os contrários. É a oposição correcta de mas-

go prazo que, só ela, lhe permitirá realizar, no inesperado de um ata-

sas musculares que dá o tónus ligado à distensão e permite a ausên-

que, este instantâneo da descontracção.

VIII

cia de crispações. A grande dificuldade reside, portanto, em conciliar

A primeira etapa nesta via é antes de mais uma tomada de

40

harmoniosamente os dois factores inseparáveis: tonicidade e disten-

consciência: cada um deve descobrir o que é, o mesmo é dizer, apren-


der a sentir os hábitos inconscientes do seu trabalho.

temáticas. Mais perturbante ainda — porque mais difundido e me-

Numerosos praticantes, não se dando conta do seu estado de

nos passageiro — é o estado de espírito que consiste em exercer uma

contracção, atribuem as suas deficiências na prática do Aiki Do a um

vontade de ferro, em querer a todo o custo submeter-se a um mo-

conjunto de problemas técnicos que, à luz da realidade, pouco ou na-

delo pedagógico.

da têm a ver com eles.

Esta tensão bem intencionada, dirigida ao resultado, é um

Esta inconsciência é ainda mais impressionante naqueles cu-

grande obstáculo ao êxito. Diz-se, muitas vezes, nas Artes do Budo,

jo tónus é fraco e que não têm a coragem de pôr em causa o que fa-

“quanto mais procuras a eficácia, menos a encontras”. De facto, ape-

zem.

nas um certo vazio interior permite estar à escuta do instante vivido. Importa em primeiro lugar que o praticante se situe na “ca-

Esta vontade exagerada desemboca na ideia de sucesso e fracasso,

tegoria do seu temperamento”, que pode ir da dos hipotónicos à dos

na antecipação de um juízo feito por outrem (designadamente pelo

hipertónicos. Cada um tem sempre uma dominante de tensão ou de

próprio professor!), que, invariavelmente, cria crispação e an-gústia.

inércia, que deve saber gerir. O justo meio é bastante raro: um, o hi-

Aquele que não consegue, qual criança, abandonar-se sem cálculo e

potónico, terá mais necessidade de fazer apelo à sua energia muscu-

premeditação à simples alegria das suas descobertas, fecha--se a uma

lar, enquanto o outro deverá procurar distender-se. Quaisquer que se-

verdadeira descontracção...

jam as tendências, é preciso, à partida, libertar-se do condicionamento

Há um outro estado de espírito a rejeitar se se aspira à des-

de toda a abordagem parcial e crispada, de toda a precipitação na

con-tracção — e esta nota fará talvez sorrir alguns, tanto mais quan-

forma de agir (lançar-se, por exemplo, numa técnica com velocida-

to ela pode parecer imprópria (ou incongruente). É o problema da

de).

“cara de pau” (mau humor). Da mesma maneira que não se pode Aprender a descontracção é, em primeiro lugar, deixar falar

o corpo. Ora, quando um praticante trata de pôr em causa os seus

praticar sem um mínimo de saúde, aquele que não tem “bom humor” verá anulados todos os seus esforços...

hábitos e decide conscientemente o que quer fazer, ele é muitas ve-

Quando os traços do rosto estão crispados pelo desconten-

zes exageradamente tónico, ao ponto de viver num certo desequilí-

ta-mento interior, o resto do corpo segue esta inclinação nefasta. Nada

brio a este nível. A focalização do seu espírito, o facto de ter de fixar

vale tanto como o esboço de um sorriso para distender todo o corpo

a sua atenção num gesto, de tomar consciência de uma compensa-

e induzir um estado de espírito positivo. E, isto, tanto em relação a si

ção ou de uma sobrecarga muscular, cria frequentemente um exce-

mesmo como em relação aos praticantes com quem trabalha...

dente de tensões, uma atitude algo demasiado rígida e aplicada.

Digo muitas vezes “tende o semi-sorriso de Buda”. Sem um

É um inconveniente passageiro que desaparece rapidamente

mínimo de abertura e de criatividade, em suma, sem Energia interior,

se procurarmos respeitar o ritmo tensão-distensão e não nos crispar-

o tónus corporal necessário à descontracção estará ausente, afasta-

mos, intelectual e fisicamente, sobre sensações fragmentárias e sis-

do por um ar carrancudo destruidor.

VIII 41


Se a descontracção exige uma tal mudança de estado de es-

ções. Sempre que se faz trabalhar um grupo de músculos, todos os

píri-to, ela necessita igualmente de uma preparação prática e corpo-

outros devem permanecer livres e distendidos. Se se ergue o braço,

ral que mantenha o tónus e simultaneamente elimine as eventuais

apenas devem agir os respectivos músculos, mas tudo o resto, inclu-

tensões.

sive o cotovelo, o punho e os dedos devem permanecer completa-

É frequentemente muito difícil dizer se a tensão do pratican-

mente flexíveis. Em resumo, é preciso saber agir com um tónus liga-

te se deve ao seu desequilíbrio corporal ou se, ao contrário, é a sua

do à acção desejada, mas que não se repercuta sobre o conjunto do

pre-disposição para uma excessiva contracção que está na origem de

corpo.

um tal mal-estar físico. É evidente que estas duas tendências, seja qual for aquela que cria a outra, acabam por se alimentar mutuamente. Também é importante, desde o início de um questionamento profundo, trabalhar ao mesmo tempo a descontracção e a adopção de novas condutas.

Os pugilistas dão-nos um exemplo impressionante (é caso para o dizer!) desta independência muscular. Os seus golpes têm uma eficácia que está directamente ligada à descontracção e à elasticidade do resto do corpo. A nossa independência muscular permite-nos economizar a Energia (Ki), ao utilizar, para um movimento, apenas os músculos ade-

Do ponto de vista do corpo, é necessário aprender a colocar

quados; o nosso tónus vê-se reforçado e ficamos então na posse de

devidamente as costas e o esqueleto, que dão “a forma” e a estru-

uma “sobrepotência” que nos garante, de forma permanente, uma

tura do corpo, indispensáveis a uma tonicidade mínima. Mas no seio

segurança próxima do famoso “Haragei”22.

desta vigilância tónica, não se deve descurar a descontracção dos

Devemos igualmente saber dosear a nossa descontracção se-

membros, do plexo e dos músculos da cavidade torácica. A calma e

gundo as necessidades do momento. É muito importante avaliar, con-

a amplitude da respiração, a liberdade dos gestos garantem-se atra-

forme o exercício em causa, que grau de tonicidade e de des-con-

vés do equilíbrio entre o tónus geral do corpo e a descontracção de

tracção devemos atingir. Por exemplo: no Kokyu Ho, é em função do

certos grupos musculares.

parceiro e das nuances da sua pega que devemos mobilizar uma maior

Uma parte importante deste treino consiste em aprender a

ou menor energia ou mantê-la em reserva.

não desperdiçar o nosso tónus onde ele é inútil, mas sim a concen-

O nosso tipo de acção é função de uma Energia correcta —

trá-lo na parte do corpo que se prende com a nossa acção, servindo-

ela nem sempre será a mesma — e esta avaliação do esforço, que va-

nos unicamente dos músculos destinados ao próprio movimento, sem

ria de gesto para gesto, permite ao corpo responder às suas necessi-

fazer intervir outros. Dou frequentemente o exemplo da “mola de

dades e organizar-se.

roupa”. Quando a queremos abrir com os dois dedos, porque have-

Na música, acontece algo de semelhante. Conforme aquilo

VIII

mos de crispar a maxila inferior ou outra parte do corpo. Outro exem-

que se toca, deve estar-se mais ou menos “envolvido” ao nível tóni-

42

plo: quando pegamos no Sabre ou no Bokken, são inúteis as crispa-

co, e o excesso ou a falta de envolvimento podem ter consequências


fatais sobre a expressão. O mesmo se passa com o estado de espíri-

atingir um tal estado será recompensado muito para além da suas es-

to ao longo de uma prática já avançada. É preciso deixar fazer, nada

peranças e dar-se-á conta das suas repercussões em todos os domí-

provocar, nem querer, mas sentir-se “agido”, como se a acção obe-

nios.

decesse a uma pulsão do subconsciente. A descontracção, estado

Uma distensão física e mental, bem realizada, não só nos apro-

criativo por excelência para o Aiki Nage, torna-se então senhora nes-

xima dos seres e das coisas, como atenua ao mesmo tempo os efei-

te menor investimento da Energia.

tos nefastos dos ruídos e das excitações parasitárias e desvita-lizado-

Nem sempre é assim, evidentemente. Consoante os ataques, é necessário ter em conta diferentes elementos:

ras. Com ela, não só a prática do Aiki Do ganha em sensibilidade, isto é, ganha uma consciência mais desperta, como a própria alma en-

1.

Há o elemento rítmico

tra numa espécie de vibração que poderia assemelhar-se a uma sim-

2.

A força mais velocidade (cara aos mecanicistas) ...

patia fundamental com todo o ser criado. Parece que a naturalidade,

É preciso, então, apelar a uma espécie de organização dinâ-

enfim reconquistada desde o feliz estado da infância, dá a preciosa

mica, a uma concentração de vigor, a um tónus muito vigilante, que

certeza de dispor de uma Energia que se poderá aplicar onde se qui-

de qualquer modo nunca excluem a descontracção permanente, a

ser, acumular ou fazer desaparecer com um perfeito controlo desde

qual é um estado de fundo indispensável a toda a acção. A prática

que a nossa respiração, inseparável da descontracção, não levante

séria e bem conduzida de um relaxamento no plano psicológico po-

obstáculos.

de revelar-se de enorme ajuda para os que têm dificuldade em desinvestir as suas tensões do seu conteúdo emocional, e não conse-

Se temos um bom Shizei (a boa atitude na descontracção), o trabalho seguinte é: Ko Kyu:

guem, portanto, atingir através de simples tomadas de consciência o

Haku (Ko) Expirar

estado de descon-tracção que procuram. Mas o relaxamento tem ou-

Suu (Kyu) Inspirar

tras implicações muito fecundas. Ele favorece, em particular, um estado de consciência superior, um meio termo entre a vigília e o sono, desenvolvendo consideravel-mente o nosso poder criador. Chegar a um tal domínio da descontracção, na consciência, é já fonte de bem-estar. Mas nada é comparável ao facto de realizar esta descontracção na execução de um movimento, isto é, quando os progressos na aprendizagem do Aiki Do foram suficientemente levados até um certo grau. Quem tiver a coragem de fazer o esforço necessário para

21. Para Aité, ver nota 6, p. 22. Shité é a pessoa que tem a iniciativa na execução do movimento. 22. Fala-se de Haragei quando um homem possui o domínio da sua Arte: calmo e sereno em todas as circunstâncias. É um estado de maturidade em que a sensibilidade e a Energia encontram todas as possibilidades a qualquer momento.

VIII 43


44

Gyô: arte de provocar acção do adversário, levando-o a um terre-

Kusa: o espírito subtil, a erva que oscila ao vento, a flexibilidade

no desfavorável, obrigando-o a agir, forçando-o a ser autor da

do junco, a maleabilidade do espírito que conhece o desprendi-

sua própria derrota.

mento; acção contida, perpetuada até ao limite.


IX A respiração é a encruzilhada em que se reconciliam as actividades fisiológicas, psicológicas e espirituais. O laço, a corres-pon-

ko kyo

O ritmo da respiração obtém-se através de uma harmonização dos três movimentos: inspiração, expiração e retenção.

dência rigorosa entre a actividade mental e a função respiratória é um

Tal como os batimentos do coração, o ciclo respiratório é uma

dos dados importantes do Budo em geral e do Aiki Do em particular.

manifestação inconsciente da vida. Não há ser vivo que não respire,

A ciência da respiração, conhecida na Índia sob o nome de Pranayama,

a ponto de o ”sopro” ser, por vezes, assimilado à vida.

e as técnicas de Yoga (Asana) deveriam interessar os praticantes, não

Mas, exactamente porque se trata de uma actividade vital que

apenas para a flexibilidade e para o conhecimento do corpo. Mas sa-

não é possível dispensar, a nossa respiração acontece sem que nela

bendo também que todas as funções dos órgãos do corpo são pre-

pensemos.

cedidas pela da respiração, existe sempre uma ligação entre a respi-

Infelizmente, parece termos perdido sem o saber a esponta-

ração e o espírito nas suas funções respectivas. A respi-ração, quan-

neidade duma respiração absolutamente ”normal”, que devia ser a

do todas as funções dos órgãos estão suspensas, realiza a concen-

dos nossos longínquos antepassados, e que observamos nos bebés,

tração do espírito sobre um único objecto.

nos animais e durante o nosso sono.

Existe sempre uma ligação entre a respiração e os estados

Por consequência, quando respiramos de maneira antinatu-

mentais. Isto permite entender que, ao ritmar a sua respiração de for-

ral, ao invés da lógica do nosso corpo, não temos geralmente disso

ma cada vez mais lenta, seja possível penetrar em estados de cons-

consciência.

ciência outros que os do estado de vigília.

A respiração defeituosa é tanto mais dissimulada, quanto não

IX 45


nos apercebemos dela a não ser em casos de perturbações excepcionais e fugidias, em que intervêm a emoção ou o esforço exagerado. Ora, ela condiciona sempre o nosso comportamento e a nossa maneira de praticar o Aiki Do, para o melhor e para o pior! Não podemos, pois, ser-lhe insensíveis. Devemos, pelo contrário, aprender a utilizá-la e a todo o momento conciliarmo-nos com ela. Numerosas e variadas técnicas milenárias foram elaboradas

I

muito especialmente na Índia, no estudo do Yoga, e no Taoísmo chinês. Desde há milénios, diferentes tradições elaboraram técnicas variadas, designadamente no estudo do Yoga (Pranayama). Frequentemente estas técnicas têm implicações que ultrapassam de longe o quadro da aprendizagem de uma boa respiração. Neste trabalho, o nosso objectivo não é analisar a fundo a respiração ou explicar como deve ser praticada, porque, do meu ponto de vista, isso deve ser transmitido directa e particularmente de professor a aluno. Mas, nestas reflexões, podemos trazer à luz a influência capital que ela tem nos praticantes — sem que a maior parte das vezes eles se dêem conta disso. E mostrar, em consequência, o lugar que ela poderia assumir no ensino do Aiki Do. Precisemos, desde já, que descontracção e respiração são absolutamente indissociáveis, e que não podemos ocupar-nos de uma sem passar pela outra. Alguns praticantes de Aiki Do sentirão mais os inconvenientes de uma tensão excessiva, outros os de uma respiração difícil, mas qualquer que seja o ponto defeituoso para o qual a sua sensibilidade particular os alerte, eles deverão, a fim de esperar melhorias, ter em

IX

conta o duplo aspecto de um problema de que não percebem senão

46

uma parte.


X

a respiração e a sua utilização

A vida explica-se pela circulação dos sopros — é um grande princípio, que a arte do Aiki Do deveria aprofundar.

O estudo do sopro Ki começa pela compreensão do meca-

vitórias passageiras. Mas para o praticante que escolheu uma Via, é

nismo da nossa respiração. Depois, uma vez assimilado, a respiração

algo diferente. A abordagem do Aiki Do é outra coisa. Em primeiro

torna-se Sopro e dá-nos Energia, harmonia e paz. Ele é factor de pro-

lugar, não é uma construção intelectual, nem um discurso filosófico

gresso na arte que praticamos, ao permitir unir o ser, ligando o cor-

frequentemente nebuloso, frequentemente confuso!

po ao espírito, visando uma outra consciência. Neste capítulo, estudaremos apenas a influência da respiração e o seu mecanismo de base.

E, no entanto, a Arte do Aiki Do, se for bem ensinada, permite descobrir a arquitectura subtil do corpo humano e, deste modo, remontar à sua fonte.

A prática dos exercícios respiratórios, sejam do Yoga ou do

Mas antes de continuar as reflexões sobre a respiração, que-

Budo, deve ser precedida da obtenção de um ritmo mental harmo-

ria dar a palavra a Itsuo Tsuda23, deixá-lo explicar os seus primeiros

nioso e equilibrado na via quotidiana. Só então, com menor risco,

passos com o Mestre Ueshiba:

exercícios superiores de respiração poderão ser aplicados com a máxima sabedoria... Os múltiplos ginásios em que hoje se pratica o Aiki Do e as

Quando comecei o Aiki Do por volta de 1960, aprendi sob a direcção de professores, discípulos de Mestre Ueshiba, a fazer exercícios de ginástica antes de começar a parte técnica.

Artes Marciais são muitas vezes frequentados por pessoas que na sua

Um destes exercícios consistia em rodar sobre cada um dos

grande maioria vêm à procura de potência e força. Vão trabalhar du-

pés alternadamente, descrevendo círculos através da deslocação. A

X

ro e forjar o seu corpo no combate, adquirirão títulos, obterão talvez

utilidade deste exercício, segundo a explicação dada, era a de permi-

47


tir baixar o centro de gravidade do nosso corpo de maneira a que es-

Qual era a diferença essencial, segundo o que me foi dado ob-

tivéssemos em equilíbrio em todas as circunstâncias. A explicação pa-

servar, entre Mestre Ueshiba e os seus alunos? Os seus alunos, salvo

recia-me muito lógica. Todas as perturbações por que passamos na

talvez algumas excepções, eram fascinados pelo poder do Mestre e

vida corrente provêm do facto de o nosso centro de gravidade estar

seguiam-no a fim de adquirir esse poder, a fim de se tornarem cada

colocado demasiado alto. O sangue sobe à cabeça e perdemos a lu-

vez mais fortes. Eles conseguiram chegar, em geral, ao Aiki Do de

cidez. Levados pelos impulsos do momento, cometemos erros.

Consolidação, cuja fórmula consiste em consolidar-se a si mesmo, atra-

Tendo aceite a explicação, treinava-me neste exercício. Fazia

vés da procura incessante do reforço dos pontos fracos. Fortificar os

uma volta sobre um pé, em seguida, sobre o outro. Um, dois, três,

pulsos e baixar o centro de gravidade. Procurar intensificar o Ki, au-

quatro, eu fazia círculos sem perder o equilíbrio, ao mesmo tempo

mentar a eficácia.

que me deslocava. Um dia em que realizava este exercício, ouvi uma voz que,

diferente: era o Aiki Do de Conciliação, de comunhão com o Universo24.

embora muito gentil, não deixava margem para dúvidas sobre o con-

Eu sentia um despojamento completo na sua personalidade, no seu

teúdo do que ela significava: “Assim, vai ter vertigens”.

comportamento e na sua técnica. Ele era tão inatingível como um fe-

Virei-me e vi Mestre Ueshiba que me olhava. Fiquei pregado ao chão sem saber o que dizer. Esta palavra do Mestre teve em mim um impacte terrível.

casse era arrastado no seu turbilhão. Ele afastava-se dos humanos. Ele próprio o dizia. Uma tal declaração poderia ser compatível com a Via do Amor? Compreendi que

Quer se tratasse do Mestre ou de um pequeno professor, devia haver

o Amor de que ele falava não se situava ao nível da afeição pessoal,

uma doutrina imutável, uma prática determinada uma vez por todas.

porque, no contacto que com ele tive, tinha sido absorvido numa di-

O facto de o Mestre desaprovar o que eu tinha aprendido dos seus

mensão sem medida à escala humana.

Era preciso repor tudo em causa.

Uma tal concepção do Aiki Do é, evidentemente, inacessível ao comum dos mortais. É infinitamente mais fácil explicar a Consoli-

Levei muitos anos antes de compreender e sentir que o Aiki

dação. Ainda que se compreenda e aceite o Aiki Do como via de co-

Do de Mestre Ueshiba era muito diferente do dos seus discípulos.

munhão com o Universo, num plano meramente espiritual, é mais ló-

Seria preciso acrescentar ainda que cada um dos seus alunos o prati-

gico, de qualquer modo, dá-lo a entender em termos acessíveis a to-

cava à sua maneira, segundo a sua motivação pessoal, segundo a

da a gente e com a promessa acrescida da eficácia.

sua abertura de espírito.

48

nómeno natural. Ele era inatacável como o ar e quem quer que o ata-

Eu tinha acreditado, até então, na uniformidade do ensino.

discípulos directos constituía um caso de consciência muito grave.

X

O Aiki Do de Mestre Ueshiba parecia-me ser completamente

De qualquer modo, havia entre o Mestre Ueshiba e os seus alunos uma distância tão grande que era difícil de ultrapassar.

Ao primeiro confronto com as dificuldades reais, o espírito cede o lugar à agressividade mesquinha. À força de observar as pessoas praticar, acabei por sentir em


filigrana o que levou cada um ao seu exercício. Há tantos Aiki Do

E, no entanto, ele jamais lhe deu um nome, e o outro estava

quantos os praticantes, tal como existem tantos grafismos quantos

convencido de que se tratava exactamente de um exercício prepara-

os escribas. O que é terrível é que a motivação inicial, íntima e sub-

tório, preliminar à técnica que era para este último a coisa principal.

consciente, permanece frequentemente imutável, apesar da prática.

Porque é que nunca houve nome? É difícil de compreender a

Raros são os que reconhecem a estreiteza da sua visão e introduzem

um espírito ocidental, porque, para este, a primeira coisa a fazer, quan-

uma mudança radical na sua atitude.

do tem algo a preconizar, é dar-lhe um nome, colar-lhe uma etique-

Este foi, contudo, o caso de Mestre Ueshiba. Ele dizia que estava no seu primeiro ano de Aiki Do. Eu sentia que a sua evolução nunca desembocava num fim. Mulheres que querem saber se a prática do Aiki Do as fará

ta. A coisa não existe enquanto não tiver denominação. À falta de melhor, baptizei-a provisoriamente de prática respiratória, tendo por detrás toda a ressonância que a escolha deste nome possa suscitar.

emagrecer, rapazes que o querem aprender na condição de o pode-

É verdade que, nesta prática, nem tudo cabe no mesmo sa-

rem utilizar ao fim de três meses nas suas zaragatas, estes são refle-

co. Existem também exercícios que podem passar por serem de aque-

xos dos costumes dos nossos dias.

ci-mento, como aqueles que se aplicam aos pés, aos dedos dos pés,

No que diz respeito à primeira parte da sessão, parte que precede o treino técnico, conheci várias concepções e, consequen-temente, várias denominações. Ela era apelidada ora de “exercício preparatório”, ora de “ginástica Ai Ki”, mas o Mestre Ueshiba nunca lhe deu qualquer nome.

às plantas dos pés e aos tornozelos. Há outros que estão carregados de significações profundas e que merecem, por consequência, algumas explicações. De outro modo, todos estes gestos se tornariam uma agitação de marionetas25.

À primeira vista, todas as interpretações se assemelhavam mais ou menos e os principiantes aceitavam-nas indistintamente como uma espécie de aquecimento. Foi por um trabalho contínuo de observações e de comparações que acabei por sentir a importância que o Mestre atribuía a esta prática. Quando, de tempos a tempos, o Mestre Ueshiba chegava atrasado para a sessão das seis e meia, o seu substituto tinha concluído esta parte e dizia: “Terminámos o exercício preparatório”. Sempre que isto acontecia, era a vez de o Mestre fazer explodir a sua cólera numa voz tonitruante: “Qual exercício preparató-

X

rio? Nunca houve tal coisa”.

49


Nota elementar sobre

empurrando para cima o diafragma, cuja parte superior se levanta e

o funcionamento respiratório

os flancos se retraem, arrastando consigo o fecho das costelas e permitindo o expulsar do ar pelos pulmões.

A respiração, no seu acto instintivo, vital para o ser humano,

Basta observar os alunos num dojo, para nos darmos conta de

é executado em dois tempos: a inspiração, ao longo da qual, o ar pe-

que a respiração instintiva habitual é raramente ampla. Ela é, ao con-

netra nos brônquios que o filtram e o enviam para os pulmões onde

trário, reduzida, não permitindo senão um afastamento das costelas

se encontram os alvéolos pulmonares que dele extraem o oxigénio e

e um jogo muscular (diafragmático e abdominal) limitados e não as-

o enviam, sob a forma de sangue oxigenado, para o coração que se

segu-rando senão um mínimo de ventilação da parte central dos pul-

encarrega de o distribuir, através do sistema arterial, por todo o cor-

mões.

po; e a expiração que consiste em expulsar o gás carbónico extraído

Sempre que praticamos, os condicionamentos coercivos im-

pelos pulmões do sangue viciado pelos detritos de combustão, re-

postos ao nosso corpo, as nossas más posturas, a restrição do espaço

gressado ao coração através do sistema venoso.

fecham-nos nesta respiração reduzida, que permite, certamente, as-

Os cursos primários da nossa infância familiarizaram-nos com

segurar trocas gasosas indispensáveis à nossa vida, mas cujos efeitos,

a dupla rede circulatória do sangue carregado de oxigénio em ver-

a mais ou menos longo prazo, ser-nos-ão prejudiciais tanto no plano

melho e do sangue carregado de gás carbónico em azul. O coração

físico como no psíquico. Com efeito, nesta respiração reduzida, a capacidade pulmo-

e os pulmões, intermediários obrigatórios, neles figuravam destaca-

nar não é utilizada no seu máximo, o que significa que a base e a par-

dos. Quanto ao mecanismo que preside a estas trocas gasosas e

te superior dos pulmões, não sendo praticamente ventiladas, os vasos

circulatórias, não temos, em geral, senão uma ideia muito vaga.

sanguíneos, as vísceras, os músculos e o cérebro, irrigados por um san-

Contudo, ele põe em acção um dos músculos mais potentes do cor-

gue insuficientemente oxigenado, acumulam as toxinas e funcionam

po (que trabalha tanto ou até mais do que o coração): o diafragma,

mal. O próprio mecanismo muscular respiratório atrofia-se pouco a

espécie de cúpula que cobre o abdómen e cujos movimentos de vai-

pouco, acentuando os erros da postura, fixando os efeitos de ten-

vém, de cima para baixo e de baixo para cima, são condicionados pe-

são muscular e nervosa, que agem, por sua vez, sobre o sistema sim-

la alternância tensão-distensão dos músculos abdominais.

pático, o qual reage através de tensões sobre o plexo solar, que trans-

Durante a inspiração: a cúpula do diafragma baixa e as suas superfícies laterais alargam-se, os músculos abdominais distendem-se, o abdómen dilata-se, as costelas afastam-se, permitindo aos pul-

X 50

mões encherem-se de ar. Durante a expiração: os músculos abdominais contraem-se,

forma em angústia a ansiedade psíquica original... e o círculo fechase. Quer isto dizer que, para assegurar uma boa saúde, deveríamos respirar sempre no máximo da nossa capacidade pulmonar e sobre-oxigenar o nosso sangue em permanência? Na prática, isto não


seria possível: o mecanismo muscular respiratório fatigar-se-ia de-

Esta respiração voluntária, profunda e lenta pode ser pratica-

pressa e uma excessiva entrada de oxigénio provocaria um desgaste

da durante ”o cerimonial”. A prazo, ela influi sobre a respiração ins-

rápido dos órgãos por oxidação.

tintiva habitual, que será mais completa e menos rápida.

Sem querer fazer da respiração habitual uma tarefa disciplinar, os praticantes de Aiki Do, antes de falarem da Energia ”Ki”, de-

Princípios de base da reeducação respiratória

veriam praticar regularmente técnicas respiratórias, para melhorarem as trocas gasosas (uma maior quantidade de oxigénio no sangue, uma

Todo o praticante de Aiki Do, antes de pensar num trabalho

maior quantidade de gás carbónico expulso), permitindo à base e à

mais subtil, deveria conhecer os princípios básicos da reeducação res-

parte superior dos pulmões funcionar e, simultaneamente, reduzir as

piratória.

tensões musculares e nervosas de todo o nosso corpo e corrigir as

a) A inspiração e a expiração devem fazer-se pelo nariz.

posturas defeituosas.

Na inspiração: os pêlos que revestem a mucosa nasal retêm

Uma maneira muito simples de reeducar a respiração instin-

as poeiras e a passagem pelo canal nasal aquece o ar antes da sua

tiva consiste em praticar pelo menos duas vezes por dia (ao levantar

chegada aos brônquios. Acresce que o muco segregado pela muco-

e ao deitar) uma série de respirações voluntárias profundas e lentas,

sa tem a propriedade de matar certos micróbios.

de tal modo que os três níveis dos pulmões (base, meio e cimo) sejam profundamente ventilados e permitam trocas gasosas máximas,

Na expiração: o sopro pelo nariz permite travar muito mais subtilmente do que a boca o faria a quantidade de ar expulso.

assegurando, assim, um forte acréscimo da taxa de oxigénio sanguí-

Na inspiração e expiração nasais, o ar reunido à passagem age

neo distribuído por todo o organismo e, em particular, no cérebro

como uma massagem sobre as células nervosas que estão em relação

(grande consumidor de oxigénio), cujo funcionamento ao nível do

com os centros simpáticos.

néo-cortex (sede das faculdades intelectuais) e do rinencéfalo (sede

Note-se que, para os Yogi, o papel de cada narina tem a sua

das emoções) se verá melhorado. Esta sobreoxigenação cerebral, agin-

importância ao nível da absorção e da expulsão da Energia vital (Ki)

do por intermédio do hipotálamo sobre a hipófise, melhora igual-

contida no ar.

mente o funcionamento endócrino. Ao mesmo tempo, os movimentos de fluxo e refluxo do diafragma, lentos, regulares, profundos, asseguram uma massagem das

b) O ritmo deve ser lento para permitir uma melhoria da circulação sanguínea, uma desaceleração da ”bomba” cardíaca, uma massagem mais profunda das vísceras e do plexo solar.

vísceras abdominais, cujas funções de depuração e de transformação

c) A respiração deve fazer-se aos três níveis: abdominal (ven-

são facilitadas. A mais longa duração dos movimentos respiratórios e

tilação da base dos pulmões), torácica (ventilação do meio dos pul-

das trocas gasosas reduz a velocidade da circulação sanguínea e des-

mões), clavicular (ventilação da parte superior dos pulmões), favore-

X

cansa o coração, desacelerando os seus batimentos.

cendo assim o livre jogo do diafragma, a massagem das vísceras e o

51


descongestionamento do plexo solar.

aluno e deve visar também o anti-stress. A prática, como vimos, é tam-

d) A duração da expiração deve ser dupla da da inspiração, o que é o caso na respiração instintiva do corpo em repouso. Ao procurar conservar na respiração voluntária a relação 2 para 1, permite-se aos músculos abdominais, nesta fase dinâmica que é a expiração, expulsar ao máximo o ar viciado dos pulmões. e) Deve observar-se um tempo de paragem com os pulmões cheios e um tempo de paragem com os pulmões vazios:

bém distensão, em movimentos conscientes, controlados, permi-tindo que o aluno se recentre, se ponha à escuta do seu corpo, sinta uma forma de ataque e o aceite para lhe fazer frente. A tomada de consciência da descontracção e a da respiração inauguram a confiança. Segundo Karlfried Dürkheim, a falta mais corrente, cometida em respiração, é não respirar a partir do seu centro, mas de demasiado alto. Daí resulta que um trabalho muscular do peito se substitui ao

• no fim da inspiração, a paragem permite aos alvéolos pul-

trabalho inconsciente do diafragma. E, assim, se instala uma respira-

monares desenvolverem-se e encherem-se de ar, no máximo da sua

ção saída do ”eu” contrária ao ritmo de uma respiração saída do Ser

capacidade, a fim de extrair o máximo de oxigénio;

autên-tico. Sempre que a respiração falsa se tranforma num hábito,

• no fim da expiração, a paragem permite o repouso do diafragma.

ela entrava o devir de uma pessoa27. O diafragma participa no jogo ritmado da respiração que nos

f) O corpo deve estar em perfeito equilíbrio em torno de uma coluna vertebral o mais direita possível, e os ombros baixos.

liga ao Universo... O praticante de Aiki Do ignora frequentemente que a beleza

A simetria dos dois lados do corpo em relação ao eixo central

dos seus movimentos, que devem vir do mais íntimo do seu ser, é fun-

assegura um mesmo trabalho e um mesmo efeito benéfico para ca-

ção da sua calma e da correcta utilização do seu sopro. O praticante

da pulmão e cada músculo gémeo.

cujo ritmo respiratório não é amplo e distendido não pode aspirar à

g) O espírito deve concentrar-se sobre cada fase respiratória e acompanhar os seus efeitos: por um lado, a concentração sobre a tarefa permite realizá-la melhor; por outro lado, a acção do pensa-

naturalidade nas deslocações. Quando se fala de um belo movimento, diz-se que nele há ”Ki”. Poder-se-ia dizer também: ”Este movimento tem Sopro”.

mento sobre os centros de aprendizagem inconsciente do cérebro fa-

A respiração não é apenas uma exigência técnica, sem a qual,

vorece a aquisição de novos automatismos; por último, ao fazer isto,

de um ponto de vista do corpo, não se pode estar ”colocado”. Ela é,

não pensamos mais nas preocupações quotidianas e, pouco a pou-

antes de mais, tal como a descontracção, necessidade na Arte do

co, chegamos a eliminá-las e a aproximarmo-nos do vazio mental que

Movimento.

coloca o corpo e o espírito em repouso . 26

Sempre que nos exprimimos através do nosso corpo, somos tributários da nossa respiração, a meio caminho do consciente e do

X

Nesta reflexão sobre a respiração de base, será preciso não

subconsciente, do baixo e do alto do corpo, do físico e do espiritual.

52

esquecer que a sessão de Aiki Do deve privilegiar a recentragem do

Se a respiração é interior, profunda e calma, ela é a fonte de uma


Energia Vital inesgotável. Dizia o Mestre Ueshiba: ”Para aquele que compreende o princípio essencial do Aiki Do, o Universo está nele; eu sou o Universo”.

A percepção do Ki suscita e reclama uma qualidade

E este princípio essencial é o Sopro.

de atenção particular que

Se, ao contrário, a respiração é curta, mal colocada ou inibi-

tanto na sessão de Aiki Do como no quotidiano.

da, ela não só perturba o metabolismo, como paralisa o movimento, bloqueia a relação entre o baixo e o alto do corpo e priva-nos, por-

sai dos nossos automatismos

Esta presença no instante é um dos melhores caminhos para a qualidade da nossa concentração.

II

tanto, de uma comunicação real com a riqueza criativa do nosso inconsciente. Ora, é este estado privilegiado que vivemos em certos momen-tos da prática, sempre que abandonamos o domínio do ”fazer”, para experimentarmos o do ”deixar fazer”...

23. Itsuo Tsuda, de nacionalidade japonesa, fundou, em Paris, a ”escola da respiração”. Integrou-se perfeitamente na cultura ocidental. Foi aluno de Marcel Granet, cuja cultura chinesa aprofundou. Por várias vezes, nomeadamente em Marrocos onde então eu ensinava, troquei impressões com ele sobre o problema da divulgação das Artes Marciais (Budo) fora do Japão. Itsuo Tsuda conseguiu, a meu ver, a ponte entre o Oriente e o Ocidente, o que é muito raro. 24. Também eu senti isto, depois da morte do Mestre Ueshiba. Decidi, pois, abandonar a organização Aikikai, em 1969. 25. Itsuo Tsuda, La science du particulier, Paris, Le Courrier du Livre, 1976, pp.125-126 26. Para ir mais longe na respiração, v.,designadamente, Georges Stobbaerts, HathaYoga, Centro do Livro Brasileiro, 1977; Recueil de satsang, Lisboa, ed. do autor, 1978/1988; Étude sur l’origine des énergies, Lisboa, ed. do autor, 1979; O Sopro do Espírito, Lisboa, ed. do autor, 1982; Yoga — Noções elementares, nº3, O Pranayama, Lisboa, ed. do autor, 1987. 27. Karlfried Dürkheim, Hara. Centre vital de l’homme, Paris, Le Courrier du Livre, 1974, pp.154-178.

X 53


Longe da especulação intelectual, a importância da experiência directa.

54


XI

concentração

Seria preciso parar o saber. Saber parar seria a salvação Lao Tsé28

Uma das consequências imediatas da descontracção e da respiração correcta é permitir-nos aceder à concentração.

Se não existem técnicas pré-fabricadas que possam conduzir à concentração, há, no entanto, tomadas de consciência físicas e psí-

Da mesma maneira que a descontracção é, como vimos, mui-

qui-cas que a ela facilitam o acesso. Sabemos, por o termos visto mui-

tas vezes confundida com um relaxamento geral, a concentração é

tas vezes, que se o corpo se verga às exigências da imaginação, em

indevidamente assimilada a um paroxismo de atenção, a uma vigi-

contra-partida, o seu equilíbrio, a "centração" permanente são a con-

lância interior sem falha, que não são, de facto, senão crispação do

dição do bom funcionamento do espírito. A concentração, directa-

pen-samento (morder o cérebro com os dentes!). Descontracção e

mente ligada ao estado criativo, por exemplo, num movimento de

con-centração, longe de serem moleza do corpo e crispação do espí-

Kokyu Nage, é antes de mais este retorno a si, sem o qual um bom

rito, são dois estados inseparáveis, que envolvem por inteiro o indiví-

praticante não poderia exprimir senão movimentos superficiais. É pre-

duo. A concentração é, antes de mais, disponibilidade, abertura em

ciso não esquecer que um movimento mesmo Ni Kyo liberta uma

relação a si mesmo e em relação ao exterior, um movimento de Energia

emoção que pode ser nervosa, agressiva, vazia, etc., e deixa também

insuspeitada. A expressão de um movimento é uma força dirigida do

àquele que o sofre um mal-estar e que não passa despercebido a um

interior para o exterior, um movimento de Energia vindo do mais fun-

olhar atento...

do de nós mesmos, que procuramos traduzir. Caso o caminho da comunicação connosco esteja bloqueado, não há descarga possível para esta Energia que se transforma então em tensão e crispação.

É aqui que se separam as escolas! Uma será a da Consolidação e outra a da Conciliação. A concentração deve, portanto, ser objecto de uma aborda-

XI 55


gem privilegiada por parte dos aikidocas.

não permitem nem retoque, nem remorso, exigem de nós um inves-

Concentrar-se é, antes de mais, regressar ao centro do corpo

timento e uma disponibilidade totais, que não podem basear-se se-

e aí se enraizar, em vez de andar ao sabor do jogo de forças diver-

não na nossa concentração no sentido físico do termo. (E isto, pou-

gentes e contraditórias.

cos o compreendem!).

O Seika Tanden ou Kikaï Tanden (impropriamente traduzido

A valorização do Seika Tanden não é pura fantasia.

por Hara), de que falam os Mestres de Budo, é o ponto crucial do nos-

O ventre é o estado mais primitivo da evolução na estrutura

so corpo. Ele é o centro vital onde se concentra o Ki, a Energia cós-

do corpo humano. Ele é origem da vida (no ventre) e da reprodução,

mica, e de onde ela se expande por todo o corpo. Nós ocidentais po-

o lugar de junção do alto de do baixo, da direita e da esquerda, o pon-

demos relacionar esta Energia ao Sopro. Em latim, a energia é alma

to de partida dos nossos braços e das nossas pernas. Não se diz "aguen-

ou anima, que vem do grego anemos, que significa "o vento". Em

tar-se nas cruzes", ou "fazer das tripas coração"? Ora estas locu-ções

grego, anemos corresponde ainda a psico, que vem de psyché que

tendem a indicar a importância atribuída a esta região do corpo.

significa "respirar". O Sopro é também espírito: em latim spiritus e

Pensar com o abdómen significa baixar o diafragma para dei-

em grego pneuma. Mas aqui estamos perante o Sopro Divino como

xar o campo livre ao funcionamento correcto dos órgãos do tórax e

no Génesis: "Então Jeová Deus modelou o homem com a argila da

conser-var assim o corpo firme e convenientemente disponível para a

terra, insuflou pelas suas narinas um sopro de vida e o homem tor-

acção.

nou-se num ser vivo". É o Ki com maiúsculas.

Antes de estar familiarizado com esta concentração física, é

O Seika Tanden, situado no ponto de junção do sacro-lom-

muitas vezes útil despertar esta região abdominal que facilmente es-

bar, coincide com o centro de gravidade. Este ponto não é um órgão

capa ao nosso controlo consciente muitas vezes por razões de edu-

preciso que se possa situar anatomicamente. É o lugar físico onde se

cação...

concentra a nossa força, onde se baseia a nossa estabilidade. Estar

Podemos, por exemplo, solicitar a musculatura da nossa ba-

"colocado" é estar no Haragei, com o seu centro, concentrum. Quan-

cia, exercitarmo-nos alternadamente em contracções e relaxamentos

do conseguimos verdadeiramente chegar a esta concentração na sua

que apuram a sensação. Da mesma maneira, é eficaz praticar um li-

acepção literal, o que implica estarmos descontraídos, assentes nu-

geiro movimento de anteriorização dos quadris (não com um blo-

ma postura correcta e com a nossa respiração colocada, detemos, en-

queio, exagerado!), como quando de uma entrada, por exemplo, em

tão, uma força muito superior àquela que possuímos em tempo nor-

Koshi Nage, a fim de favorecer a base de sustentação e dar às pernas

mal.

uma descontracção suplementar, que permite aceder mais livremenEm vez de sermos apenas um intelecto todo poderoso, tor-

te à consciência abdominal.

XI

namo-nos um ser integral, o que nos abre a via de progressos ilimi-

Certas imagens mentais podem ser muito úteis ao principian-

56

tados. É por isso que o Aiki Do e todo o Budo, Artes do instante, que

te que aprende a concentrar-se. Assim, quando imaginamos o nosso


corpo semelhante a uma esfera, em que as distâncias entre alto e bai-

táculos ao nascimento da concentração, porque eles fecham-nos à

xo, frente e trás, direita e esquerda seriam mínimas e em que cada

realidade vivida.

ponto do corpo estaria ligado a um ponto central, estamos no bom

A aprendizagem da concentração deve permitir o reencontro

caminho de virmos a centrar-nos sobre o "ponto". Contribuem igual-

consigo mesmo em todas as circunstâncias e não ser tributário das

mente para a concentração as imagens pelas quais sentimos toda a

emoções provocadas por um resultado, um julgamento, um momento

Energia do "alto" (Céu) percorrer, descer no corpo para o umbigo,

a advir. É por isso que todo o trabalho do Aiki Do com o Jô ou o

ou ainda aquela outra sensação de caminhar sobre as mãos, isto é,

Bokken é um caminho que visa atingir o estado de concentração, ca-

fazer perder à cabeça o seu papel de chefia... Vi, na Índia do Sul, uma

minho em ponteado, feito de todos estes instantes vividos, onde nos

escola de Kalaripayat que pratica habilmente este exercício mental.

entregamos por completo, onde procuramos reduzir sempre cada vez

Todas estas imagens são ricas de sugestões... e põem cobro ao vaga-

mais a parte acidental no gesto e a sua precipitação muitas vezes ner-

bundear da mente.

vosa, a fim de nos tornarmos verdadeiramente disponíveis.

29

Mas a concentração não é apenas uma realidade física; é tam-

Todos estes exercícios de "centração" física e de localização

bém uma atitude mental e não basta tomar consciência do seu cor-

da atenção têm uma mesma finalidade que se exprime ao mesmo

po ou viver este sentimento de estar centrado em Seika Tanden. A

tempo de maneira muito pontual e de maneira quase intemporal.

verdadeira concentração exige também do aikidoca uma mudança

Com efeito, a concentração é ao mesmo tempo este estado instan-

de espírito que não se efectua num instante, mas ao longo de todo

tâneo em que o praticante se reencontra a si mesmo e a capacidade

um trabalho sobre o tapete e fora do dojo!

que ele tem de se abstrair dos acontecimentos e das situações.

Ela adquire-se através da nossa prática, em cada movimento,

A concentração, por um lado, vive-se, por outro, aprende-se.

até à identificação completa: cada "presença" tem uma sensação ver-

A concentração — estes momentos de unidade interior, on-

dadeiramente vivida, cada minuto de disponibilidade activa ao servi-

de nos sentimos viver até ao limite de nós mesmos, numa unificação

ço de uma busca particular, cada retorno a nós mesmos são um ins-

completa do organismo — a todos diz respeito.

tante de verdadeira concentração que criamos. Quando muitos ou-

Tal como o actor, o músico ou o calígrafo, que dependem da

tros instantes semelhantes vierem juntar-se-lhe postas e repostas à

sua concentração, o praticante de Budo deve estar concentrado no

prova que foram todas as distrações correntes então, cria-se em nós

instante da criação, e nunca pode voltar atrás. Quando um começa

uma real possibilidade de concentração instantânea, uma força que

a tocar, ou o outro projecta o seu pincel no papel, dá-se um momento

nos permite "aguentar" sem sermos submersos pelas emoções exte-

único e em que ambos não podem mais tergiversar.

rio-res . Importa, como sugeri, criar em nós um clima de amor de on-

Para o aikidoca, é o momento da recepção, De Ai a que cha-

de estejam excluídos o nervosismo, a impaciência, as contestações

mo "o estado de De Ai", o momento único do "encontro", da for-

XI

palavrosas, seja connosco ou com os outros, que são os maiores obs-

ma de ataque, o espaço harmonioso do encontro, em que tudo se

57

30


decide. A concentração é este estado privilegiado que, se não garante a riqueza da inspiração, favorece-a e permite que ela desabroche. A concentração é a imagem do tempo concentrado; ela é o resultado instantâneo de todo o trabalho anterior, de todos os esforços do praticante. Ela é a única coisa que perdura quando todo o traço desta preparação desapareceu. É demasiado tarde para alterar, naquele instan-te decisivo, o que foi feito, isto é, para renegar o seu próprio trabalho. No estado de concentração encontra-se condensado o passado do seu estudo. Já não é necessário fazer apelo à memória, ir procurar elementos de técnica, visto que tudo lá está, tudo é presente. A concentração é portanto também esta possibilidade de abandonar a mente, de confiar no que é, a fim de coincidir totalmente com a acção, e viver o instante presente. Para chegar a este estado óptimo em que estamos concentrados, é preciso, nunca será demais repeti-lo, estar liberto de toda a preocupação, tanto em relação ao resultado, como em relação ao juízo de outrem. Esta sensação de disponibilidade, de total receptividade à criatividade do instante, constitui o estado ideal para o qual deveria tender todo o praticante consciente de ser um mensageiro do Sopro... Aquele que, ao longo do seu trabalho de aprendizagem, foi suficientemente paciente para aprender a concentrar-se torna-se capaz, em dois segundos e quaisquer que sejam as circunstâncias, de se "re-unir" para poder exprimir, no instante, a própria essência do movimen-to. Sempre que se acede a um tal sentimento de liberdade interior, a prática torna-se, sem esforço, fonte permanente de alegria

XI 58

28. Lao Tsé, em português, ou ainda Lao-Tseu, na norma francesa, e Lao-Tzu, na inglesa. Mas Laozi, na transcrição oficial chinesa, Pinyin. 29. Considero o Kalaripayat e outras artes de que desconheço o nome, os antepassados das Artes do Judo, Aiki Do, Karaté, Kung Fu, Tai Chi, etc. Nascido na Índia, há mais de 3 500 anos, é ainda desconhecido na Europa, embora alguns ocidentais tenham tentado fazê-lo conhecer, por vezes, de forma desajeitada. O Kalaripayat (o melhor conhecido) tem a riqueza de uma grande tradição, tanto no combate e na medicina, como ainda no método de meditação e de evolução espiritual.

e de criação. É então possível falar sem impostura da nossa Arte.

30. É desolador ver, por vezes, num tapete, praticantes avançados e muito bons executantes perderem-se neste género de situação.


Ter o seu espírito consigo.

a concentração no estudo do yoga Ekagrata: modalidade da consciência que conduz a Dharana (estado de concentração). Viyasa (in Yoga Sutra, I, 1) classifica, da forma seguinte, as modalidades da consciência (ou "planos mentais", chitta bhiumi): 1. instável (kshipta); 2. confusa, obscura (mûdha); 3.

III

estável e instável (vikshipta); 4. fixa sobre um único ponto (ekagra); 5. completamente controlada (nirodha). Destas modalidades, as duas primeiras são comuns a todos os homens, porque, do ponto de vista indiano, a via psíquico-mental e dinâmica é, habitualmente,

confusa. A

ter-ceira modalidade da consciência, vikshipta, obtém-se fixando "ocasional e provisoriamente" o espírito, através do exercício da atenção (por exemplo, num esforço de memória ou quando de um problema matemático, etc.); mas ela é passageira e de nada serve para a libertação (mukti), visto não ter sido obtida por meio do Yoga. Apenas as duas últimas modalidades acima enunciadas são estados de Yoga, isto é, provocados pela medita-ção (Dhyana).

Mircea Eliade Téchniques du Yoga

XI

Gallimard, 1975

59


À mínima discriminação, céu e terra ficam a distância infinita...

60


XII

a energia criadora

O praticante tem por missão fazer viver o espírito do Ai Ki,

professor, sem manter a liberdade de comparar com outras concep-

mas para traduzir os sentimentos que este estado de espírito repre-

ções e sem assumir pessoalmente opções firmes quanto à sua in-

senta é preciso ainda conhecê-lo! Consolidação ou Conciliação?

terpretação da Via (Aqui, separo-me, pela prática no tapete, deste en-

Devo dizer que, na Arte do Movimento (Ai Ki), isto pode ser ainda

tendimento).

mais profundo...

O período teoria/prática está desfasado. (Neste preciso caso,

Cada fase da prática deveria ser virada para o"Momento Úni-

chamo teoria à leitura de textos que podem ajudar realmente e não

co", aquele em que o praticante, confiante nas suas possibilidades,

à leitura que nos leva à especulação intelectual, que nada tem a ver

libertará os seus movimentos tal como os sente. O ensino num dojo

com a prática).

deveria, pois, contribuir para fazer do praticante um "ser total", que

Como espantarmo-nos hoje que, após uma formação de duas

sabe traduzir a sua mensagem com clareza e sensibilidade. Ora, jus-

ou três horas por semana (sem reflexão), prática que considero exí-

tamente, parece que este objectivo último é muitas vezes esquecido

gua, alguns praticantes "Dan" não façam senão cursos ou apresen-

no ensino, mesmo quando se diz "superior".

tação de movimentos muitas vezes decepcionantes, onde pouco re-

Aí, procura-se sobretudo a performance, a eficácia, a aquisi-

cebemos em troca da nossa presença: de tempos a tempos, há uma

ção de velocidade, etc… Enveredar por novos horizontes provoca ho-

execução perfeitamente correcta (Ghi) e, por vezes, uma verdadeira

je desprezo ou desconfiança... O aluno pouco se envolve na sua abor-

exibição pessoal em que o praticante esquece o espírito (Shin) para

XII

dagem. Ele contenta-se em copiar, passivamente e com zelo, o seu

se transformar em vedeta. Os mais novos são frequentemente ví-

61


timas de uma aflitiva dicotomia quando observam os mais antigos.

verá ser esquecido.

A precisão do gesto parece incompatível com a emoção real da be-

Todos os recursos da Arte do Movimento não podem revelar-

leza. Ora, como o sabemos e o esquecemos regularmente, o perfec-

se a não ser que o praticante experimente emocional e fisicamente

cionismo sem alma é tão insatisfatório quanto o pathos sem escrú-

aquilo que pratica (Atenção. Aqui, quando falo de emoção, alguns

pulos... Isto não é, obviamente, uma regra geral. Existem, felizmen-

podem equivocar-se... No semi-sorriso de Buda, havia uma emoção...).

te, bons praticantes, assim como professores de grande qualidade,

Tornar vivo um movimento, é repor o Ki no lugar que é o seu!

que sabem captar a adesão de todos, porque acreditam na sua prá-

Os praticantes são obrigados a envolver-se intimamente na ac-

tica...

ção. Nem todos o conseguem, devido, muitas vezes, a factores psiNão se trata aqui de exigir constantemente ao praticante um

cológicos. Mas os factores nem sempre são psicológicos. O equilíbrio

"grande momento", que é, infelizmente, muito raro. Mas o aborre-

do corpo, o élan que lhe deve ser imprimido, a respiração que não es-

cimento que por vezes emana de um curso ou de uma prática pes-

tá de acordo com o centro podem ser outras tantas causas. No teatro

soal também é infelizmente vulgar. Porventura, é, para o Aki Do, a

e na música, os laços entre a vida interior e a expressão do corpo tor-

maneira de matar a sua Arte!

naram-se evidentes para os pedagogos. Não vejo porque é que as es-

Também não devemos cair num estudo do Aiki Do à manei-

colas de Aiki Do, que se interessam pela formação interior, não have-

ra dos dojos japoneses, onde frequentemente os estrangeiros tal co-

riam de compreender que existe frequentemente um problema de fun-

mo os japoneses são estigmatizados pela secura do ensino. Em Aiki

do que toca a formação total do indivíduo, o seu nível afectivo, inte-

Do, insisto, é necessário ter prazer em comunicar com os parceiros.

lectual, cultural, a sua imaginação criadora, a sua possibilidade de vi-

Nada é estereotipado em Aiki Do. Tal como "o Bom Mestre, que é

brar fisicamente. Não é portanto apenas uma questão de conheci-

aquele que, ao repetir o Antigo, é capaz de nele descobrir o Novo",

mento. É preciso, nelas, desenvolver uma força interior e uma

o bom praticante é aquele que faz "reviver o Aiki Do", no sentido

elasticidade que abriria o campo e daria fecundidade às técnicas e,

forte, através da sua personalidade e da sua subjectividade.

muito especialmente, às de Aiki Nage ou Kokyu Nage.

Muitas vezes, aquilo a que chamo "a ausência do real" de-

Mas o que, em minha opinião, deveria evoluir não era tanto a

corre da importância dada aos problemas técnicos que já deveriam

aprendizagem do Go Kyo, mas o espírito dentro do qual ela se pro-

estar resolvidos: sem a postura correcta e, sobretudo, sem a presen-

cessa.

ça de si mesmo, o praticante não pode jogar com o seu corpo e não pode estar plenamente à vontade na sua mente. Ocupar-se de uma escola de Aiki Do consistiria em dar ao alu-

Não se pode ajudar os principiantes em Aiki Do a tornarem-se futuros aikidocas sem mudar o espírito com que hoje são encaradas as Artes ditas Marciais.

XII

no uma formação larga e aberta que lhe permitisse um dia praticar

É preciso questionar a escala de valores "Shin – Tai – Ghi".

62

com prazer, numa felicidade comunicativa e isto é o que nunca de-

Com efeito, e antes de mais, é preciso desenvolver no principiante


uma qualidade de presença efectiva perante a técnica que deve corporizar. É preciso que ele seja envolvido pela prática e que participe activamente na sua realização. Se a técnica fosse vivida de uma maneira fervorosa, ele lucraria pessoalmente, do ponto de vista do equilíbrio geral e, mais uma vez, do ponto de vista do prazer da prática... É preciso saber também que um bom praticante deve poder ser ao mesmo tempo o anjo e o demónio, o fogo e o gelo...

Sempre que a propósito de um movimento se diz que uma graça fez uma subtil intrusão no Aiki Do (o que é raro), não se trata de uma criação do intelecto. A inspiração de um tal movimento está longe de ser um privilégio, ela é uma possibilidade que existe latente em cada um de nós. É verdade que o movimento não pode ser estudado e instigado, mas cada professor deveria conhecer as leis que o governam e descobrir os caminhos que a ele conduzem. Aquele que seguiu de forma respeitosa os passos da nature-

Não nos devemos limitar apenas a certas técnicas e excluir

za, que elaborou uma técnica em que cada gesto é claro, em que ca-

aquelas em relação às quais nos sentimos ultrapassados, não tanto

da encadeamento obedece a uma lógica interna, animada do inte-

pelas dificuldades técnicas, como pelo seu conteúdo... É desejável que

rior por uma verdade, aquele que, para além disso, conseguiu domar

cada um tente evoluir, abrir o seu campo interior na sequência de no-

o espartilho da vigilância intelectual, que conseguiu vencer a insegu-

vas experiências ou de novas tomadas de consciência. O pensamen-

rança e o medo e que a partir daí nada a grandes profundidades, on-

to na Arte do Budo retira o seu alimento de várias fontes e o nosso

de já não há nem raciocínio nem análise, esse realiza, então, um fei-

pensamento consciente não é senão uma parte mínima do processo

to que pode permitir que, no Kokyu Nage, se manifeste a inspiração

psíquico total.

de um novo sentido.

Ele é insignificante relativamente à potência das nossas fon-

Um dia, destas águas profundas, pode brotar uma qualidade

tes interiores, que são provavelmente o cadinho-mãe de que resulta

inesperada, que agarra, revira e arrasta para um Universo desconhe-

a nossa prática.

cido, mas pressentido, que é o da inspiração criadora.

O intelecto propõe, mas não é ele que dispõe. Ele é um po-

Um bom praticante, verdadeiramente "realizado", nunca é

der superficial, que flutua à superfície do inconsciente, e se a sua ac-

senhor da inspiração. Ele não a possui. Nem mesmo o Mestre Ueshiba

tividade é necessária para colocar questões, para determinar aproxi-

a possuiu. Era a inspiração que o visitava!... Por vezes! Nada pode-

madamente onde se encontra a realidade da prática, ele não é esta

mos fazer para a provocar, nem para a reter. Ele mais não pode fazer

própria realidade.

do que cuidar a casa deste hóspede passageiro, isto é, tornar-se o

A realidade da boa execução de um movimento só pode ser captada quando o intelecto renuncia a todos os direitos sobre ela. Ela exprime-se de forma caprichosa, segundo o seu próprio querer, que não é o nosso, e que tem os seus próprios tempos.

IV

mais dúctil instrumento da Natureza que nele habita. É por isso que a maior qualidade que o praticante deve cultivar é a disponibilidade interior. Ela permite-lhe deixar-se penetrar, em todos os momentos,

XII 63


“No verdadeiro Budo não há adversários nem inimigos, o verdadeiro Budo é estar em uníssono com o Universo.” (M. Ueshiba)

64


XIII

sentir

— Ju no Geiko31 — Tira os teus óculos! — Mas não vejo nada quando pratico. — Aqui, não se trata de ver, mas de sentir!

Em todos os cursos de Aiki Do dever-se-ia falar da Sensação

conduzirá à realização de transformações e aquisições duradouras.

e da Sensação Consciente, dizer que esta última é baseada na aqui-

Ela exige, ao contrário, um treino intensivo sem o qual muitas lacu-

sição do movimento já estudado.

nas reapareceriam e faz entrar o aikidoca num círculo infernal, uma

Sentir é também escutar.

vez que a repetição e a prática são os únicos garantes da técnica.

A realidade no tapete é muitas vezes diferente. E, no entan-

Não se pode parar a repetição e praticar directamente, ou

to, "sentir" deveria ser, para o praticante, a sua preocupação per-

mesmo ensinar, se não se repete... caso contrário as circunstâncias

manente.

exteriores assumem rapidamente proporções desmesuradas e nada

Para a maioria dos praticantes, o trabalho consiste em repe-

já é possível. Estes famosos dias em que "não se está em forma"! O

tir um mesmo movimento, eventualmente, em formas de ataque va-

trabalho, longe de ser ocasião de aprofundamento e de procura, não

riadas, a fim de adquirir automatismo técnico: segundo forças ou ve-

é mais do que um simples meio de conservar um estado, uma ne-

locidades diferentes. Ou, decompondo o movimento com lentidão...

cessidade a fim de não regredir... E, no entanto, em nenhuma idade

Recomeça--se, assim, dia após dia, mas esquece-se que o tempo só

se pode aceitar a fatalidade de não poder progredir: a evolução nun-

pode fazer amadurecer aquilo que foi fecundado. Dizer "isso virá com

ca está fechada àquele que aceita interrogar-se sobre o seu próprio

o tempo" equivale, frequentemente, a reconhecer, de forma mais ou

método e sobre si mesmo.

menos consciente, a esterilidade dos esforços empreendidos. Parece evidente que esta maneira de trabalhar dificilmente

É possível substituir a aprendizagem baseada na imitação e na aproximação por uma abordagem que responda às necessidades

XIII 65


profundas do praticante. O seu princípio consiste em fazer incidir a atenção não sobre

sensação não implica, sobretudo, o abandono do trabalho com diferentes níveis de força ou de velocidade.

o mero resultado exterior do trabalho, mas, partindo do interior, di-

Mas ela permanece um elemento preliminar absolutamente

rigir a atenção para a percepção da sensação física que permite atin-

necessário a todo o tipo de trabalho, mesmo o mais técnico e o mais

gir aquele resultado. Não podemos adquirir realmente senão aquilo

intensivo. Não é paradoxal que no Aiki Do, em que se fala tantas ve-

que é "nosso", isto é, uma combinação de uma tomada de cons-

zes de Sen no Sen32, de espaço, de globalidade, etc., se dê tão pouca

ciência e de uma experiência vivida (portanto praticada). Mais preci-

importância, no seu ensino, ao estudo das nossas próprias sensações?

samente, uma ideia, uma sugestão só adquirem valor se elas forem

O praticante deveria desenvolver uma imensa receptividade

experimenta-das sensorialmente. Recordo-me de, no Dojo do Budokan

sensorial, mas, além disso, deveria ter uma consciência afinada do seu

em Cascais, ter falado da espiral a uma das minhas alunas que tinha

corpo que permitisse reconciliar o movimento e o seu mecanismo.

a seu cargo o curso infantil. Aluna de grande sensibilidade, ela levou

O ensino, em geral, parece, ao contrário, curiosamente sepa-

as crianças para a praia do Guincho e, após todos terem procurado

rado: fala-se, por um lado, do espírito e da atitude mental; fala-se, por

e apanhado conchas, observaram os desenhos das diferentes espirais

outro, do mecanismo, considerado este como a única via de aborda-

nelas impres-sas. Depois, reproduziram a espiral com o seu corpo, até

gem conveniente à técnica. Esta dicotomia leva a trabalhar separada-

que a sentiram verdadeiramente. Por fim, veio, em seguida, a de-

mente a técnica e a mente, como se fossem ambas estranhas uma à

monstração da técnica.

outra. Uma terceira via consiste num imperativo de realização que pas-

Foi uma das mais belas classes de crianças que vi em Portugal.

sa pela assimilação de sensações que são o elo de ligação entre o Aiki

Isto explica os mal entendidos do ensino, quando é pratica-

Do e a velocidade, caso tal seja necessário.

do sobre alunos enervados, por professores também eles enervados, em que nem uns, nem outros estão em condições de dar, de receber

É porque praticamos com o nosso corpo que a procura da sensação pura é tão importante.

e de tratar correctamente as informações que lhes permanecem ex-

Em vez de incriminar, por sistema, a falta de trabalho ou o

terio-res. A nossa abordagem, e muito especialmente na nossa esco-

"mau" trabalho sem precisar o que este termo significa, deveríamos

la, consiste, na realidade, em tomar uma consciência íntima e aguda

pôr o corpo em causa, sensorialmente, tanto na sua relação consigo

daquilo que se sente num gesto ou em vários gestos combinados até

mesmo, como na sua relação com o parceiro ou com o seu Jô ou o

poder reencontrá-los e refazê-los sem a menor dúvida, através da sim-

Bokken: tudo, o equilíbrio no domínio da postura, o gesto, a preci-

ples evocação mental de uma forma instantânea de ataque e da sen-

são..., pode e deve passar pelo admirável canal da sensação cons-

sação obtida. A originalidade desta abordagem consiste na procura

ciente, a fim de poder ser possuído. A sensação e a consciência de-

XIII

aprofundada feita a partir do conjunto das sensações que entram em

vem por todo o lado estar presentes.

66

jogo na elaboração da nossa técnica. Bem entendido, a procura da

Nenhuma parte do corpo pode permanecer estrangeira ao


campo da consciência, sem correr o risco de um dia ser a causa de interferências e desordens que perturbariam o movimento. Talvez possamos acomodar-nos a situações imperfeitas, mas apenas até um certo nível. Um dia virá em que descobrimos, aquando de um problema particular, que nos faltam as respectivas sensações e que a sua ausência era a razão de um bloqueio. V

31. Ju no Geiko quer dizer praticar com leveza. No termo Geiko, há a noção de Ren que significa trabalhar a matéria um pouco à maneira do oleiro que trabalha o seu barro (amassar); há a noção Shu que significa aprender; há ainda a noção Tan que significa martelar o ferro. Portanto, Ju no Geiko encerra noções profundas que dão para reflectir. Na prática, trata-se de fortalecer a nossa disciplina, de purificar a nossa mente, tudo isto numa grande flexibilidade do espírito. 32. Sen é o futuro, antecipar, surpreender. Para as Artes Marciais, Sen é o estado de espírito que consiste em prever a acção do adversário e em o atacar antes dele. É tomar a iniciativa.

XIII 67


Ser, conhecer e fazer confundem-se.

68


XIV .1 Irimi Nage ou Yama-Biko-No-Michi A voz de um eco na montanha

no coração da técnica

de ataque, é de entrar no centro de Aité, criando um ângulo óptimo para o envolver de uma maneira circular, um pouco como a satelitização do protão com o neutrão do átomo.

O essencial desta técnica é ser imperativamente praticada no

O ideograma chinês Iri exprime a ideia de entrar em casa, só,

"instante". É preciso penetrar no adversário, de um só movimento!

ou quando se é convidado. Mi significa a criança no ventre da sua

Penetrar, como se se entrasse em colisão com ele e, no entanto, res-

mãe em toda a plenitude.

peitando-o. O passo, deslizando sobre o lado (issoku, ângulo morto), que permite também um posição de guarda de perfil, poderia evocar a ideia do Sankaku Tobi do Karaté…, em que se entra em contacto

No Aiki Do é comprometer o seu próprio corpo no corpo do adversário. A mesma noção existe no Irimi do Naginata. Quando duas forças se deslocam em sentidos opostos

com o braço ou a tíbia de forma oblíqua a fim de desviar a força e de

F2 —>

a orientar na direcção oposta…

F1 <—

Mal entramos no ataque, encontramo-nos por detrás do Aité

1+1 =

(daí a ideia do eco). A entrada pode ser feita com pequena ou gran-

a força que delas resulta é a soma destas duas forças. Também utili-

de amplitude. No Ken Jitsu, diz-se sempre: "Coloca-te longe do ad-

za-mos o resultado destas duas forças, quando do cruzamento, mas

versário, ao mesmo tempo que te manténs perto dele." É o essencial

tudo isto no sentido de Sabaki. Sabemos que na origem desta pala-

da Arte do Sabre. O princípio é de desviar tangencialmente a forma

vra há a ideia de "encontrar uma solução para um problema".

XIV 69


Poder-se-ia considerar que, na técnica Irimi, corresponderia a anular

oriental é feito frequentemente com metáforas. Mas, aqui, cada um

o efeito de um ataque, de modo a que este se vire contra o agressor

faz a busca, a partir do seu nível…

de forma dissuasora. No Irimi, não há a ideia de ataque. E, no entanto, há a de en-

harmonia, querendo isto dizer que a forma de ataque encontraria o

trar, de atravessar. Mas, na realidade, trata-se de resolver o conflito

"vazio", por conseguinte, o Yang, o mesmo é dizer, a "não-forma".

do ataque de uma maneira harmoniosa. Há também a ideia de amor,

Visto que se fala do Ki, entramos na Energética chinesa, em

de não fazer senão um com o outro, para o "satelitizar".

a Energia, quanto mais ganha forma, mais é Yin; e, quanto menos for-

Esta forma de trabalho impõe que se avance na direcção do

ma ganha, mais é Yang.

ataque, o que pode levar-nos a ceder ao medo, perante, por exem-

Quanto mais nós descermos na manifestação, mais a Energia

plo, um tsuki, ou perante um ataque com Sabre! Ela requer, para além

é Yin. Quanto menos manifesta a Energia for, mais ela é Yang. Quando

de um "saber-fazer", determinação…

eu executo Irimi, sou Yang. Devo, portanto, manifestar o menos pos-

A noção de Irimi é de apreensão difícil para um principiante,

sível o meu movimento. O Yin encadear-se-á por si mesmo e a forma

porque ela repousa num reflexo que não é natural. Neste movimen-

será construída, segundo a minha inspiração. O eco na montanha é,

to não há oposição (não há portanto competição). Opondo-nos, en-

no fundo, este Yin subjacente, que ressoa em mim. (É o fio de ouro

tramos na dualidade. Se tal acontece, descemos ao mais baixo nível

que liga os parceiros, Aité e Shité).

ção.

A projecção mais não é do que a continuação da forma. A queda nunca é a vitória para Shité. Aquele que cai deveria, normal-

Uma das especificidades do Aiki Do é superar este estádio. O

mente, sentir uma vibração vivificadora, que reanime, por assim dizer,

verdadeiro Aiki Do, dizem os Mestres, situa-se antes do movimento;

as suas energias latentes. A partir de então é-lhe possível entrar em

o resto não é senão técnica…

ressonância com aquele que o projecta, dele aproveitar as correspon-

Mesmo com uma boa técnica, o Irimi raramente é bem executado, dada a enorme dificuldade em o definir exactamente. Irimi não é qualquer coisa que se aprenda. É um "conhecimento" que transparece através do movimento. Mestre Saito diz: "Vós projectais o vosso Ki, o Ki do adversário retornará a vós como um eco, contudo, não recebereis o Ki do adversário, porque estais colocado atrás

70

que se baseiam os japoneses para explicar o Ki ou Chi. Sabemos que

É nesta técnica que se situam a raiz e a origem de toda a nossa arte.

do Aiki Do, àquele que o coloca ao nível das disciplinas de competi-

XIV

Para mim, Irimi Nage é procurar um acordo, portanto, uma

dele". Sabemos que as vias do Aiki Do são misteriosas, e o ensino

dências silenciosas, para desenvolver o Aiki Nage! Mas, nos dias de hoje, quem escuta, e quem projecta?!…


é preciso recordar as palavras do Mestre Kyundo Ozawa, quando falava da atitude correcta no Tiro ao Arco:

.2 Ten Chi Nage

"... De uma extremidade do seu arco, o archeiro fura o Céu; O intervalo Céu-Terra, dir-

se-ia um fole

no outro extremo, fixado num fio de seda, está a Terra. Se se desencadeia o lançamento com um violento esticão, corre-se o risco de ver

Esvaziado permanece inesgotável.

o fio partir. Então, o homem permanece entre o Céu e a Terra numa posição intermédia que não oferece salvação34."

Accionado, não cessa de soprar.

Muitas vezes, quando pratico esta projecção, sinto que não estou pronto para a ensinar verdadeiramente. Não é fácil representar

Mais vale permanecer no Centro

no seu corpo o fio de seda esticado entre Terra e Céu e não o quebrar, sobretudo se se quer este fio em espiral... Esta linguagem pode parecer para alguns esotérica. E, no entanto, estas imagens, para o praticante de Aiki Do, são muitas vezes

Lao Tsé

de uma grande ajuda. É a reflexão estimulada pelo sentir do corpo. Ten – Céu

Chi – Terra

Nague – Projecção

Como diz Henri Focillon, a forma não é mais do que uma visão do es-

Poder-se-ia simbolizar Ten Chi como uma passagem da Terra

pírito, uma especulação sobre a extensão, reduzida à inteligibilidade

ao Céu, de um estado a outro estado, do mundo sensível ao mundo

geométrica, enquanto não vive na matéria. Ten Chi Nage existe ver-

supra sensível. No simbolismo da passagem e no carácter frequente-

da-deiramente se houver a passagem Terra/Céu e não um Kake que

mente perigoso desta passagem, que é o de todo o caminho iniciáti-

tanto pode ser um Kubi Nage35 como um choque entre Terra e Céu.

co, Ten Chi Nage pode identificar-se com o eixo do mundo (axis mun-

Este movimento é de uma grande importância para desenvolver os

di) e designadamente com a sua escala. Nesta projecção, é preciso ter

grandes princípios do Aiki Do. No caso, por exemplo, de um ataque em Ryo Te Dori, en-

uma grande noção da vertical, como mediador entre Terra/Céu. É o Eu que liga estes dois mundos e impede que eles se dispersem. O Aiki Do, como vimos, deve fazer passar uma mensagem através dos movimentos, chamando a atenção para que o homem está entre o centro da Terra, que o atrai, o infinitamente pequeno, e o Cosmos (Céu) que o aspira, o infinitamente grande. O homem, como numerosas artes japonesas , deve realizar o equilíbrio entre os dois. 33

Para melhor compreender a projecção (Kake) do Ten Chi Nage,

contrar o seu centro perfeito, tendo uma mão em Terra e a outra em Céu, não é fácil, se não se tiverem compreendido os grandes princípios. A mão não se libertou senão depois de vários milhões de anos de evolução. Na prática do Ten Chi Nage, tal como na dos Kokyu Nage, penetramos na magia do Aiki Do.

XIV 71


VI

É uma técnica portadora do imaginário e que obriga, muito

plícita, a "ter um belo movimento", porque este nunca dispensa a pro-

particularmente, a criar em nós o vazio, para que o movimento não

cura interior, a necessidade de "mergulhar em profundidade", as úni-

encontre qualquer obstáculo — é, portanto, a intenção do gesto

cas coisas capazes de fazer do movimento uma manifestação do Ser.

Terra/Céu. Aqui, o nosso trabalho consiste em libertar o nosso Ki.

Queria antes mostrar como a verdadeira harmonia Terra/Céu é inse-

Aquilo que possuímos em nós mesmos não deve ser procurado fora.

parável de um certo estado de espírito, como ela exige uma aborda-

O praticante deve estar centrado, disponível, tendo realizado a sua

gem fervorosa. E mostrar que um movimento não pode ser, no fun-

unidade. Se tiver encontrado o ponto "correcto da projecção", po-

do, senão uma emergência do nosso interior, longe do ego, onde o

derá então projectar facilmente e sem esforço o seu parceiro. Utilizo

olhar dos outros não desvie a nossa consciência do seu objectivo pri-

muitas vezes com os meus alunos a imagem evocativa do pintor. As

meiro.

mãos e todo o corpo seriam um pincel e o movimento poderia ser ar-

Escutemos antes Tao Te King (2):

gila, viva, pronta a ser modelada. A tela do artista é a projecção do

Beleza, bondade, aspecto simples da harmonia.

seu espaço interior, ela materializa uma ou várias imagens mentais e

Equilíbrio universal, lei geral do mundo.

os golpes do pincel (projecção do espírito) têm por função tornar a

Pulsação do Universo.

sua paisagem interior tangível. Isto deveria afastar-se da Consolidação

Vez à vez, Antes e Depois fazem-se sucessão e lugar.

para se aproximar da mensagem Beleza.

Ressonância perfeita.

Seria necessário introduzir na pedagogia a ideia do par eficácia/beleza. Talvez pudesse, então, desaparecer a concepção de uma técnica que é um conjunto de mecanismos que pode ser, "acessoriamente", revestida de beleza... Esta osmose com a harmonia, no trabalho do Aiki Do ou no de uma técnica particular, encontra-se, aliás, perfeitamente adaptada a toda a prática consciente, uma vez que a aquisição de toda a praxis, tal como a procura de uma eficácia óptima, baseiam-se ambas nas mesmas exigências de equilíbrio corporal e de concentração mental. O meu objectivo não é portanto ensinar aqui, de maneira ex33. De que é exemplo, Ikebana, a arte de arranjos florais.

XIV 72

34. V. Michel Martin, Kyudo, Paris, Amphora, 1990, p. 87. 35. Kubi é pescoço. Nage é projecção. Kubi Nage é uma projecção pelo pescoço.


XV

temos nós ouvidos?

Mas escutai que diabo! Há muito que queria escrever uma homenagem à Alma.

Pode parecer ridículo pedir a um aluno para escutar, para se escutar a si mesmo e para escutar o seu corpo...

Escutar supõe uma afectividade auditiva que é, ao mesmo tempo, passiva e activa: sente-se e reage-se.

Sabemos, de experiência feita, quanto estamos por vezes afastados dos comportamentos mais naturais. Este papel da escuta é tão importante que seria por assim di-

Entender o interior ou o exterior vai ainda mais longe; é uma inteligência auditiva activa, um "entendimento" que é comunhão, conhecimento e criação.

zer útil transformá-lo numa espécie de "aviso" em cada classe. Poderia

A ausência de escuta desorganiza o movimento. É através do

ser "Escuta!" e chamar-nos-ia a atenção para a nossa presença es-

ouvido que nos apercebemos se a nossa organização corporal é boa36.

sencial. Considera-se a escuta, como um dado de base, como o sen-

Infelizmente a ideia de escuta total é, a maior parte das vezes, utópi-

tir de uma evidência, quando, na verdade, ela requer toda uma acti-

ca, porque numerosos problemas técnicos vêm perturbá-la. Mas tam-

vidade interior e uma grande concentração.

bém deve ser tomada em consideração a atitude daquele que "está

Alguns julgam que escutam, mas ignoram "o que é a escuta", nunca se tendo debruçado sobre a sua prática consciente. O Yoga

perante nós". Importa não esquecer também que o inimigo do ouvido é o olho (!), que invade o seu território. Segundo a organização da nossa hierarquia sensorial, a vista

Nidra é, por exemplo, uma escuta total (escuta do som). Escutar não é "ouvir" e menos ainda "entender"!

é o mais poderoso, o mais rápido e o mais intelectual dos nossos cin-

Toda a gente pode ouvir. É uma função passiva ligada à exis-

co sentidos. Ele subordina todos os outros sentidos ao seu magisté-

tência material do ouvido.

rio.

XV 73


Se é o ouvido que dita o músico, é o olho que dita a mão do aikidoca. E, no entanto, o olho não deveria desempenhar para ele se-

VII

Parece que quando o Mestre Ueshiba praticava, murmurava sons. Não era um canto, era um som interior.

não o papel de um informador que transporta rapidamente à sua in-

No silêncio, cria-se uma extensão do gesto. Qualquer coisa

telecção a mensagem do movimento. Mas desde que a sua acção pre-

nasce, que não tem necessariamente uma forma (Kokyu Nage? Aiki

domine na situação, desde que permaneça atento ao que o rodeia,

Nage?). Está-se mais em contacto com uma força.

ele prejudica de imediato o movimento. É, por isso, que certos exer-

Sabemos também que quando praticamos podemos ver, ou-

cícios — com os olhos vendados — seriam desejáveis na prepara-

vir e sentir, mas a nossa atenção não se fixa em parte alguma, não se-

ção do Aiki Do, para que o olho abandone o seu posto de espia e

gue nada em particular. A consciência deve abrir-se a si e aos outros.

possa voltar- -se "para o interior". Os cursos de Aiki Do para cegos

Sem pensar em nada de preciso, tudo está presente, vivo, mais ainda

são muito ricos como experiência.

do que no estado habitual da nossa consciência, porque já não há

De todo o modo a escuta, qualquer que ela seja, deve ser fei-

confusão. Devemos traduzir directamente o que vivemos. Aqui, é pre-

ta sobre um fundo de silêncio. É preciso, antes de mais, entrar num

ciso, portanto, grande reflexão antes, porque o Ai Ki poderia trans-

estado de disponibilidade interior, ser capaz de se acalmar, de fazer

formar-se em violência, porque as barreiras teriam cedido e a violên-

calar as nossas agitações e as nossas contestações, de relaxar o es-

cia é a de um vulcão. Com a meditação e o estudo de uma reflexão

partilho do nosso espírito. A qualidade da escuta verdadeira passa em

justa, os movimentos podem ser feitos com doçura e serem eficien-

primeiro lugar pela possibilidade de poder "escutar o silêncio".

tes.

O movimento brota, então, como uma fonte viva e deixa de

No Kokyu Nage ou no Aiki Nage, estamos perante um mun-

ser qualquer coisa mais ou menos conseguida, produzida pela agita-

do em que não se sentem os limites. Os gestos e os movimentos do

ção.

corpo já não são controlados pela vontade. Eles estão em harmonia "Não feches a mão quando praticas.

com o Universo.

O Cosmos permanecer-te-á fechado. Se queres abrir-te ao mundo e ao Universo, abre primeiro a tua mão."

Muitas vezes se disse que o Kiai do Aiki Do é silencioso. Creio que é preciso compreendê-lo desta maneira. Numa prática intensa, o corpo e o som reúnem-se. Durante a prática, ouvimos, frequente-

XV 74

mente, alunos que emitem diferentes sons. Mas estes não estão ainda harmonizados. O som deveria vibrar...

36. Alfred Thomatis, L´Oreille et le langage, Paris, Editions du Seuil, 1978.


XVI

o futuro é das crianças

Tentei, nestas curtas reflexões, abrir as portas para que os fu-

perimentar o prazer da execução dos movimentos. Que professor de

turos praticantes possam explorar a riqueza da Arte do Movimento.

Budo nunca ouviu esta confissão ressentida: "Ah! Você pratica uma

Mas se a lógica dos movimentos do Aiki Do a todos se impõe,

Arte Marcial? Em tempos também eu o fiz. Quando era novo, prati-

a descoberta que dela pode ser feita acomoda-se a vias muito varia-

quei Judo durante alguns anos, mas desisti. Havia demasiada com-

das. O ensino que ministrei durante longos anos obriga-me a dizer

petição. Já não tenho idade, etc...".

que o equilíbrio na postura correcta dirige-se tanto aos futuros pra-

Os esforços investidos não deram o prazer esperado!

ticantes como a nós mesmos. A abordagem pela qual proponho sen-

Se certos métodos de ensino criam ilusões ao início, os pro-

sibilizar os aikidocas adultos é-lhes, de alguma maneira, desadapta-

ble-mas com que estes jovens deparam permanecem frequentemen-

da. Tentarei, muito brevemente, sugerir os meios de ultrapassar uma

te ignorados e só emergem à luz do dia quando, com a idade, os seus

concepção do movimento, do equilíbrio nas técnicas de base ele-

bloqueios se revelam. Certas atitudes pedagógicas, longe de forne-

mentares, sempre que os alunos são principiantes. A sua tenra ida-

cerem os "bons meios" capazes de libertar o gesto e de entusiasmar

de, o facto de começa-rem a aprendizagem do Aiki Do a partir do ze-

os jovens e as crianças — o que seria, só por si, um óptimo resultado

ro exigem uma reflexão particular.

— provocam aversão não só em relação à prática, como em relação

Ainda aqui se impõe uma constatação que, infelizmente, é

ao Aiki Do em geral. Importa, pois, propor às crianças um ensino que

preciso não esquecer. Um número relativamente elevado de crianças

repouse sobre dados saudáveis e definitivos. Assim, os jovens aikido-

XVI

abandonam a prática, por nunca terem tido a oportunidade de ex-

cas não apenas terão o desejo de continuar, como poderão fazê-lo

75


sem terem de reconsiderar inteiramente a sua prática quando com ela contactam na idade adulta. O primeiro elemento a verificar, antes mesmo que uma criança comece, é conhecer as suas motivações e as suas aptidões. Disse, a propósito das relações que unem o Mestre e o aluno, que, sem desejo profundo, nada pode resultar. Aquilo que é verdade para o adulto é-o ainda mais no caso da criança.

servado às crianças mais dotadas, mas de evitar que ela adquira uma vocação terapêutica que, de todo em todo, não tem. É errado dizer de uma criança desajeitada e que não se sente bem na sua pele: "Vou metê-lo no Aiki Do. Ele será mais forte!". A verdade é que o Aiki Do pode, por vezes, acentuar bloqueios e provocar ainda mais perturbações. Para além de um mínimo de estabilidade e de distensão antes

sua escolha. Uma criança lança-se, muito frequentemente, no Aiki Do

dos cursos técnicos, de tónus vital e de habilidade corporal (através

empurrada pelos seus pais que nele vêem a realização dos seus pró-

de exercícios apropriados), o jovem praticante começará a trabalhar

prios desejos recalcados (Karaté Kid!), ou ainda porque o consideram

de uma maneira mais fina, de modo a que possa ser-lhe incutido es-

bom para os estudos. Depois, à mínima falta, o Aiki Do servirá tam-

te gosto pela Arte do Movimento. A falta de motivação anda também

bém como um meio de a punir.

a par com um professor pouco competente... É preciso, pois, desde o

mentar uma série de abandonos. Eles estão na origem de muitas si-

começo, evitar que se desenvolvam situações perversas, que a melhor "pedagogia adulta" terá a máxima dificuldade em corrigir.

tuações bloqueadas de que não sabemos como sair, a tal ponto se

Seguros da plena participação da criança, só então é possível

encontrando misturados desejos pervertidos e rebeliões inconscien-

considerar a abordagem do Aiki Do. O objectivo do ensino não é pre-

tes. Apenas a atracção da criança ou a saudável sugestão dos pais

cipitar as passagens de cinto, que se transformam "na cenoura para

que não se implicam pessoalmente nesta proposta deveriam condu-

o burro".

zir à escolha de uma disciplina adequada.

76

Não se trata aqui de fazer da nossa escola um dojo de elite re-

Seria preciso prestar muita atenção às razões que presidem à

Todos estes mal-entendidos — e nem refiro outros — vêm ali-

XVI

cola de Aiki Do transforma-se num jardim de infância...

É não fazer aquilo que comigo fizeram quando era jovem e

O Aiki Do é uma arte global e pontual, cujo estudo não po-

aprendia piano. Para que eu pudesse tocar, o mais rapidamente pos-

de ser considerado se a criança não manifesta desejo de aprender, a

sível, uma "balada"...!, os diferentes professores que tive precipita-

curiosidade e o ardor necessários.

ram sempre o começo, sem me falarem de uma técnica, sem me da-

Muitos começos em falso, muitos fracassos latentes poderiam

rem cores atraentes à iniciação do piano e sobretudo sem me faze-

ser evitados se fosse descoberta a tempo uma ausência de gosto real

rem amar a música. Resultado, abandonei a prática demasiado ce-

pela Arte do Movimento.

do, o que hoje evidentemente lamento!

Muitas vezes, por interesse, deixa-se arrastar esta situação:

Um professor feliz por praticar, que goste do seu papel peda-

para o professor, trata-se de mais um aluno!; para certos pais, a es-

gó-gico, que ame verdadeiramente a Arte do Movimento, ainda que


não tenha atingido um grau de maturidade para dela fazer uma Via

Os programas de passagem de graus são frequentemente pa-

espiritual, arrastará quase seguramente o aluno na sua senda, co-

ra a criança (tal como para o adulto) uma imposição rebarbativa e

municando-lhe o seu entusiasmo.

mal compreendida. Não me parece honesto em relação à criança, pri-

A aprendizagem do Aiki Do deveria dar à criança a impressão de fazer a Arte do Movimento, antes mesmo de começar o estudo

vá- -la, a pretexto da sua liberdade, de conhecimentos técnicos de base que garantam o seu desenvolvimento.

real do Go Kyo...

Prazer e esforço não são incompatíveis, tal como o não são a

Isto exige evidentemente uma criação real de movimento pre-

criatividade e o trabalho rigoroso. Ao contrário, quanto mais deixar-

liminar, que envolve o contacto, o espaço, o tempo, etc. Se perante

mos à criança uma margem de espontaneidade, mais exigente com

a criança, o papel do Mestre consiste essencialmente em criar um cli-

ela poderemos ser, sempre que se trate de práticas pontuais, cuja ne-

ma de confiança que facilite os seus progressos (como, de resto, pa-

ces-sidade lha faremos compreender. Mas o que importa é reforçar

ra o adulto), com a criança, é o amor pelo Movimento de que o Aiki

sempre as motivações dos jovens praticantes, não os deixar cair nun-

Do não é senão uma das múltiplas formas que o professor deve so-

ca numa atitude passiva.

bretudo comunicar-lhe... Desenvolver o seu gosto pela observação dos movimentos da

As passagens de grau, as demonstrações públicas, etc., não são suficientes para reforçar as motivações.

natureza, falar-lhe de uma maneira extremamente simples do cosmos

É preciso não esquecer de reforçar o prazer da prática e nun-

— da satelitização de um planeta — são imagens interessantes para

ca deixar que se instale a ansiedade relativamente a fazer bem ou a

a futura execução dos seus movimentos. Tudo isto faz parte de um

fazer mal... Uma abordagem puramente negativa num exame de grau,

projecto pedagógico a longo prazo, que cria um clima caloroso e dá

que consiste em não fazer faltas, é anti-Arte do Movimento.

grandeza ao movimento. O som deveria ser também abordado na

Há outros meios, e menos "escolares", de testar as capaci-

execução dos movimentos. É um excelente meio para que a criança

dades de uma criança do que a de ser presente a um "Tribunal de

possa fazer sair a sua voz, a faça nascer, a consolide. Tudo isto cons-

Cinturões Negros". Participar numa prática na Natureza, num mini-

titui já forma de manifestar a personalidade de que terá necessidade

estágio adaptado à sua idade, pode constituir um maior estímulo.

para a sua prática.

Seja como for, a única riqueza indefectível que podemos dar

Praticar com música pode ser interessante para a descoberta

aos alunos muito jovens, nos primeiros contactos com o tatami, an-

dos ritmos no movimento. Para tanto, o professor deverá conhecer

tes mesmo de serem abordados os problemas especificamente técni-

as incidências que certas músicas podem ter. A criança poderá abrir-

cos, é o amor pelo movimento, aspecto em que nunca será demais

-se pouco a pouco a um universo imenso sem compartimentações ar-

insistir.

tificiais. "Isto é o Aiki Do, isto é a Arte do Movimento, onde se situa a fronteira?"

A diferença mais significativa entre a abordagem de um adulto e a de uma criança decorre do facto de esta não poder trabalhar

XVI 77


XVI 78

sobre si mesma de forma consciente. O motor de todas as aquisições

Vi um dia, num Estágio Internacional, um mau professor, mas

de uma criança é a aprendizagem mimética, e o raciocínio é sempre

talvez um bom executante de técnicas, a querer exibir um aluno pro-

contra-indicado.

dígio. A fim de espantar os participantes pediu à criança para se de-

A quantidade de conselhos e de discursos com que podemos

fender de um ataque com uma faca de talho, o que de imediato re-

sobrecarregar uma criança só servem para aliviar a boa consciência

cusei. Quais eram os objectivos? É tão difícil aprender bem como apren-

do professor; eles em nada facilitam a compreensão pela criança. Esta

der mal. De facto, bastam esquemas claros e simples, bastam bons

vive no instante e não pode, como o adulto, captar o funcionamen-

modelos visuais para que a criança adopte sem problemas as suges-

to geral de uma técnica, ainda que... tal não seja impossível.

tões propostas, caso o amor do Aiki Do e o desejo de imitar nela se-

Também é preciso fazê-la adquirir, sem que se dê conta, bons

jam muito vivos. Se a criança não pode compreender raciocínios de-

hábitos na postura, sempre que executa uma técnica. A vertical, o cír-

masiado abstractos, nem por isso ela é menos eminentemente lógi-

culo, a espiral, os alongamentos, os contactos, tudo isto (como para

ca. É-o muito mais do que os adultos julgam. Ela está pronta a admi-

o adulto) leva-a a estabelecer, através do seu corpo, formas e atitu-

tir que é preciso respeitar certas evidências: uma pessoa é menos es-

des interiores que vão permitir-lhe viver e sentir a harmonia, na ex-

tável desde que lhe falte uma perna; se não tem braço não poderá

pressão individual da ordem cósmica, de que nos falam muitas vezes

agarrar com as suas mãos... Assim, a criança estará inteiramente de

os Mestres de Budo.

acordo com a procura do seu equilíbrio corporal, desde que ela lhe

Isto recorda-nos que o dojo é um lugar onde a atitude e a in-

seja pro-posta de uma forma atractiva. Dar às crianças, desde o prin-

tenção são primordiais. O dojo não é uma sala de desporto, de com-

cípio, o tónus físico, estabilizá-las no seu equilíbrio, evita ter de corri-

bate, onde a agressividade e a violência são "Rei", lugar de egotis-

gir, anos mais tarde, uma postura defeituosa e permite canalizar toda

mo e de egoísmo que muitas vezes influencia as crianças. O local em

a sua Energia (Ki) para o movimento e para aquisição de uma boa téc-

que elas praticam deve ser um lugar de harmonia.

nica.

Devemos escolher um bom pedagogo para a iniciação. Nem

A preparação do Aiki Do pode ser rápida nas crianças muito

todos servem. Parece-me, bem pelo contrário, que se deveria atribuir

despertas e requerer, ao contrário, um certo tempo nas crianças que

uma importância particular à escolha do primeiro professor, porque lhe

habitam pior o seu corpo.

competirá assegurar as fundações do edifício. Sem boa base, a casa

Mas qualquer que seja a dificuldade com que elas se deba-

não se aguenta... A primeira direcção seguida pelo aluno marcá-lo-á

tam, é facilitar toda a sua aprendizagem futura ajudá-las a perseverar

tanto mais quanto ele, confiante e cândido, mais não fez do que se-

na procura do seu equilíbrio (noção importante que, no princípio da

guir a via que lhe era mostrada. Enquanto eles são jovens..., porque,

aprendizagem, muitas vezes se esquece, na precipitação de lhes ensi-

depois, muitas influências exteriores virão deformar o caminho do Aiki

nar as técnicas de base, por exemplo, Shio Nage, etc..., como se elas

Do.

ao início devessem fazer projecções sem equilíbrio). Importa não es-


quecer que o estudo das quedas é de primeira importância, mas sem

gligenciados, porque contribuirão para alimentar o interesse da crian-

a compreensão do equilíbrio e dos desequilíbrios, a sua assimilação

ça pelo Aiki Do.

será superficial.

Será necessário que estas formas nunca sejam aborrecidas.

Não existem receitas infalíveis para abordar a técnica propria-

Muitas vezes desencorajam-se as crianças, ao serem postas a traba-

mente dita. Jogos de equilíbrio e de desequilíbrio, com o Jô ou sem

lhar formas para adultos... Nas Artes do Budo, estamos longe de res-

o Jô, em que a criança pode mimar gestos mantendo o seu centro,

peitar as crianças e de confiar no seu gosto por este ou por aquele

são um excelente exercício, porque, sem a preocupação de uma téc-

movimento. Muitos professores contemporâneos poderiam debruçar-

nica, ela será capaz de realizar gestos livres que correspondem à co-

se sobre esta questão e adaptar a sua sensibilidade à da nossa épo-

locação exacta do corpo e aos movimentos requeridos. Ela não terá

ca, que já nada tem a ver com o rigor dos jovens Samurais.

assim qualquer problema em integrar com mais precisão uma técni-

Para estes Kata pedagógicos, é preciso encontrar movimen-

ca... É então chegado o momento de ela aprender os principais mo-

tos suficientemente simples para que o aluno não se sinta "esgota-

vimentos. Podem existir movimentos simples e fragmentados que per-

do" e tenha prazer em praticar (o que é uma evidência pedagógica,

mitem mantê-la sensível à simetria do seu corpo.

igualmen-te, para os mais velhos...), mas comportando, apesar de tu-

Desde que ela esteja suficientemente disponível para real-

do, novas dificuldades que o estimulem e o mantenham desperto. É

mente praticar e comece a sentir o seu corpo de uma forma mais glo-

importante que a criança se sinta feliz em vir ao dojo, para praticar e

bal, poderá então seguir o modelo proposto pelo seu professor. O

"descobrir". Podemos afirmar que se ela estiver na posse de um bom

mecanis-mo de aquisição encontra-se montado. Estão reunidos to-

tónus corporal e se os seus progressos se fizerem a bom ritmo, de-

dos os elemen-tos para subir passo a passo os escalões da dificuldade

senvolvendo-se num clima de amor pelo Aiki Do, ela reúne todas as

de um movimento.

hipóteses de se tornar um bom praticante.

Ainda assim, o professor não deve esquecer que os exercícios

A criança excepcionalmente dotada, se não pode em caso al-

de estruturação técnicos não são tudo. A criança tem necessidade de

gum ser tratada como um adulto, exige, contudo, mais atenção. O

desenvolver livremente a sua criatividade pessoal e o Ju no Geiko é

professor que a tem a seu cargo deve procurar evitar dois erros cor-

para isso a melhor das aberturas: este exercício permite a adequação

rentes. Acontece que o professor, tendo ele próprio sofrido no estu-

sem a inibição e confere um carácter mais natural ao gesto. As crian-

do do Ai Ki, recusa inconscientemente que uma criança obtenha re-

ças poderão, então, após uma breve explicação, trabalhar em dife-

sultados sem grande esforço (ainda que muitas vezes aquelas crian-

rentes ritmos: lento (Jo), médio (Ha) e rápido (Ku).

ças abandonem rapidamente a prática) e torna-se demasiado exigente

Deveria haver, em minha opinião, Kata para crianças, eliminando certas técnicas que, ao início, não são necessárias (como, por exemplo, San Kyo e Yon Kyo). Estes "mini-Kata" não deverão ser ne-

em pormenores que não são indispensáveis no início da aprendiza-

XVI

gem. Outro escolho a evitar consiste, inversamente, em apropriar-

79


VIII

-se da criança, em fazer dela o instrumento da sua própria glória. O

ça, deixarão de ser aceites mais tarde. Sempre que estas deficiências

professor, orgulhoso de si mesmo e do seu aluno, apressa prematu-

não são corrigidas a tempo, ou sequer assinaladas, aquela que era

ra-mente o seu desenvolvimento. Frequentemente, não pensando se-

uma criança invulnerável ressente como uma profunda injustiça o fac-

não no seu dojo, ele não tem em conta outros dons que coabitam na

to de ser criticada... E não aceitará reconquistar, por uma aprendiza-

mesma criança.

gem longa e difícil, aquilo que pela facilidade lhe parecia devido.

O grande talento, na prática da Arte do Movimento, rara-

De qualquer maneira, é preciso nunca perder de vista que na-

mente vem só. Para com estes jovens é necessário observar uma ex-

da está definitivamente adquirido antes da adolescência, momento

trema equidade.

em que a criança começa a tomar consciência do que quer. Mas to-

Com efeito, estes alunos são dotados de capacidades demasiado precoces para que se possam determinar a si mesmos.

das as dificuldades encontradas no decurso da formação das crianças não devem fazer esquecer ao professor que o seu papel não é apenas

Eles estão como que desarmados e entregues à influência dos

formar aikidocas. É igualmente o de permitir, a todos quantos, novos

seus professores. É preciso ter cuidado: ao querer fazer excessiva-

e menos novos, tem o encargo de guiar, que se desenvolvam e en-

mente bem, pode transformar-se o trabalho do Aiki Do numa espé-

contrem na Arte do Aiki Do um meio de expressão e uma alegria de

cie de escravatura. Uma criança em que se depositam esperanças

viver.

apercebe-se disso e compreende, de uma certa maneira, a sua situação privile-giada. Também convém, evidentemente, promovê-la para que ela faça desabrochar os seus movimentos e ganhe confiança em si mesma. Mas o essencial é dar-lhe bases sólidas, cuja ausência é demasiadas vezes disfarçada pela manifestação da sua habilidade. Ora, estes fundamentos, que são as bases do Aiki Do, ser-lhe-ão ainda muito mais úteis do que a outros e, se tal for o caso, a sua ausência será cruelmente sentida quando houver Randori com outros praticantes, porque aquela criança será sempre tomada como um alvo... Uma criança arrastada demasiado cedo pelo sucesso (cinto, por exemplo) corre o risco de ficar nos limites do seu nível do momento e de se exibir (com a ajuda do professor), sem ter a ideia de

XVI

prosseguir o seu desenvolvimento, nem de progredir continuamen-

80

te. As imper-feições e insuficiências, que passam despercebidas à crian-


XVII

a forma do movimento. mas qual?

A verdadeira vida dos que têm olhos para ver e um coração para sentir.

No tatami, ouve-se frequentemente afirmar: "Faz, não penses, deixa passar". Também se diz: "Você tem uma bela forma!" Mas qual? O corpo? A atitude?

mão que treme". Paradoxo que mais não é do que aparente. De facto, não pode haver simetria perfeita na natureza e toda a forma bela não pode estar senão em harmonia com a génese do mundo criado. Perante toda a obra bela, nós teremos como que um sentimento

A arte, segundo Heidegger, é "desvendamento da verdade

de inacabado, que não resulta, naturalmente, de uma falta de jeito,

do Ser". De facto, preferiria dizer, como Maître Eckart —"deixar Ser".

de uma falta de "saber-fazer", mas, ao contrário, de uma suspensão

A forma em Aiki Do é deixar aparecer aquilo que exige im-

da duração, da criação de um tempo diferente daquele que cremos

periosamente passar à existência, aquilo que pede para nascer, reali-

viver, um tempo que só existe na obra de arte pelo seu ritmo.

zando-se pelo movimento ou pelo gesto, libertando a sua Energia,

Para compreender o que é o ritmo, nada melhor do que ver

para que este mesmo movimento ou gesto sejam testemunhos da

correr. Nada existe de mais natural do que correr. E, no entanto, ob-

própria Energia que é a do Universo. Dando-lhes forma.

serve-se quem corre na rua. A maioria dá a impressão de o fazer sem

É preciso não esquecer também que a forma está em cons-

graça, de arrastar atrás de si, e com grande dificuldade, um saco mui-

tante formação. Ela nunca é um traço, um contorno imóvel. E, es-

to pesado. Veja-se, pelo contrário, correr um campeão ou ainda cor-

tando em movimento, ela move-nos, arrasta-nos nos seus ciclos.

rer uma criança. É a corrida de um corpo sempre à frente de si mes-

Os orientais dizem que o belo "nasce da perfeição de formas

mo, uma corrida feita de ligeiras rupturas e revivificando-se de saltos.

inexactas", que o belo só pode atingir a sua plenitude "através da

Estamos aqui nos antípodas da cadência — a do pêndulo do

XVII 81


relógio, a dos soldados marchando a passo cadenciado.

uma forma?

Forma estética e ritmo, aliás a mesma palavra em grego, são

Podemos deter-nos aqui, numa encruzilhada: a encruzilhada on-

inseparáveis. E através do ritmo de uma música, de um poema, atra-

de desaguam todas as estradas pelas quais se separarão aqueles que

vés do ritmo criador de um simples bule de chá de época antiga, uni-

atingem este ponto através de uma única estrada, a da vida cria-

mo--nos ao próprio ritmo do mundo e, assim, à nossa respiração in-

dora.

terior.

Se digo, por exemplo, Shio Nage, evocamos directamente o O ritmo, diz Henri Maldiney, articula-se em instantes críticos,

que se resolvem uns nos outros, no decurso de uma interacção recí-

Mas se digo o "movimento de Shio Nage", eis-nos mergu-

possível e posta em situação de ser, aí se torna o que é na dor e no

lhados em cheio na própria vida e já não sei onde se situam os limi-

salto. Exposta ao espaço, o ritmo iguala-a no Espaço tal como o faz

tes... Assim, não uso frequentemente a palavra "movimento", a fim

do seu presente o Tempo .

de não me afastar demasiado por territórios da filosofia... cuja musa

Nos movimentos contínuos de Aiki Nage, há o ritmo, igualando o espaço, através de uma sequência de rupturas (que são os

não me compete servir, ainda que tenha muito a ver com o meu tema.

instantes críticos), que se verificam neles e sobre eles, a fim de criar

Quando comecei a prática de Budo, do Judo, e isto muito an-

uma conti-nuidade de um novo espaço, conduzido pela beleza... O

tes do Aiki Do ter sido introduzido na Europa, sempre que se falava

Aiki Nage conduz-nos ao aberto que vai soltar a nossa própria liber-

de "movimento", os alunos compreendiam-no, e com razão, como

dade.

uma "Expansão Universal". Hoje, alguma coisa se perdeu no ensino O aberto de Rilke é "o puro, o maravilhamento que respira-

mos, que sabemos infinito e não cobiçamos". Desta dinâmica, a forma poderia e deveria ser o melhor reflexo do ser. A prática que só se entrega na e pela liberdade do aberto se-

82

principiante reconhece facilmente...

proca. Em cada um de nós, uma presença, constrangida até ao im-

37

XVII

desenho das formas corporais e o traçado das linhas, que mesmo o

e na "forma" também... Eu dizia, na época: "O movimento é como uma dança cósmica, onde todas as vibrações da natureza, por mais subtis que sejam, são percebidas, primeiro, intuitivamente, em seguida, conscientemente, para, depois, serem sentidas até ao seu frémito". O "Movimento" é, portanto, ilimitado.

rá em si mesma uma chave particularmente activa. O aberto é o ape-

Um movimento belo, vindo de um "Sopro" que é concretiza-

lo à Unidade. Esta Unidade em Budo chamamo-la música do sopro,

do, recriado, torna-se por este facto uma sequência de formas e, fi-

ou se preferirem música ou sopro!

nalmente, de fórmulas técnicas fixadas no Go Kyo.

Não esqueçamos, uma vez mais, que o Do do Ai Ki é a arte por

O movimento de que vos falo está directamente ligado ao es-

excelência de dominar o corpo e todas as formas da vida pelo espírito.

paço, não apenas porque nele se move, mas porque ele é uma ex-

Mas antes de me seguirem no Caminho, onde se desenvolve

pansão directa e visível do espaço e das suas palpitações.


A técnica está ligada ao espaço através do movimento mas

mentos que, no centro destas formas e destes meios, permitem reen-

apenas quando este é escolhido, é eleito por aquele que o executa.

contrar intacto o movimento inicial, fonte de toda a vida da forma

Há movimento sempre que há vida.

em movimento.

Há movimento correcto desde que haja renascimento de uma

O problema da Escola do Movimento

certa forma de vida registada pela consciência e traduzida pelo corpo; há técnica sempre que lhe seja dado um invólucro formal para es-

Eis o dilema!

ta tradução.

Como é que hoje o Aiki Do nos propõe esta liberdade (do mo-

O Aiki Nage é uma liberdade.

vimento) a reconquistar e a reafirmar? Isto é, como procurar o senti-

Se a técnica é uma forma, o movimento existe antes da for-

do do movimento, na fonte profunda, para além do invólucro este-

ma. É uma libertação antes da reclusão voluntária na "forma". A técnica é sólida; o movimento é fluido,

reotipado dos Go Kyo, ditos "programas de graus", propostos pelas escolas japonesas?

A técnica é vitória sobre o plano e sobre o espaço; o "movi-

E, mais ainda, como educar o desenvolvimento e a expansão,

mento" é possibilidade no plano e no espaço. Se vos digo que o

sem entrar em esoterismos, frequentemente mal assimilados e so-

movimento é uma liberdade, a técnica é uma disciplina, é uma cap-

bretudo mal interpretados?

tação voluntária.

Para aprender, é preciso escolher uma escola, sabendo que

Podemos nela entrar ou dela sair quando o desejarmos.

racionalizar, tornar perceptível a outros, encerrar num estudo, limitar-

Vemos que um não existe sem a outra, sempre que há cria-

-se a um método é, para nós, um falso estado, uma falsa atitude.

ção... É preciso que um, o movimento, o livre, o indisciplinado seja

Falso, ainda que seja necessário, porque apenas meio falso. Temos,

dominado e que a outra, a técnica, o formal, possa expandir-se.

por vezes, que nos ater a esta situação, sem descurar, porém, que a

Os dois estão, portanto, sempre reunidos. Mas hoje quem o sabe ver? Não, seguramente, o grande público das Artes Marciais! Em resumo, poderia dizer: "Um é liberdade, a outra uma tradição"! O que era praticamente o mesmo. Na verdade, o que é uma tradição senão uma disciplina mantida através dos tempos.

liberdade, sendo indispensável, necessita de ser adquirida e só o pode ser através do trabalho e da pesquisa e, para tanto, é necessária uma base, é precisa uma ajuda, é preciso uma direcção. Como diria Rilke numa das suas cartas a Rodin, aquilo que procuramos junto de um Mestre não é apenas encontrar "mãos que

O Oriente soube conservar, através de certos mestres, a cons-

fazem a grandiosidade". Estas mãos que permitem a grandiosidade

ciência do movimento. Cabe-nos a nós, ocidentais, conquistá-la! O

a outros, fazem antes de mais a sua grandiosidade, através da sua

Ocidente — e isto generaliza-se, pouco a pouco, em todos os azi-

própria pesquisa e percorrendo o seu próprio caminho. E elas não se

mutes — apenas manteve o desenvolvimento das formas e dos meios

pousam sobre o ombro daquele que humanamente procura a sua via,

XVII

e não a cultura mais profundamente intuitiva das bases e dos funda-

a não ser para lhe dar uma direcção, uma indicação para se voltar pa-

83


ra o "lado certo". Esta mão colocada sobre o ombro, esta pressão imperativa, esta insinuação, esta certeza não podem senão indicar o caminho já percorrido. Quem no-lo desdobrará sob os pés? Que outro ser, para além de nós mesmos, nos dirá "é isto", "é por ali"? Todas as escolas estão perante nós, tentam-nos, convidamnos, chegam mesmo a aspirar-nos por longos anos...

— e sobretudo reencontrar-se a si mesmo. Mas ele devia poder educar-se igualmente num dojo onde a Arte do Movimento fosse também ela ensinada. É aqui que reside a lacuna: o Aiki Do deve aprender-se através do ensino da "consciência do movimento" e dos seus princípios, que sustentam a própria Arte do Aiki Do! Este trabalho consistirá em despertar o aluno para a Arte do

Mas ele, o principiante, isolado, para onde irá?

Movimento no seu próprio corpo, torná-lo consciente das suas rela-

Onde aprender aquilo que outros experimentaram e desco-

ções com o espaço em que se move, reunir nele e através dele a vida

briram antes dele? Será que uma escola é única? Não certamente! É

ritmada das sensações e das linhas imprecisas e fazer com que dele elas

preciso descobrir uma escola em que o exemplo ligado ao ensino, a

brotem nas formas e expressões dadas ao seu corpo, animado pelo Ki.

dignidade unida à experiência, a grandiosidade junta ao conheci-men-

É preciso aprender o "devir" para além do movimento, mas

to possam ser propostos como modelo deste ambiente perfeito onde o ser que se procura deva poder reencontrar-se antes de, enfim, se encontrar. São precisos dojos dotados deste espírito e deste clima, mas

isto é já uma outra história... O dojo ideal seria aquele onde fosse possível encontrar, paralelamente à educação da forma, uma educação do espírito ou a força que o faz mover.

não nómadas, não errantes, fixados na ingerência e tornados viáveis pela liberdade que largos meios financeiros lhes conferem38. Vimos, quando destas reflexões, que o praticante é um ser li-

"No movimento tudo é nuance.

gado ao espaço, ao seu parceiro e que faz movimento. Vimos tam-

Sêde o eixo da roda e ignorai se os

bém que antes de entrar no molde da técnica, é preciso que ele seja

raios giram"

terra maleável, terreno propício, que ele aprenda a conhecer, primeiro, a dominar, depois, quer este espaço, quer este movimento criador dos seus gestos reactivos. É isto que, antes ou paralelamente a qualquer outro estudo,

No Kaiten Nage, a noção de "Roda", de centro imóvel, é importante para compreender a sensação de Kaiten que se executa na oposição de Aité.

ele deve encontrar sob a forma de ensino em todas as escolas, seja

É fácil declarar ou dizer num curso que "é preciso dominar es-

qual for a sua tendência, e que o pode ajudar a praticar diferentes

te mundo de oposições que são forças e ritmos esparsos e que é ne-

XVII

formas. Pode pedir-se sempre de empréstimo e conhecer todas as

cessário canalizá-los numa direcção de não-oposição, a fim de reali-

84

sensações, beber em todas as fontes — e abandoná-las em seguida

zar uma forma a que chamamos Kaiten Nage". Seguramente, isto não


constituía uma educação! Uma educação, ou melhor dito, uma forma-ção é ajudar a que seja possível captar sensações virgens, é conseguir torná-las flexíveis como se fossem tenros bambus. Isto exige, por certo, um trabalho perseverante, ou talvez me-

E, no entanto, para compreender o movimento, será preciso escavar ainda mais fundo! Que significa Aiki Do ou Aiki Budo? "Ai" significa, literalmente, "unir", conjunto, amor, etc.

lhor dito ainda, isto constitui um estado de ser, uma vigilância cons-

"Ki" significa espírito, sopro, etc.

tante (Zanshin), sabendo que o ser se transforma naquilo que o pen-

Mas analisemos este vocábulo de mais perto.

samento lhe sugeriu.

Trata-se aqui de pôr o espírito em sintonia com o dos outros

O erro inicial é acreditar que num corpo tornado flexível, for-

e com aquilo que o rodeia. É a verdadeira lei da harmonia que pode-

tificado e dócil, respondendo bem ao que dele se exige, a imagina-

mos compreender facilmente, quando Mestre Ueshiba diz "eu mes-

ção se reencontraria livre, fácil e intacta. Poderíamos pensar assim se,

mo sou o vazio", ou quando Lao Tsé, muito antes dele, dizia: "Aquele

no trabalho, não separássemos espírito e corpo, tal como o separa-

que conseguir fazer de si mesmo um vazio em que os outros possam

mos ao dizer "o peixe na água", quando deveríamos pensar "as va-

penetrar livremente tornar-se-á senhor de todas as situações."

gas e a água".

Para que haja estado de vazio, é preciso um espírito de aban-

Também acreditamos que um certo "estado de ser", artifi-

dono, de que muito pouco se fala no Budo, porque ele poderia ser

cialmente assumido no momento de um combate (competição) e de

mal interpretado. Uma vez que "Ai" quer dizer unir-se, tal correspon-

que nos desfazemos com o Kimono, é suficiente para reencontrar o

deria mais precisamente a "abandonar-se sem reticências, para se unir

clima particular de cada combate (real).

no ataque". Significaria "dissolver-se no Universo" por uma osmose,

O olhar global — "aquele que tudo e nada vê", "aquele que

que é comunhão, e onde o ego é esquecido. Significaria um estado

vê em toda a parte e em parte nenhuma" — constitui, de facto, uma

de união com o ritmo Universal. Ser capaz de ver as coisas de forma

ajuda, e, no entanto, considero-o apenas "apoio exterior".

desinteressada.

Sabemos, hoje, aquilo que Miyamoto Musashi sentiu intuiti-

Aqui, a dificuldade para o praticante do Movimento reside no

va-mente: que os combates mais profundos do ser (e a psicanálise

facto de que, para ele, entre a revelação e a realização se inserem a

ensinou--nos a disso tomar consciência) fazem aflorar ao nível do real

aprendizagem, o aperfeiçoamento técnico, o trabalho... É durante es-

o que se encontra escondido no fundo do nosso inconsciente e cada

ta etapa tão longa que muitas vezes se perde a autêntica verdade, a

um de nós sabe que, ao ouvir por vezes o relato de um combate par-

essência intacta na espontaneidade da prática, e que só alguns privi-

ticular-mente bem descrito, ele pode evocar no praticante experi-

legiados guardam. É durante esta etapa que a exigência criadora der-

mentado uma reminiscência, uma sensação de reflexos vividos.

rotará os mais fracos. Alguns abandonarão, ainda que tenham pos-

Tal perfume não é para nós uma parcela de vida esquecida que renasce na sugestão de um odor?

sibilidades físicas de continuar a procura... Outros curvar-se-ão pe-

XVII

rante exigências mais fáceis, por exemplo, graus, títulos, ou mesmo

85


a busca da eficácia, que é também uma ilusão...

talvez inconscientemente.

Ser capaz de se manter semelhante "no espírito do principi-

O Mestre de Budo que deixa expandir a vida nas linhas do seu

ante" é, para o verdadeiro praticante, o seu mais belo triunfo. A pes-

corpo; o escritor que a faz correr através dos seus dedos até à cane-

quisa técnica, comparável à temível experiência de viver, seca fre-

ta; o pintor que a deixa deslizar até à ponta do seu pincel; o sábio e

quentemente esta fonte. Se o praticante de Budo, na sua abor-da-

todos aqueles que desempenham bem as suas tarefas, tal como o pra-

gem, possuir esta faculdade de se esquecer de si mesmo, se for ca-

ticante de Sabre, que faz correr também a vida e não a morte, todos

paz de vivificar o seu caminho por uma permanente vigilância, ele

eles sabem que, em última análise, a faculdade de reviver e a intuição

atingirá então esta dupla consciência que o torna senhor do espírito

criadora, estes actos em que podemos tornar-nos outros que não nós

a fim de se libertar numa forma, também ela dominada.

mesmos e capazes de nos abandonarmos, são obras inteiramente de-

O que é, no fundo, uma técnica ou um movimento, caso o

sinteressadas.

seu objectivo não se torne apenas uma busca de eficácia, ou mesmo

O desinteresse mais despojado é talvez o do artista. Ainda os

de acrobacia e de perfomance, se não a liberdade de associar e dis-

há pelo mundo que vivem e morrem, por vezes silenciosos e desco-

sociar todas as partes do corpo, segundo a necessidade e os impera-

nhecidos, a fim de que a sua arte subsista.

tivos do apelo criador?

Posso afirmar-vos que as Artes do Budo dependem, à partida,

Se, fazendo recuar os limites do tema, fôssemos todos até ao

da Escola que deveria desenvolver a "Arte do Movimento em si", em

fundo de nós mesmos, músicos, arquitectos, comediantes, homens

vez de a ir procurar no exterior de si: nos títulos, nos pequenos po-

de negócios, engenheiros, muitos dos quais emparedados na luta pe-

deres ou na alegada "eficácia".

lo dinheiro, místicos ou políticos, do mais leal ao mais cobarde, do

As Artes do Movimento poderiam encontrar-se entre seres cria-

mais generoso ao mais cúpido, sentiríamos inconscientemente a nos-

dores, bem longe da má informação com que hoje deparamos neste

talgia de um "paraíso perdido", ou de um tempo presente falhado...

"meio", sem falar dos filmes de Hong Kong ou outros, bem longe de

de que nos afastam as nossas prudências, as nossas economias, as

quem atrai jovens para a violência, para deles fazer "super-homens",

nossas servidões, a nossa avidez. E este paraíso perdido não é o cli-

e que abandonam, geralmente, alguns anos depois. Relativamente

ma, as atitudes, as fachadas arquitecturais, as esculturas, os colori-

aos que ficam, a maioria, após terem sido campeões ou vedetas, tor-

dos?

nam-se líderes de grupo e formam, por sua vez, uma motivação que, É aqui que eu peço um Dojo que não seja japonês, nem orien-

infelizmente, não ultrapassa a técnica. "Eis que o círculo se fecha".

tal, nem ocidental: um Dojo Universal, que não se perca na pesqui-

Sei que uma escola (dojo) que procura "a essência do movimento"

sa, em que as técnicas de Budo sejam meios e não o objectivo, que

parecerá a alguns uma grande pretensão ou uma utopia. Contudo, a

XVII

ganhe e amplifique o trabalho das faculdades criadoras e a intuição

incursão que fazemos através das nossas reflexões não constitui pro-

86

do devir, cuja necessidade é sentida por um grande número de nós

va de que uma abordagem como a nossa não atrairia outras motiva-


ções? Mas nunca é de mais repetir que devemos encontrar em nós

Gei Jyutsu - A Arte

este "mistério do movimento" e aperfeiçoá-lo. As reflexões que fazemos não nos colocam contra os diversos métodos e não vêm propor uma nova receita. Não afirmo que seja melhor ou o ideal a seguir... Mas, depois deste longo percurso, sinto-me na obrigação de afirmar: a consciência do Movimento é a base; ela não é verdade absoluta, mas necessidade fundamental. Há, nas Artes de Budo e nas

IX

do Aiki Do, um brotar criador primitivo. Maurice Béjart, numa altura em que praticava Zazen com Taisen Deshimaru, disse-me que as "Artes Marciais eram a fonte da Dança". É evidente que se alguma coisa existe de primitivo e puro, fonte da materialização no espaço, essa coisa é a essência da arte gestual, que possui a sua mais elevada expressão: o poder quase divino de dar vida, de criar. Nos nossos dojos, não está em causa um novo método, mas uma atitude esquecida. Trata-se mais de reaprender do que de aprender. Uma vez despertada a consciência do movimento, que cada um reintegre os limites do estilo que escolheu (duro ou flexível). Cada estilo, de Escola Antiga ou de Escola dita "Moderna", de personalidade ou de diferente tendência, mais não é do que o acentuar de um sentido preciso, porque nenhum de nós pode transgredir esta lei que nos condena a atingir as coisas apenas de forma fragmentária. Só a mecanização é incompatível com esta base lógica, uma vez que sendo o seu automatismo demasiado semelhante à máqui37. também Henri Maldiney, parole, espace, Ed. L’Âge de l’Homme, na, ele éRegard, inconciliável comParis, o movimento da vida.1973. 38. Hoje,"Praticando, as Artes Marciaisésão, ajudadas pelos a poderes com emfrequentemente, Si que é preciso procurar formapúblicos, exterior". grandes meios financeiros. Uma vez que gerem a competição, limitam-se a escolher a expressão de uma forma exterior espectacular baseada na alegada eficácia.

XVII 87


A vida ĂŠ uma sucessĂŁo de trocas.

88


XVIII

os três movimentos

A verdade só pode ser atingida através da compreensão dos contrários. Okakura-Kakuzo

"Movimento"

O movimento tem aspectos muitos mais vastos e profundos

fundamental

do que aqueles que nos são familiares. Estes estão rigidamente limitados a considerações de tempo, de espaço, de causalidade. "Daqui em diante – dizia Minkowski em Setembro de 1908 – os conceitos de

"Movimentos"

"Movimentos"

espaço e de tempo, considerados como autónomos, vão desvanecer-

de deslocação

de transformação

-se como sombras e só se reconhecerá existência independente a uma

na Natureza

da Natureza

(visíveis)

(invisíveis)

espécie de união entre os dois". Existem outras categorias de movimentos. Cada uma delas possui os seus caracteres específicos. Leis, não apenas diferentes, mas por vezes opostas, regem os diferentes modos ou domínios do movimento. Elas são de três ordens, porque se aplicam a três categorias de movimento.

Ao falar de "movimento", evocamos quase sempre a deslo-

Porque considero que os praticantes de Aiki Do devem apro-

cação de um objecto, de um ser vivo, de um engenho mecânico, de

fundar esta matéria, passarei a resumir muito brevemente estas três

uma vibração ou de uma onda no espaço e no tempo.

categorias.

XVIII 89


O Mestre Ueshiba empregava frequentemente o termo "Katsu Hayabi": "Num instante, eu percebo e compreendo O espírito do adversário.

É a este nível espácio-temporal, visível e concreto, que se situam os gestos do corpo humano. E, por conseguinte, os dos movimentos técnicos das Artes de Budo. Mas o domínio dos "movimentos" de deslocação que acaba

Não existe tempo, nem espaço,

de ser evocado está ligado a um dos estados mais profundos de que

Apenas existe o Universo".

ele é inseparável.

O Mestre Ueshiba simbolizava aqui as leis da física do Movimento Universal, mas com a sua espiritualidade. A espiritualidade consis-

2. Os "movimentos" de transformação

te na harmonização no homem e pelo homem das diferentes cate-

da natureza

gorias de movimento, que fazem parte da sua natureza e da natureza pro-funda de todas as coisas.

Encontramo-nos aqui num domínio mais profundo, menos aparente, escapando às percepções sensoriais familiares. Ele situa-se nas profundezas da matéria. O mundo quântico tem regras diferen-

1. "Movimentos" de deslocação

tes das do mundo à nossa escala. Tal investigação, ainda que sumária, obriga-nos a entrar um

Os "movimentos" de deslocação são aqueles que nos são familiares. Vêmo-los e experimentamo-los de mil e uma maneiras na vida quotidiana. Eles exprimem-se também nos nossos gestos.

cados, os objectos móveis permanecem intactos à nossa vista. Se lançarmos um balão de um ponto A em que nos encontramos para um

trocas intercelulares, a circulação do sangue, o ritmo da marcha, as

ponto B a várias dezenas de metros de distância, este balão perma-

palavras, as emoções, os pensamentos, o vento, a chuva, a revolução

necerá idêntico. A natureza do objecto móvel não se modifica.

mentos" de deslocação.

90

Ao longo de todos os "movimentos" de deslocação acima evo-

A respiração, os batimentos do coração, a intensidade das

da terra em torno do sol, a trajectória de um avião, etc. são "movi-

XVIII

pouco na física.

Tudo se passa diferentemente no plano intra-atómico e intra-nuclear, no coração da matéria.

Este movimento é simbolizado, na física, pela deslocação, no

Ao nível electrónico, este "pseudo-corpúsculo" ocupa prati-

espaço, de um objecto móvel a partir de um ponto A até um ponto

ca-mente toda a zona das suas revoluções em torno do núcleo do áto-

B, durante um período de tempo T, a uma velocidade V.

mo, ao longo de milhares de milhões de voltas por segundo e a sua

As leis deste movimento e as dos objectos móveis, deslocando-se no tempo e no espaço, foram definidas pela mecânica clássica.

estrita individualidade parece apagar-se, como é patente na definição que Louis de Broglie dá de corpúsculos.


A este nível, portanto, o "objecto móvel" é já muito diferente de um balão sólido.

3. O "movimento" de criaç ão pura, fundamental

É, enfim, ao nível intra-nuclear, que tudo muda. O núcleo não é homogéneo. Ele compõe-se de todo um mundo. Aqui, o movimento é muito diferente de tudo quanto nos é familiar. O movimento como que se recolhe sobre si mesmo. Tudo se passa numa centésima milionésima parte de um milímetro. O movimento concentra-se num ponto ínfimo do espaço e do tempo.

A existência dum "movimento" fundamental foi intuitivamente pressentido tanto pelos gregos, caso de Plotino, como pelos indianos, no Bramanismo. Plotino falava "de um movimento puro sem objecto móvel e não distinto do motor que o anima". A palavra "Brahma" dos indianos provém da raiz do sânscri-

Impõe-se-nos, de imediato, uma verdade fundamental: a es-

to "Brih", criar. Muito curiosamente, este movimento de criação pu-

te nível, o movimento caracteriza-se por uma transformação de

ra é entrevisto por numerosos físicos e matemáticos da época actual.

natureza que só aparentemente se mantém intacta.

Citemos entre eles John Wheeler (EUA), David Bohm (Inglaterra),

Com efeito, os objectos móveis não permanecem intactos. Eles estão, ao contrário, sujeitos a contínuas transformações.

Blokhintsev Ivananko (Rússia), Tournaire e Vigier (França). Para além da dualidade das ondas e dos corpúsculos, para

O conhecimento da física no Ocidente evoluiu de forma ver-

além dos electrões, neutrões e dos múltiplos elementos constituintes

tiginosa, e controversa, nos últimos cem anos. É no entanto aceite

intra-nucleares, para além dos campos electromagnéticos e gravita-

que no interior da matéria haja quatro tipos de interacção ou forças:

cionais, situa-se a unidade de um campo não linear de criação pura.

a gravítica, a electromagnética, a forte e a fraca, e que todas elas se-

A este nível, não existe objecto móvel, nem tempo, nem es-

jam explicadas por trocas de "micro-matéria": gravitões, fotões, gluões,

paço, nem causalidade.

etc., com intensidades e alcance muito variáveis, mas sempre expli-

Trata-se de uma Realidade Última, espécie de presença eter-

cando o equilíbrio e a movimentação da matéria em termos de "tro-

na, intemporal, formando a essência profunda dos seres e das coisas.

ca da matéria". Assim, a intensidade das trocas é mais importante do que a individualidade dos elementos ligados entre si.

O papel do homem seria o de exprimir, no tempo e no espaço, na e pela matéria, este movimento de criação pura. É a este nível que intervém o papel supremo da Arte do Movimento, para não dizer o do Aiki Do, porque seria fechar a Arte do Movimento numa única disciplina. A expressão de um movimento não seria apenas física, mas estaria subordinada a uma inspiração espiritual emanada do movimento de criação sempre presente, porque contínua.

XVIII 91


Uma tal perspectiva não deveria surpreender-nos. O efeito de

tre a Arte do Movimento e a Espiritualidade.

surpresa provém do facto de não termos ainda compreendido até que ponto a essência da matéria é espiritual.

Quando o Mestre Ueshiba intuitivamente disse "o Aiki Do existe à imagem da Natureza", quem o compreendeu?

Isto pode, contudo, divergir de uma escola para outra... Mas

Acabámos de ver que tudo na natureza se resume ao movi-

é importante sublinhar que a concepção de um "Movimento de cria-

mento. Acabámos igualmente de ver que a essência profunda da na-

ção pura" é actualmente partilhada por um número cada vez mais

tu-reza e da matéria mais não é do que movimento: movimento de

impor-tante de cientistas de renome mundial .

criação pura muito para além das nossas categorias de vida e de mor-

39

te. A Via "Do" e o "Dharma" consistem na harmonização no ho-

Arte e movimento?

mem e pelo homem das diferentes categorias de movimento, que fazem parte tanto da sua natureza quanto da natureza profunda de to-

Toda a matéria animada e inanimada, viva ou morta, todos os seres e todas as coisas participam, sem o saber, nas três categorias do movimento que foram sumariamente referidas. E não só nelas participam, sem o saber, na intimidade profunda quer da sua substância material, quer da sua consciência, como podem exprimir as três categorias do movimento.

realidade essencial do homem engloba e domina todas as nossas oposições de vida e de morte, de carne e de espírito (Corpo/Espírito). Os mestres do Oriente, sejam eles do Yoga ou das Artes do Budo, põem todos em evidência a importância do movimento no Universo e no homem, não apenas nos campos físico e psicológico,

sua fonte de inspiração muito para além dos limites determinados pe-

mas muito mais ainda no plano espiritual último, e a necessidade de

los movimentos de deslocação temporais e espaciais.

admitir o carácter sagrado da Arte do Movimento, no sentido univer-

uma harmonização das três categorias de movimento.

sal, e no sentido em que "sagrado" é "ligado". Todo o movimento, numa prática sincera e correcta, encon-

Isto exige uma grande abertura psicológica e espiritual. As

tra-se expresso, no ser humano, cuja complexidade de organização

formas mais evoluídas da vida humana exprimiriam uma plenitude de

celular, o aperfeiçoamento do sistema nervoso e a morfologia permi-

movimento criador tanto nos planos espirituais, como psicológicos e

tem as expressões mais totais de todas as categorias do movimento

físicos. Estes seriam, por exemplo, os elementos base da adequação

acima citadas.

perfeita nas relações humanas de que falam os mestres Zen.

92

Nesta perspectiva, o Universo é uma unidade indivisível e a

É pois de admitir que a Arte do Movimento possa ir buscar a

Pareceria plausível a existência, no homem, de um elo e de

XVIII

das as coisas.

Em resumo, trata-se de uma experiência em que se exprimem

É por isso que poderiam existir relações infinitamente mais

o movimento e a vida na sua totalidade. Deste ponto de vista, a cons-

profundas do que as que são geralmente admitidas ou entrevistas en-

ciência separada do "Eu" revela-se como pertencendo ao domínio da


ilusão. Ela dissipa-se, não para mergulhar num aniquilamento, mas para se abrir a um conhecimento mais profundo e unificador da realidade. O praticante sensível a esta extraordinária comunhão pode comunicar pela beleza dos seus gestos exteriores — exprimindo simultaneamente a sua disponibilidade interior — um sentido vivo de valores sublimes, triunfando das barreiras da linguagem e das ideias

X

porque o gesto visível contém a união das diferentes possíveis leituras da natureza das coisas. Creio que, apesar de certas aparências, uma tal perspectiva não é nem criação do espírito, nem uma "ontologização". E, no entanto, é destas profundezas da Arte do Movimento ou da do Aiki Do que emana uma inspiração interior. Pela sua expressão corporal, elas realizam uma síntese harmoniosa do espírito e do corpo, dois aspectos de uma mesma realidade. Como disse Morihei Ueshiba: "O Ai Ki tem uma forma sem a ter. O Ai Ki é uma vida tendo forma, mas esta muda constantemente: ela só se exprime pela mudança. Uma forma sem forma, eis uma expressão poética que ilustra o que é o Universo."

XVIII 39. Princeton, La gnose, Paris, Fayard, 1974.

93


Chamai a isto cana de bambú e ficareis prisioneiros do meu ardil. Recusai chamá-lo cana de bambú e caireis no erro. Que nome lhe dais!?

94


XIX

a domesticação do búfalo

Muito cedo, a Índia, a China e o Japão deliciaram-se a repre-

Um velho provérbio chinês pode fazer-nos reflectir e mostrar

sen-tar os passos da vida espiritual ou as etapas no caminho do des-

que, apesar do nosso conhecimento, temos ainda muito a aprender

pertar, de que a domesticação do búfalo é um exemplo excepcional.

com os antigos de todas as tradições, ao mesmo tempo que nos dá

Aqui o búfalo selvagem simboliza a Energia, mas também a

uma lição de humildade:

verdadeira natureza do homem, o ser profundo, esta realidade que

"Aquele que não sabe

já está presente nele mas que ainda não foi realizada em plenitude.

e que não sabe que não sabe… evita-o.

O búfalo pode ser uma vaca, um touro, um boi ou mesmo

Aquele que não sabe

um cavalo e até um elefante. As diferentes etapas da domesticação

e que sabe que não sabe… educa-o.

só podem ser verdadeiramente compreendidas por quem as experi-

Aquele que sabe

mentou. É preciso saber também que aquele que entre no Budo, ape-

e que não sabe que sabe… desperta-o.

nas pela porta da técnica, terminará o seu percurso, quase de certe-

Aquele que sabe

za, num "parque de estacionamento".

e que sabe que sabe… segue-o."

Ao contrário, a porta do Budo convida-nos a passar a "porta sem porta", tão vasta e transparente quanto um grande céu vazio.

Todo o praticante deveria colocar-se esta questão: "Quem

Mas para a transpor é por vezes necessário ter um guia e seguir o seu

sou?". E ainda "O que sou?". Mas gostaria de acrescentar uma ou-

próprio bom senso.

tra: "Onde estou?" no caminho que escolhi e conduz ao real…

XIX 95


A porta da técnica está, infelizmente, reservada "àquele que não sabe / e que não sabe que não sabe". Têm olhos e não vêm, dizia Cristo. As etapas da via são, antes de mais, transformação. "Aquele que sabe / e que não sabe que sabe" já deu um passo no caminho. A luz está nele, como em todos nós, e um trabalho de maturação pro-

afastámos de nós mesmos, que são os nossos sentidos que nos conduzem, que caminhamos em direcção a encruzilhadas incertas…. O gosto por "tomar" e o medo de "largar" consomem-nos. Pensar o bem e o mal dilacera-nos. Num outro estádio, começamos, paulatinamente, a ver. As

com perseverança em todos os planos da consciência. É-lhe necessá-

Escrituras e os ensinamentos ajudam-nos a ter um pouco mais de com-

rio dissipar tanto os mais densos como os mais subtis estados de cons-

preensão. Começamos a ver os traços do búfalo, mas somos inca-pa-

ciência que lhe escondem esta luz interior que está presente no mais

zes de distinguir o que é do que não é. O espírito tem dificuldade em

profundo do seu ser e cuja existência ele ignora.

discernir o verdadeiro do falso.

dos os preconceitos. Longo trabalho! Aqui, o estudo não basta. O sa-

Estamos sempre perante uma porta. A técnica do Budo não nos deixa entrever a outra porta.

ber livresco não substitui a experiência, a única que nos pode con-

Depois, pouco a pouco, começa o encontro — a domestica-

duzir a um verdadeiro conhecimento. Para que o ser integral possa

ção do búfalo — em que o praticante descobre, pela escuta, o seu ca-

transformar--se, é indispensável a vivência pessoal, porque "ver é ver

minho, em que os sentidos se harmonizam. Percebemos, então, a ori-

e fazer é saber". É, então, necessário um guia qualificado a fim de

gem das mil e uma coisas. Em todos os actos, sentimos que nada es-

não enveredar por becos sem saída e de não confundir o dedo que

tá separado. Mas o olhar não é ainda puro, nem dirigido de uma ma-

mostra a lua com a própria lua.

neira correcta. Ainda não descobrimos ou não compreendemos que

"Aquele que sabe / e que sabe que sabe" é o único qualifi-

todos estamos unidos à origem.

cado para levar a cabo esta tarefa difícil. Tem a humildade e a indul-

Após um longo caminho, encontramos realmente o búfalo,

gência necessárias. Adquiriu o domínio do seu corpo, do seu sopro,

temo-lo agarrado. Mas, ainda atraído pelas solicitações do mundo ex-

dos seus pensamentos e das suas emoções. Está também em con-

terior, o búfalo é difícil de controlar. A sua natureza selvagem é difícil

tacto perma-nente com a fonte cósmica, ele irradia amor. Mas é pre-

de dominar e recusa a familiaridade. É necessário utilizar a corda pa-

ciso ainda estar pronto para o receber, estar disponível e solto, a fim

ra que ele permaneça perto de nós.

de ser permeável a um verdadeiro ensino. Regressando à domesticação do búfalo, é necessário, em pri-

96

Se já não sentimos a presença do búfalo, tal significa que nos

cessa-se no seu íntimo, sem que dele se aperceba. Ele deve trabalhar

É preciso que se liberte de todas as cadeias e ultrapasse to-

XIX

curar?

meiro lugar, procurar! Se o búfalo nunca está longe, importa saber porque o pro-

Começamos, então, a domá-lo, sem prescindir do chicote e da corda. Quando um pensamento vem, outro se segue, outro ainda… O turbilhão sem fim dos pensamentos cresce e arrasta-nos no erro, temos ainda falta de clarividência interior. Ainda nos é necessá-


ria maior vigilância. É o momento de segurar bem as rédeas, de dar

trá-rio, a recolher um presente, uma presença naquilo que nos acon-

mais atenção à atenção, caso contrário o animal pode extraviar-se.

tece, ocasião única de ver aumentar o Espaço – a luz nua.

É chegado, enfim, o momento em que já não temos necessi-

"Que maravilha!

dade de "tomar" nem medo de "largar". Não há retorno. O coração

Recolho a água,

enche-se de uma alegria desconhecida. O combate termina.

Apanho lenha."

Deixando-se levar pelo búfalo, o domador reencontra a sua

Bashô

verdadeira morada. Todos os ensinamentos desvelam uma realidade

Sejamos inteiros em cada acto, nele exprimindo o melhor de nós.

única. Encontrámos a pérola em vagas perigosas. Quando se tem o

Ser na energia do acto, para além do projecto.

peixe, que importa a rede!

Se praticais uma técnica, lavai o vosso espírito. O que impor-

A lua eleva-se acima das nuvens! Nada mais há! Nem chicote, nem corda, nem homem, nem búfalo. É o vazio, é a abertura. A confusão esvai-se, nenhuma ideia de perfeição a atingir existe, apenas permanece a serenidade. Que importa que o "despertar" seja aqui ou além? Quando se esbate toda a dualidade, para onde dirigir o olhar?

ta é a integração no acto. Tudo se torna claro, em nós e no resto. Tudo se revela na claridade do presente actualizado. Quando vos transformais em um, quando atingis a unidade, eis que o milagre ocorre e tudo se torna vivo. O grande milagre é a própria vida.

Numa base sem questões, numa prática desinteressada, abrimos a porta ao mistério. Já nada encobre o desenvolvimento daquilo que é. Basta contemplá-lo. Basta contemplar o que permanece, o que se passa, sem lhe acrescentar um pensamento, sem se identificar com o que acontece, desprendido de si. Azul é a resposta do Céu, verde a dos prados. As estações passam.

"O quotidiano meditado na sua viva profundidade, o movimento do sabre pode tornar-se o instante em que vejo." O Budo é uma arte do instante, mas é preciso não confundir "este instante" com os momentos privilegiados, porque estes não

XIX

passam de fulgor disperso. Na arte do Budo, aprendemos, pelo con-

97


A domesticação do Búfalo

Eles não se conheceram Ele não é ainda o seu Senhor

O tema da domesticação do búfalo serviu para ilustrar as diferentes etapas da Via. Que representa o Búfalo? Representa a nossa própria

Ela é selvagem, violenta, indomada. O Céu parece hostil, como ela. Como domesticar esta besta magnífica e perigosa?

duo, o ser humano; o boieiro, a parte do indivíduo que se vol-

No entanto, o Homem deseja, do fundo da sua alma, capturá-la.

ta para a sua natureza profunda, o seu ser interior; a corda e

Então, usa de astúcia com ela, explorando a sua avidez

a chibata são os meios hábeis, os diferentes métodos de tra-

Oferece-lhe a sua erva preferida a fim de vencer a sua desconfiança;

balho que guiam a vigília. A ideia de domesticação implica a

Mas esconde a corda com que a amarrará.

de um longo trabalho, constante e quotidiano, efectuado com

Prepara também a chibata com que reprimirá os seus abusos.

uma grande e ininterrupta vigilância…

O Animal, qual nuvem tempestuosa, está carregado de uma energia

nhando o aspecto progressivo do caminho. Os desenhos originais e res-pectivos comentários são atribuídos a Kakuan Shien (Kuo-an, Shih-Yuan), Mestre Zen do século XII. Ele não foi, porém, o primeiro a ilustrar graficamente os estádios sucessivos do conhe-cimento segundo o Zen. Existem versões anteriores de cinco e oito desenhos, em que o búfalo se torna cada vez mais bran-co, representando o último desenho um simples círculo. Tal significava que o conhecimento da Unidade – o mesmo é dizer, o apagamento das noções do "eu" e do "outro" – era o fim últi-mo do Zen. Mas Kakuan acrescentou duas imagens ao círculo para mostrar que o perfeito seguidor do Zen vive no mundo quotidiano, junta-se aos outros homens com total liberdade de espírito, e que a sua compaixão incita a seguir a via do Buda. Foi esta versão a mais largamente adop-

98

A sua cabeça majestosa é ornada de cornos esplêndidos

natureza, a natureza da vigília. O homem simboliza o indiví-

Houve várias versões deste tema, todas elas subli-

XIX

I

tada no Japão40. 40. V. Philip Kapleau, Les trois piliers du Zen, Paris, Stock, 1972, p. 284. Os desenhos a tinta da china aqui apresentados são nossos.

obscura; Ele é negro da cabeça à cauda. O que é esta potência desembestada?


O Começo do Domínio O Homem estabeleceu o contacto com o Animal,

II

O Homem conseguiu a sua aceitação

III

Conseguiu passar uma corda pelas suas narinas.

Agora a Vaca começa a seguir o homem,

Brandiu a chibata, com a qual ameaça, para se fazer obedecer.

Mas com que relutância!

Ele não deve abrandar a sua pressão,

Ele já não puxa a corda e a chibata repousa no seu ombro.

A Besta, agora, deve submeter-se.

A Vaca ainda não volta para ele o seu olhar.

As nuvens tempestuosas desapareceram, a natureza parece apazi-

O lombo contraído trai o seu medo e os seus desejos de evasão.

guar-se,

O Homem deve permanecer atento.

Entretanto, o Céu permanece ainda cinzento.

Ela sofre o seu ascendente mas à menor fraqueza ela fugirá.

Embora ela se debata, sente já que, a gosto ou a contragosto, se-

Contudo, este começo de submissão humanizou a sua inteligência

guirá o Homem.

animal,

A sua sombria e feroz energia cede a uma sensação nova.

Toda a sua cabeça se tornou clara.

Esta sensação subtil vem do homem.

O Sol, ainda vermelho, aparece entre as nuvens.

Ela transmite-se à Vaca pelo laço que a ele a liga.

Porque é que a Natureza e a Vaca se apaziguam juntamente?

O seu focinho negro torna-se mais claro. O que é esta mancha branca?

XIX 99


A Vaca volta a cabeça para o Homem

IV

Já não é um laço material que a prende ao Homem,

A luz do Sol atravessa o ar límpido,

Mas uma afeição temerosa.

As próprias árvores distendem os seus ramos

Ele já não é apenas o seu Senhor, ela ama-o um pouco.

Que se abandonam na claridade do dia.

Ele, entretanto, permanece ainda atento,

A Vaca volta a sua cabeça para o Homem e olha-o com confiança,

Conservando a corda e a chibata.

A sua nascente afeição por ele

Uma água cristalina desce da montanha

Já apaziguou largamente a sua tumultuosa vitalidade;

O seu doce orvalho atenua a claridade do Sol.

Mas o Homem permanece vigilante; Há ainda muita violência no corpo do animal. É prudente não o deixar livre, Temendo que o instinto desperte. Que poder é este que, no Homem, apazigua?

100

Resta muito pouca energia obscura no corpo da Vaca.

O Céu desanuviou-se;

A sua cabeça, o seu peito, as suas patas dianteiras são brancas.

XIX

Obediência e Amizade

V

Como é que o invisível prende tanto quanto o visível?


A Vaca está apaziguada O animal está apaziguado; só um ligeiro traço sombrio

VI

Ainda que livre, a Vaca permanece perto do homem

Resta sobre o seu manto branco de pêlo sedoso.

O homem já não se preocupa com ela,

O homem está seguro da sua fidelidade,

Ela está conquistada e não mais o deixará.

Abandonou os meios de constrição.

Ela bebe em grandes tragos a água cristalina da fonte.

A energia furiosa da Vaca mudou-se em terna sensibilidade,

Ele contempla e admira a sua força pacífica.

O homem toca flauta e

Na erva florida, a sua brancura é como um lótus

Ela saboreia profundamente esta harmonia desconhecida.

Aberto sobre um lago calmo.

Tudo é doçura nela e em seu redor;

O Sol enrubesce no horizonte.

As árvores estão em flor e uma bruma perfumada estende-se sobre

O Homem goza profundamente a beleza deste vale

o vale.

E a sua própria serenidade. Como é estranho! O animal, o homem e a natureza

VII

O que está fora dele é como o que nele reside.

estão em harmonia.

XIX 101


Eles esquecem-se um do outro mas não mais se deixam

VIII

Ele está só, o Sol ilumina-se A Vaca voltará para ele

IX

Brumas violetas estendem mansamente os seus véus,

O tempo passou? Qual tempo?

Algumas estrelas acendem-se no céu imóvel.

As estrelas da manhã ainda cintilam, o Sol irrompe na montanha.

Já a lua se levanta, pálida num terno azul.

O Homem está numa solidão maravilhosa.

Um orvalho morno eleva-se da terra.

Entretanto, ele nunca deixou de estar só.

Tudo é Paz.

A Vaca é simbólica;

A Terra e o Céu apagam-se.

As coisas são UM e sempre o foram.

Banhados pela doçura da noite, o homem e a vaca

O Animal, fora dele, era hostil.

Estão ambos sós, na sua tranquila beatitude.

O desejo, o esforço, o sofrimento e o amor

Mas eles já não podem estar separados.

Restabeleceram a Unidade do Homem.

Qual a palavra para descrever esta harmonia, esta felicidade íntima?

Mas se dela tiver necessidade, a Vaca aparecerá,

Onde está a Terra? Onde está o espaço? Onde está o Tempo?

Porque, doravante, o homem sabe quem é e do que precisa. Para ele, nada mais a conquistar, parte alguma aonde ir, O combate terminou. Já não há ganho nem perda. Descerá ele de novo ao Vale?

XIX 102


Os Dois desapareceram Estão onde nada é

X

Qual é este estado em que nada há do que chamamos alguma coisa? É o nada ou a plenitude? Mas quem pode imaginar o nada? E quem pode pensar a plenitude? Porquê falar tanto, as palavras são cheias ou vazias? O que é, É. O que não é, não pode Ser. Porquê limitar a realidade à mesquinhez das nossas experiências contraditórias? A criança chora se não agarra o Céu na sua mão. O Oceano é uma grande gota de água ou a gota de água um pequeno oceano? Quando um e outra estão unidos, Onde está um e onde está a outra? Alguma vez foi de outra maneira? Não fiquemos assim, partamos mais longe para o que nunca deixámos de ser, para o que somos verdadeiramente.

XIX 103


A verdade não existe fora do nosso espírito. Porquê procurá-la noutro lugar?

104


XX

os escritos do passado — o budo A rede de pesca serve para apanhar peixes. Apanha o peixe e esquece a rede. O laço serve para apanhar coelhos. Apanha o coelho e esquece o laço. As palavras servem para transmitir ideias. Pega nas ideias e esquece as palavras.

Na tradição, as Artes Marciais, e isto desde há séculos (e não

Chuang Tsé41

merece a nossa reflexão.

apenas no Japão!), foram sempre praticadas em lugares propícios ao

Como sabemos, a Arte do Movimento tem uma enorme con-

despertar. Hoje, a maior parte dos praticantes agarrou-se à pele des-

vergência com as outras Artes. Quando aquela é estudada em pro-

tas artes e esqueceu a medula... A Arte do Movimento não consiste

fundidade, o praticante de Aiki Do descobrirá certamente similitudes

de modo algum em perseguir um resultado exterior com um "belo

nas artes da música, da caligrafia, do teatro, etc. E, nelas, encontra-

movi-mento". Trata-se antes de realizar "o belo movimento, em si

rá uma grande riqueza de inspiração.

mesmo". A descoberta do Movimento, que vai para além da forma, decorre indubitavelmente de uma meditação da prática... Um olhar sobre o passado e designadamente sobre a estratégia do combate dos Mestres de Sabre japoneses da época Tokugawa

Como também sabemos, a abordagem do Aiki Do é antes de mais um percurso interior e tenho sublinhado muitas vezes que todas as intenções técnicas devem ser profundamente sentidas pelo prati-cante antes de serem concretizadas no tatami, o mesmo acontecendo quando se trata de as transmitir.

(1603-1868) é importante para compreender a prática do Budo de

Esta busca, por mais pessoal que seja, não pode ser feita só;

hoje. O Sabre, símbolo da cavalaria, foi para os samurais um meio de

ela requer a troca. Ela reclama obrigatoriamente uma pedagogia que

aperfeiçoamento de "si mesmos". A Via do Sabre foi fortemente in-

se lhe adapte, um ensino no qual a relação de autoridade seja subs-

fluenciada pelo budismo Zen e por aquilo que o grande Mestre Takuan

ti-tuída por um espírito de pesquisa e de colaboração fervorosa entre

XX

nos deixou. Isto é válido ainda nos dias de hoje. É um assunto que

o Mestre e o aluno.

105


Na análise dos textos que vamos abordar, nunca poderemos

senciais se reencontram através de todas as outras disciplinas. Os tem-

substituir a experiência directa de um ensino vivo. Tal como nenhu-

pos mudaram. Mas os fundamentos, a ciência profunda dos movi-

ma mensagem do passado poderá substituir a relação de um Mestre

mentos, do sopro, da Energia (Ki) são imutáveis. Os princípios (muitas

com o seu aluno.

vezes transmitidos ainda secretamente) constituem a própria raiz das

Os textos antigos não são mais do que balizas que permitirão

Artes Marciais contemporâneas. O Sabre, que simboliza precisamen-

ajudar a desenvolver a motivação do praticante. Um texto que não

te uma arma de morte, está ligado a uma sabedoria profunda: a Via

seja materializado numa prática real é uma miragem... porque só con-

do Sabre inclui em si mesma todas as abordagens da sabedoria e le-

ta Tada Ima, o que significa "apenas agora". Só conta o "instante

va a sua expressão até ao Absoluto...

presente", aquele que na prática toca a "Realidade". O estudo da estratégia na Arte do Combate não deve parar na "astúcia", porque esta não faz apelo senão ao "ego limitado", pois, como dizem os sábios do combate, "a verdadeira vitória reside na ausência de conflito".

.1

Takuan (Mestre Zen do século XII)

Mas isto exige um desprendimento do espírito, exige o "vazio": Shûnya42. De facto, o Budo é o estudo da vida e da morte através de uma prática física e mental. É o que nos afasta evidentemente da via

Takuan foi um grande Mestre Zen que influenciou a investigação do célebre Miyamoto Musashi, de que veremos alguns excertos da sua escola no próximo ponto.

desportiva. Quem se situar no plano desta realidade, a da competi-

Para o Mestre Takuan, aquilo que é mais importante na arte

ção, não será senão uma pálida figura, não revelará frequentemente

do Budo é a aquisição, após um treino prolongado, da atitude men-

mais do que um espírito estratégico... É por isso que, ao ler os textos

tal chamada "sabedoria imutável". Muitos praticantes de hoje deve-

antigos, será necessário nunca esquecer o contexto da época — sé-

riam meditar sobre estas poucas linhas plenas de uma grande expe-

culos XVII e XVIII — ou a sua particularidade cultural, em que a es-

riência do combate...

crita não obede-cia a uma lógica sistemática, nem a uma ciência pedagógica.

Imutável não significa rígido, pesado e sem vida como um rochedo ou um pedaço de madeira. Significa o mais elevado grau de

Os autores escreviam de uma maneira intuitiva, servindo-se mui-

mobilidade em torno de um centro imutável. A mente atinge então o

tas vezes, tal como o poeta, da assimilação dos fenómenos cósmicos...

mais alto ponto de alacridade e pode dirigir a atenção para todo o la-

É verdade que o espírito das Artes do Budo moderno é dife-

do em que aquela se torna necessária — à esquerda, à direita, em su-

XX

rente do das Artes do Budo antigas. O Budo é uma Via e, portanto,

ma, para todas as direcções requeridas. Quando a vossa atenção es-

106

uma disciplina, uma ciência, uma técnica cujos grandes princípios es-

tá fixa e mobilizada pelo Sabre com que o inimigo vos golpeia, per-


deis a primeira oportunidade de realizar o gesto seguinte. Hesitais,

deis a vossa própria postura.

pensais e, durante esta deliberação, o inimigo prepara-se para vos

Isto não significa, bem entendido, que desejeis realizar as coi-

abater. Trata--se de não lhe dar essa oportunidade. Basta-vos seguir

sas rapidamente ou no mais curto tempo possível. Se tiverdes em vós

o movimento do Sabre que se encontra nas mãos do inimigo, man-

tal desejo, a sua própria presença constituiria uma interrupção.43

tendo a vossa mente livre de fazer o seu próprio encadeamento, sem que a vossa reflexão intervenha. Deslocai-vos quando o vosso adver-

D. T. Suzuki comenta:

sário se desloca e isso conduzir-vos-á à vitória.

Esta via de não-interrupção, que se diz ser necessária ao do-

Isto — que se pode chamar a atitude mental de não-ingerência

mínio da Arte do Sabre, é uma via de não-esforço ou de não-desejo

— constitui o elemento mais vital na Arte do Sabre, tal como na prá-

(…) Do ponto de vista da Arte, é uma arte de não arte. Os confucio-

tica do Zen. Se a distância entre duas acções for da espessura de um

nistas diriam: ‘Que diz o Céu? Que diz a Terra? Mas as estações vão

cabelo, há interrupção. Quando batemos com as mãos, o som sai sem

e vêm e todas as coisas crescem’. Os adeptos de Lao-Tsé (diriam): “É

hesitação. O som não espera, nem pensa antes de sair. Não há me-

o princípio de não-acção que move todas as coisas”. Ou ainda: “Os

ditação. Um movimento segue o outro sem que a mente consciente-

raios giram, simplesmente porque o eixo não mexe”. Todas estas ob-

mente o interrompa. Se estais perturbados ou se reflectis sobre o que

servações tendem a mostrar que o centro de gravidade da vida, em

convém fazer quando vedes o adversário preparar-se para vos matar,

todas as suas manifestações, sejam elas artísticas, poéticas, religiosas

estais a dar-lhe o lugar, isto é, estais a oferecer-lhe uma boa oportu-

ou dramáticas e desenrolem-se numa existência tranquila de estudo

ni-dade para ele desferir um golpe fatal. Que a vossa defesa siga o

ou de intensa actividade, permanece imutável. E, quando o consegui-

ataque sem um momento de interrupção e não haverá dois movi-

mos compreender, obtemos um estado de realização do Eu que se

mentos separados chamados ataque e defesa. O carácter imediato

exprime de uma maneira perfeita na vida e na acção.44

da vossa acção levará inevitavelmente à derrota do vosso adversário por ele próprio. Tal como um barco deslizando docemente sobre os rápidos, no Zen e no Budo, um espírito que não hesite, nem pare, nem se interponha, é precioso. Referimo-nos muitas vezes no Zen ao relâmpago ou às faís-

.2

Miyamoto Musashi (1584-1646)

cas que brotam do choque de dois sílex. Se entendermos isto no sentido de rapidez, cometemos um grande erro. A ideia deve ser a da

Os textos de Miyamoto Musashi que chegaram até aos nos-

instantaneidade da acção, a de um movimento ininterrupto de ener-

sos dias dão-nos uma ideia aproximada, uma representação do que

gia vital. Sempre que dais lugar à interrupção, num sector que não

poderia significar esta Via que, por definição e uma vez mais, só na

XX

está em relação vital com a circunstância, é certo e seguro que per-

prática e no total empenhamento de si ganha verdadeiro sentido.

107


Em Maio de 1995, ocorreu em Inglaterra um facto histórico que poucos especialistas de Budo conhecem. A Dai Nippon Butoku Kai organizou então um encontro pouco divulgado. Esta associação, criada em 1895, sediada em Kyoto, herdeira do Butoku Den (criado no século IX), agrupa e supervisiona,

do Fogo trata da Energia; e O Escrito do Céu (ou Escrito do Vazio) aborda a meditação45. Todos estes temas foram frequentemente reto-mados nos mesmos Kakemono. Penso que seria interessante extrair algumas reflexões que condensam o seu pensamento.

actual-mente, as Artes Marciais japonesas. Tem como presidente o

A ideia das duas mãos

príncipe Higashi Fushimi, tio do actual imperador.

Manter o sabre com as duas mãos não é o elemento funda-

A cerimónia, na qual participou uma delegação portuguesa,

mental da Arte do Sabre. Ao pegar em dois Sabres, o objectivo é apren-

foi dirigida pelo Mestre Teshin Hamada, 9º Dan, Hanshi, presidente

der a servirmo-nos de um Sabre com uma única mão. Ao início, toda

da Divisão Internacional da Dai Nippon. O Mestre Hamada executou

a gente tem enorme dificuldade em utilizar o Sabre com uma só mão,

um Kata muito antigo e examinou candidatos de várias disciplinas a

porque ele é muito pesado. Mas à força de treino, consolidado pela

diferentes graduações Dan. Propôs, pela primeira vez, representantes

Via, torna-se mais fácil. O mesmo acontece com o tiro ao arco, ou com

mundiais para dirigir os ramos nacionais da Dai Nippon Butoku Kai.

outras armas...46

As graduações e a titularidade das representações foram, mais tarde,

A ideia da maneira de agarrar o Sabre

ratificadas pelo Conselho de Hanshi, em Kyoto.

Agarra-se o Sabre, mantendo o polegar e o indicador com le-

Mas voltando à cerimónia, aquela decorreu perante o "Bokken" de Miyamoto Musashi, considerado tesouro nacional.

veza; o dedo médio não deve estar nem apertado nem relaxado; o dedo anular e o mindinho devem estar, esses sim, bem apertados. É ne-

Miyamoto Musashi, aos 50 anos, tomou consciência de que

fasto haver um vazio no interior da mão47. É preciso agarrar o Sabre

a Arte do Sabre era verdadeiramente um "Do". Poeta e excelente ca-

com o espírito de cortar o adversário em dois. Quando rachamos o

lígrafo, fundou um dojo, cujo ensino original foi a utilização simul-tâ-

adversário, a forma da mão não muda. Quando desviamos um golpe,

nea de dois sabres, Nitô-ryû, um grande e um pequeno. Os seus due-

quando nos apoiamos no Sabre do adversário ou quando o bloquea-

los tornaram-se rapidamente conhecidos em todo o Japão. A fim de

mos, só o polegar e o indicador se deslocam ligeiramente...48

aperfeiçoar a sua arte, passou uma grande parte da vida a viajar, reen-

O movimento do Sabre

contrando pelo caminho numerosos discípulos. Aos 60 anos, escre-

Quem tiver assimilado bem o movimento do Sabre acabará

veu o seu ensino sob o título Gorin no sho (Escritos das Cinco Rodas),

por conseguir servir-se do Sabre apenas com dois dedos. Se se quer

formados por cinco Kakemono (ou rolos manuscritos).

deslocar o Sabre muito rapidamente, sai-se da regra e depara-se com

O primeiro, O Escrito da Terra, apresenta o sistema geral da

dificuldades. O Sabre deve ser movido calma e correctamente. Quando

XX

sua escola; depois, O Escrito da Água descreve sobretudo as técnicas;

se utiliza o Sabre tão depressa quanto um leque ou quanto um tantô

108

O Escrito do Vento aborda a estratégia das diferentes escolas; O Escrito

(punhal), não é possível atravessar um homem. Quando se golpeia de


alto a baixo ou na horizontal, o Sabre deve ser conduzido segundo a

ca)

regra, os braços desenhando um movimento amplo.

Podemos compreender o Hyoshi em dois tempos...

49

Podemos, aqui, abrir um parêntese a respeito do Aiki Do.

Quando se está prestes a desencadear um ataque, caso o ad-

Muitas vezes vemos praticantes no tapete que utilizam a "ve-

versário esboce logo um movimento de recuo ou de paragem, deve

locidade" sem ter assimilado a verdadeira profundidade do movi-

fazer-se semblante de atacar; e caso o adversário reaja por uma ten-

mento. Portanto, os seus Té-Katana , para usar a expressão do meu

são, devemos golpear um pouco mais tarde, aproveitando o momento

Mestre Nakakura, são como farinha.

em que ele se distende.51

50

Antes de passarmos a outros escritos, seria útil explicar aos

O movimento de Sekka (pedra e faísca)

leitores ocidentais a significação japonesa de algumas noções.

A uma distância em que o meu Sabre e o do adversário mal

Hyoshi

se tocam, é preciso bater extremamente forte, sem levantar o meu

O Hyoshi é o espírito que se encontra em todas as coisas, de

sabre ... Para realizar esta técnica, é preciso ter força nas pernas, no

uma simples pedra à imensidade das estrelas.

corpo e nas mãos. Com estas três forças, golpeia-se.52

Segundo a tradição japonesa, é algo que se cultiva, que não

De acordo com a descrição de Miyamoto Musashi, podemos

pode ser adquirido sem uma prática regular. Tal como o deslocar das

fazer uma comparação inesperada com o teatro. Com efeito, quan-

pedras pelo jardineiro, a fim de arranjar o jardim, exige uma prática

do um actor entra em cena, ele deve reunir todas as condições da ex-

contínua. Do mesmo modo, o músico que toca regularmente o seu

pressão justa...

instrumento possui o Hyoshi. É também a integração das cadências que ligam ritmicamente um ou vários sujeitos ao seu meio ambiente, no quadro de uma

Ensino, muitas vezes, aos jovens actores, os rudimentos da arte do Sabre. Através de uma simplicidade aparente, estas técnicas são de uma grande profundidade.

actividade artística, que contribuirá assim para a harmonia do con-

A ideia do "corpo do Macaco mítico, Sukko"53

junto.

Antes de golpear o adversário, avança-se todo o corpo, coPara Miyamoto Musashi, existe um Hyoshi particular para o

mo se não nos servíssemos dos braços. Quando se quer estender os

Sabre como para qualquer outra arma. No Sabre, o Hyoshi existe sob

braços em direcção ao adversário, o corpo afasta-se instintivamente.

uma forma concordante e uma forma discordante. É preciso saber

É por isso que é preciso avançar primeiro o corpo.54 Podemos ligar esta estratégia à posição de guarda – Waki

discernir entre o Hyoshi grande e pequeno, lento e rápido, o Hyoshi do Ma (intervalo, distância). No combate, conhecendo o Hyoshi do

Kamae.

adversário, deve utilizar-se um Hyoshi com que ele nem sonhe, e ga-

A ideia do "corpo de laca"

nhar, fazendo surgir do vazio o Hyoshi da sabedoria.

Tendo avançado para muito perto do adversário, a ideia é não

XX

mais descolar, é permanecer colado, tal como a laca. Cola-se com for-

109

Ni-No-Kochi-No-Hyoshi (o segundo Hyoshi da an-


ça a cabeça, o corpo, os pés, tudo. Habitualmente, no combate, temse a tendência para avançar a cabeça e os pés, enquanto as ancas se afastam. É preciso, pois, colar o corpo como a laca, sem nenhum intervalo. É preciso reflectir nisto!

55

Em Aiki Do, sabemos que os movimentos partem das ancas

máxima da Energia pura e imaterial. Poderíamos fazer um estudo mais aprofundado sobre o som. Mas não é esse o nosso tema nem o objecto das nossas reflexões. Regressemos aos três sons do célebre Miyamoto Musashi, que ele descreve assim:

(Koshi) que têm a sua origem ao nível da bacia. Os Mestres chineses

Na guerra, utilizam-se três registos de voz. Um para o come-

falam de "Rins". Quando a cabeça pende para a frente, perdemos o

ço, outro para o meio e outro para o fim. (...) No princípio do com-

nosso apoio "energético".

bate, o som é exagerado; durante o combate ele é baixo e deve pa-

A ideia das três vozes (Kiai)

recer profundo; enfim, após a vitória, o som é forte e elevado. Num

Aqui, Miyamoto Musashi fala do som. Ele utiliza três registos

combate a dois, a fim de fazer mover o adversário, faço semblante de

de voz. Todos sabemos que o "grito" é uma primeira reacção peran-

golpear, lançando um Kiai “Eï”, depois, executo a minha forma de ata-

te o perigo. O grito pode influenciar ou mesmo parar um ataque. Bem

que. Após ter golpeado o adversário, lanço o grito que anuncia a mi-

conhecido das artes do combate tanto no Oriente como no Ocidente,

nha vitória. Não lanço o grito com força ao mesmo tempo que o meu

ele pode estar na origem do uso activo da voz humana como um ele-

Sabre. Durante o combate grito baixo e ligeiramente a fim de me apoiar

mento maior do combate.

nos Hyoshi.56

É preciso não esquecer que as legiões romanas e gregas conheciam bem o efeito paralisante dos clamores que repentinamente brotavam da profundeza dos bosques silenciosos. Durante a última Guerra Mundial, os partisans do País Basco tinham um grito bem estudado para passar à acção de combate.

A propósito da velocidade Creio que esta passagem é muito útil aos jovens praticantes de Aiki Do. Musashi critica a velocidade! Este não é um caminho justo. O que se designa por rapidez é,

Na Índia, ao contrário, não há grito (Kiai) como nas outras

na realidade, não estar em dessintonia com o hyoshi de cada coisa.

Artes Marciais, como no Iai Do ou no Ken Do, grito que não apenas

Os gestos dos verdadeiros especialistas não parecem rápidos. Na dan-

"suspende", mas também liberta Energia (Ki).

ça ou no canto, quando um especialista e um principiante dançam ou

Nas Artes Marciais indianas, o grito é silencioso! Ele vem das

cantam em conjunto, o principiante tem sempre a sensação de estar

profundezas do ser. O silêncio projecta uma energia subtil (bem co-

em atraso e o seu espírito torna-se apressado. O especialista que ba-

nhecida dos Yoguis) e o sopro liberta esta energia. Este grito emite

te ritmadamente o tambor, fá-lo calmamente, enquanto que o prin-

uma vibração que provoca um efeito extraordinário sobre o adversá-

cipiante tem sempre a impressão de estar em atraso ... A rapidez é,

XX

rio, porque o silêncio (que é também uma força) está unido ao espí-

de facto, um desacordo com o Ma57. O gesto do verdadeiro especia-

110

rito de que este é a raiz... Nestas técnicas indianas, há uma explosão

lista antes parece lento, mas o Ma encontra-se preenchido e este nun-


ca parece apressado.58

Ding", pela pena de Chuang Tsé ou Zhuangzi, originário da cidade

A propósito do Céu ou do vazio

de Mong, na actual província de Honan na China, e que terá vivido

É no último capítulo dedicado ao Céu ou ao vazio que se en-

cerca de 350 a 275 AC. Considerado um dos primeiros e mais signi-

contra o essencial do ensino de Musashi.

ficativos intérpretes do Taoísmo, é conhecido sobretudo pela obra que

O vazio não significa que nada exista ou que "nada" possa ser objecto de conhecimento. O vazio não é igual a nada do que exis-

tem por título o seu próprio nome, Zhuangzi, também designada Nanhua cheching ("O Cânone Sagrado de Nan-hua").

te. Ao conhecer o vazio, ficamos a conhecer, simultaneamente, tudo o que existe e aquilo que não existe. O verdadeiro vazio não signifi-

Talhante na cozinha

ca apenas conhecer alguma coisa que é inexistente — isso é o espí-

ao serviço do Príncipe Wen Hui

rito transviado. Alguns, praticando o Sabre, sem conhecer o que é a

Ding esquartejava um boi;

Via, falam do vazio quando chegam a um impasse. Isto não é o ver-

golpeando com a mão, pressionando com o ombro,

dadeiro vazio. O Bushi deve aprender a Via do Sabre de uma ma-

ajudando com o pé, empurrando com o joelho,

neira certa e treinar-se também nas outras Artes Marciais, aperfei-

só sé ouvia huo! xiang!

çoando as suas acções, expulsando do seu espírito as perturbações,

o canto da faca

não parando o treino nem um dia, nem uma hora; ele deve polir o

cortando as carnes em cadência,

seu espírito, a sua vontade, a sua perspicácia e a sua capacidade de

quais os acordes da dança de Sanglin

observação. Afastada, assim, toda a nuvem de perturbação, o céu

ou as harmonias musicais de Jingshou.

59

torna-se claro. Eis onde se situa o verdadeiro vazio.

60

Miyamoto Musashi também sustenta que aquele que não chega a atingir o verdadeiro vazio se enganou no caminho...

— Oh! Ha! exclama o Príncipe. Excelente! Que arte!

Pousando a sua faca, Ding, o talhante, respondeu: — O vosso servo é um apaixonado do Tao

.3

A arte de Din g

muito superior a todas as artes.

Os olhos abertos observam o trabalho Yang

Quando começava a esquartejar os bois,

Os olhos fechados contemplam o Yin secreto.

nada mais via do que o boi. Chuang Tsé

Retrocedamos quase dois milénios para escutar a "arte de

Após três anos, já não via o boi como um bloco.

XX

A minha abordagem é agora espiritual.

111


E já não vejo com os olhos.

nele fixo o meu olhar,

A percepção sensível e o conhecimento mental

para ele avanço suavemente,

deram lugar ao impulso do espírito.

introduzo a faca com a máxima delicadeza,

Partindo da organização natural,

e, de um golpe, a articulação desmembra-se

começo o trabalho pelas grandes fissuras,

qual torrão atirado ao ar e que cai na terra.

deslizo através das grandes cavidades,

Tiro a minha faca, endireito-me,

aceito a realidade tal como ela se apresenta;

dirijo o meu olhar para as Quatro direcções,

operando assim, jamais deparo com um tendão,

repouso, satisfeito.

e por maioria de razão com um grande osso.

Limpo a faca, coloco-a no estojo.

Um bom talhante, porque talha, muda de faca todos os anos.

— Excelente! exclama o Príncipe Wen Hui.

Os outros talhantes, porque despedaçam,

Acabo de aprender com o talhante de cozinha Ding

mudam-na todos os meses.

como manter a vida.61

Eu, eu tenho esta faca há dezanove anos; esquartejei milhares de bois,

Tão interessante quanto este texto de Chuang Tsé, cuja ver-

e o seu gume permanece novo,

são francesa pertence a Claude Larre e Elisabeth Rochat de la Vallée,

como se tivesse acabado de vir da pedra de amolar.

é a leitura e os comentários que sobre ele tecem estes dois sinólogos.

Cada articulação tem um espaço vazio,

Fazendo apelo a obras anteriores e posteriores à de Chuang Tsé, de-

o gume da faca não tem espessura.

sig-nadamente Tao Te King, de Lao Tsé, e Huainanzi, tratado eclécti-

Se se insere aquilo que não tem espessura

co do século II AC, escrevem:

onde um vazio existe

Aquele que sabe ver e encarar as coisas ou os seres tais como

o gume tem todo o espaço para se mover

eles são, no seu modo de ser, habita a realidade. Ele conhece as es-

com inteiro à vontade.

truturas naturais que determinam as formas vivas e o seu destino.

É assim que após dezanove anos,

Visionário, não lhe falharia uma via de acesso, uma passagem

o gume da minha faca

no que aos olhos de um neófito aparece como uma massa compacta

está novo como à saída da pedra de amolar.

de matéria, tendo forma e visibilidade, mas que, realmente, é com-

Somente, cada vez que chego a um nó,

posta e sustentada por aquilo que não tem forma nem visibilidade: o

XX

pondero a dificuldade.

vazio. O vazio não é uma ausência. É o conjunto das comunicações e

112

Contenho-me e concentro-me,

dos movimentos de sopros; onde os sopros passam, passam facilmente


os Espíritos, se lhes não pesar o fardo de uma conduta desviante.

tais, que, qual corda violentamente esticada, se rompe o Arco de Vida.

Onde passam Espíritos e sopros, passa aquilo que tem a mesma sub-

Os maus talhantes trabalham com demasiada força e apres-

tileza: o gume da faca. Ding é um Mestre do vazio.

sa-damente; agridem o boi; precipitam-se, sem se dar ao trabalho de

O gume não tem espessura: se se afia uma lâmina, o seu fio

olhar ou escutar. As suas facas caem sobre um osso no qual se par-

é quase imperceptível. Mão e coração podem tornar espesso o gume

tem. Actuam não importa como, sem respeitar as linhas de força das

pela ideia grosseira que dele se tem, ou pela incapacidade de asse-

estruturas naturais, por vezes, guiados exclusivamente pela oposição,

gurar sem solução de continuidade o encadeamento do coração, do

atraídos pela resistência. Talvez evitem os grandes escolhos e os gra-

braço, da mão, da faca e das vias oferecidas na espessura das carnes

ves erros, mas nunca os atritos que desgastam e fazem envelhecer

e no oco da articulação.

prematuramente. Eles embotam a sua faca; enfraquecem a acutilân-

Com igual facilidade, o grande pintor empunha a brocha ou

cia do seu gume; perdem a clareza do seu espírito e a vitalidade do

o pequeno pincel de três pelos para transcrever o Universo em cada

seu corpo; inconscientes dos pequenos estragos, nem se preocupam

uma das suas telas.

em encontrar-lhes remédio, nem em corrigir-se, tomando-se por sá-

Informado pelos seus Espíritos, a imperceptível passagem tor-

bios quando não chocam com um grande osso. Eles não durarão.

na-se numa grande fissura e o ínfimo orifício numa grande cavidade.

Ding utiliza o mesmo cutelo desde há dezanove anos, sem es-

A faca passa pelas vias naturais da organização viva. Ela desliza sem

tragar o seu gume; a perfeição do seu gesto evita todo o choque, to-

raspar, fazendo ‘huo’ e ‘xiang’, não tocando as paredes, não se gas-

do o esforço. A lâmina é a nossa vida: não a desgastemos, nem a for-

ta, encontrando sempre a enfiada das aberturas à sua frente, jamais

cemos; conduzamo-la para onde ela se dirige por si mesma; e não fa-

entra em choque onde não há acesso e, portanto, não se parte so-

çamos contra nós próprios o que não ousaríamos fazer a outrem.

bre um osso ou sobre um tendão inesperado.

Evitemos os confrontos, os conflitos, as rivalidades e as provas de for-

Como a água, que é leve e se adapta, insinua-se por todo o lado sem oferecer resistência e à qual nada pode resistir. (…) A água é modelo de vida. A faca é uma metáfora da vida pessoal.

ça. Para quê esgotar antes do seu fim uma vida para a qual não existe uma pedra de amolar que a possa regenerar! Ding sabe durar; ele tem a “Longa vida e a visão perene”. Dezanove anos são disso símbolo. Se adicionarmos Dez, número do

Os talhantes inábeis gastam ou partem a sua faca, tal como

homem na sua perfeição, a Nove, número dos sopros que formam

aqueles que, não sabendo estimar a vida, a dissipam ou a destroem.

territórios organizados, obtém-se Dezanove. Dezanove exprime a per-

As duas maneiras de interromper prematuramente a vida consistem

feição de actividade e de governo a partir de uma organização cen-

em delapidar a sua essência e os seus Espíritos, tanto por fricções con-

tralizada e de uma autoridade bem centrada62. Atribuindo ao núme-

tínuas e conflitos, como por choques com o que se viu mal ou mal

ro Dez a totalidade de um ser composto, tomado na sua unidade, e

XX

calculou; ou então em se submeter a um esforço ou a uma tensão

ao número Nove, a organização dos múltiplos elementos deste ser,

113


obtém-se dezanove: na sua coesão de conjunto quase indistinta, to-

mesmo um pai pode ensinar isto a um filho.

dos os elementos da composição são conhecidos; a decomposição

E concluem:

não impede a manutenção da Unidade.

O vazio é a coisa mais bem partilhada e a mais necessária do

Tudo o que deixa rasto mostra que ele não foi capaz de ser

mundo. Nenhuma actividade do coração ou da mão pode efectuar-se

subtil e não foi capaz de passar sem raspar, sem deixar um pouco de

sem o vazio, sem o espaço livre. O cap. 11 de Lao Tsé repete-o por

si mesmo. O mau condutor deixa traços de tinta nas paredes da sua

três vezes. O mesmo se passa com o Céu, com a Terra e com o Homem.

garagem; os dirigentes medíocres multiplicam leis e decretos e can-

O vazio é disponibilidade e possibilidade. O agir que ele permite é na-

sam--se a explicá-los e a justificar-se.

tural; aquilo que se faz, faz-se por si e nada ofende. Mas é preciso

“Os soberanos, no Tempo da Grande Virtude,

aceitar a submissão a este natural, a limpeza até ao osso, a desagre-

Da sua existência os súbditos mal se apercebiam…”

gação, para realmente manter a sua vida. Porquê? Porque o vazio é o

(Lao Tsé 17)

agir natural...63

“Quem bem caminha não deixa rasto” (Lao Tsé 27)

Alonguei-me na transcrição do texto de Claude Larre, padre jesuíta, professor no Instituto Ricci de Paris, e de Elizabeth Rochat de

Recorrendo a uma outra obra, o Huainanzi, cap. II, que resume a "arte de Ding", os dois sinólogos passam a citar: Tu, o talhante, esquartejaste numa manhã nove bois e a tua faca podia ainda rapar os pêlos. Ding, o cozinheiro, serviu-se da sua faca durante dezanove

la Vallée, autora de numerosos textos filosóficos, dada a sua enorme riqueza. Ele transmite-nos uma reflexão sobre a arte de viver, em pleno centro da Via (Do), curiosamente, muito próxima da que, vários séculos depois, Miyamoto Musashi, veio a fazer.

anos e o gume continuava ainda como se acabasse de ser aguçado.

A via do Budo não é como a da Vida? Quanto mais procura-

Como era possível? É que eles moviam-se livremente nos in-

mos mantê-la de qualquer forma e a qualquer preço, mais a perde-

terstícios de numerosos vazios. Se o compasso e o esquadro, a agulha e o fio são os instrumentos da habilidade, eles não constituem a sua razão de ser... O bom artesão acciona sucessivamente as molas que os in-

mos. Não seria melhor protegê-la com subtileza e respeito? Neste estudo, a reflexão sobre o vazio não poderá em caso algum evocar as diferentes correntes de pensamento relativas à "noção do vazio".

fluxos libertam; entrincheirado no Yin, guiado por uma percepção

Através do Budismo, a lógica do vazio defendeu diversos con-

confusa, ele penetra a maravilha no Obscuro. Em total acordo com

ceitos. Enquanto na escola do pequeno Veículo (Hînayâna), o vazio

XX

os Espíritos, mão e coração movem-se livremente entre os incontá-

era um atributo só das pessoas, já na do grande Veículo (Mahâyâna)

114

veis vazios, sem nunca serem parados pelos limites dos seres. Nem

o vazio era extensível a todas as coisas. Em todas as disputas orató-


rias, os adeptos do Mahâyâna diziam aos membros do Hînayâna: "Para vós, todas as coisas são como um tonel vazio. Para nós não há toneis".

Um velho Mestre chinês, encontrando um jovem pintor na floresta, perguntou-lhe:

Os praticantes ocidentais do Budo não estão sensibilizados à

— Sabeis pintar?

mística de uma vacuidade espiritual. Frequentemente, confundem "vazio" com o nada ou o espaço que nos rodeia. E, no entanto, numerosas referências ensinam-nos o vazio. Ela, a vacuidade, não é estranha ao pensamento do Ocidente. Símbolos, parábolas, místicos, artistas tentam apoiar este objectivo.

— Sois um velho camponês ignorante. Que sabeis de pintura? — Como podeis conhecer o que trago no coração?, replica o Mestre. O jovem pintor sentiu-se envergonhado e surpreendido.

A afinidade espiritual que liga os investigadores tanto orien-

A primeira condição para pintar — diz o Mestre — é seguir

tais como ocidentais faz com que todos eles saibam que o "vazio es-

seis regras essenciais e estas mesmas regras aplicam-se também à

piritual" não é o nada, nem a angústia. Falar do vazio é um desafio

Arte do Sabre.

àquilo que é objectivo, ao próprio bom senso das certezas quantas vezes provisórias...

A primeira chama-se Chi65 (espírito ou energia vital); a segunda Yun (correspondência ou harmonia); a terceira Si (pensamento ou pla-

"Procurar uma imagem do vazio é um non-sens; mas a conver-gência de várias imagens pode indicar o sentido, o bem fundado de uma pesquisa que escapa assim ao absurdo."

64

No Oriente, falar do inefável não é um acto contraditório. O uso das imagens não é a ilustração do que já existe, do que é dado, garantido, mas o meio de fazer aparecer o que é bem real e não dei-

no - desígnio); a quarta Sing (efeito de paisagem); a quinta Bi (pincel); a sexta Mo (tinta). O espírito permite ao pensamento seguir os movimentos do pincel e fixar sem hesitação a forma das coisas. Das formas correctas e perfeitas, resulta a harmonia. Destas formas, o pensamento faz surgir o essencial.

xa de advir. Esta lógica poética revela a presença e a força irradiante

A paisagem constrói-se observando a lei das estações. O pin-

de uma realidade que permanece misteriosa porque a sua plenitude

cel deve seguir regras, permanecendo contudo livre e espontâneo no

é inesgotável.

seu movimento, de modo a que todas as coisas pareçam animadas e

As imagens do vazio sugerem ao espírito que esta vacuidade é efectivamente plenitude.

movediças. A tinta pode ser carregada ou clara, espessa ou diluída conforme a profundidade e a doçura das coisas; a cor deve ser de tal modo natural que não pareça ser o resultado dos pincéis. Um pintor perfeito, realizado, não faz nenhum esforço para

.4

Histó ria chinesa d a din astia Song (O encontro da “Arte do Movimento com o pincel do pintor”)

exprimir espontaneamente as variações da Natureza. Um pintor pro-

XX 115


fundo penetra com o seu pensamento a Natureza e cada coisa que existe no Céu e sobre a Terra. O pincel entregue a si mesmo (sem pensamento) caracteriza o pintor hábil. Ele diz que a realidade não é suficiente para ele. Mas ele nada sabe do movimento espontâneo nem do Chi.

41. Chuang Tsé escreve-se, na norma francesa, Tchouang Tseu, na norma britânica, Chuang-tzu e, na transcrição oficial chinesa Pinyin, Zhuangzi. Sobre este filósofo chinês taoísta, v. mais adiante.

53. Sukko: macaco mítico com braços muito curtos. O mito do macaco pode resumir-se como segue: trata-se de um mágico malicioso, que dissimula os seus poderes, o primeiro dos quais é a inteligência, sob aspectos caricaturais.

42. Shûnya é um termo filosófico do sânscrito que designa a «vacuidade». Nós poderíamos traduzi-lo aqui por «espírito apropriado». Esta sabedoria adquire-se intuitivamente após uma prática do Budo rigorosa. A prática do Sabre «imutável» significa o alto grau de mobilidade em torno de um centro imutável.

54. Miyamoto Musashi, op. cit. 55. Miyamoto Musashi, op. cit. 56. Miyamoto Musashi, op. cit.

43. Transcrito por D. T. Suzuki, Essais sur le bouddhisme Zen, Paris, Albin Michel, 1934, reed. 1972, pp. 362-363.

57. Neste caso, ao falar de Ma, trata-se do intervalo temporal numa cadência.

44. Idem, p. 363-364.

58. Miyamoto Musashi, op. cit.

45. Miyamoto Musashi, Ecrits sur les cinq roues (Gorin no sho), Paris, Maisonneuve et Larose, 1977.

59. Bushi significa Samurai. 60. Miyamoto Musashi, op. cit.

46. Miyamoto Musashi, op. cit. 47. Ou ainda, em Aiki Do, para aquele que agarra (Aité). Compreender como se agarra um punho exige, por vezes, numerosos anos. E o mesmo se passa, no Judo, com a pega do kimono (Kumi Kata). 48. Miyamoto Musashi, op. cit. 49. Miyamoto Musashi, op. cit.

61. Tanto a epígrafe como o poema de Chuang Tsé são retirados de Claude Larre e Elisabeth Rochat de la Vallée, De Vide en Vide. Zhuangzi – La conduite de da la vie, cit., p. 7 e pp. 37-39. 62. Em Zhuangzi, cap. 11, Huangdi, o Imperador Amarelo, governava há dezanove anos quando se faz admoestar pelo eremita Guang Cheng, ao qual tinha ido pedir conselho. Após três meses de reflexão e de purificação, Huangdi regressa a Guang Cheng a fim de receber o seu ensino (A nota é de Claude Larre e E. Rochat de la Vallée).

50. Em Té-Katana: Té significa mão; Katana - Sabre. 63. Claude Larre e Elizabeth Rochat de la Vallée, op. cit., pp. 55-59.

XX

51. Miyamoto Musashi, op. cit. 64. Maurice Cocagnac, Le Zen, cit., p. 134. 52. Miyamoto Musashi, op. cit.

116

65. Em japonês Ki.


XXI

o mestre, artesão sem objecto

Ensinar a Arte do Movimento é coisa grave. Está-se menos na zona do corpo do que no domínio do espírito. O corpo do Mestre é um lugar de acto de conhecimento e sabedoria, de contacto e de amor, de mistério.

O Mestre faz propostas de movimentos que, em princípio, não estão repertoriados no Go Kyo66, e que é preciso enunciar e descre-ver, pelas palavras e pelo acto do corpo. Quanto mais avanço no meu próprio trabalho, mais penso que a descrição oral é importante. Ela é um meio de afastar uma reprodução mimética, mecânica e mecanicista do movimento, e um instrumento para orientar a

O lug ar d a acção , d o acto ...

pesquisa no sentido de uma verdadeira criação, do domínio do uso do movimen-to e no da tomada de consciência do corpo através do

O Mestre da Arte do Movimento é um homem que ensina

movimento.

através da sua acção, rodeado de praticantes que não são passivos,

Mas o momento em que o enunciado passa pelo corpo não

mas observadores-executantes. Não são consumidores passivos, fa-

é menos importante. É-o até talvez mais, no caso em que nos servi-

zem parte do jogo. Nele contam participar e dele tirar proveito. O

mos do enunciado oral, porque mais raro e mais esperado pelos pra-

Mestre deve estabelecer com eles uma dupla relação de parceiro/ exe-

ticantes.

cutante na qual o seu corpo é o mediador privilegiado. Ele vai tentar conduzi-los ao longo de uma viagem, através de um caminho. É uma experiência delicada.

Este momento é muito particular. Não se trata de executar um movimento que os outros tentam imitar ou reproduzir por mi-

XXI

metismo. O Mestre não pede que se identifiquem com ele, nem que

117


reproduzam diante de si a sua imagem como num espelho, mas que

a reflexão. Pode desfrutar-se a sua acção, o que nem sempre aconte-

encontrem a sua própria identidade através de um movimento que

ce num trabalho livre. Esta absorção na acção (que não é projecção

ele propõe, que ele enuncia com o seu próprio corpo e de que os pra-

da acção em si mesma) está próxima da do artesão que roda o seu

ticantes vão tentar apropriar-se.

pote, do pintor que pinta a sua tela e... que frequentemente força o

Um verdadeiro Mestre não se projecta, não se exibe.

silêncio...

Não é ele que vai em direcção aos outros, mas são os outros

Mas o Mestre do Movimento, que fabrica ele? Nada. O mo-

que vêm a si. O olhar dos praticantes lêem o corpo do Mestre atra-

vi-mento que ele indica não é feito para durar. Não é uma coreogra-

vés do "movimento" — o Mestre enuncia o movimento com o seu

fia. É apenas uma efémera proposta que em breve desaparecerá. Tal

corpo.

como o mineiro cavando a sua galeria, o poceiro furando o seu poço, Os praticantes mais antigos como que o trespassam e lhe fil-

tram o movimento. É um olhar de "conciliação" com ele. Em contrapartida, o Mestre fala em particular a cada um dos que o rodeiam.

o Mestre como que escora o espaço, na impossibilidade do recomeço ou da expansão do movimento, o que, perante ataques fortes, torna o gesto simultaneamente frágil e definitivo. Ele é um artesão sem objecto. É uma consciência em acção.

O Mestre não submete o seu movimento a um espartilho, ele evolui em liberdade no espaço ilimitado (Aiki Nage).

O Mestre é um livro aberto, uma memória em total e contínua transformação. Ajustamento, actualização, estaleiro.

Intimidade da presença. Para entrar neste jogo, é preciso atingir um estado de fazer sem fazer, que é uma abstracção do Eu.

XXI 118

O que ele contém não é definitivo, mas evolui com o trabalho e com o tempo. A idade tem o seu peso nesta necessária adaptação

O Movimento que se enuncia e que o corpo descreve não é

ao instante, fonte de riquezas e não de dificuldades. Livro aberto na pá-

passível de artifícios ou emendas; aparece em estado puro, sem es-

gina de hoje. O importante é o que se vive e o que se diz no dia a dia.

córias, nem romantismo. O bom executante no tatami tende a tor-

Os anos de estudo, as práticas, as técnicas, as escolas, as ex-

nar-se tecni-cista, a carregar o traço, a sobrecarregar o movimento.

periências marcaram este corpo, mas já não são senão vestígios.

O Mestre, ao contrário, joga no menos. Menos intenção, portanto,

Latentes, aparecem no momento próprio. Por vezes, vindo de muito

menos tensão e menor exteriorização. O corpo do Mestre procede

longe, emergem numa subtil conexão com coisas de outrora. Estes

por omissão, e, contudo, ele está ali na evidência do seu enunciado,

conhecimentos antigos não se impõem a um Mestre que também não

sem emoção, sem paixão.

os impõe aos outros. Eles não são o seu principal trunfo e apenas in-

Sobre o tatami, o praticante não saberá por si próprio se pra-

tervêm como uma espécie de auxiliar de memória que corrobora a ex-

ticou bem ou mal. A memória da sua prática é frequentemente fal-

periência. O Mestre mostra mais experiência que saber. Sendo um prá-

sa.

tico, não impõe uma ciência, uma escola, um estilo. Antes propõe uma Em pedagogia, sabe-se o que se faz. Dá-se uma pausa para

prática.


No plano puramente físico, ao seu corpo apenas resta aquilo

gir o outro. Este tocar não é nem demasiado doce, nem demasiado

que é estritamente necessário ao movimento profundo. Pouco a

duro, nem adulador, nem reprovador. Não afaga com demasiada sua-

pouco, tudo o que é superficial se desvanece. Fica qual planta poda-

vidade, nem corrige com excessiva dureza. Os grandes Mestres do

da. O Mestre está em posição de aprender a cada instante. O seu en-

Movimento dizem que quando se pousa a mão sobre alguém, não é

sino ensina-o.

apenas o corpo que se toca, mas também a alma. O tocar guia e orien-

É preciso muito abandono para atingir este estado. "Está-se no autêntico"!

ta o movimento de um músculo, de uma articulação, de um segmento, não é uma manipulação.

Esta transformação deve imperativamente desembaraçar-se a todo o momento da fatalidade do "estático".

O contacto não é amoroso, nem terapêutico. Ele não deve magoar, o que correria o risco de criar ainda mais tensão e provocar

Um Mestre não se satisfaz com a acumulação do saber. Deve

bloqueios e rejeição. O Mestre não é um terapeuta. Não tem receitas

entrar no caminho da metamorfose. Assim, permanece na constan-

preconcebidas, poções mágicas, remédios miraculosos. Também não

te experiência da intuição, no seu sentido de conhecimento claro,

é um treinador. O que ele propõe não é um training, palavra horrível,

imediato, da verdade, sem auxílio do raciocínio. Não concebe a prio-

porque veículo de uma velha herança desportiva totalmente inade-

ri, inventa no momento.

quada à Arte do Movimento. O Mestre age na qualidade. Não apela

Vai direito ao objectivo.

à boa vontade, à coragem, à resistência. Não é um domador. Não uti-

Picasso diria: "Ele não procura, encontra". É um corpo em es-

liza o chicote, nem o torrão de açúcar.

pírito.

O seu modo é o do tacto, do contacto, da escuta objectiva. A sua voz segue o diapasão do seu corpo. Usa mais a sugestão do que a imposição. Apela às imagens que abrem as portas ao movi-

A conexão, lug ar de con tacto e de amor

mento. Corpo a corpo pacífico, sem complacência, nem excessivo ri-

O que se ensina é menos importante do que aqueles a quem se ensina. Prioridade, portanto, à relação com os outros. A presença do nosso corpo pode tornar-se ambígua.

gor. Trata-se de uma relação de confiança e respeito mútuos. Aqui, estamos de novo no campo da intuição, mas no seu sentido segundo, de faculdade de prever, adivinhar, prevenir, como

Um corpo dirige-se a um outro; a proximidade dos dois, o seu

se evita um acidente. O corpo do Mestre, adivinho, detector dos pos-

contacto, deliberado ou fortuito, cria uma intimidade que importa

síveis, é um corpo de presença e de atenção. Ele é travessia. Não se

avaliar, medir, ajustar e explorar sabiamente.

dirige à emoção. Vai direito à consciência. Fala à escuta.

O tocar, se tocar existe, é subtil. O mais profundo do homem é a pele, diria um especialista, e quem nela toca corre o risco de atin-

XXI 119


O corpo do Mestre, lugar de alquimia poética e de metamorfose

Aprende sem cessar consigo e com os outros. Um discípulo dizia ao seu Mestre: "A minha arte encontra novas fontes de inspiração, ao ver-vos exercer a vossa". E o Mestre, sorrindo, respondia-lhe:

Do movimento proposto, indicado, descrito, os movimentos do Mestre sugerem o todo e as partes, a génese e o resultado, o den-

"A minha arte encontra novas fontes de inspiração, ao ver-vos exercer a vossa".

tro e o fora, as raízes e a flor. Ele dá o múltiplo no um. Revela o inte-

Ele é o aprendiz-sábio. Não tem o espírito do especialista,

rior e o exterior, revela, como o mestre de Nô de que Zeami fala, a

centrado no ter e no saber. Chega a acontecer-lhe desejar possuir me-

beleza visível da flor — hana — e a beleza invisível ou secreta, con-

nos para ser mais. A intuição condu-lo à essência do devir e à cons-

tida ou escondida, a beleza profunda — yûgen.

ciência do que é.

A beleza do Mestre, que emana da idade, é a beleza das coi-

Arquitecto do vazio, escultor do invisível, faz vibrar a imobili-

sas vivas que chegam ao seu termo, a beleza tranquila da velhice, a

dade, faz deslocar o espaço; ele é demiurgo. É o mensageiro do enig-

que no Japão se chama rogaku.

ma. O corpo do mestre é então a simples projecção do seu espírito. O

Por uma subtil combinação — yang/ying — ele possui ao mes-

seu pensamento faz-se movimento e o seu movimento pensamento.

mo tempo a força viril e o encanto feminino. Aproxima-se da graça.

É um lugar de passagem, um não-lugar. E se se recorrer à imagem do

O que irresistivelmente atrai neste corpo em acção: a certeza

pedagogo, daquele que conduz a criança na escola, então ele é a crian-

de que quem o vê experimenta ser conduzido para um lugar primor-

ça, é o caminho, é a escola. É o príncipe dos principiantes.

dial e assiste ao nascer do movimento. Trata-se de criação. A intensidade da solidão em que ele se move dá uma força incomensurável ao seu acto; o movimento é então a única coisa que existe, como se ele jogasse todo o seu ser. Situa-se totalmente no instante. Não recita um texto, nem elabora um texto para o dia de amanhã. Pleno de passado, projectado para o futuro, o discurso que exprime é fugaz, pertence por inteiro ao tempo do presente. É uma espécie de meditação. Assim, o corpo do Mestre do Movimento é um corpo de acto, de pensamento, de amor e de mistério. É um mestre construtor,

XXI

mas de uma maestria singular. É um mestre construtor sem constru66

120

ção.

No entanto, uma grande maioria de professores ensina movimentos repertoriados, onde apenas é mudado o encadeamento...


g Ai Ki

glossário

Aikikai

Ai significa Harmonia e Ki significa Energia. Poderíamos dizer que são

Mestre Morihei Ueshiba, após ter sido reconhecido pela Dai Nippon

os elementos base de toda a arte do movimento.

Butoku Kai, começara a ensinar o Aikido e fundara o Dojo Kobukan

Aiki Do

em 1931. Em finais dos anos 50, Kisshômaru Ueshiba, terceiro filho

Termo japonês significando literalmente "Via de combate da divina

de Morihei Ueshiba, cria a Aikikai, Dojo Honbu, com sede em Tóquio,

harmonia". É uma "Via marcial" fundada em 1936 por Morihei

que sucede ao Dojo Kobukan. A Aikikai funciona também como cen-

Ueshiba, que se caracteriza pela sua enorme flexibilidade e pelo seu

tro da Federação Internacional do Aiki Do.

carácter defensivo e não violento. Visa, acima de tudo, o desenvolvimento espiritual de quem o pratica. Aiki Do de Conciliação Aiki Do que privilegia a comunhão com o Universo. Aiki Do de Consolidação Aiki Do em que predomina a noção física desportiva e em que se esquecem os princípios espirituais da Arte. Aikidoca Praticante de Aiki Do com vários anos de experiência.

Aiki Nage Projecção que obedece aos grandes princípios do Ai Ki, em que se conjugam a harmonia (Ai) e a Energia (Ki). Aité Literalmente, é a mão que está perante mim. Na pedagogia do Aiki Do, é utilizado para designar o parceiro. Asana São posturas do Yoga que devem ser executadas e mantidas com conforto e firmeza (sukha + stira).

g 121


Bi Termo chinês que designa pincel. Bokken Sabre de treino japonês feito de madeira dura. Brahman

Chuang Tsé ou Zhuangzi É uma das principais e mais antigas obras taoístas que tem por título o nome do seu autor Chuang Tsé que viveu no Norte da China, no século IV AC. Esta obra, também conhecida por Nan-hua chenching ou Nan Houa Tchen King (O Cânone Sagrado de Nan Hua), compre-en-

Termo sânscrito que significa sagrado. De forma simplificada, pode-

dia, sob a dinastia Han, 52 capítulos. Hoje, só engloba 33. É formada

mos dizer que é o Deus supremo do hinduísmo primitivo, criador do

por histórias simbólicas, fábulas de fundo moral e debates contradi-

mundo, dos deuses e dos seres.

tórios. A ortografia do título Chuang Tsé é variável: Chuang Tsé,

Buda Termo sânscrito, que significa Sábio, Iluminado. Nome pelo qual ficou conhecido, entre outros, o príncipe Siddhartha Gautama, que

Tchouang Tseu, Tchouang Tzu, ou ainda, na transcrição oficial chinesa, Pinyin, Zhuangzi. O mesmo acontece com o nome do autor. Cinestesia

criou uma nova religião e filosofia, o budismo. Originário do Norte da

Vem do grego Kínesis. É o sentido pelo qual se percebem os movimen-

Índia, viveu no século VI AC.

tos musculares, o peso e a posição dos membros.

Budo

Dai Nippon Butoku Kai

Bu significa marcial e Do via. Budo é a "Via marcial", cujo objectivo

Associação criada em 1895 e sediada em Kyoto que, actualmente,

é contribuir, pelo treino no combate com ou sem armas, para o de-

agrupa e supervisiona as artes marciais japonesas. Tem como presi-

senvolvimento espiritual daqueles que o praticam.

dente o príncipe Higashi Fushimi, tio do actual imperador. A sua Divisão

Bushi Palavra japonesa que significa guerreiro. Chitta bhiumi Modalidades da consciência ou planos mentais. Viyasa distingue cinco estados da consciência: Kshipta (dispersão); Mûdha (confusão); Vikshipta (estabilidade imperfeita); Ekagra (fixação); Nirodha (imobi-

Inter-nacional é presidida pelo Mestre Teshin Hamada, 9º Dan, Hanshi. Dan Grau, graduação. De Ai Espaço harmonioso do encontro em que tudo se decide. Dharana

li-dade). Apenas os dois últimos pertencem ao Yoga, isto é, decorrem

Termo sânscrito que significa fixar a mente num só ponto. Corresponde,

da meditação (Dhyana).

aproximadamente, a concentração. Dharana-Yukta Termo sânscrito que designa o processo pelo qual é dada uma direc-

g 122

ção precisa à mente, depois de esta se ter libertado de todas as distracções.


Dharma

Geiko

Termo sânscrito, significando, literalmente, aquele que suporta. A Lei

Tipo de prática em que a concentração desempenha um papel fun-

cósmica, a Ordem universal ou Ordem transcendental a que os ho-

damental.

mens estão sujeitos. Designa, por extensão, a doutrina do Buda, sendo Buda uma emanação do próprio Dharma. Dhyana (ver Zen) Do Termo japonês que designa a Via, o Caminho. Equivalente ao chinês Tao ou Dao. Dojo

Go Kyo Termo japonês que designa o conjunto das técnicas base do Aiki Do. Gorin no Sho Obra também conhecida por "Escritos das Cinco Rodas" ou "O Livro dos Cinco Anéis", que condensa o ensino do Mestre de Sabre Miyamoto Musashi (1584-1646). "Grande Veículo" (Mahâyâna) Corrente budista, que remonta ao século I ou II DC, e que poderia

Palavra japonesa significando literalmente "o lugar da Via". O dojo é

traduzir-se por "grande meio de progressão". Ela virá a ser dominante

a sala onde se praticam as artes marciais.

no Tibete, Mongólia, China, Coreia, Japão e Vietname.

Dojo Budokan de Portugal Foi o primeiro Dojo fixo criado em Portugal por George Stobbaerts, em Cascais, em 1971. Nele se ensinaram e praticaram a meditação Zen e várias Artes Marciais, concretamente, Kendo, Iai Do e Aiki Do. Ekagrata Modalidade da consciência que conduz ao estado de concentração (Dharana) Escola Ten Chi International Associação criada em 1992 por Georges Stobbaerts e por alguns dos

Haku (ver Ko Kyu) Hammi Termo japonês que designa posição de guarda de perfil. Há duas posições de guarda deste tipo: Migi Hammi (posição de guarda à direita) e Hidari Hammi (posição de guarda à esquerda). Hana Beleza visível. Hara

seus alunos espalhados pelo mundo. Sediada na Várzea de Sintra, é

Termo japonês que remete para a noção de centro do corpo, mas que

aqui que se situa o seu principal Dojo. Nele se praticam, regularmen-

não faz obrigatoriamente referência à geometria.

te, a meditação Zen, Yoga, Tenchi Tessen e Aiki Do. Durante os está-

Haragei

gios internacionais, está aberto à caligrafia e ao estudo das vozes,

Expressão japonesa que vem do termo Hara. Corresponde a um es-

bem como à prática de outras artes marciais: Iai Do, Kendo e Jiu Jitsu.

tado de maturidade em que a sensibilidade e a Energia têm a possibilidade de se manifestar a qualquer momento.

g 123


Hikaï Tanden (ver Seika Tanden) Hyoshi Termo japonês. Corresponde a algo que se cultiva e que só pode ser adquirido através de uma prática constante e regular. Huainanzi

XIX por Jigoro Kano. Cedo se tornou modalidade desportiva de competição. Kaiten Nage Projecção de Aiki Do em que a energia do ataque é absorvida por um movimento de rotação horizontal, a que se segue um movimento de

corte do príncipe Liu An, da casa Han, rei de Huainan, de 164 a 123

rotação vertical que gera o desequilíbrio.

senta as teorias filosóficas e científicas da época Han. Iai Do Termo japonês significando literalmente a "Via do Sabre e da bainha". Ikebana Arte de arranjos florais. Irimi Nage

Kake Execução, o momento da projecção. Kakemono Rolos manuscritos. Kalaripayat Arte marcial, originária do Sul da Índia, praticada nos meios camponeses. O termo vem de duas palavras utilizadas em malaiala, uma lín-

Técnica de Aiki Do que envolve a noção de entrada no campo do par-

gua do Kerala, em que Kalari significa campo de batalha e payat prá-

ceiro e a sua satelitização, num movimento que pode ser centrífugo

tica. Os textos mais antigos que lhe foram consagrados encontram-se

ou centrípeto.

escritos em tamoul primitivo, língua cujos primeiros traços remontam

Issoku

ao século III. Mas o Kalaripayat é mais antigo, devendo existir há mais

Ângulo morto.

de três mil anos. À semelhança da arte do Vajramukti, constitui a es-

Jô Bastão de madeira de perto de um metro e meio. Jo Ha Ku Jo significa lento; Ha médio; e Ku rápido. Ju no Geiko Praticar com leveza.

124

À letra a "Via da flexibilidade". Arte marcial criada no fim do século

Tratado ecléctico do século II AC, compilado por mestres taoístas na

AC. A obra retoma o pensamento de Lao Tsé e de Chuang Tsé e apre-

g

Judo

sência das Artes Marciais actuais. Pensa-se que terá sido levada para a China por Boddhidharma. Kamae Posição de guarda, que pode ser de três tipos: Jodan (guarda alta), Chudan (guarda média), Gedan (guarda baixa). O Kamae é um estado de espírito que envolve a Energia e a percepção.


Kiai Kanji Caracteres sino-japoneses utilizados para transcrever a língua japo-

Termo japonês que significa encontro do espírito. O Kiai é o nome do grito lançado no momento em que se desfecha um golpe.

nesa. Enquanto que, em chinês, cada caracter representa uma palavra ou uma ideia (ideograma), em japonês, estes caracteres foram uti-

Ko Kyu

lizados para representar quer uma ideia, quer um som da língua ja-

Termo japonês que designa respiração. Vem de Haku (Ko) que signi-

ponesa.

fica expirar e de Suu (Kyu) que significa inspirar. Karaté Do

A Via ou Arte da "mão vazia", originária de Okinawa. O Karaté tal como hoje o conhecemos é essencialmente o produto de uma síntese que teve lugar no século XVIII entre a arte do "Te" criada em Okinawa, as artes chinesas do box do templo de Shaolin e de outros estilos do Sul da China, que então eram praticados na província do Fu-Kien. Karateca Praticante confirmado de Karaté. Kata Em japonês, significa "forma". É o conjunto de movimentos codificados através dos quais se estuda a essência de uma arte. Katsu Hayabi Estado de fusão com o Universo. Ken Do

Kokyu Ho Exercício de respiração. Kokyu Nage Técnica de Aiki Do baseada na noção de respiração/movimento. Koshi Nage Projecção de anca. Kubi Nage Projecção pelo pescoço. Kumi Kata Pega do kimono no Judo. Kyu Do A "Via do Arco". Arte em que o objectivo do archeiro é fundir-se com o alvo numa atitude inspirada pelo Zen. Distingue-se do Kyu Jutsu, que é essencialmente uma arte de combate. Ma

A "Via do Sabre". Forma moderna da esgrima japonesa, em que a

Intervalo, distância espacial. Numa cadência, também pode designar

arma, o shinai, é um sabre de bambu com várias fendas longitudi-

intervalo temporal.

nais.

Makyo Ken Jitsu

Termo japonês que significa literalmente a "Arte do Sabre". Ki Do chinês Chi. Energia, sopro, força vital ou princípio vital.

Termo japonês que significa, literalmente, fenómenos demoníacos. É o conjunto de sensações ilusórias de toda a espécie que podem mani-festar-se durante a prática do Zazen. Mo

g 125


Termo chinês que designa tinta. Naginata Alabarda.

Ni Kyo É uma técnica de imobilização do Aiki Do, que incide sobre as articulações do pulso, cotovelo e ombro. Nitô Ryu Escola dos dois Sabres, um grande e um pequeno, criada por Miyamoto Musashi (1584-1646). Nô

Treino livre.

Rogaku Beleza tranquila da velhice. Ryo Te Dori Pega dos dois pulsos. Sabaki Esquivar, rodar. Sabre O Sabre, para os japoneses, tal como a espada para os cavaleiros oci-

tado e dançado, de influência budista e xintoísta.

dentais, era o símbolo de discernimento e de lealdade. O Samurai tinha dois sabres: um mais longo, o Katana, de 60 a 100 centímetros;

São duas maneiras diferentes mas complementares de executar al-

e outro mais curto, Shotô ou Wakizashi, com 30 a 60 centímetros.

gumas técnicas em Aiki Do. Omoté corresponde à fachada, ao que é

Desde tempos antigos, o gume (Hamon), o punho (Tsuka), a protec-

visível e mais imediato. Ura, ao invisível ou ao que permanece escon-

ção do punho (Tsuba) foram sendo objecto de cuidados especiais e re-

dido e na sombra. De forma simplificada, poderíamos dizer que uma

quintados que transformaram o Sabre numa obra de arte. Inicialmente,

técnica em Omoté é realizada pela frente do parceiro. Uma técnica

instrumento de morte, tornou-se no símbolo de protecção da vida. No

em Ura é executada pelo exterior ou por detrás do parceiro.

Japão, há três elementos preciosos – o Espelho (Sol), a Jóia (Lua) e o

"Pequeno Veículo" (Hînayâna)

Sabre (Relâmpago) – que são sagrados e venerados. De um ponto de

Corrente budista mais rigorosa, também intitulada Theravâda, ou a

vista simbólico, o Sabre passou a ser um meio de concentração e de

"via dos antigos", e conhecida pelo termo pejorativo Hînayâna. Ela

suporte à meditação, um instrumento de contemplação e dos "exer-

implantou-se sobretudo na Ásia do Sul e Sueste (Sri Lanka, Birmânia,

cícios paradoxais" (Kôan), uma fonte de procura interior. A posse de

Tailândia, Cambodja e Laos).

um Sabre (a não confundir com o Iaito, cópia de um Sabre real utili-

Prajnâ

126

Randori

Abreviação de "Sarugaku no Nô", forma aristocrática de teatro can-

Omoté/Ura

g

É na Índia a ciência da respiração.

zado na aprendizagem do Iai Do) é um verdadeiro privilégio e supõe,

Termo que no Yoga designa a intuição que capta ao mesmo tempo

para o praticante das Artes Marciais, um elevado nível na ciência do

a totalidade e a individualidade das coisas.

seu manejo.

Pranayama

Sankaku Tai


Triângulo recto que se forma quando, a partir da posição de Shizentai, se avança um dos pés.

Shin – Ghi – Tai Princípios que devem nortear a prática de uma arte e que significam, respectivamente, espírito, técnica e corpo. A aquisição do Shin é a mais longa.

Sankaku Tobi

Shio Nage

São, no Karaté, golpes com os pés sem pontos de apoio. A sua exe-

Projecção do Aiki Do, proveniente da Arte do Sabre, que envolve um

cução só se consegue através de uma ciência da marcha e de uma sá-

movimento de rotação do corpo e é executada nas quatro direcções.

bia deslocação do peso do corpo. Ela exige descontracção e um grande controlo da respiração. É uma técnica difícil, porque se bate simultaneamente com os pés e as mãos no mesmo salto. Flexibilidade e concentração perfeita tornam-se indispensáveis. San Kyo Técnica de imobilização do Aiki Do, que consiste na torção do pulso num movimento de espiral em direcção ao ombro. Satori Palavra japonesa que significa iluminação, revelação. Satsang Reuniões que investigadores espirituais e adeptos do Yoga realizam a fim de escutar o ensino de um Mestre. Seika Tanden

Shité Aquele que faz, que tem a iniciativa. Shizentai É a postura correcta em pé, natural, em que as pernas se encontram afastadas a uma distância semelhante à da dos ombros e em que os músculos estão totalmente relaxados. Shûnya Termo filosófico do sânscrito que designa a vacuidade. Si Termo chinês que significa pensamento, plano, desígnio. Sing Termo chinês que designa efeito de paisagem. Sukko

Termo japonês, correspondente ao chinês Chi Haï. É o centro de gra-

Macaco mítico com braços muito curtos. Na mitologia japonesa, tra-

vidade situado entre a terceira e quinta vértebras lombares da colu-

ta--se de um mágico malicioso que, sob aspectos caricaturais, dissi-

na vertebral ou cerca de 3 cm. abaixo do umbigo, ponto do qual sur-

mula os seu poderes, o primeiro dos quais é a inteligência.

ge a nossa Energia. Sekka Literalmente, pedra e faísca. Termo empregue por Miyamoto Musashi para designar o espírito e a técnica de um dos seus golpes de Sabre. Sen no Sen Previsão e antecipação da acção do adversário.

Tada Ima Significa apenas agora. Tai Sabaki Rotação que se faz lateralmente à distância do raio de acção dos braços do parceiro ou que se executa para nos colocarmos atrás do par-

g

ceiro, mas sem que este nos possa atingir. A um primeiro nível, é a

127


aprendizagem da espiral. Tantô Punhal de madeira.

Tao

Repetição de um mesmo movimento.

Waki Kamae Posição de guarda lateral.

princípio regulador do Universo. Segundo Marcel Granet, no fundo

Yin/Yang

de todas as concepções do Tao, encontram-se as noções de Ordem,

Yin significa literalmente a sombra. Yang significa literalmente a luz

Totalidade, Responsabilidade, Eficácia. Na versão chinesa do 4º Evan-

do sol. É a fórmula de todas as alternâncias que constituem o Cosmos

gelho (S. João), os missionários traduziram: "No princípio era o Tao e

e a nossa própria existência. São os princípios fundamentais e com-

o Tao era com Deus e Deus era Tao". Aqui, Tao é o Verbo, o Logos.

plementares do Universo. Yoga

Obra fundadora do Taoísmo, cujo título em Pinyin é Daode Jing e que

O termo vem de "jug" que significa segurar, ligar, manter sob o jugo.

em português significa Livro da Via e da Virtude. Livro célebre e cita-

O Yoga é a disciplina que tem como finalidade dominar os diversos

do desde o fim do século IV AC, é atribuído a Lao Tsé (literalmente,

elementos da personalidade. É uma das seis visões do mundo ou sis-

O Velho Mestre), que tanto pode ser uma figura lendária, como um

temas filosóficos (darshana) tradicionais da Índia.

personagem real. A obra é formada por uma sucessão de máximas e passagens versificadas, que, aparentemente, se destinavam a servir de temas de meditação. Marcel Granet confessa que este livro, "tra-

Yoga Nidra É uma escuta total (escuta do som). Yon Kyo

duzido e retraduzido, é precisamente intraduzível". Tem sido objec-

Técnica de imobilização no Aiki Do, que envolve a pressão dolorosa

to de inúmeras edições nas mais díspares versões.

sobre o nervo radial.

Tatami Tapete com que é revestido o Dojo de algumas Artes Marciais. Te Katana Fazer da mão sabre. Ten Chi Nage Técnica de Aiki Do. Literalmente, projecção Céu – Terra.

128

Uchikomi

Termo chinês de múltiplas significações. Princípio e Via de salvação,

Tao Te King

g

bastão ou o Sabre.

Tsuki Golpe directo e de frente que pode ser executado com o punho, o

Yûgen Beleza invisível, secreta, contida, escondida, profunda. Yun Termo chinês que designa correspondência ou harmonia. Zanshin Estado de vigilância constante e contínua. Zen Termo japonês do sânscrito dhyana, através do chinês Ch’an. Escola


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Edição Tenchi, 1992.

WESTBROOK, Adele and RATTI, Oscar, Aikido and the Dynamic Sphere.

STOBBAERTS, Georges, Nas passadas de Buda, Lisboa, EdiçãoTenchi,

An Illustrated Introduction, Boston, Rutland, Vermont, Tokyo, Tuttle

1992.

Publishing, 1970 (reeditado em 2000).

b 131


Após ter acendido a existência, é preciso a si voltar e sondar a própria natureza, é preciso viver a vida, tornar presente e permanente a consciência do ser.

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Deveria existir em qualquer parte, um lugar onde o desenvolvimento e progresso interior se fizessem na harmonia entre o corpo e o espírito. Um lugar onde as artes se reencontrassem, a fim de despertar as consciências. Um lugar dedicado a criar relações de fraternidade entre os homens e a fazer prevalecer a paz no mundo.

Foi a partir desta utopia que Georges Stobbaerts concebeu o Dojo Ten Chi (CéuTerra) na Várzea de Sintra. Em 1980, juntamente com alguns alunos, começou por plantar árvores e outras plantas de numerosas espécies, dispondo criteriosamente caminhos, muros de pedra, lagos, pequenas cascatas, e finalmente o pequeno e o grande dojo, transformando, com enormes esforços, um terreno árido de vários hectares num espaço harmo-nioso, guiado pelas linhas de equilíbrio que orientam os jardins orientais.


Um espaço coberto de 500m2 acolhe cursos regulares e estágios internacionais de aikido, yoga, zazen e tenchi tessen (a arte do leque). Tendo em vista uma perspectiva interdisciplinar, decorrem também seminários de formação de actores, caligrafia, exposições de pintura e escultura, concertos e espectácu-los de dança, bem como encontros de investi-gadores de diversas áreas do saber, onde um dos objectivos é unir a razão e a sensibilidade. Este é um lugar de reflexão e de prática que procura ser a união da milenária filosofia oriental com o pensamento analítico e posi-tivo do ocidente.



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georges stobbaerts Hanshi, 8Âş Dan Dai Nippon Butoku Kai (Kyoto, JapĂŁo) Fundador do Aikido em Portugal


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