Sá Carneiro

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GRANDES PROTAGONISTAS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL

FRANCISCO

SÁ CARNEIRO



G R A N D E S P R O TAG O N I S TA S DA H I ST Ó R I A D E P O RT U G A L


© Editora Planeta DeAgostini, S.A. | Lisboa | 2004 Direitos reservados para a língua portuguesa AUTORIA: Manuel Margarido REVISÃO CIENTÍFICA: António Paço REVISÃO TIPOGRÁFICA: Laurinda Brandão PROJECTO GRÁFICO: Alexandra Paulino PAGINAÇÃO: Alexandra Paulino IMPRESSÃO: Cayfosa – Quebecor Santa Perpètua de Mogoda [Barcelona] Impresso em Espanha – Printed in Spain Depósito Legal 203368/03 ISBN 972-747-879-4


G R A N D E S P R O TAG O N I S TA S DA H I ST Ó R I A D E P O RT U G A L

FRANCISCO SÁ CARNEIRO

Manuel Margarido


UM FURACÃO NO SÉCULO XX

Um homem com um destino

No final da década de 60 do século xx, Portugal era um país situado numa difícil encruzilhada. Este fora, aliás, um século de certo modo atípico na história nacional, pela modorra social em que se vivia. Agora, os ventos mudavam de feição. E um homem haveria de emergir com o ímpeto de um furacão.

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O FINAL DO SALAZARISMO Nunca, desde a retoma da independência em 1640, houvera um período tão dilatado de estabilidade política, com excepção talvez do consulado de Pombal, que mesmo assim fora marcado por convulsões diversas. Contudo, desde há quarenta anos que um beirão austero e decidido havia imposto à Nação aquilo de que ela tanto carecia, exausta que estava das atribuladas peripécias do final da monarquia e do conturbado período da 1.ª República: a ordem. Salazar vai consolidar todas as estruturas nacionais através do regime corporativo – institucionalizado num partido único, «orgânico», a União Nacional – de carácter autoritário, fundado nos valores do trabalho, da família, UM PAÍS

do nacionalismo e de uma coesão interna ideali-

parado

zada nesse mesmo corporativismo.

no tempo

O lema das ideias «indiscutíveis», «Deus, Pátria e Autoridade», é apoiado por um eficaz aparelho de repressão, que reduz com enorme capacidade

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qualquer tentativa de abertura ou democratização, sistema que o velho professor de Coimbra considerada

in-

adequado para o país e as suas gentes. «Somos antiparlamentares, antidemocratas, antiliberais», profere. Ao mesmo tempo que se apoia na Igreja e nas polícias, no pequeno agricultor e no grande latifundiário, no Exército e na legião de funcionários do Estado, Salazar lá vai equilibrando as finanças públicas, resistindo tanto quanto pode à modernização. O surto de desenvolvimento que a Europa conhece no pós-guerra passa, deste modo, em grande medida ao lado do pequeno país peninsular. Restava a Salazar um isolamento altivo, uma nação virada para si própria, auto-suficiente, independente dos alinhamentos e dos jogos diplomáticos dos grandes palcos políticos do Mundo. Conseguirá manter a neutralidade portuguesa na II Guerra Mundial, evitando de permeio os perigos iminentes colocados à posição portuguesa pela Guerra Civil de Espanha. É com relutância e por espírito de necessidade que vai alinhar com as potências vencedoras. Ele sabia, melhor que ninguém, o que queria salvaguardar: o império colonial português.

A GRANDE ENCRUZILHADA A questão ultramarina torna-se, a pouco e pouco, o ponto mais importante da vida política portuguesa. De facto, na sequência do novo mundo ordenado pelo fim

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da II Guerra Mundial que terminara em 1945, dá-se início a um movimento global de descolonização, que tem os seus marcos mais importantes na Índia, na Ásia e no continente africano. Uma a uma, as outrora orgulhosas potências coloniais vão abandonando, com menor ou maior boa vontade, as suas antigas possessões. Inglaterra, França, Bélgica, Alemanha e Holanda deixam cair, de formas diversas, as colónias. Portugal, contudo, recusa sequer encarar a possibilidade de descolonizar. Na concepção de Salazar, os territórios ultramarinos eram parte de um todo orgânico que

O EXÉRCITO, um dos pilares do poder de Salazar

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era a grande nação portuguesa na sua pluricontinentalidade. Como sublinha Marcello Caetano, a partir dos anos 50 ganha força a teoria da integração, mediante a qual a Metrópole e o Ultramar se fundiriam numa única realidade nacional. Nos anos 60, é nestes territórios, nomeadamente em Angola e Moçambique, que se conhece um movimento de modernização, impensável no continente, que atrai muitos portugueses na procura de condições de vida melhores. África era um manancial de riqueza por explorar e as relações económicas entre o continente e as províncias ultramarinas não cessam de aumentar. Mas a História ia rodando. Em 1961 a União Indiana invade as possessões portuguesas na costa ocidental do subcontinente, provocando um rude golpe no orgulho de Salazar. Sendo absolutamente indefensáveis, dada a desproporção das forças envolvidas, o velho ditador ainda pretenderá uma morte honrosa, sem rendição, por parte dos escassos portugueses que defendiam Goa, Diu e Damão. Bem diferente foi o que ocorreu nesse mesmo ano no Norte de Angola. Impulsionados pela recente libertação do antigo Congo Belga (na fronteira norte), nascem movimentos de libertação (fundados numa amálgama de ideologia africanista e religiosidade messiânica) que vão atacar, de surpresa, em Luanda e na província do Congo. Tinha nascido a guerra colonial. Perante esta nova realidade Salazar vai reagir com um vigor insuspeito para a sua idade. Ditará a linha geral: «Para Angola, rapidamente e em força.»

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UM DURO DESAFIO Portugal iria mergulhar num dos mais duros desafios da sua história: manter pela força das armas as suas colónias. Tratava-se de um desígnio gigantesco para um pequeno país, pobre e atrasado em relação à Europa. Mas o sentido da História, o orgulho em valores antigos e a defesa de interesses assim o ditava. Como diria mais tarde Marcello Caetano a Rogério Martins, um dos jovens tecnocratas liberalizantes que ajudara a promover: «Você engana-se se julga que se pode ir ou não ir a Alcácer Quibir.» Em Setembro de 1968, o presidente do Conselho Oliveira Salazar cai de uma cadeira e sofre um acidente cerebral que o deixa inutilizado para a governação. A sua figura era de tal modo referencial no aparelho do Estado, e no próprio país, que quase se instala a paralisia. É o vetusto Presidente da República, Américo Tomás, quem vai tomar uma decisão drástica, ele que tão-pouco era dado a tomadas de posição. Reúne o Conselho de Estado, as chefias militares e outras figuras proeminentes do regime. Destas consultas resulta com naturalidade o nome de Marcello Caetano para assumir a presidência do Conselho de Ministros. Marcello surge como uma solução habilidosa. Nem inquieta demais os ultraconservadores, nem deixa de fundar esperanças naqueles que desejam uma liberalização e modernização do país. Homem de um grande pragmatismo e lucidez, compreende rapidamente que terá de enfrentar a questão fundamental do regime: o problema do Ultramar.

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LUANDA

Hoje é correcto reconhecer no brilhante professor de Direito Administrativo, nesse homem que, sendo considerado o eterno delfim de Salazar, muitas vezes a ele se opusera, um político de visão larga mas de mãos atadas ao destino. A partir da sua actividade de professor, tinha formado uma geração de quadros de grande qualidade que eram, quase sem excepção, liberalizantes e europeístas. Procurará levá-los para os corredores do poder, gerando uma expectativa muito grande quanto à capacidade de o regime se reformar por dentro. Porém, Caetano não podia fugir ao nó que o atava: a questão ultramarina. Em 1969 visita África, e o acolhimento extremamente caloroso que pensa identificar devido à sua presença dá-lhe a profunda convicção de que os «pretos» (a expressão é dele) querem continuar portugueses e que os chamados mo vimentos de libertação «não tinham expressão válida» e não eram um problema de guerra, mas sim uma questão de «segurança interna».

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Marcello Caetano Nas palavras de Vasco Pulido Valente, «quando Marcello Caetano substituiu Salazar tudo se esperou dele». Filho de um alfandegário que emigrara a pé para Lisboa e trabalhara duramente para educar os filhos, neto de alfaiate da Lousã, Marcello tem origens humildes (tal como Salazar). Só valores de trabalho e disciplina muito fortes fariam o seu pai alcançar a pequena burguesia urbana. O futuro governante vai herdar os princípios paternos, a que associa uma enorme inteligência, uma prudência metódica e um manifesto gosto pelo serviço público. Nascido em 1906, entra com 16 anos na Faculdade de Direito de Lisboa. Adere ao integralismo e inicia a edição de uma publicação, um jornal «antimoderno, antiliberal e antiburguês» designado Ordem Nova. Nesse período escreverá na Ideia Nacional, no diário A Época e em A Voz. Depressa se afasta, contudo, das ideias integralistas. Em 1927 formou-se em Direito. Em 1931 fez o doutoramento, aos 25 anos. Dois anos depois concorre a professor cate drático. Paralelamente inicia a sua vida política no regime. Aos 23 anos já era auditor jurídico do Ministério das Finanças, após ter conhecido Salazar. Com 25 anos participa no grupo que redige a Constituição de 1933. Ocupará ainda cargos

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como membro da Junta Consultiva e da Comissão Executiva da União Nacional, do Conselho do Império, da Câmara Corporativa. Em 1940 é nomeado Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa. A partir de 1944 Marcello chega ao Governo, sendo ministro das Colónias até 1947, ano em que passa a ser presidente da Comissão Executiva da União Nacional, cargo que ocupa até 1949, altura em que se torna presidente da Câmara Corporativa até 1955. Será ministro da Presidência até 1958, responsável pelo II Plano de Fomento, onde se empenha a fundo com as suas ideias de desenvolvimento económico e maior justiça social. É afastado do Governo durante uma década, que aproveita para ampliar a sua reputação como emérito professor e arregimentar uma legião de discípulos e de alunos dilectos que virão a ser o escol dirigente da sua governação. Marcello manteve, de resto, com Salazar (e este com ele) uma relação complexa, feita de admiração genuína e de uma independência crítica que mais nenhum dos altos vultos do Estado Novo se permitia ter e que lhe conferiram uma reputação de «esquerda» no interior do regime. Salazar, pelo seu lado, temia a sua força e envergadura política e manteve-o longo tempo afastado dos corredores do poder. Com a incapacidade de Salazar, Américo Tomás chama Marcello Caetano para a presidência do Conselho de Ministros. Era, nos quadros do regime, o nome de maior prestígio e credibilidade. Em seis anos, o antigo professor de Direito Administrativo vai incrementar uma acção governativa paradoxal. Por um lado fomenta o desenvolvimento económico, reformando

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MARCELLO CAETANO chega ao poder

leis, criando pólos de crescimento, chamando ao Governo e ao Estado muitos quadros liberais. Esta política produziu os seus frutos, se bem que tenha sido severamente atingida pelo choque petrolífero de 1973. Por outro lado fecha-se progressivamente na defesa das províncias ultramarinas como parte do todo nacional, ficando prisioneiro da verdadeira armadilha mortal que era a guerra colonial. Quando se dá o 25 de Abril, a governação «marcelista» vive já no interior de um edifício em ruínas. É com relutância que se rende, tendo pedido para o fazer ante o general Spínola para que o poder «não caia na rua». Exilou-se no Brasil, onde escreveu livros de carácter memorialista, nos quais é patente a sua amargura.

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«RENOVAÇÃO NA CONTINUIDADE» Regressa Caetano do Ultramar ainda mais motivado e intransigente, delineando uma política que designaria como Autonomia Progressiva: «Era preciso, portanto, seguir nessa senda para fundar verdadeiras sociedades multirraciais onde brancos, pretos e amarelos tivessem o seu lugar em igualdade de condições e de oportunidades, de tal modo que só da cultura e das aptidões de cada um, e de nada mais, dependesse o seu lugar na vida social e cívica», escreverá, já no exílio brasileiro, aquele que nascendo filho de José Maria Alves Caetano, aspirante das alfândegas, chegaria a presidente do Conselho de Ministros de Portugal. Os dados estavam lançados. Com a defesa do Ultramar, Marcello comprometia-se definitivamente com a manutenção de um status quo que derivava perigosamente. É certo que a situação militar se encontrava relativamente controlada em Angola e em Moçambique e que apenas a Guiné representava uma frente em vias de se perder, ou mesmo já perdida. Mas o esforço exigido era imenso. Quando aceitou o cargo, Caetano afirma ter colocado a Américo Tomás uma condição: que as eleições gerais de 1969 fossem «o mais correctas possível, para que, se as ganhasse, ganhasse bem». Assim, encontraria legitimidade para a sua política. Com uma nova geração de quadros e uma política de reformas procuraria manter a sua célebre máxima, que será, de resto, o tema da sua campanha eleitoral: «Renovação na continuidade.»

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Os jovens deputados eram espíritos independentes, desejosos de afirmar a sua força e o vigor das suas ideias. Entre eles pontificavam José Pedro Pinto Leite, Francisco Pinto Balsemão, Miller Guerra e Mota Amaral. A este grupo se veio a chamar a ala liberal. Nela se integrava um homem ainda novo, baixo e magro, sisudo e obstinado, que se levava muito a sério: Francisco Sá Carneiro. Sá Carneiro é um dos «jovens turcos» do novo Parlamento, dominado pelo partido único, que viria a ser transmutado em Assembleia Nacional Popular. Em Setembro de 1969, José Guilherme de Melo e Castro, presidente da Comissão Executiva da União Nacional, convida-o pessoalmente para entrar nas listas da ANP, no sentido da sua «renovação».

A ALA LIBERAL O grupo de amigos de Francisco debate a questão. Enfrentavam a promessa de transformação progressiva do regime, no quadro de uma democracia política de modelo europeu e ocidental. Francisco Sá Carneiro encontra-se com o bispo do Porto, para se aconselhar. E tem o seu primeiro acto político de frontalidade: para aceitar, exige fazer um comunicado, que sai no primeiro dia da campanha eleitoral, para desagrado de Marcello que se indigna por não haver tido conhecimento do mesmo. Nele constava todo o programa do futuro político para aceitar o que lhe pediam. Deste

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O BISPO

modo redige, conjuntamente com o seu grupo, a 28 de Setembro de 1969:

DO

PORTO,

D. António Ferreira Gomes

Entenderam os signatários dever fazer acompanhar a apresentação da sua candidatura à Assembleia Nacional de uma palavra que definisse com clareza a sua posição. Consideram que, no actual condicionalismo político da República, têm a possibilidade e o dever de a servirem mediante uma participação activa nas eleições, submetendo-se ao sufrágio livre que constitui o processo mais directo e amplo de participação da Nação na vida do Estado. Afigura-se-lhes que, actualmente, essa intervenção livre e independente é compatível com a apresentação da sua candidatura pela União Nacional, da qual não são membros e a que nunca estiveram ligados. Além disso, os signatários crêem que é possível realizar as transformações e reformas de que o país urgentemente carece,

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na linha política do actual Chefe do Governo, necessariamente sujeita à fiscalização crítica da Assembleia Nacional. Neste ponto divergem das Oposições, cuja existência e livre expressão encaram como indispensáveis e inerentes a uma vida política sã e normal. [...]. Esta intervenção dos signatários, desligada de pressões partidárias e confessionais, orientar-se-á essencialmente no sentido de rápida e efectiva transformação política, social e económica do País, além da especial atenção que lhe merece o problema do Ultramar [...]. Francisco encontrou uma missão, a vida política, que vai abraçar para sempre. Aceita o convite. Todas as terças-feiras apanha o comboio ou o avião para Lisboa. Três dias depois, regressa ao Porto.

O TEMPO DE TODOS OS PERIGOS A guerra prosseguia, cada vez mais dura, exaurindo os recursos de Portugal. A modernização intentada por Caetano esbarrava com uma estrutura económica arcaica, incapaz de se flexibilizar. Gera-se uma enorme crise no sector agrícola, que ainda era a base produtiva do país. Os bens alimentares escasseiam e as colheitas são drasti camente reduzidas no início do exercício caetanista. A produtividade dos campos portugueses era pelo menos metade da média europeia nas principais culturas agrícolas. Assiste-se então ao fenómeno da emigração forçada de mais de um milhão de portugueses para os países

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da Europa desenvolvida, onde vão ocupar lugares, trabalhos e funções mal pagos mas que representavam rendimentos muito mais elevados que aqueles obtidos nos primitivos labores dos campos de Portugal. Basta dizer que o salário mínimo pago em França representava mais que cerca de 90% dos salários recebidos pela população portuguesa no início da década de 70. As aldeias e as vilas vão ficando desertas de homens, com danos sociais até hoje difíceis de avaliar. Em consequência começam a afluir remessas de divisas, que muito vêm aliviar as contas nacionais. Ao mesmo tempo assiste-se a um incremento do turismo, sobretudo no Algarve, que proporciona ao país dinheiro de que tanto necessita.

O QUOTIDIANO DA GUERRA

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No entanto, para a guerra todo o financiamento era pouco. E sai dos cofres do Estado aos roldões perante as necessidades de um contingente de homens cada vez maior. Chegaram a servir, nos diferentes teatros de guerra em África, quase 150 000 homens, oriundos de um país onde muitos deles se ausentavam para a emigração e onde o fenómeno da deserção crescia a cada ano que passava. Dividido na defesa de vários territórios, Portugal entregava-se a um esforço desmedido e que o vai deixanOFICIAIS DAS

FORÇAS

do exangue. O aumento brutal do investimento estrangeiro, as grandes obras, como a ponte de travessia do Tejo

ARMADAS

(baptizada Ponte Salazar, ao que consta contra a vontade

prestam

do próprio) e o complexo portuário-industrial de Sines não

o seu apoio a Marcello

escondiam a realidade de um país à beira da ruptura fi-

Caetano

nanceira. Marcello vai apostar na industrialização, procurando a concentração das indústrias em grandes grupos económicos, capazes de competirem nos mercados internacionais, nomeadamente europeus. A situação começa a desmoronar-se em todas as frentes. O ano de 1973 vai revelar-se decisivo: o PAIGC proclama unilateralmente a independência da Guiné e é neste território que começa a formar-se um núcleo de oficiais do quadro, na sua maioria capitães, descontentes com as suas condições de vida, o sistema de promoções,

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a própria dignidade das Forças Armadas. Em breve este protesto em surdina transforma-se em movimento e alastra ao continente, alargando a sua base e ideário à contestação da própria guerra colonial. Nasce o MFA (Movimento das Forças Armadas), que estará na origem do 25 de Abril. Em Fevereiro de 1974, o prestigiado general António de Spínola, mítico pela sua bravura em combate, publica um livro que sacode os alicerces do regime. Em Portugal e

o Futuro, o general, então vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, escreve: «Pretender ganhar uma guerra subversiva através de uma solução militar é aceitar, de antemão, a derrota...» A resposta de Marcello Caetano não se faz esperar. Convoca, a 14 de Março, os oficiais generais dos três ramos das Forças Armadas para um cerimonial de verdadeiro «beija-mão». Com este evento pretendia tornar pública a fidelidade da hierarquia militar ao regime. Spínola e o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, o general Francisco Costa Gomes, recusam-se a comparecer, tal como alguns oficiais generais da direita do regime, Kaúlza de Arriaga e Silvério Marques. O regime sai enfraquecido. Em 16 de Março, extemporaneamente, alguns oficiais do MFA saem das Caldas da Rainha numa coluna para derrubarem o regime em Lisboa. Mal preparada, sem apoios, a operação é um fracasso. Mas não demorará muito até que o movimento dos capitães conseguisse pôr de pé um levantamento militar que, com o decurso das operações, se transformaria numa revolução. Em Abril, no dia 25, o regime de 48 anos cai, para gáudio do povo e espe -

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rança da grande maioria dos portugueses. Sá Carneiro é um deles. Vai finalmente poder dar asas ao seu sonho de acção política em liberdade. Não deixará escapar a ocasião.

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AS ORIGENS DE UM GOVERNANTE

Olhar o futuro com determinação e perseverança

Sozinho (cavaleiro solitário lhe chamaria Francisco Pinto Balsemão), por sua própria vontade, vai cumprir um destino torrencial na vida política nacional. Em poucos anos, Francisco Sá Carneiro consegue impor, é certo que com outros, um modelo de democracia pluralista, de convergência europeia. O poder é o seu desígnio e haverá de alcançá-lo. Mas a tragédia é a marca da sua vida, a vida de alguém que sente que corre contra o tempo.

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RAÍZES Sá Carneiro nasce em 1934, num Portugal já marcado pelo ferrete do salazarismo e pelo crescente clima de tensão entre as potências europeias que conduziria à II Guerra Mundial. No ano anterior entrara em vigor a Constituição de 33, sólida base jurídica para a consolidação do regime. Nesse mesmo ano é criada a União Nacional, que integra as diversas correntes políticas «legitimadas», que não se opõem à situação. Para se conhecerem os principais aspectos das primeiras décadas da vida do futuro primeiro-ministro de Portugal é imprescindível o recurso à emotiD.R.

va e documentada obra de

O JOVEM Francisco

Maria João Avillez, Francisco

Sá Carneiro: Solidão e Poder (que é fonte essencial deste capítulo), na qual a consagrada jornalista recolhe depoimentos familiares, em muitos casos únicos, e que nos permitem perceber a génese humana do homem e do político. Francisco nasce a 19 de Julho, na Rua da Picaria, cidade do Porto, numa grande casa de três andares e facha-

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da de azulejos, posse da família há mais de um século. Francisco Manuel foi o nome escolhido para o novo bebé. Era filho de Maria Francisca Judite Pinto da Costa Leite (Lumbrales) e do reputado advogado José Gualberto Sá Carneiro, que se tornará deputado da União Nacional. Tratava-se de um bebé forte, nascido com o peso de quatro quilos e meio. Quando nasceu, Francisco tinha já os irmãos José Pedro, João Gualberto e Maria Joana (uma outra irmã havia morrido na infância). Três anos mais tarde nasceu Ricardo Luís e depois Ana Maria. Viria a ter outra irmã, Maria Francisca. Segundo conta a mãe de Francisco Sá Carneiro a Maria João Avillez, na obra já citada, «o Francisco era uma criança calma e sossegada, nunca foi preciso ralhar-lhe, ou levantar-lhe a voz», descrevendo-o como «um menino quase exemplar, e o mais bonito dos meus filhos, com aqueles caracóis louros. [...] Era um garoto que dava nas vistas, por não dar nas vistas». Nostálgica, a mãe recorda com candura: «Era tranquilo como a passagem da onda para a rocha.» Francisco Sá Carneiro sempre foi bom estudante e nunca reprovou. Quando vai fazer o exame da instrução primária é acometido por um surto de gripe, o primeiro sinal de uma saúde débil que tanto o atormentará no futuro. O médico recomenda mudança de ares. Então mãe e filho mudam-se para o Grande Hotel do Estoril. Teria nove anos, na altura. Estuda as lições com a mãe e, quando regressa ao Porto, faz o exame de admissão ao liceu.

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Não era necessário repreendê-lo ou castigá-lo. O seu trabalho estava sempre pronto, os estudos das lições invariavelmente feitos. Era bom a Português e História. Não gostava de Matemática, apesar de nunca ter perdido um ano nessa disciplina. Para orientar os filhos nos estudos, os pais contrataram uma professora primária particular, o que testemunha a importância que davam à educação escolar das crianças. E também uma professora de Desenho e uma de Francês. Mais tarde um professor de Ginástica.

UMA FAMÍLIA BURGUESA O pai era uma figura referencial e reverenciada. Muitas vezes a mãe dizia: «Hoje ninguém fala à mesa. O pai tem julgamento a seguir ao almoço.» Ao contrário de sua mulher, José Gualberto tinha inclinações mais republicanas e liberais, segundo afirma Marcelo Rebelo de Sousa. Não contestava, porém, a ordem das coisas que o regime implementara. Era baixo e forte, homem dado à conversa, de nervo aceso e nada propenso a ser contrariado. Foi advogado de fama no Porto e em Barcelos, e um ilustre jurista em Direito Civil e Comercial. A mãe era muito diferente do pai. A formação católica de Francisco fora recebida de sua mãe, Maria Francisca, irmã do ministro de Oliveira Salazar, João da Costa Leite (Lumbrales), que seria subsecretário das Finanças e ocuparia mais tarde altas funções no Governo e nas orga-

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AVENIDA

nizações políticas do Estado Novo. Era uma mulher conservadora, «com tradição monárquica, embora socialmente

DOS

ALIADOS

no Porto

preocupada». José Gualberto vai dedicar vinte anos da sua vida ao Parlamento, integrando-se com desenvoltura no quadro do regime vigente. Por seu lado, Maria Francisca será vereadora da Assistência da Câmara Municipal do Porto durante sete anos, pese embora um traço de personalidade salientado por Maria João Avillez: ela «nunca gostou da política». No liceu, Francisco acentua o seu pendor para as questões espirituais e religiosas. E atormentavam-no problemas de saúde, tendo sido operado a uma hérnia e desmaiando por vezes devido a espasmos da glote. Era

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D.R.

NA PRAIA DA

GRANJA

um jovem recatado, ferverosamente católico e praticante, a ponto de os pais chegarem a pensar que teria vocação para o sacerdócio. Francisco faz as suas primeiras viagens ao estrangeiro, primeiro a Madrid, depois uma grande viagem de carro a França, Bélgica, Holanda, Alemanha e Suíça, com 15 anos, na companhia do padrinho e tio, Francisco, e da sua irmã Maria Joana. O seu percurso escolar é distinto, tendo recebido, com 17 anos, o Prémio dos Rotários destinado ao melhor aluno finalista do seu liceu. Nele, o sentimento da importância de si crescia a olhos vistos. Nos natais, ou nas

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páscoas na quinta do Douro, fazia os brindes e tomava a palavra. Nesse mesmo ano (1951) ruma a Lisboa e à Faculdade de Direito. Fica a viver em casa do padrinho. Será um bom aluno, perspicaz mas ensimesmado, socialmente tímido mas capaz de impressionar nos diálogos com os professores. Maria João Avillez recolheu testemunhos de colegas. Um deles recorda: «Sempre lhe conheci o dom da palavra.» E outro relembra: «Levava bastante em conta a sua pessoa. Era vaidoso e senhor de si. Usava umas solas de Ceilão para parecer mais alto e olhava para as pessoas com o queixo no ar.» Dirá, ainda, uma colega: «Penso, sinceramente, que tinha o complexo da altura e pena de ser baixo.»

A praia da Granja Durante anos, a praia da Granja foi o local de veraneio da família Sá Carneiro, que ocupava uma casa à dimensão da sua posição social. Aí Francisco foi feliz, dando os passeios de bicicleta e tomando banhos de mar, que tanto afligiam a sua mãe. Aproveitava a praia para a natação, de que tanto gostava, para a leitura e o convívio com os outros, próprio dos verões despreocupados e alegres. Mas acabava sempre por se isolar com frequência, perdido nos seus pensamentos ou nos livros. Esta praia, a mais antiga do grupo de praias do concelho de Vila Nova de Gaia, ao longo dos tempos foi visitada e ad-

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mirada por gerações de veraneantes. Para muitos era a mais bela e aristocrática de todas as praias do Norte. Antes de Francisco Sá Carneiro, outras personalidades relevantes aqui gozaram as delícias balneares: desde a rainha Maria Pia a Almeida Garrett, de Anselmo Braamcamp Freire a Oliveira Martins, mas também Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Mencione-se, em particular, a escritora Sophia de Mello Breyner Andresen, que considerava a praia da Granja a maior referência da sua infância. A casa que seus pais arrendaram ao longo de muitos anos «estava no meio das dunas, abria-se a porta da sala e dava directamente para a areia, tanto assim O MAR, inspirador de Sá Carneiro

que se fartavam de entrar as pulgas do mar». Era a «Casa Branca» dos versos de Sophia, «em frente ao mar enorme, /com o teu jardim de areia e flores marinhas/ e o teu silêncio intacto em que dorme/ o milagre das coisas que eram mi nhas». A mesma casa surge na Menina do Mar e nas Histórias da Terra e do Mar num conto chamado Casa Branca. «Ali passei verões e verões da minha infância, da minha adolescência e da minha juventude. Este mar era o pleno oceano da praia da Granja. [...] Todas estas coisas continuam na mi nha memória e a viverem comigo [...].» [Excerto da entrevista «Sophia e a Palavra», in Revista Noesis, n.º 26, Março/Abril/Maio 1993.]

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Mar De todos os cantos do mundo Amo com um amor mais forte e mais profundo Aquela praia extasiada e nua Onde me uni ao mar, ao vento e à lua. [Poesia, 1944]

PROMISSOR E TEMPERAMENTAL É nesse primeiro ano de faculdade que Francisco Sá Carneiro trava amizade com José Pedro Pinto Leite, que perduraria até às bancadas de São Bento e à ala liberal, apenas terminando com a trágica morte deste. A partir do final da adolescência, Francisco apoia-se numa vida espiritual intensa. Participa diariamente em actos religiosos. Nas férias, lê muito – Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Sá de Miranda, mas também policiais. Com a irmã, Maria Joana, vai frequentes vezes ao cinema, que adora. Pouco dado a actividades desportivas em equipa e reuniões sociais, gosta de dançar. Quando aparece num ou noutro baile, é afável, simpático, cordial, atento aos outros. Tem 19 anos. É, já nesta idade, um carácter formado, absolutamente consciente das suas capacidades. Mas tem um feitio complicado e um temperamento impaciente. É no final de 1954 que, numa festa dada em casa dos pais, Francisco conhece Isabel Maria, amiga da sua

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irmã Ana Maria. Volta a encontrá-la no Verão do ano se guinte num arraial do Minho. Isabel recorda ter reparado no «pequenino que vinha atrás. Chamou-me a atenção o nariz, o todo, não sei...». Numa outra festa em casa da sua família, no Dezembro seguinte, o estudante de Direito dança toda a noite com Isabel Maria, ele que tão bem dançava. O namoro é tornado oficial algum tempo depois. Namoram por carta, dada a distância que os separa, do Porto a Lisboa. Francisco forma-se com 16 valores. Mal acaba o curso é incorporado no serviço militar. Já no Exército descobrem-lhe um grande desvio na coluna, que o dispensa de terminar o serviço, com a recomendação de que não pra-

A CARICATURA no livro de fim de curso resume algumas das singularidades de Francisco: o coração apaixonado, o Direito,

D.R.

o Porto e a sua lambreta

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tique desportos que lhe afectem o problema, nomeadamente o ténis ou mesmo andar de lambreta. O recém-licenciado encontra, no Porto, a sua primeira tarefa. O pai dá-lhe o cargo de subdirector da Re-

vista dos Tribunais, que adquirira anos antes e da qual era director. Marcelo Rebelo de Sousa recorda ter conhecido aí Sá Carneiro quando, ainda jovem estudante de Direito, procura publicar na revista um artigo científico. De Sá Carneiro dirá o futuro professor: «Era um bom jurista de gabinete e um determinado causídico de barra.» Um episódio revela a justeza destas palavras. O pai de Francisco solicita-lhe que vá defender um lavrador seu cliente a Baião. Francisco Sá Carneiro, ao chegar a casa, declara: «Ganhámos, pai! Correu muito bem!» O cliente desloca-se à Picaria no dia seguinte: «Olhe, senhor doutor [...] eu nem queria acreditar! Vejo sair de um carrinho pequeno o seu filho, ainda mais pequeno, e depois olho para ele vestido com aquelas coisas que os senhores doutores usam... Confesso que ao princípio me assustei... Mas agora, se me dá licença, já só quero o seu filho.» O namoro com Isabel Maria estava destinado a converter-se em matrimónio. Casam a 13 de Maio, data com significado para os católicos em Portugal, no ano de 1957, na freguesia de Miragaia. Passarão a lua-de-mel na Foz do Arelho e depois em Azeitão, na Quinta das Torres. Perto do Douro, numa propriedade da avó materna de Isabel, demorarão mais alguns dias. Quando regressam, vão viver num andar na Rua de Sá da Bandeira, no Porto. Francisco acumula o trabalho no escritório do pai com a chefia do Contencioso da União Eléctrica Portuguesa.

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A IMPORTÂNCIA DA FÉ O bispo do Porto, apesar de exilado à data, relembra Francisco como um dos grandes activistas de «um trabalho de acção e de espiritualidade conjugal», e o casal como «um dos mais activos no lançamento regional dos Cursos de Cristandade e Preparação para o Matrimónio». Nessas equipas, estabelece amizade com Frei Vargas, um frade franciscano que o acompanhará na sua vida espiritual. Contudo, foi Emanuel Mounier quem, de modo definitivo, influenciou a formação e evolução de Francisco Sá Carneiro nessa época. A estrutura e as teses do filósofo personalista francês entroncavam naturalmente naquilo que, num plano cristão, mais importava e começava a inquietar Francisco. Por isso ele falava de Mounier aos amigos. As teses do filósofo francês, o grande teorizador da corrente filosófica cristã denominada personalismo, tornam-se o «cimento» aglutinador das suas ideias sobre a pessoa, a religião, a sociedade e a política. O primeiro filho, Francisco como o pai, nasce em Março de 1958. O advogado assume profundamente o papel paterno, brincando com o filho tanto quanto pode. A família aumenta com o nascimento de Isabel, em 1959, e Teresa, em 1961. Seguem-se-lhes José, em 1963, e Pedro, no ano seguinte. Entretanto, Sá Carneiro torna-se um advogado respeitado. Era convincente, honesto e pouco transigente. No início dos anos 60 Sá Carneiro faz amizades que influenciarão em muito a sua vida, em sintonia com as novas

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D.R.

ideias emanadas do Concílio Vaticano II. Estas ideias serão de grande importância para o espírito inquieto e racionalizador de Francisco, e hão-de conduzi-lo, muito depressa, à consciência de uma ligação íntima entre a crença religiosa, a preocupação social e a necessidade de uma intervenção

FRANCISCO

política.

e Isabel Maria

Organiza em sua casa o estudo dos documentos

com os filhos

conciliares, ao mesmo tempo que ajuda a criar, em Setembro de 1966, uma cooperativa de intervenção cultural, a Confronto, da qual seria presidente da Assembleia Geral. Após ter participado num colóquio sobre o «Divórcio e Novo Código Civil», escreve um artigo na Revista dos

Tribunais sobre os instrumentos legais em vigor relativos ao divórcio das pessoas casadas canonicamente. Parecia uma premonição do que lhe viria a suceder.

D. António Ferreira Gomes Nasce em 1906, na freguesia de Milhundos (Penafiel). Com apenas 10 anos entra para o Seminário, tendo terminado os estudos filosófico-teológicos em Roma. Aos 22 anos é presbítero e, pouco tempo depois, é nomeado prefeito e director de disci-

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plina do Seminário de Vilar, tornando-se vice-reitor em 1936, com funções de reitor e também cónego da Sé do Porto. As suas qualidades de professor de Filosofia aliam uma enorme exigência intelectual a um profundo rigor e disciplina, que incute com facilidade aos seus alunos. Portalegre é o seu próximo destino. Em 1948 o papa desigD. ANTÓNIO

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na-o bispo coadjutor de Portalegre, com direito de sucessão.


Após a morte do bispo titular, em 1949, D. António Ferreira Gomes é nomeado bispo de Portalegre. Nesta cidade vai desenvolver e aprofundar o estudo da realidade social alentejana. As suas preocupações com a dignidade das pessoas, em particular os mais pobres e desfavorecidos, acentuam-se. Os direitos humanos preocupam-no e hão-de marcar toda a sua vida. Quatro anos depois, em Julho de 1952, é designado para bispo do Porto. Nos seis anos seguintes, D. António acentua ainda mais a atenção à miséria. Torna-se um espírito crítico, avesso à política do Estado Novo, defensor da liberdade de expressão e de participação política. Em 1958, no final da campanha eleitoral do general Humberto Delgado, D. António é impedido de votar em virtude da sua participação numa conferência em Barcelona. Após o seu regresso, o bispo do Porto escreve Pró-Memória, conjunto de temas para uma conversa que desejava ter com Salazar. É esta a célebre carta a Salazar (assim ficará conhecido o documento) anonimamente divulgada a 13 de Junho de 1958. Segue-se uma segunda carta pedida pelo cardeal Costa Nunes, patriarca das Índias. Estas cartas deram origem a um caso político grave, que culmina com Salazar a proibir a entrada de D. António em Portugal. Estava, portanto, exilado. Será longo, este exílio. Dura uma década. De regresso ao nosso país, torna-se uma das vozes mais respeitadas (e ouvidas) em Portugal, particularmente a seguir ao 25 de Abril. Morre em Ermesinde em 1989. Deixou um testamento, datado de 1977. Nele estabelece a criação da Fundação Spes, com fins benéficos, educativos e culturais.

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ACENTUA-SE O MUNDO REAL Com a subida de Marcello Caetano ao poder, Sá Carneiro envolve-se, com outros católicos do Porto, em diligências conducentes ao retorno de D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto exilado por Salazar. Escreve ao novo presidente do Conselho e dele obtém uma resposta encorajadora. A verdade é que D. António acabaria mesmo por regressar em breve. O papel de Francisco neste acontecimento, muito significativo à época, foi de grande importância. Pouco tempo depois, D. António convida-o para fazer parte do movimento Justiça e Paz, que criara. Sá Carneiro dá-se, cada vez mais, com os chamados «católicos progressistas». Uma feliz ocorrência virá alegrar-lhe, em muito, a existência. Em virtude de uma doação de terras aos filhos, João Gualberto proporciona a Francisco uma das maiores alegrias da sua vida. Este fica com um terreno de alguns hectares, o Eirado do Esperigo, em São Miguel de Manhente, em Barcelos. Aí mandará construir uma casa térrea, simples e sóbria mas de grande beleza. Dedica-se à plantação de árvores e à jardinagem, para gáudio da família que lhe desconhecia semelhante vocação. Mais tarde mandará construir a piscina, onde pode praticar natação de que tanto gostava, e este torna-se o local de eleição da família para passar as férias.

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A PRIMAVERA MARCELISTA

SÁ CARNEIRO e Pinto Balsemão

Após a morte de Salazar, o novo poder, personificado por Marcello Caetano, vai tentar a «renovação na continuidade». Para tanto chama às hostes da União Nacional um grupo de jovens dos quais se espera irreverência e ideias novas. Sá Carneiro aceita o desafio de mudar o estado das coisas a partir de dentro. Desta decisão virá a arrepender-se alguns anos mais tarde, alegando ter-se tratado de um «erro». Mas, se de um «erro» se tratou, ele teve largas consequências na desagregação de uma falsa ideia de evolução do regime.

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O DESAFIO DO PODER Antes de chegar à conclusão de que a sua actividade parlamentar era inútil para a implentação de uma nova realidade política, Sá Carneiro vive, em 1969, um momento de todas as ilusões. Acredita que pode, aceitando o convite de Marcello, ser um agente activo de imposição da sua visão reformista, modernizadora e humanista no quadro do regime. No fundo, como muitos outros, crê que a primavera marcelista encerra espaços e oportunidades para a mudança. TOMADA DE POSSE

de Marcello Caetano

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É certo que a realidade política demonstra alguns sinais de alteração no status quo. O chamado marcelismo é, sob o ponto de vista político, um nítido tempo de tran-


sição, no qual se espelharam todas as contradições de um modelo político que, procurando renovar-se, não conseguiu encontrar um sistema de organização sociopolítica capaz de resolver as questões prementes do seu tempo: o problema colonial, o problema da liberdade, as crescentes pressões de descontentamento social. Em suma, Sá Carneiro teve de enfrentar aqueles que viviam ainda no saudosismo do passado. A renovação na continuidade, com que se pretendia marcar a passagem do Estado Novo salazarista para o almejado Estado Social, atingia os níveis do paradoxo, dado que o mesmo modelo político, que serviu para nos integrarmos nos espaços supra-estaduais da OECE/OCDE (desde 1948), da NATO (desde 1949) e da EFTA (desde 1960), das quais fomos fundadores, e nos permitiu a associação à CEE (em 1972), era marcado pelo estilo dos autoritarismos anticomunistas dos finais da guerra fria, qualificados como Estado de Segurança Nacional e que tiveram especial desenvolvimento na América Central e do Sul. Se o regime eliminou alguns sinais exteriores do autoritarismo, continuava longe de permitir uma sociedade aberta e de trilhar as vias do pluralismo e do Estado de Direito. Nem sequer vigoravam as regras da concorrência da economia de mercado, embora preponderasse uma economia privada mas de pendor plutocrático, na qual alguns grupos familiares assumiam os sectores básicos da economia que se haviam instituído pela via do feudalismo financeiro e do proteccionismo industrial, através de um acordo de cavalheiros entre alguns notáveis da indústria e o poder salazarista.

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Os novos sinais dos tempos marcelistas alteraram também os esquemas de comunicação social, pelo abrandamento do regime da censura prévia e pela autorização de novos órgãos da comunicação social, nomeadamente o semanário Expresso de Pinto Balsemão. Intensificava-se, sobretudo, o processo de desenvolvimento capitalista da economia que, antes da crise petrolífera, levou àquilo que o próprio Caetano qualificou como um tempo das vacas gordas, isto é, à introdução em Portugal tanto dos modelos da sociedade de consumo como de certos esquemas do capitalismo popular pela via do jogo bolsista, acompanhados pelo alargamento do Welfare State, nomeadamente pela atribuição de pensões de aposentação para os trabalhadores rurais.

IDEIAS CLARAS Não é, contudo, de ânimo leve que Francisco Sá Carneiro aceita integrar as listas da União Nacional. Reúne-se com os seus amigos católicos do Porto, aconselha-se com o bispo daquela diocese. E, com a coragem do confronto que há-de marcar toda a sua actividade política até ao fim da vida, emite um comunicado, conjuntamente com Joaquim Macedo, Joaquim Pinto Machado Correia da Silva e José da Silva, no qual exprime a posição do seu grupo, texto esse publicado no primeiro dia da campanha eleitoral. Eis agora o jovem político do Porto, com pouco mais de 30 anos, envolvido na actividade que irresistivelmente

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o atraía: a vida política, a coisa pública. Não perde tempo até exprimir claramente as suas posições. Logo no seu primeiro discurso político, proferido em Matosinhos em Outubro de 1969, durante a campanha eleitoral, deixa algumas ideias bem marcadas: «O fundamental é que todos possam ficar esclarecidos e possam votar conscientemente no sentido que julgarem mais adequado aos interesses do País [...]» Define o grupo de futuros de-

DISCURSOS

putados independentes como «[...] dez pessoas que, com

CONTUNDENTES

liberdade e independência, se dispõem a participar num dos órgãos de soberania da Nação».

serão uma das marcas de Sá Carneiro

Naquele discurso de Matosinhos, Sá Carneiro passa ao plano doutrinário, sem dúvida influenciado pelo personalismo cristão. Referindo-se à actividade política e ao seu desígnio, afirma: «Desde a educação e futuro dos nossos filhos às nossas próprias condições de trabalho e de vida, desde a liberdade de ideias à liberdade física, aquilo que queremos e pensamos coloca-nos directamente ante a política: seja em oposição frontal à seguida por determinado Governo, seja de simples desacordo, seja de apoio franco.»

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Liberdade, oposição. As palavras deviam soar como martelos nas cabeças mais conservadoras. Mas o advogado do Porto não fica por aqui. Anuncia: «Recuso-me a admitir que, ao contrário dos outros povos, não consigamos conciliar a liberdade com a ordem, o progresso com a segurança, o desenvolvimento com a justiça. [...] Por isso rejeito as ditaduras, sejam elas de direita ou de esquerda, de uma ou de outra classe, bem como os caminhos que a ela conduzem. [...] há a questão fundamental e comum a todos nós, sobre a qual me detive: a de cada um poder ordeiramente expressar o que o preocupa e reclamar o que entende justo, de modo a fazer-se ouvir, doa a quem doer.» Neste discurso encontra-se o núcleo do pensamento político de Sá Carneiro para os anos mais próximos. Acredita que é possível conciliar a liberdade com a ordem, o progresso com a segurança, o desenvolvimento com a justiça. Mas desde o início proclama que não fará concessões. Alguns dias antes, num debate promovido pelo jornal A Capital sobre as liberdades políticas e religiosas, Francisco fora ainda mais longe: «A pessoa humana define-se pela liberdade. Ser homem é ser livre. Coarctar a liberdade é despersonalizar; suprimi-la, desumanizar. A liberdade de pensar é a liberdade de ser, pois implica a liberdade de exprimir o pensamento e a de realizar na acção. [...] Além da liberdade de expressão, a liberdade de pensamento implica o exercício dos direitos de livre reunião e associação. [...] Temos, pois, desde a liberdade de imprensa à de reunião, desde os partidos ao acesso ao poder político.»

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Não deixa de ser espantosa a quantidade de vezes que a palavra «liberdade» aflora esta intervenção de Sá Carneiro.

ELEIÇÕES Nas eleições de 1969, a novidade estava no modelo da oposição que, abandonando o esquema da unidade antifascista e da frente popular, aparecia dividida entre a Comissão Democrática Eleitoral (CDE), liderada pelos comunistas, e a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), apenas concorrente em Lisboa e Braga, afecta

MARCELLO CAETANO a exercer o direito de voto

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ao grupo de amigos de Mário Soares e Salgado Zenha, para além de uma simbólica Comissão Eleitoral Monárquica (CEM), reunindo monárquicos oposicionistas não associados à causa monárquica que, apesar de defenderem a democracia pluralista, advogavam uma solução integracionista para a questão ultramarina. Apesar de os resultados levarem as listas do regime à ocupação da totalidade dos lugares postos a sufrágio, alguma coisa tinha mudado porque a campanha, embora curta, tinha sido relativamente livre, com largos reflexos na imprensa não ligada ao regime, nomeadamente em

A Capital, República e Diário de Lisboa. A 26 de Outubro de 1969 ocorre a 63.ª eleição geral, a primeira do marcelismo. É uma eleição para a Assembleia Nacional, com 1 809 000 eleitores e a participação de três listas de oposição; a UN obtém 980 000 votos, a oposição, 133 000, com 695 000 abstenções. Anteriormente fora promulgada a Lei n.º 2 137, de 26 de Dezembro de 1968, que admitia o voto das mulheres. Apresentam-se as listas oposicionistas da CDE, CEUD e CEM. A CDE obtém em Setúbal 34,7%; em Lisboa, 18,5%; no Porto, 5,1%. A CEUD obtém 7,8% no Porto. O CEM apenas 0,8% em Lisboa. Após o acto eleitoral, é inaugurada a X Legislatura da Assembleia Nacional, onde vai surgir a ala liberal, com Pinto Leite, Sá Carneiro e Magalhães Mota (1 de Dezembro de 1969). Na segunda grande remodelação governamental de Marcello Caetano, são criados os cargos de ministros coordenadores, onde se destaca Veiga Simão como ministro da Educação.

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A União Nacional, no seu V Congresso, passa a designar-se Acção Nacional Popular. Marcello Caetano substitui a expressão Estado Novo pela de Estado Social (20-21 de Fevereiro de 1970). No plano meramente doméstico, o Portugal político do último quartel do século xx tem o seu marco genético nas eleições para a Assembleia Nacional de 26 de Outubro de 1969, não tanto pelos resultados quanto pela campanha eleitoral e pelo conjunto de pessoas mobilizadas pelas listas da situação e da oposição.

O MOVIMENTO

Emergiu também, à esquerda, uma nova geração

ESTUDANTIL

universitária, nascida dos movimentos estudantis marcados pelo Maio de 68. Mesmo à direita surgiu uma nova sensibilidade que recebeu acolhimento nas páginas do periódico Política, aparecido em 22 de Novembro de 1969, sob a direcção de Jaime Nogueira Pinto, e no qual chegaram a colaborar Francisco Lucas Pires e José Miguel Júdice.

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A Acção Nacional Popular Com Salazar criou-se um partido único, de carácter totalitário, a União Nacional. Os restantes partidos e associações políticas oposicionistas foram ilegalizados. Os poderes concentram-se no presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar.

MARCELLO CAETANO discursa

Na sequência da candidatura do general Humberto Delga-

perante

do à presidência da República, em 1958, que galvanizou todos

membros

os sectores da oposição, Oliveira Salazar iria rever a Consti-

da ANP

tuição de modo a que deixasse de haver sufrágio directo para as presidenciais. Em lugar do voto popular, o Presidente da República passa a ser designado por um colégio eleitoral, de modo a evitar surpresas desagradáveis ao regime. As dificuldades do Estado Novo eram agravadas pelo problema colonial, sobretudo a partir de 1961, tendo o serviço militar obrigatório sido alargado para um mínimo de dois anos de permanência na guerra nas colónias.

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Em Setembro de 1968 morre Salazar e é nomeado Marcello Caetano para a presidência do Conselho de Ministros, passando o partido único a ser designado Acção Nacional Popular. Nas eleições de 1969 para a Assembleia Nacional, Marcello Caetano pretende revitalizar a Acção Nacional Popular e ensaiar uma relativa mudança no regime, permitindo a concorrência de comissões eleitorais da oposição, sem contudo autorizar a constituição de partidos nem actualizar os cadernos eleitorais. Limitará a campanha eleitoral a apenas um mês antes das eleições. Nas listas da Acção Nacional Popular foram incluídas algumas personalidades independentes que viriam a enquadrar a chamada ala liberal da Assembleia Nacional. Estas iniciativas evidenciaram a rigidez do regime mais que a sua capacidade de abertura e renovação. Muitos dos de putados que haviam integrado a ala liberal acabariam por renunciar aos seus mandatos, designadamente após a revisão constitucional de 1971 na qual se frustrou qualquer possibilidade de introduzir alterações aos princípios constitucionais de concentração de poderes no presidente do Conselho de Ministros e no Presidente da República. Deste modo, a Acção Nacional Popular pouco representou em termos de evolução do sistema político e da sua orgânica relativamente à União Nacional.

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PARLAMENTAR Concluídas as eleições e iniciada a legislatura, Francisco Sá Carneiro passa a deslocar-se assiduamente a Lisboa. Ao longo de toda a sua actividade parlamentar apresentará no Parlamento um conjunto de projectos de lei que deixarão profundas marcas no hemiciclo e serão, evidentemente, rejeitados pela larga maioria de deputados que apoiavam o regime. Redigirá, durante o seu exercício como deputado, diversos projectos, entre os quais muitos de grande relevo como os respeitantes a «Liberdade de Associação», «Liberdade de Reunião», «Funcionários Civis», «Alteração ao Código Civil» (divórcio e separação de pessoas e bens), UM LEGISLADOR

«Organização Judiciária», «Amnistia de crimes políticos e

solitário

faltas disciplinares». Todos «chumbados».

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Francisco Pinto Balsemão conta que Sá Carneiro era «um cidadão capaz de tomar a iniciativa sozinho, trabalhando-a primeiro e publicitando-a na ocasião adequada, fosse um projecto de lei, uma proposta política, uma mudança de alvo prioritário de ataque. Por exemplo: os diplomas que a Assembleia Nacional de 1969/73 nunca sequer debateu, sobre o direito de reunião e o direito de associação. Esses diplomas, tanto quanto sei, elaborou-os sozinho, provavelmente no Hotel Tivoli, onde ficava quando vinha a Lisboa e passava longas horas de isolamento, e entregou-os sozinho ao Parlamento de então. Não consultou os outros membros da ala liberal, avisou-os apenas do acto consumado». Para se ter uma ideia das dificuldades que a ala liberal, e em particular Sá Carneiro, encontravam na sua actividade de deputados, nos moldes que entendiam servir melhor a causa pública, atente-se nas peripécias que envolveram o projecto relativo à Lei de Imprensa que o deputado pelo círculo do Porto viria a apresentar ao Parlamento. Logo a 25 de Fevereiro de 1970, pouco depois do iní cio da sessão legislativa, dirige-se ao hemiciclo, proferindo: «Não há dúvida, pois, que em matéria de imprensa não temos lei. Continuamos, como em 1959 se disse, a “deixar ao arbítrio dos homens o que devia pertencer à disciplina das leis”. Situação que nem sequer nos permite exercer a indispensável fiscalização sobre o controlo que da expressão do pensamento tem o Governo, pois que onde impera o arbítrio não há fiscalização possível. Eram de um homem de imprensa as palavras, plenamente actuais, aqui

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citadas em 1959 pelo deputado Carlos Moreira: “Nenhum jornalista ou empresário de Imprensa quer outro direito que não seja o de exercer livremente a sua missão, embora sujeito às correspondentes responsabilidades. A lei deve fixar com precisão as formas de exercício desse direito e as cominações a que se sujeita quem, por qualquer modo, falseie a verdade ou agrave injustamente qualquer cidadão ou entidade colectiva.” Parece-me que é mais do que tempo de agir no sentido de obter rapidamente um projecto ou uma proposta de lei de Imprensa, que não só restabeleça e discipline o direito de livre expressão do pensamento, como consagre os princípios orientadores das relações empresa-jornalista, como prevê o artigo 23.º da Constituição. Nesse sentido aqui deixo o meu apelo, declarando que procurarei intensamente apresentar um projecto de lei de Imprensa, se possível ainda dentro da actual sessão legislativa.» Vozes «Muito bem!»

O DEPUTADO CENSURADO Esta contundente intervenção, que anunciava a firme determinação de Sá Carneiro respeitante à questão da Lei de Imprensa e ao seu magno problema – a censura – vai desencadear uma série de reacções por parte dos apaniguados do regime, que tentam por todos os meios ocultar da opinião pública as palavras do deputado. Logo no dia seguinte este tem de protestar no Parlamento:

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SESSÃO DA CDE

«Sr. Presidente: Tive ontem aqui ocasião de abordar um assunto que, como disse, considerava de primacial importância: a questão da necessidade de uma Lei de Imprensa.

em Sintra onde se reivindica a liberdade de imprensa

Com alguma surpresa verifiquei, nos relatos dos jornais da manhã, certas incongruências que me fizeram suspeitar de intervenção estranha na forma como o relato foi feito. Acabo de ter a confirmação da interferência da Censura nos relatos da imprensa acerca da minha intervenção, os quais foram, nalguns jornais, quase totalmente suprimidos. Não me sinto ofendido pelo facto, muito pelo contrário. Mas creio que a Câmara o foi, e por isso não me dispenso de aqui deixar expresso o meu profundo desgosto. Apenas mais duas palavras. Entendo que a liberdade de expressão do pensamento devidamente regu lamentada não exclui a consideração de todos os inte-

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resses nacionais, incluindo o da defesa, como não impõe também a existência de uma censura prévia. A Câmara foi de facto ofendida, e por isso não me dispenso de deixar aqui expresso o meu profundo desgosto e vivo protesto. Quanto ao facto em si, ele é apenas a demonstração viva e actual daquilo que eu ontem aqui disse PINTO

quanto aos inconvenientes do sistema vigente [...]. Esse

BALSEMÃO

facto foi a encarnação viva da necessidade de uma lei que

E

SÁ CARNEIRO,

duas presenças

regule a liberdade de expressão de pensamento pela im-

da ala liberal

prensa. Tenho dito.»

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O orador foi muito cumprimentado, reza o Diário parlamentar. Não deixa de ser curioso – e ele refere a situação pertinentemente – que Sá Carneiro tenha sido vítima de uma situação que denunciara antes. E se os tempos corriam rápidos, Francisco galopava. Prometera apresentar o seu projecto de lei de Imprensa durante a sessão legislativa? Pois entregá-lo-ia para apreciação logo em Abril desse mesmo ano. O seu primeiro artigo dizia, no número 1, tão simplesmente isto: «A liberdade de expressão do pensamento pela imprensa será exercida sem subordinação a qualquer forma de censura administrativa, autorização, caução ou habilitação prévia, nos termos da presente lei e com os únicos limites decorrentes dos seus preceitos e daqueles que a lei geral impõe aos actos das pessoas, em ordem a impedir a perversão da opinião pública, na sua função de força social e salvaguardar a integridade moral dos cidadãos.» A obstinada persistência de Sá Carneiro, associada a uma intransigente defesa das ideias que defende, começam a dar nas vistas, tanto nas sessões de São Bento como na opinião pública informada. É cada vez mais respeitado e receado. Corre todos os riscos que pode, o que nunca deixará de fazer na sua vida política. Gosta da sua actividade, conseguindo conciliar a vida parlamentar com a prática de advogado. Só em casa é que a recente actividade de Francisco começa a ter reflexos e o casal sofre as consequências da situação. Mas nada fará parar Sá Carneiro. Leva o seu papel tão a sério que chega a ensaiar para um gravador as intervenções que tem de fazer. A pouco e pouco vai-se

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desprendendo dele uma certa timidez, forjando-se, no lugar dela, a voz de um tribuno temível. Em Julho de 1970 a Assembleia é surpreendida pela morte brutal de José Pedro Pinto Leite num acidente de helicóptero, na Guiné. Sá Carneiro, muito contristado pelo desgosto sofrido, é escolhido pelos seus pares da ala liberal para fazer o discurso de elogio de José Pedro, no encerramento do ano parlamentar. Na sua intervenção, deixa clara a intenção de assumir o testemunho recebido do seu colega e amigo.

O DOM DA PALAVRA Em Outubro de 1971 começa nova sessão legislativa, marcada pela revisão constitucional. Os jovens da ala liberal, com Francisco à cabeça, apresentam uma proposta de texto que, entre outras «heresias», estabelecia a eleição directa do Presidente da República. No meio de peripécias processuais, o documento baixa à Câmara Corporativa para apreciação. Esta rejeita-o liminarmente. Já no Parlamento, a maioria dos deputados afectos ao regime vai, em discussão na especialidade e com métodos de duvi dosa legalidade constitucional, travar até a própria discussão da proposta. É nesta ocasião que Sá Carneiro revela toda a sua envergadura política. Durante uma hora dirige-se ao hemiciclo de improviso, zurzindo asperamente o regime e denunciando a falta de condições para o debate político. Em

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suma, o seu libelo acusatório torna-o ainda mais respeitado pelos seus pares e temido pelos adversários. Sem hesitar, Sá Carneiro publica a proposta. Agora todos sabiam o que podiam esperar dele. A vertente de ardoroso parlamentar vai evidenciar-se múltiplas vezes, quebrando a modorra de décadas de marasmo consensual. Na discussão que promove referente ao decreto-lei que regulamentava as Cooperativas e Associações, os dotes do advogado serão amplamente vertidos na sua função de político. Numa breve troca de argumentos «esmaga» o seu oponente. Estava o deputado Cunha Araújo a defender a pro-

SÁ CARNEIRO E

PINTO

BALSEMÃO, deputados da ala liberal

mulgação do Decreto-Lei n.º 520/71 quando Sá Carneiro o interrompe: O Sr. Sá Carneiro: Dá-me licença? O Orador: A V. Ex.ª, para usar uma terminologia que lhe é cara, devo dizer-lhe que «consinto» a sua interrupção. O Sr. Sá Carneiro: É-me indiferente. V. Ex.ª entende que a remissão feita pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 520/71... O Orador: Eu não estou a ouvir... O Sr. Sá Carneiro: V. Ex.ª entende que a remissão... O Orador: A revisão?... O Sr. Sá Carneiro: A remissão. O Orador: Ah! A remissão. Está bem! O Sr. Sá Carneiro: ... que a remissão feita pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 520/71 para o regime legal das

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associações não envolve a aplicação das normas do Código Civil? O Orador: Tal como me exprimi no texto da minha intervenção, e que acabei de ler, disse que o nosso Código Civil, no seu artigo 168.º, não abrange as cooperativas. O Sr. Sá Carneiro: A minha pergunta não é essa, Sr. Deputado. É se a remissão não abrange as normas do Código Civil... Eu pergunto é se a remissão feita implica ou não... O Orador: Não. O Sr. Sá Carneiro: Ah! V. Ex.ª entende que não? O Orador: Entendo que não. Entendo que o Código Civil não se aplica às cooperativas. O Sr. Sá Carneiro: Mas então o Código Civil não regula as associações? O Orador: Se uma sociedade cooperativa vier posteriormente a ser declarada simples associação e se for declarada a sua inexistência judicial, o Código Civil, na sua regulamentação quanto à sociedade civil, pode vir a ter interferência nisso. É uma questão de interpretação e de julgamento... O Sr. Sá Carneiro: Não, não. O problema é este: então não é verdade que o Código Civil regula as associações, Sr. Deputado? O Orador: Mas há uma legislação especial neste aspecto, que é precisamente aquela que está em vigor: o Decreto-Lei 39 660, que regula a actividade das associações. O Sr. Sá Carneiro: Exacto. Mas não é verdade que o Código Civil contém hoje parte do regime legal das associações? O Orador: Pois contém.

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O Sr. Sá Carneiro: Então como é que não é aplicável às cooperativas pela remissão feita pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 520/71? O Orador: Simplesmente porque se trata de uma regulamentação própria. O Poder tem, pois, a solução de interferir através de outras vias... O Sr. Sá Carneiro: Mas quais? O Orador: Bom, se tivesse perante mim o Código Civil para poder estudar o assunto com o cuidado... O Sr. Sá Carneiro: Eu também não tenho... O Orador: ... com o cuidado e a antecipação com que V. Ex.ª o estudou, o caso era outro. Eu posso

SÁ CARNEIRO

é elaborar um parecer e dar-lho posteriormente...

no uso

O Sr. Sá Carneiro: Não, eu gostava era que respon-

da palavra

desse à minha pergunta... O Orador: Neste momento não tenho à minha disposição os recursos de interpretação jurídica capazes para lhe dar uma resposta satisfatória. E como não vamos estar aqui com jogos florais... Claro que V. Ex.ª foi um dos signatários da baixa para ratificação por esta Assembleia Nacional do Decreto-Lei n.º 520/71... O Sr. Sá Carneiro: E V. Ex.ª é um dos oradores!... O Orador: ...e socorreu-se... e está apetrechado, neste

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momento, com conhecimentos de que eu não disponho, para já. Mas posso dar-lhe um parecer por escrito... O Sr. Sá Carneiro: Eu não peço, nem quero, parecer nenhum. Peço uma simples resposta a uma pergunta... O Orador: Não? Eu não levava nada por isso. Entre colegas... O Sr. Sá Carneiro: Não preciso de mais nada...

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FINALMENTE A LIBERDADE

25 DE ABRIL. Portugal conquista a liberdade

Faltavam cinco minutos para as 11 da noite quando os Emissores Associados de Lisboa transmitem a primeira senha, a canção E Depois do Adeus, interpretada por Paulo de Carvalho, dando início à movimen-

tação sobre Lisboa. Os capitães estavam fartos da guerra, do regime, das humilhações. Haveriam de mudar uma longa página no livro da História.

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A ALVORADA DE ABRIL A operação militar encetada pelos capitães tendo em vista o derrube do regime inicia-se verdadeiramente no dia 23 de Abril, quando Otelo Saraiva de Carvalho distribui o plano de acção aos mensageiros que o hão-de transmitir às diversas unidades envolvidas no golpe. Na noite do dia seguinte, Otelo e mais cinco oficiais envolvidos dirigem-se ao posto de comando do Movimento, montado no Regimento de Engenharia 1, na Pontinha. As instalações não podiam ser mais precárias: um pavilhão com as janelas tapadas por cobertores, mais mesas que cadeiras, camas de campanha, equipamento de comunicações rádio, telefones. E, para seguir o curso das operações, um quadro onde foi afixado o mapa das estradas do Automóvel Club de Portugal! Passavam já 20 minutos do dia 25 quando, no programa Limite, da Rádio Renascença, é emitida a segunda senha, de confirmação da irreversibilidade da operação. Tratava-se da canção Grândola Vila Morena, interpretada por José Afonso, e que ficaria para sempre associada ao acontecimento. Ao longo da noite, as forças revoltosas ocupam, um a um, os pontos mais estratégicos da capital. O Rádio Clube Português, a RTP e a Emissora Nacional, a Marconi e o Banco de Portugal, o aeroporto, o Quartel General e o Estado-Maior do Exército, o Ministério do Exército no Terreiro do Paço, onde vêm colocar-se as forças da Escola Prática de Cavalaria de Santarém, comandadas por um jovem capitão sisudo e tímido, mas determinado, que

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ficaria na história daquela jornada: Salgueiro Maia. Em todas estas acções a resistência das forças leais ao Governo é fraca ou quase nula, excepto a tensão que por algum tempo foi vivida no Terreiro do Paço. O Rádio Clube Portugês passa a emitir, sucessivamente, os comunicados do Movimento das Forças Armadas. E então, por adesão espontânea, o povo sai à rua ainda o dia estava a nascer. Em breve se forma uma multidão vibrante que incentiva os insurrectos a irem em frente. O que começara por ser um golpe de Es-

SALGUEIRO

tado transforma-se numa revolução.

MAIA,

O ponto-chave de toda a operação decorre no Largo

o herói modesto

do Carmo, Chiado, onde se situa a sede da GNR, o Quartel do Carmo. Havia sido ali que se tinha refugiado Marcello Caetano, acompanhado por dois dos seus ministros e algumas figuras gradas do regime. Salgueiro Maia e as suas tropas cercam o quartel com diversos carros de combate e exigem a rendição. A população acotovela-se no pequeno largo, grita palavras iradas contra Marcello, exulta e confraterniza com os militares. É inútil o esforço feito para afastar toda aquela gente. Longas horas se passam, durante as quais os sitiados, e particularmente o presidente do Conselho de Mi-

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QUARTEL DA

GNR

no Largo do Carmo

nistros, se apercebem de que o fim chegara. Maia ameaça com o bombardeio, força a rendição. Mas, dentro do quartel, a resposta desejada tarda a vir. Os prazos dados vão sendo ultrapassados. Finalmente o general António de Spínola é chamado para receber o poder de Caetano e acompanhantes. A bandeira branca é hasteada. Pelas 19 horas e 30 minutos está consumada a rendição. Marcello é retirado dentro de uma chaimite e conduzido à Pontinha. Daí seguirá, no dia seguinte, com Américo Tomás e outros elementos afectos ao deposto poder, para a Madeira. Dias mais tarde serão levados para o exílio no Brasil. Cerca das 20 horas, quando algumas tropas e muitos populares cercam a sede da PIDE/DGS, na Rua António Maria Cardoso (também no Chiado), alguns elementos da

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polícia política disparam das janelas, fazendo 4 mortos e 45 feridos. Foi o único acontecimento sangrento de uma revolução sem mácula. Já no dia 26 a PIDE rende-se e são libertados os presos políticos de Caxias e Peniche. A Junta de Salvação Nacional surge aos Portugueses na RTP e o general Spínola é designado Presidente da República. Os dias seguintes são de festa permanente, que atinge o auge na grande manifestação do 1.º de Maio em Lisboa, que culmina no estádio da FNAT (Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, organismo corporativo destinado aos tempos livres dos trabalhadores), reunindo cerca de meio milhão de pessoas e onde estão já presentes Mário Soares e Álvaro Cunhal, ambos regressados do exílio. De súbito os Portugueses acordam para uma realidade que lhes foi desconhecida durante 48 anos, quase meio século: a liberdade.

ABANDONO E Sá Carneiro? Como reage aos acontecimentos? O ex-deputado «fazia a sua travessia do deserto político». Acabara o ano de 1971 desanimado, fala longamente com os amigos do Porto. Conseguira superar certas inibições provocadas pela sua excessiva timidez, pela natural inexperiência das coisas da política, através da afirmação da vontade e da razão. As suas actuações nas comissões parlamentares tinham-lhe progressivamente concedido o

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estatuto de político e as intervenções em plenário conferiam-lhe a envergadura de um tribuno. Na sessão legislativa seguinte, enfrentou novos combates. A ala liberal elegeu um deles acima de todos: a questão colonial. Depressa se aperceberam de que o regime não estava em condições de resolver o problema das colónias africanas de acordo com a realidade e com os tempos. Sá Carneiro entrou, então, em discreto contacto escrito com Spínola, de cujo pensamento se sentia próximo. A ideia central era a autonomia progressiva para os territórios do ultramar, procurando manter um vínculo REUNIÃO DA

SEDES

com Sá Carneiro e Pinto Balsemão

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com eles, à inglesa, na senda da Commonwealth. Nesse contacto, Sá Carneiro abordara, igualmente, a perspectiva de Spínola se candidatar à presidência da República, na linha dos projectos que vinha defendendo relativamente à reorganização da política e do funcionamento do Estado.


Spínola, após ter enviado os seus homens para falarem com o deputado, num contacto preliminar, declinará a proposta, alegando a sua inoportunidade. Sá Carneiro entrou em «fúria e tristeza». Para ele, a questão da presidência era crucial, porque permitiria resolver a questão colonial. Meses depois, Sá Carneiro, que melhor que ninguém sabia coexistir em si a «exaltação e a depressão», recusa-se, como deputado, a votar a eleição de Tomás. No princípio do Outono de 1971, a imprensa noticia o aparecimento da SEDES – Associação para o Desenvolvimento Económico e Social. A princípio convidado e relutante, Sá Carneiro entra na organização em 24 de Abril de 1972, fazendo parte da segunda direcção. Nela participam, igualmente, Magalhães Mota e Sá Borges, futuros companheiros de jornada política. Nesses anos começaram a fazer para si sentido as teses da social-democracia. No seu íntimo, fez um percurso que naturalmente ia ao encontro dos grandes princípios enunciados por essa corrente política: «Dentro do painel dos partidos políticos da Europa Ocidental, era a social-democracia escandinava e alemã que melhor exprimia os valores defendidos por Mounier. Eram os sociais-democratas quem melhor se identificava com essa opção», afirma Joaquim Pinto Machado. Foi assim que em Janeiro de 1972 Francisco Sá Carneiro deu uma célebre entrevista ao jovem jornalista Jaime Gama, no jornal República, durante a qual se confessou um social-democrata. Escândalo! Nesse ano, Francisco deparou-se de novo com o drama da morte, desta vez de seu irmão João, vítima de

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uma úlcera mal tratada. O acontecimento deixou Sá Carneiro profundamente revoltado e submeteu-se a um luto rigoroso, falando constantemente do irmão que falecera de modo quase obsessivo. No Parlamento, a sua posição tornara-se cada vez mais difícil. Ele, que nunca admitia qualquer falha em si próprio, reconheceu, junto dos amigos, que se enganou ao aceitar cumprir a legislatura como deputado. A ideia de renunciar ao mandato começava a ganhar corpo. Discute-a quando vai ao Porto, no Natal. Isabel aplaude a ideia. Quando regressa a Lisboa, no início de Janeiro de 1973, estava decidido a romper. A 24 de Janeiro fez uma intervenção num colóquio da SEDES. Tinha um ar abatido, cansado. Poucos sabiam que no dia seguinte renunciaria ao seu lugar no Parlamento. O facto terá repercussões internacionais. De novo regressa ao Porto. Estava triste, deprimido, sem alento. Acabaria por explodir com um amigo: «A minha vida política acabou! Esta via está exausta. A ala liberal não existe!»

UM HOMEM NO LIMBO Isabel Maria confessa que suspirou de alívio pelo regresso do marido. Os filhos precisavam cada vez mais do pai, clientes e empresas disputavam-no. No entanto, é nítido para Isabel que algo «lhe ficou irreversivelmente gravado» no tocante à política. Ele próprio vai confessando que sentia a falta de tudo o que viveu, de modo inten-

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so, durante três anos. Para se entreter, mas também para intervir, aceitou o convite de Francisco Pinto Balsemão para assinar uma coluna num semanário que este acabara de lançar: o Expresso. Muitos dos seus artigos foram cortados pela censura, já então eufemisticamente designada por Exame Prévio. Em Abril de 1973, Francisco Sá Carneiro estava na encruzilhada entre a vida profissional de advogado bem sucedido e a sua inclinação pela política. Foi então que sofreu um grave acidente de viação, perto de Famalicão, num carro conduzido por Ricardo. À chegada ao Porto es tava quase sem pulso. Entrou na sala de observações com zero de tensão arterial. Tinha uma fractura na bacia, hemorragia interna, traumatismo renal e sete costelas partidas. No hospital, Francisco prepara-se para morrer. Foi chamado Frei Mateus. Totalmente lúcido, o advogado pediu à mulher que apontasse algumas recomenda ções, desmarcando reu niões e tranquilizando-a sobre questões

SÁ CARNEIRO

financeiras. Finalmente, solicita-lhe que eduque os filhos

durante uma

como ambos o vinham a fazer até aí. Nessa altura, Isabel

entrevista

percebe que ele está preparado para morrer. Porém, ao fim de três dias na sala de reanimação começou a sentir melhoras. Foi para um quarto particular.

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De novo piorou e teve de ser operado de urgência a um coágulo, que lhe provocou a extracção do baço. Antes, pediu para receber a extrema-unção. Quando recita as orações finais, não consegue reter as lágrimas. Sobreviveu, mas a recuperação foi difícil e dolorosa. Até que chegou o Verão, e em Esperigo ganhará, finalmente, novo vigor e saúde na companhia dos filhos. O formigueiro que sente pela política voltou a manifestar-se. No final do Verão, retomou os seus artigos no

Expresso, praticamente convidando à abstenção nas legislativas de Outubro. Também manteve a sua actividade profissional, apesar de sentir-se cada vez mais farto de advogar. Desabafará com um colega: «Olha, o que eu queria era fazer política!»

RENASCIMENTO É, portanto, natural o júbilo com que recebe a notícia quando se encontrava no duche matinal. Exulta. Um dos filhos conta a Maria João Avillez: «Nunca mais me esquecerei do pai, despenteadíssimo, de roupão, andando pela casa, de um lado para o outro, aos gritos: “Houve uma revolução, ouviram? Houve uma revolução!” E liga o rádio, começando a telefonar imediatamente.» Logo no dia seguinte não resiste e desloca-se a Lisboa, onde tem uma grande conversa com Pinto Balsemão, na sede do Expresso. Ambos comungam da mesma ideia: criar um partido político «central», capaz de ser alterna-

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tiva ao PS e ao PCP mas sem se confundir com a direita. Partir da estaca zero. Tudo havia para fazer. No dia 27 Sá Carneiro fala à RTP. Está calmo e determinado. E aborda desde o logo a criação de um partido novo.

AO ENCONTRO DE UM DESÍGNIO Começara, para Francisco, uma nova etapa no exercício da política, de que tanto gostava e à qual se entregaria com paixão e um imparável sentido de destino. Nos dias seguintes o triunvirato que vai liderar a criação da nova formação política (Sá Carneiro, Magalhães

MAGALHÃES MOTA e José Silva, outro deputado da ala liberal

Mota e Pinto Balsemão) tem de decidir entre esperar que a SEDES se alargasse e convertesse no partido desejado, ou se começava do zero. A decisão é tomada pelos três homens logo no dia 30. Não aguardariam nem mais um dia. A marcha dos acontecimentos era galopante e não havia tempo a perder. Começam os contactos para trazer gente capaz de ajudar. Os ex-deputados liberais, entre os quais Miller Guerra (que depressa abandona aquela «aventura»), mas também personalidades de destaque como Vasco Vieira de Almeida, prestigiado advogado, e um

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TRIO FUNDADOR DO

PPD

grupo de juristas de Coimbra, entre os quais se incluíam Barbosa de Melo, Figueiredo Dias e Mota Pinto. Com eles discutirá profundamente aquilo de que o partido a criar mais precisava: um programa. Pelo caminho abandonam a hipótese de fusão com um grupo reunido em torno de Freitas do Amaral, que viria a dar origem ao CDS. A orientação é claramente posicionar o futuro partido como partilhante dos ideais da revolução, colocado no centro-esquerda. Um partido social-democrata. Esta era, de resto, a designação que Sá Carneiro pretendia dar-lhe. Intento gorado: no dia 5 de Maio surge um denominado Partido Cristão Social-Democrata, de curta duração, mas que chegou para impedir aquela designação. Foi à última hora que o escritor Rúben Andersen Leitão propôs um nome – Partido Popular Democrático. Era uma

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ideia que Isabel Maria havia já avançado, informalmente, junto do marido. E PPD ficaria a ser, por alguns anos. Entretanto, a frenética actividade do núcleo inicial não parava. No dia 3 são recebidos por Spínola, juntamente com Vasco Vieira de Almeida e Miller Guerra, no palácio de Belém. Estarão, o general e os jovens políticos, de acordo nas linhas fundamentais quanto ao futuro da questão magna: o problema colonial. A ideia de Spínola, embora aceitando o princípio da autodeterminação referendada, passava, idealmente, por uma comunidade federada de Estados. Para Sá Carneiro a solução era aceitável, desde que encarada como uma transição limitada no tempo. No dia 4 de Maio Balsemão e Mota participam na reunião que prepara a criação do primeiro Governo Provisório, que abarca todo o espectro político desde o PCP até ao grupo que daria origem ao CDS, mais um grupo numeroso de representantes do MFA. A questão colonial vai separar os dois homens da maioria dos presentes, que preconizavam a independência imediata. Os representantes do futuro PPD, pelo contrário, defendiam a autodeterminação apenas após a realização de eleições e a elaboração de uma Constituição.

NASCE O PARTIDO POPULAR DEMOCRÁTICO A 6 de Maio nasce, finalmente, o PPD. Marcelo Rebelo de Sousa escreve, sob pressão do relógio, o comu nicado que anuncia o acontecimento, mesmo a tempo de

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entrar no noticiário das 19 horas, no Canal 1 da RTP. Surge como um partido sem bases, sem sede, sem estrutura organizativa e sem programa, mas com uma enorme vontade por parte dos seus fundadores em se implantar na sociedade portuguesa. Alguma coisa queria dizer o segundo P. Na Curia reúnem-se pela pri meira vez os notáveis do PPD vindos já de grande parte do país, para aprovarem as linhas programáticas e elegerem um líder. Intencionalmente Sá Carneiro não está presente, não querendo, deste modo, condicionar a escolha de um nome para primeira figura do partido. Da Curia o novo partido sairá com uma orientação política clara. Afirma-se, segundo Marcelo Rebelo de Sousa, com um pendor económico-social de esquerda, optando pela social-democracia como a via para chegar ao socialismo democrático, mas politicaBANDEIRA DO

PPD,

nesta fase

mente mais ao centro e, «em matéria ultramarina, é a procura do equilíbrio entre a posição de

ainda sem

Spínola e as pulsões partidárias (PS, MDP, PCP)». Na reu-

definição

nião é, igualmente, escolhido o líder. E ele não é outro senão Francisco Sá Carneiro. A 15 de Maio abre a primeira sede nacional do PPD, ironicamente localizada no Largo do Rato, largo de Lisboa onde mais tarde viria a localizar-se a sede do PS. Já não era sem tempo. Até então, o partido tinha funcionado, literal mente, nas instalações do semanário Expresso.

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Fiéis companheiros Francisco Pinto Balsemão Foi o segundo dos fundadores do PPD, com apenas 36 anos. Igualmente licenciado em Direito, foi ajudante de campo de Kaúlza de Arriaga e secretário de Pedro Soarez Martinez, figuras gradas de um regime que não era do seu agrado. O seu grande amor foi a imprensa, tendo fundado, em 1973, o semanário de referência Expresso, desalinhado com a situação e que rapidamente se transformou no melhor periódico da época. Deputado da chamada ala liberal a partir de 1969, estabelece laços de sólida amizade com Sá Carneiro, que colaborou algum tempo no seu jornal. Ministro de Estado no VI Governo, Balsemão empenhou-se na primeira revisão constitucional de 1976. A 9 de Janeiro de 1981, Ramalho Eanes empossa Pinto Balsemão, escolhido pelo PSD para suceder a Sá Carneiro na chefia do partido, como primeiro-ministro do VII Governo

PINTO BALSEMÃO E

CARNEIRO, uma amizade para além da política

Constitucional. Contudo, este resolve demitir-se em Agosto do mesmo ano. O processo de revisão constitucional ajudou a prolongar por mais algum tempo a Aliança De mo crática, cujos principais dirigentes tinham dificuldade em aceitar a lide rança de Balsemão.

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Homem de grande energia, nascido numa família da alta burguesia, é um espírito liberal, crente profundo nas virtudes da social-democracia. Viria a constituir um império na área da comunicação que inclui uma estação televisiva privada, a SIC. É o militante número 1 do PSD.

Joaquim Magalhães Mota Era homem de grande bonomia e de enorme espírito de organização, revela-nos Marcelo Rebelo de Sousa. Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, foi um dos três fundadores do PPD (ostentava, de resto, o número 3 de filiado, que perderia por ocasião da sua saída do partido, em 1979). Natural de Santarém, tinha 39 anos quando abraçou a aventura do lançamento do novo partido. E nessa difícil jornada foi incansável e imprescindível. Dirigente associativo na juventude (Associação Académica, Juventude Universitária Católica, Cineclube Católico), cooperativista em tempos difíceis, tornou-se um advogado prestigiado e discreto, preocupado com assuntos precursores como as questões ambientais. No Governo de Marcello será chefe de Gabinete de Rogério Martins, secretário de Estado da Indústria, orientando o país no sentido do desenvolvimento e dos padrões europeus. Foi deputado da ala liberal entre 1969 e 1973 e fundador da SEDES, da qual chegou a ser presidente do Conselho Coordenador. Foi ministro da Administração Interna no I Governo Provisório, ministro sem pasta no II, e no VI ministro do Comércio; deputado à Assembleia Constituinte e à Assembleia da República entre 1976 e 1979 pelo PSD e, a partir de 1980, pela ASDI.

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O GOVERNO DE PALMA CARLOS O dia seguinte assiste à posse do I Governo Provisório. Era um acontecimento histórico. Embora não legitimado pelas urnas, como é claro, não deixava de ser o primeiro gabinete plural em muitas décadas. Adelino da Palma Carlos fora designado por Spínola como primeiro-ministro. Era um democrata e republicano moderado, capaz e dialogante. Vai compor o seu governo com elementos provenientes de todas as áreas políticas, dos comunistas aos centristas, com predominância de socialistas, passando por elementos conotados com a

GENERAL ANTÓNIO DE

SPÍNOLA

SEDES, militares spinolistas, independentes, e dois ministros do PPD – Sá Carneiro e Magalhães Mota (Administração Interna). Uma verdadeira «Babel» ideológica, que fazia sentido apenas naquele contexto histórico. Palma Carlos não esconde a sua preferência por Sá Carneiro. Nomeia-o ministro sem pasta (tal como Álvaro Cunhal e Francisco Pereira de Moura), mas vai mais longe e escolhe-o para adjunto do primeiro-ministro. Há-de convidá-lo, sabendo que não tem casa em Lisboa, para vir morar na residência oficial em São Bento. Sá Carneiro desloca-se ao Porto, despede-se da mulher e é aí que se instala.

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TOMADA DE POSSE

do I Governo Provisório

Desde o início que o I Governo Provisório tem dificuldades em impor-se. Marcelo Rebelo de Sousa afirma que «a sua incapacidade é chocante». Tem pela frente uma crescente vaga de agitação social, que se traduz, numa primeira linha, por uma onda grevista de enormes proporções, com reivindicações de melhores salários, condições laborais, severa restrição dos despedimentos, entre outras; e, num plano mais profundo, na crescente clivagem entre os sectores mais radicais e os moderados de pendor legalista (atrás dos quais se encobrem os conservadores, sem possibilidade de expressão à época). A 9 de Julho, cansado de ver a sua acção constantemente limitada e as suas propostas rejeitadas – entre elas a alteração da legislação constitucional, que visava antecipar as eleições presidenciais e autárquicas, referendando uma Constituição Provisória e adiando as eleições para a Assembleia Constituinte –, Palma Carlos bate com a porta e demite-se. Sá Carneiro fica do seu lado e apresenta igualmente a demissão, tal como Magalhães Mota (com eles, Firmino Miguel, afecto a Spínola e que detinha a pasta da Defesa).

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Adelino da Palma Carlos Adelino da Palma Carlos foi primeiro-ministro do I Governo Provisório (de 17 de Maio a 18 de Julho de 1974). Este prestigiado advogado de ideias liberais despertou a atenção de Spínola, que a ele recorreu para chefiar o primeiro Governo saído da revolução de 1974. Marcelo Rebelo de Sou sa é eloquente acerca do seu antigo professor: «Quem pôde com ele, algum dia, privar – e eu tive a honra de ser seu aluno – sabe que pertencia àquele punhado de homens que acreditam na liberdade política, eco nómica e social, mas com a estabilidade ordeira que as classes médias tanto apreciam. Como jurista e Mestre de juristas entendia ainda que o Direito tem um papel essencial na criação dessa liberdade

ADELINO DA

PALMA

CARLOS

e paz social. E, embora a sua geração conhecesse e compreendesse as correntes positivistas sociológicas – isto é, as visões do Direito como ligado à realidade social –, ele acabaria por achar que uma boa lei podia travar ou, pelo menos, controlar uma revolução.» Ligado a importantes grupos económicos assegurava a credibilidade do novo Governo nos meios conservadores e internacionais. Contudo, os tempos, pendentes para a esquerda,

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seriam difíceis para o conceituado jurista e professor. Mesmo o Conselho de Estado viria a recusar as suas propostas de concentração do poder nas instâncias presidencial e governamental através de um referendo constitucional. Em consequência disto, Palma Carlos pedirá a sua demissão.

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A CONSTRUÇÃO DE UM PARTIDO

MILITANTES DO PSD descem o parque Eduardo VII, em Lisboa, nas comemorações do 1.º aniversário do Partido Popular Democrático

O primeiro Governo saído do 25 de Abril caiu com fragor. Chegara a hora de Francisco se voltar para o partido. No Largo do Rato vai encontrar uma organização deficiente, em estado embrionário. Entrega-se apaixonadamente à missão de erguer e implantar o PPD na sociedade e afirmar a sua alternativa política.

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DO GOVERNO PARA O PARTIDO Sá Carneiro volta ao partido com a firme intenção de o reorganizar e dinamizar. Agora a sua implantação nas bases, o seu alargamento no terreno, constituem preocupações prioritárias, tal como a defesa dos ataques internos e externos de que é alvo. Depois da queda do Governo de Palma Carlos os desafios são múltiplos. Entre eles avulta a preparação das eleições para a Assembleia Constituinte, em Abril de 1975. Mas também com o Congresso do PSD que se aproxima. Por razões de ordem táctica, começa por declinar a participação no II Governo Provisório. Afinal a sua posição estava fragilizada com a crise Palma Carlos. Encontra uma justificação, em artigo no Povo Livre. Defende-se: «Como já referi publicamente, mais de uma vez, entendi, sendo nisso acompanhado pela Comissão Política, que era essencial que ao partido me dedicasse cada vez mais, se possível exclusivamente. E desde o momento em que concluímos que a minha actividade era mais necessária e útil no partido do que no Governo, não deixámos que a isso se sobrepusessem razões de aparente prestígio ou suposta conveniência partidária.» Nesses dias Sá Carneiro vai conhecer Conceição Monteiro, que se lhe apresenta como voluntária para trabalhar. O homem do Porto convida-a para colaborar com ele. Rapidamente se torna uma figura imprescindível para o labor de Francisco, de quem se tornará amiga. Sá Carneiro é obrigado, perante a opinião pública e a crescente viragem à esquerda da sensibilidade polí-

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tica nacional, a demarcar-se tanto quanto possível do Governo Palma Carlos e a estabelecer pontes com o MFA. É nesta frente externa que emprega largos recursos em sua defesa. A 20 de Julho de 1974 declara ao Expresso : «Pelo contacto constante que mantinha com o Professor Palma Carlos, é natural que algumas vezes eu tomasse conhecimento do que se ia passando a esse respeito [os projectos de Palma Carlos] antes dos outros ministros. Por vezes, sabia o que ele ia comunicar ao Conselho de Ministros antes de ele o fazer. Mas era tudo... Os ataques desencadeados contra o PPD e contra mim próprio por certa imprensa não se baseiam assim em qualquer realidade nem têm o menor fundamento. Demais há que notar que não foram apenas os ministros PPD que se solidarizaram com o Professor Palma Carlos: em quatro, dois eram do PPD, dois não eram...»

LUTA EM DUAS FRENTES Seguidamente, Sá Carneiro passa à ofensiva, declarando a sua profunda vontade de afirmar o partido como uma força política de carácter nacional: «Não houve, pois, qualquer interferência do PPD na evolução dos acontecimentos. Quanto ao motivo desses ataques – que não nos preocupam – eles só demonstram que o PPD é, pelo menos, temido, e temido porque é forte: representa uma força real na política portuguesa, que outras forças não vêem com bons olhos[...]»

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De igual modo vai aproximar-se do MFA, de modo a não perder a crista dos acontecimentos nem a isolar o partido do centro da vida nacional. Incorpora o PPD na manifestação unitária de 25 de Julho, no estádio 1.º de Maio. Magalhães Mota terá um papel fundamental na ponte entre o PPD e os movimentos e partidos vanguardistas que, nesse tempo, se encontravam no âmago dos acontecimentos políticos. Finalmente, mas de grande importância, é o afastamento progressivo das posições de Spínola relativamente à descolonização, alinhando com as opiniões e correntes dominantes. A 13 de Agosto, de novo no Povo Livre, declara: PARA SÁ

«Por dolorosa que tenha sido para muitos a decisão, não

CARNEIRO

podia deixar de ser outra: chegara-se a um impasse nas

iniciava-se um longo

negociações, agravavam-se as tensões raciais, deteriora-

trabalho de

va-se a situação militar, avolumavam-se, cá e lá, as in-

divulgação

certezas quanto ao futuro. Daí a impossibilidade de se

dos ideais da social

aguardar, para tomar uma decisão, o resultado de um

democracia

plebiscito a organizar.»

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Na frente interna, muito há para fazer. As secções, núcleos e sedes constituem um tecido frágil e pouco consolidado, como nota Marcelo Rebelo de Sousa. É tempo de sair para a rua, captar as massas, implantar o partido junto do povo. Planeiam-se grandes comícios em áreas decisivas, como Lisboa ou o Porto. Ao mesmo tempo urge encontrar uma sede adequada. Por fim encontram um edifício na Avenida Duque de Loulé, espaçoso e central, que vem preencher as necessidades do partido e do seu jornal Povo Livre para os tempos mais próximos. Afirma Rebelo de Sousa: «Será uma sede muito boa, saudosamente recordada até aos anos 90, e mesmo melhor que a actual.» Sá Carneiro ficará com a sala 2, visto que a primeira se destinava a reuniões.

PROBLEMAS EM CASA Depois, situação típica do modo de fazer português, onde se improvisa em função das necessidades, faltava um símbolo. Como salienta Marcelo Rebelo de Sousa, no primeiro volume do seu livro A Revolução e o Nascimento

do PSD (fonte essencial para a elaboração deste capítulo), «faltava o símbolo definitivo, como faltava a cor partidária». No domínio da política interna do partido, uma clivagem ia-se acentuando. Por um lado os aspectos organizativos, em grande parte graças ao esforço e obstinação de Sá Carneiro, vão sendo consolidados – dinamiza-se o Secretariado-Geral e são criados ou activados outros órgãos

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JORGE SÁ BORGES

do PPD, que dão cada vez mais consistência e capacidade operativa ao partido. Nasce uma orgânica complexa, da qual Sá Carneiro domina o funcionamento. Contudo, um grupo, de carácter mais acentuadamente de esquerda, vai enfrentar o líder, numa luta política que há-de deixar as suas marcas. É liderado por Jorge Sá Borges, que chefiava o Secretariado para a Regiona lização. Tratava-se de uma pessoa elaborada, capaz de raciocínio agudo e calculado, estrategicamente brilhante e capaz de fazer frente, em termos intelectuais e políticos, a Francisco Sá Carneiro. As suas pontes com os militares do MFA e a esquerda eram consideráveis, e de modo a desa gradarem ao secretário-geral provisório. Os dois homens haveriam de se enfrentar durante longo tempo, a ponto de a liderança do partido chegar a balançar. Sá Borges é tido, pelos apoiantes de Sá Carneiro, como alguém que mantém contactos esteitos com o PCP e o MDP. O confronto há-de estender-se até ao primeiro Congresso.

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Uma cor e um símbolo Para a formação da iconografia do PPD (manter-se-ia, com alterações de pormenor, no PSD, ao longo dos tempos), concorreram diversos factores estéticos e ideológicos. Citemos Marcelo Rebelo de Sousa, no seu livro já referido: «A cor é escolhida ainda em Junho, mas só aparece em documentos do Partido em Julho. É o laranja e a primeira a aventá-lo é Conceição Monteiro. Trata-se de uma cor quente, mobilizadora, diversa do vermelho do PCP e do PS e de soluções simpáticas, mas com menos força, como o verde e mesmo o azul. O símbolo também surge em Julho. Embora haja muitos pais da ideia, ela pertence sobretudo a Augusto Cid, e a sua mais completa teorização e explicação será feita por Pedro Roseta, [...] no Povo Livre de 4 de Março de 1975[...]» Explicará Pedro Roseta: «Um novo símbolo, forjado na luta contra o totalitarismo, estava destinado a sobrepor-se aos restantes [sociais-democratas europeus]. [...] A descoberta, em 1931, de um feroz programa de repressão que os nazis pretendiam aplicar na Alemanha quando conquistassem o poder, através das famigeradas SA (Secções de Assalto), provocou grande agitação entre a população trabalhadora e o seu partido, o SPD (Partido Social-Democrata Alemão). Poucos dias depois, em Heidelberg, uma das muitas cruzes suásticas que já então os nazis reproduziam em grandes quantidades nas paredes das cidades alemãs apareceu cortada por um traço grosso de giz branco.

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Certamente algum trabalhador, cujo nome ficará ignorado, ao ver o símbolo odiado das forças totalitárias, não se pôde conter e resolveu espontaneamente riscá-lo. Em pouco tempo os sociais-democratas lançaram-se por toda a cidade à destruição das cruzes fascistas. Segundo um testemunho da época, à palavra de ordem: “Ao combate, rapazes, cortai o monstro de garras com uma flecha, com um raio!”, o traço tornou-se flecha, e os militantes passavam as noites num verdadeiro delírio. [...] Os hitleristas estavam furiosos [...]. “Uma curiosa guerrilha explodiu na cidade.” “Após uma semana de luta de símbolos, sobre o muro das cidades, o momento esperado chegou: a proporção entre o número de cruzes riscadas e intactas cresceu a favor dos sociais-democratas.” [...] “Entretanto e para alcançar, pela repetição, uma melhor eficácia e acentuar a ideia colectiva do movimento, a seta multiplicou-se por três. Assim nasceram, pois, as três setas da social-democracia – expressão da luta contra o fascismo.”» (Citações intratextuais de S. Tchakhotine, na obra A Mistificação das Massas pela Propaganda Política.)

O símbolo também tem a sua história: «Traduzia bem [...] a importância fundamental do movimento, das conquistas sucessivas e progressivas realizadas pela via democrática.» «Ao símbolo do nosso partido, as três setas, foram sucessivamente atribuídos outros significados que correspondem, na realidade, às linhas fundamentais do programa do PPD. As setas representam os valores fundamentais da Social-Democracia: a liberdade, a igualdade, a solidariedade: mostram que a democracia só existirá verdadeiramente se for simultaneamente política, económica e social.

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Finalmente, as cores simbolizam movimentos e correntes de pensamento que contribuíram para a síntese ideológica e de acção da Social-Democracia: a negra, recorda os movimentos libertários do século passado, a vermelha lembrando as lutas das classes trabalhadoras e dos seus movimentos de massa, e a branca, apontando os valores do homem, a tradição Cristã e humanista da Europa consubstanciada no personalismo. Em resumo, o símbolo do PPD expressa bem a nossa vontade irreversível de ascensão, de caminhada com todos os Portugueses para um futuro dife rente, para a construção de uma sociedade nova, na Justiça e na Liberdade.»

NO FIO DA NAVALHA Entretanto, na frente política interna o quadro alterava-se. Spínola perdia sucessivamente terreno para o MFA. Procurará o apoio do PPD e do CDS, que lho vão recusar, atirando-o ainda mais para a direita. No domínio da descolonização, as suas ideias são cada vez mais ultrapassadas pelos acontecimentos. Surge, então, a 10 de Setembro, a convocatória do Partido Liberal para a manifestação de dia 28, de evidente influência spinolista, e que

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28 DE SETEMBRO Militares

estará na origem da convocatória das movimentações que

revistam

ocorreram nesse dia. A 18 e 19 surgem os célebres cartazes

viaturas

da «maioria silenciosa». Rezavam assim: «És português e

em busca

queres liberdade, paz, ordem, apoia as declarações do Pre-

de armas

sidente da República, António de Spínola, e vem connosco à manifestação que brevemente se realizará na Praça do Império. Viva Portugal!» Spínola conhecerá um último momento de glória numa tourada realizada a 26 no Campo Pequeno, na qual é calorosamente aplaudido pelos presentes. Mas é sol de pouca dura. A confusão grassa nos quartéis. As prisões sucedem-se, no seio das gradas figuras da direita e do regime político deposto. Erguem-se barricadas num cordão de segurança de 100 quilómetros em redor de Lisboa, com o pretexto de apreender armas. Na verdade, o objectivo é impedir que a

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manifestação da «maioria silenciosa» se realize. Spínola é forçado a recuar, desconvocando o encontro dos seus apoiantes, ao mesmo tempo que procura dissolver a Junta de Salvação Nacional, que já lhe era adversa. Não o consegue e o MFA contra-ataca com um pacote de decisões que acabam, de vez, com qualquer ilusão do velho general. O seu caminho chegara ao fim. No dia 30 apresenta a demissão de Presidente da República, entre palavras de amargura, acusações de traição e prenúncios de desgraça. Francisco Costa Gomes, conciliador e diplomático, sucede-lhe no cargo. O PPD encontra-se numa posição delicada. Aparentemente tudo indica que ocupa o lugar dos vencidos do 28 de Setembro. Resta-lhe a estratégia de se colar aos acontecimentos, atacando a «conspiração fascista», condenando o «espírito reaccionário da manifestação que se preparava para dia 28», manifestando «a sua confiança nos órgãos institucionais», «na estrita observação da legalidade» e a cooperação com as Forças Armadas.

UMA DEFINIÇÃO O 28 de Setembro vem dar nova força às formações de esquerda, em particular o PCP. Urgia, para o PPD, uma afirmação cada vez mais firme no campo democrático, particularmente estabelecendo pontes sólidas com a Europa e os seus grupos políticos, que lhe pudessem dar uma legitimidade que tanto lhe era necessária. O desejo

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da maioria do partido, a começar por Pinto Balsemão, mas partilhado por Francisco Sá Carneiro, era só um: integrar a Internacional Socialista. Havia, contudo, um problema: o Partido Socialista de Mário Soares era o candidato natural. Seria inglório o esforço do PPD, que por largos anos não teria família política europeia.

COMÍCIO NO

PAVILHÃO

DOS

DESPORTOS

Antecedendo o Congresso, o partido organiza o seu

25 de

primeiro grande comício, no Pavilhão dos Desportos, em

Outubro

Lisboa, contando com uma vasta presença de cerca de

de 1974

8000 pessoas. Entre discursos calorosos e motivadores, surge, por último, a serena e doutrinária alocução de Sá Carneiro, marcada pelo seu ideário político e na qual estão patentes os valores humanistas e personalistas que apreendera na juventude. Galvaniza as massas. Afirmará:

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«Abertos ao futuro português democrático e progressivo, – empenhados na construção de uma sociedade nova, descomprometida e libertadora do homem; – inimigos da alienação capitalista, do domínio monopolista e dos totalitarismos de qualquer cor; – adversários do fascismo em combates antigos de que legitimamente nos orgulhamos; – assumimos a tradição liberal e republicana, as correntes do humanismo social-cristão, as experiências contemporâneas do socialismo em liberdade que são as sociais-democracias. Jaime Cortesão e Norton de Matos, Abel Varzim e o bispo do Porto, Humberto Delgado e António Sérgio, são nomes de obreiros da luta democrática que, entre muitos outros, recordamos. Há seis meses o MFA abriu aos portugueses os caminhos da liberdade. É aos partidos que compete propor as vias políticas que a democracia pluralista deve seguir para servir o povo. A nossa proposta é clara, nova, livre e progressiva. Queremos caminhar para a igualdade na liberdade. Alcançar rapidamente o progresso na segurança. Reformar plenamente a sociedade com pleno respeito pela pessoa humana. O caminho que o nosso Partido propõe a todos os democratas é um caminho de paz; um caminho do povo; um caminho da democracia. PARA BEM DE PORTUGAL.»

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O PRIMEIRO CONGRESSO Após este animador comício, era a hora de preparar o primeiro Congresso do partido, a ter lugar, igualmente, no Pavilhão dos Desportos. Será realizado nos dias 24 e 25 de Novembro, e alvo, na fase organizativa, de lutas intestinas entre Sá Carneiro e o seu grupo, o Secretariado e o grupo de Sá Borges e da Comissão Política. Os conflitos começam com pretextos, mas revelam-se em posições ideológicas distintas (Sá Carneiro mais moderado, Sá Borges mais à esquerda) e têm, como objectivo último, a tomada do poder e a colocação do maior número de peões de cada um nos lugares de influência. Sá Carneiro prepara-se, recebendo lições de dicção com a actriz Glória de Matos. É ela quem revela a Maria João Avillez que as aulas acabaram por fazer efeito. Diminui a tensão das mãos. O rosto adquire maior mobilidade, o lábio superior começa a mexer-se. Definitivamente, Francisco levava as coisas a sério. O Congresso tem um carácter constitutivo. Nele serão aprovados os Estatutos do Partido. Surgem quatro listas e serão demoradas as negociações até se chegar ao consenso de uma lista única, da qual Sá Borges sai claramente vencedor. Os mais de 1000 congressistas vão eleger esta lista única para a Comissão Política, onde pontificam sete apoiantes de Sá Borges, quatro independentes e três incondicionais de Sá Carneiro: António Rebelo de Sousa, Pinto Balsemão e Magalhães Mota. Francisco Sá Carneiro mantém o lugar de secretário-geral e domina o Conselho de Fiscalização e Disciplina.

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Para Francisco os tempos que se sucedem serão duros. Até

UM DISCURSO de conjuntura,

pelo surgimento de uma ocorrência inesperada. Durante

virado

os trabalhos surgem sintomas de doença, prenúncio dos

à esquerda

graves padecimentos que estão para vir. Conta Marcelo Rebelo de Sousa que, de repente, não vai encontrar Sá Carneiro bem de saúde. «Queixa-se de indisposição, de cólicas. E mais não diz.» Depois, Marcelo virá a saber que a madrugada de 23 para 24 vai ser passada em branco, como «pavorosas» são as dores que aguentará durante os trabalhos da noite. No Congresso, o Programa e os Estatutos são votados. Tal como as listas, por esmagadora maioria. Debilitado, Sá Carneiro fará, decerto por questões tácticas, um discurso marcadamente à esquerda no qual profere, entre

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outras, as seguintes afirmações: «Propomo-nos iniciar a construção de uma sociedade socialista em liberdade. Este é na verdade o objectivo que, pela via social-democrática, nos propomos atingir.» Esse caminho passa por ser feito «quando e nos termos que a população definir», mas essa «passagem da sociedade baseada no lucro e na exploração para a sociedade da igualdade na liberdade» será feita com «reformas sucessivas e irreversíveis». Ataca os extremismos capitalista e comunista. Defende «profundas reformas estruturais, que alterem mecanismos de poder, e substituam à procura do lucro outras motivações que dinamizem a vida económica e social». É um discurso de conjuntura, que termina com a definição do papel do partido nos desafios institucionais que se aproximam, nomeadamente as eleições legislativas. Aparentemente líder, Francisco sai do Congresso abatido e preocupado.

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AFIRMAÇÃO E AFASTAMENTO

UM POLÍTICO que fascina multidões

As eleições para a Assembleia Constituinte constituíram um encorajador resultado para um partido que, um ano antes, mais não era que um punhado de amigos irmanados num ideal. Agora representava uma força poderosa, implantada no todo nacional, desde os altos quadros aos trabalhadores mais humildes. Um partido transversal à sociedade portuguesa, portanto. No rescaldo desta animadora perspectiva, o seu líder natural vai conhecer uma das maiores agruras da vida: a doença.

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DOENÇA E TURBULÊNCIA Conta Maria João Avillez que o diagnóstico de Sá Carneiro é de carácter imperativo. Francisco sofre de alterações nervosas e emocionais devidas ao cansaço. Por isso terá de repousar. Mas os tempos pedem outra coisa. Afadiga-se em contactos internacionais, em reuniões partidárias, na consolidação daquela realidade que começava a nascer e era o espelho do seu ideal de juventude: ter um instrumento capaz de mudar para melhor o país onde nascera. Os meses seguintes serão de turbulência político-militar e de crise pessoal. A descolonização acelera o seu passo, longe que estão as soluções federalistas, referenMELO ANTUNES

dárias ou de compromisso. Os militares, e grande parte do MFA, radicalizam-se e dividem-se. Formam-se comissões não legitimadas hierarquicamente. São detidos gestores de grandes e médias empresas, e o país está em convulsão. As posi ções extremam-se. O Estado está nas mãos do MFA, por muito cindido que se encontre. Surge então na ribalta Melo Antunes que, com o seu plano moderado (que terá o seu nome e virá a ser igualmente conhecido como o Plano dos Nove),

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procura refrear uma revolução que se tornara galopante. É claro que a Assembleia do MFA de 28 de Dezembro – que se prolonga até 4 de Janeiro! – (maioritariamente afecta ao PCP e à extrema-esquerda) vai atacar duramente este plano, considerando-o retrógrado, para não dizer reaccionário. Só o prestígio de Melo Antunes e dos seus apoiantes consegue manter à tona as suas ideias, sem contudo impor a sua prevalência. Cederá, conseguindo assegurar alguns pontos de princípio.

ACTIVIDADE INCESSANTE Para cavalgar a crista da onda, o MFA propõe um pacto, o Pacto MFA-Partidos, a 6 de Fevereiro, que visa estabelecer uma via socializante independentemente da Constituinte, marcando deste modo a ideologia da futura Constituição. São convidados o PPD, PS, PCP, MDP/CDE e CDS. A revolução galopa e Vasco Gonçalves, primeiro-ministro, está montado na sua sela. É neste momento da história da revolução que começam a separar-se as águas. O PS demarca-se claramente do PC, tendo como ponto de partida a questão sindical. É o pretexto para tomar a dianteira da área não comunista em Portugal. Nos quartéis, nos ministérios, nas repartições, nas empresas, nas famílias, avolumam-se os sinais de divisão entre dois campos que apenas deveriam ser definidos institucionalmente nas eleições de 25 de Abril de 1975 mas que procuravam, a todo o transe, ocupar

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MANIFESTAÇÃO-COMÍCIO DO PS na Fonte

posições que lhes dessem vantagem na corrida para o

Luminosa

poder. O PCP, em particular, tinha uma urgência enorme:

em Lisboa

aproveitar a vaga popular (que se viria a revelar minoritária) para se aproximar do poder e, ao mesmo tempo, assegurar uma descolonização favorável aos interesses geoestratégicos soviéticos. Num clima cada vez mais tenso, o PSD vai organizar um grandioso comício no Palácio de Cristal, no Porto, onde se reúnem mais de 20 000 pessoas. Sá Carneiro, após inúmeros oradores, fecha a sessão com um discurso curto, sistemático e doutrinário. Falará de diversos temas já glosados em Lisboa, enfatizando a necessidade de inte-

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gração no Mercado Comum, e reafirma a base popular do partido, num repto aos que o acusam de elitista e burguês. Será um grande discurso antes da fatalidade. Porém, ainda se deslocará com uma comitiva aos Estados Unidos, onde será recebido pelas mais altas individualidades, entre as quais Henry Kissinger ou Kurt Waldheim, secretário-geral da ONU.

DEFINIÇÕES INCÓMODAS De regresso a Portugal, Sá Carneiro desdobra-se em múltiplas actividades que têm um denominador comum: o progressivo ataque ao MFA e às forças radicais, particularmente os militares aliados ao PCP ou à extrema-esquerda. Dirá, a 1 de Fevereiro, em Aveiro, perante 7000 pessoas reunidas no Pavilhão do Sport Club Beira-Mar: «Há que saber resistir a toda esta guerra psicológica que arrasa e paralisa as pessoas. Não deixaremos que seja quem for nos amedronte. Não toleraremos que tentem boicotar os nossos comícios, denegrir o nosso Partido ou exovalhar os nossos militantes. Tem de saber-se claramente quem manda. Tem de determinar-se com nitidez qual o estatuto político-constitucional dos órgãos superiores do MFA. Temos de saber, de uma vez para sempre, qual o seu papel na decisão dos assuntos que, em princípio, competem apenas ao Governo.

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Isso é tanto mais importante quanto é certo que o actual regime provisório, nítido na teoria mas confuso na prática, permanecerá até às eleições para a Assembleia Legislativa e do Presidente da República. Há que dizer claramente que hoje a situação é confusa e perturbante. Quando vemos os órgãos do MFA discutirem a composição do Governo, apreciarem o Plano Económico e pronunciarem-se sobre a unicidade sindical, temos de perguntar-nos, como os países estrangeiros se perguntam, se vivemos ou não num regime de Governo militar. Se sim, então os partidos não terão mais que ficarem de fora e prepararem as eleições se houver garantias plenas da sua autenticidade e do respeito dos seus resultados. Se o Governo é puramente civil, há então que pôr termo ao dualismo ou apreciações e decisões. De outro modo diluem-se as responsabilidades, perturba-se a opinião pública, agrava-se o clima de incerteza. Podem dessa situação beneficiar todos os que sobrepõem a revolução à democratização. Mas a institucionalização da democracia pluralista é incompatível com a actual situação de ampliação de órgãos de poder e de multiplicação de centros de decisão. Há também que dizer claramente que isso não se coaduna com o programa do MFA nem com a lei constitucional. As eleições que se aproximam não vão resolver tudo, nem sequer os problemas que foquei. Pelo contrário eles têm de ser decididos antes delas para que elas possam ter pleno significado e alcance.»

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AGONIA O líder do PPD havia feito um discurso balizador. Sá Carneiro separava as águas. Seria o último por muito tempo. De súbito, a doença bate-lhe à porta, marcando por longo tempo o seu forçado afastamento da ribalta política. O partido, e o país, sentiriam esta ausência. Uma crise de cólicas que se agravam alarmantemente levam-no ao Hospital da Ordem Terceira do Carmo, no Porto. Aí ficará internado. Contará Maria João Avillez que, ao fim de três dias, Sá Carneiro entra em estado

SÁ CARNEIRO ainda líder do PPD

de choque e é operado para observação, descobrindo-se «uma oclusão total do intestino, que lhe provoca um pós-operatório dolorosíssimo e uma convalescença muito demorada». Ficará no hospital até ao fim de Fevereiro, só regressando a casa muito debilitado no início de Março, regista Rebelo de Sousa. De novo Avillez refere que Francisco, «cada vez mais abalado, segue o conselho do irmão Ricardo, que lhe sugere uma ida a Londres, a 29 de Março, para uma observação médica mais profunda. Está deprimido, e nem a presença da mulher, ou dos filhos que o visitam na Páscoa, vai ate nuar o seu estado de espírito». «Sem Francisco Sá Carneiro, o Partido fica órfão», assevera Marcelo Rebelo de Sousa. Os factos viriam a dar-lhe razão.

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CONVULSÕES E RADICALISMO O Pacto MFA-Partidos segue o seu curso, já sem Sá Carneiro à frente do PPD. A generalidade da Comissão Política Nacional (e das Distritais) objecta grande parte do teor do seu conteúdo. No entanto, os extremismos vão acentuar-se dramaticamente, deixando pouco espaço para a conciliação e muito para o confronto. Primeiramente é o MFA, na sua corrente mais radical, a 8 de Fevereiro, que decide formalizar-se enquanto instituição. Existem boatos de golpes vindos de todos os lados e para qualquer gosto. Correm

MANIFESTAÇÃO DE APOIO AO

MFA E A VASCO GONÇALVES no Barreiro

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rumores sobre um pronunciamento do lado de Spínola Fala-se em execuções em massa, chega-se mesmo a referir a célebre «Matança da Páscoa» que seria levada a cabo pela extrema-esquerda civil ou militar. Na rua o PCP e a extrema-esquerda procuram demonstrar a sua força. Não há fumo sem fogo. Spínola, na sequência dos boatos que apontavam para as hipotéticas matanças, dirige-se para a base de Tancos e daí programa o golpe de 11 de Março, que se saldará num rotundo fracasso e no crescimento das posições da esquerda revolucionária. O PPD, tal como os principais partidos, condena de imediato o golpe. É uma decisão óbvia, apesar de as consequências virem a ser absolutamente contrárias ao seu projecto político. Uma Assembleia não legítima do MFA proclama a criação do Conselho da Revolução, a Reforma Agrária, e a – desde há muito tão desejada pelo PCP e outras forças – Nacionalização da Banca. Vasco Gonçalves, alinhado tácito dos comunistas, rejubila. Otelo assume um papel cesárico e passa mandados de captura em branco. O discurso de Aveiro proferido por Francisco fora premonitório. Agora, abatido, Sá Carneiro assiste impotente aos acontecimentos. Afinal comprovavam-se os seus piores receios. Perdida a sua referência máxima, o partido anda um pouco a reboque dos acontecimentos. Não tem líder e é com dificuldade que se adapta à conjuntura. As bases, contudo, movimentam-se, mesmo debaixo dos maiores perigos e humilhações. Muitos dos seus militantes são perseguidos. O político que era sente-se deprimido pelo clima londrino, pelas condições em que vive, pela ausência de acção.

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Mounier e o personalismo cristão Emmanuel Mounier é uma personalidade singular no século xx, que associa um enorme carisma pessoal, uma obra intelectual de primeira grandeza e uma qualidade espiritual fora do comum. Filósofo de formação, é amplamente conhecido como fundador da revista Esprit e como um dos fundadores do personalismo. Poder-se-á afirmar que a revista, ainda hoje existente, foi a sua obra principal. A sua obra deixou profundas marcas em muitos países, na Europa e fora dela. Intensamente inscrita nos combates dos anos 30 e naqueles que se travaram na segunda metade do século xx, a obra de Mounier adquire, hoje, uma nova actualidade. A posição central que ela confere à noção de pessoa, oposta à ideia de indivíduo, possibilita as condições de sobrevivência da sociedade democrática. De igual modo, a insistência na urgência de uma sociedade renovada provoca o questionamento sobre o sentido da sociedade e da política. A filosofia de comprometimento que Mounier desenvolve abre perspectivas interessantes sobre a educação dos cidadãos. A obra de Mounier parece escapar àquilo a que chamamos «crise das ideologias» porque não se cristaliza nunca num sistema. Ela é, de acordo com a bela formulação de Paul Ricoeur, «uma matriz para as filosofias». É igualmente um modelo para a educação do pensamento e um levantamento de humanidade. Transcendendo o seu século, Mounier adquire a estatura de um mestre espiritual, de um pensador lúcido da acção. Ele restaura a grandeza da política na sociedade democrática e é uma figura marcante para a adesão do catolicismo à democracia.

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UM PARTIDO VIVO O partido multiplica as acções de campanha eleitoral. Por todo o país decorrem colagens de cartazes, comícios, sessões de esclarecimento, apresentações de candidaturas. O partido das elites era, agora, uma pujante organização de bases, mesmo com o líder ausente, mesmo que actuasse de modo caótico, sem coordenação real, alvo de agressões e destruições de sedes e materiais de campanha. Magalhães Mota e Pinto Balsemão mostram-se incansáveis na substituição de Francisco. No dia 20 de Abril o PPD realiza 18 comícios em todo o território nacional, juntando centenas de milhar de pessoas. É particularmente importante o comício do Porto, onde mais de 70 000 pessoas transbordam do estádio. A 23 encerra a campanha eleitoral.

AINDA EM CONVALESCENÇA

Sá Carneiro desloca-se para votar

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No dia 25 de Abril, um ano exacto após a revolução, realizam-se as eleições para a Assembleia Constituinte, com uma adesão enorme dos Portugueses. Os resultados são simultaneamente encorajadores e decepcionantes para o PPD. Por um lado, os partidos da via democrática pluralista tinham ganho em toda a linha, relegando o PCP e o MDP/CDE para uma expressão eleitoral menor. Mas no entusiasmo da campanha tinha-se chegado a pensar na vitória. Ora os números eram claros. O Partido Socialista vencera. A contagem ditara: PS – 116 deputados; PPD – 80; PCP – 30; CDS – 16; MDP – 5; UDP – 1. Era um resultado que revelava o PPD como um partido nacional, mas ainda não como um partido destinado a governar.

ISABEL MARIA SÁ CARNEIRO

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O RENASCIMENTO

SÁ CARNEIRO ovacionado pela multidão

Na vida de Francisco Sá Carneiro a política deveria constituir, nesta altura da sua existência, uma dor tão grande como a doença que o assolara. A tristeza do afastamento devia igualar a depressão causada pela doença. Havia que recuperar, enquanto em Portugal, no centro do furacão, a vida continuava. E ele aspirava, sobretudo, ao regresso.

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PROLONGA-SE O SOFRIMENTO Segundo a família relata a Maria João Avillez, Sá Carneiro tem um dilema. Aproximam-se as eleições para a Assembleia Constituinte e não sabe se deve arriscar uma viagem a Portugal para poder votar. «A 24 toma o avião e vem votar no Porto. Nessa mesma noite volta para Londres. Fica entusiasmado com os resultados. O seu PPD, partido nascido com o estigma de pertencer apenas à burguesia e a um grupo de antigos deputados da ANP reciclados para a democracia era, afinal, muito mais popular que isso. Obtivera 26,39% dos votos. Mas, de novo em Londres, a depressão volta a abatê-lo.» Relata de novo Maria João Avillez, de acordo com testemunhos da família, que no princípio de Maio Sá Carneiro sofre nova intervenção cirúrgica. Tinha 14 focos de infecção no abdómen, fruto das soturas utilizadas na operação ao intestino, realizada no Porto, e que o seu organismo não chegara a absorver, estando em estado de infecção permanente. A convalescença será longa e Francisco deprime-se.

FORA DOS ACONTECIMENTOS Resoluto, Sá Carneiro contacta Nuno Rodrigues dos Santos, presidente do Congresso, e pede-lhe que convoque um Conselho Nacional, para eleger um secretário-geral interino devido à sua incapacidade. Este vem a realizar-se

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em 24 e 25 de Maio. Chega a Portugal na véspera, instalando-se em casa de Rui Machete, amigo de todas as horas. Os nomes mais apontados eram Jorge Sá Borges ou Magalhães Mota. Contudo, no dia 25, o Conselho faz saltar para a liderança do PPD um nome inesperado, o surpreendente Emídio Guerreiro. Este velho democrata e antifascista, com 42 anos de exílio à data do 25 de Abril e ferozmente antimilitarista, havia combatido a monarquia do Norte, participado em conspirações contra o salazarismo, fugido do Aljube, participado na Guerra Civil de Espanha pelo lado das forças republicanas. Fora condecorado pelo Governo da Frente Po pular e combatido no maquis (resistência francesa). De inclinação muito mais dirigida à esquerda que aquela que Sá Carneiro pretendia dar ao partido, conhece bem essa mesma esquerda, não a teme e não tem pejo em adoptar muitos dos seus valores. Sá Carneiro fica descoroçoado. Conta Avillez que em

EMÍDIO GUERREIRO

casa de Rui Machete recebe os pais, vindos do Porto para o ver. Aproveita para fazer as pazes com o pai, com quem mantinha relações distantes desde há algum tempo. A família propõe a Francisco que parta com os seus para o Brasil. Está malvisto em Lisboa, é alvo das maiores calúnias. Regressa, contudo, a Londres. Mas é uma estadia curta, visto que Londres o oprime.

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RECUPERAÇÃO Encontra, assim, um local no Sul de Espanha para passar férias. No caminho para Torremolinos está, perto de São Pedro de Alcântara, uma quinta a meio da encosta. É uma casa de Verão, exígua e simples, bela e silenciosa. Com a vantagem de ter piscina, para que pudesse praticar o seu desporto favorito. Aí dão-se início as melhoras. E estas são espectaculares: o calor, os banhos, os filhos e os passeios operam milagres, fazendo-o sair da depressão. Francisco dorme, lê, passeia, vai às corridas de touros. A saúde retoma-o, tal como o desejo de regressar à vida política, como Isabel Maria se apercebe, não sem VASCO

aborrecimento. Agora que tinha o marido para si e para os

GONÇALVES,

filhos, apercebia-se de que iria de novo perdê-lo.

um primeiro-ministro virado à esquerda

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Ao longo do tempo em que estivera ausente, Sá Carneiro tinha vindo progressivamente a ficar mais des-


gostoso com o rumo que o seu partido havia percorrido sob a liderança de Emídio Guerreiro. A presença dos militares no centro do turbilhão político continuava, os sucessivos governos de Vasco Gonçalves alinhavam com o Partido Comunista e os partidos «centrais» lutavam para impor a força que haviam adquirido nas urnas. Para Francisco, o PPD contemporizava demasiado com a situação caótica que se vivia. Ele não era homem de águas turvas.

UM REGRESSO ARRASADOR No dia 24 de Setembro de 1975, ainda em convalescença, toma uma decisão. Voltará à vida política. Francisco vai regressar, com uma explosiva entrevista onde deixa um recado muito claro: «Militares marxistas, não!» De novo Maria João Avillez nos dá conta do relato da família: chama a mulher e têm uma conversa a dois. Diz-lhe claramente que quer retomar a actividade política. Isabel vai opor-se frontalmente, chamando-lhe a atenção para o facto de ele ir fazer «uma grande asneira». Discutem. «Sei o que faço», replica ele. Começa aí a ruptura entre os dois. Sá Carneiro chega a Lisboa sem alarido. Instala-se no Hotel Tivoli Jardim. Isabel vai para o Porto, apenas se encontrando com o marido ao fim-de-semana. Nesse dia 24 dá uma conferência no Hotel Roma. Está sozinho. Fala durante 15 minutos, a «título estritamente pessoal». Refere a sua ausência, devida ao estado de saúde. No essencial anuncia que informou o presidente do Congresso e do

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Conselho Nacional do PPD estar em condições para reassumir o exercício do cargo de secretário-geral. Sabe que no partido há quem defenda a reeleição da sua pessoa como secretário-geral. A 27 e 28 de Setembro, reúne o Conselho Nacional, na estalagem da Via Norte, nos arredores do Porto. Para muitos que ainda hoje o recordam será provavelmente o mais dramático da história do partido. Numa cave sem luz natural, onde o calor é intensíssimo, um grupo de conselheiros (onde avultam Sá Borges, Mota Pinto e Emídio Guerreiro) monta uma estratégia de confronto com Sá Carneiro. Outros conselheiros o atacarão. É acusado de tudo, política e pessoalmente. As intervenções contra ele são duríssimas. No plano político, apontam-lhe tendências direitistas, ausência no período difícil do combate, falta de solidariedade, contactos com o MDLP. No domínio pessoal chegam mesmo a apontar-lhe desequilíbrio mental. Sá Carneiro ouve pacientemente e calado todo este libelo acusatório. Toma apontamentos. Então, perto das duas horas da manhã, começa a falar. Marcelo Rebelo de Sousa, que estava presente, afirma, no seu livro A Revolução e o Nascimento do PPD: «Sá Carneiro é genial (e a qualificação é rigorosa). Faz o melhor improviso e mesmo o melhor discurso político de toda a sua vida. É genial em tudo. Em sistematizar o que tem a dizer em cima da hora. Em não deixar um só ponto antes abordado por tratar. Em proceder ao encadeamento analítico com total precisão. Em encontrar a palavra exacta para cada situação, para cada facto, para cada pessoa citada. Em realizar as sínteses com concisão e acutilância. Em

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fazer tudo isto ao longo de horas e horas, sem perder o fio à meada, concluindo com o pedido de voto secreto sobre o regresso à liderança.» A intervenção de Sá Carneiro termina às oito da manhã. Falara quase seis horas consecutivas. No final recebe 111 votos a favor e

Como quem

apenas 14 contra. Vencera em toda a linha.

bebe um copo

De novo Rebelo de Sousa: «Além de ser a mais feliz

de água...

intervenção política de Sá Carneiro é, também, a mais extraordinária intervenção polémica política que jamais ouvi. Cá dentro e lá fora. É arrasadora!»

UM PAÍS DIVIDIDO Sá Carneiro está, de novo, no centro da vida política. Passa a viver no Hotel Tivoli, trabalhando na nova sede do partido, na Avenida Duque de Loulé. Ainda se desloca semanalmente ao Porto, mas a sua relação com a mulher é cada vez mais distante. Num comício partidário, de resto, quando pedem a Isabel Maria que contribua para os fundos do partido, esta responde, agreste: «Não dou nada. Já dei o meu marido!»

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Passara o Verão quente e o Outono anunciava-se escaldante. Sá Carneiro associa-se ao Partido Socialista numa manifestação de apoio ao Governo de Pinheiro de Azevedo, que junta uma multidão nas ruas de Lisboa. É impedido de falar, por alegados problemas técnicos, que o irão indispor com Mário Soares.

MANIFESTAÇÃO no Porto

No dia 1 de Outubro, o PPD consegue reunir mais de 80 000 pessoas no Porto para apoiar o VI Governo Provisório de Pinheiro de Azevedo e a Pires Veloso, comandante da Região Militar Norte, que se encontrava em con-

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fronto aberto com as facções militares revolucionárias. É um enorme triunfo de mobilização. E, a 26, de novo em conjunto com o Partido Socialista, o Porto assiste a uma monumental manifestação, onde se congregam cerca de 150 000 pessoas. O combate político joga-se, nesta altura, em grande parte na rua. É com fúria que Sá Carneiro assiste ao sequestro da Assembleia, a 12 de Novembro. O país está dividido em dois blocos. Os partidos de carácter democrático representativo estão agora do mesmo lado da barricada. Chegam mesmo a pensar mudar a Assembleia Constituinte para o Porto. Para lá viajam muitos deputados. Para o líder do PPD era fundamental que ocorresse uma «resposta imediata por parte dos partidos democráticos». O PCP e a extrema-esquerda juntam 200 000 manifestantes no Terreiro do Paço. Entretanto entra em cena o chamado Grupo dos Nove, composto por militares moderados, do qual fazem parte Melo Antunes, Ramalho Eanes e Vasco Lourenço, entre outros. Decidem actuar para garantir a Constituição e a ordem democrática. Antevêem um golpe da extrema-esquerda e fazem planos para o travar. No dia 25 de Novembro tropas pára-quedistas saem da base de Tancos e, conjuntamente com forças do RALIS e da EPAM, ocupam algumas unidades militares, a RTP, a entrada da auto-estrada do Norte, com o intuito de instaurar o «socialismo verdadeiro». A resposta não tarda. Sob a coordenação de Ramalho Eanes, é desencadeado o plano de contra-ataque há muito traçado pelos militares moderados. O golpe é neutralizado.

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António Ramalho Eanes António Ramalho Eanes nasceu em Alcains a 25 de Janeiro de 1935, filho de um pequeno proprietário. Ingressou na Escola do Exército em 1952, tornando-se Oficial de Infantaria em 1957, no posto de alferes. Conhece sucessivas promoções, sendo tenente-coronel em 1974. Quando ocorre o 25 de Abril encontra-se em Angola, não tendo por isso participado no derrube do regime, mas é imediatamente chamado a Lisboa. É nomeado presidente da RTP mas, na sequência do 11 de Março, acusam-no de ter participado na tentativa de golpe. De imediato se demite, exigindo um inquérito à sua actuação, que o iliba. É colocado no Estado-Maior General das Forças Armadas. Depressa se junta aos militares moderados que formarão o chamado Grupo dos Nove. É ele quem prepara o plano operacional de resposta a uma provável tentativa de golpe dos militares radicais. Por isso, comandará com sucesso a resposta à sublevação de 25 de Novembro. É imediatamente nomeado chefe do Estado-Maior do Exército. Apoiado por quase todos os principais partidos (PS, PSD e CDS) torna-se o primeiro Presidente da República eleito na vigência da actual Constituição em Junho de 1976, com 61,59% dos votos. A sua actuação presidencial não foi isenta de dificuldades. Propenso a intervir na vida política, gera por vezes desconforto nas estruturas partidárias. Caídos os dois primeiros governos constitucionais, promove três governos de sua iniciativa. A vitória da Aliança Democrática em 1978, reforçada no ano seguinte, coloca o Governo de Sá Carneiro em rota de colisão com Ramalho Eanes. Contudo, a sua popularidade é

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grande e vencerá nova eleição presidencial em 1980, à primeira volta, derrotando o general Soares Carneiro. No final do seu segundo mandato está na origem da formação de um partido criado em torno da sua pessoa, o Partido Renovador Democrático (PRD) que, na primeira vez que se apresenta às urnas, atinge quase 18% dos votos. A sua passagem pelo PRD não durou muito, terminando com os fracos resultados em 1987. Demite-se de presidente do partido. Actualmente é, por inerência, conselheiro de Estado vitalício.

RAMALHO EANES, o grande vencedor do 25 de Novembro

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UMA INTRIGANTE EDITORA O 25 de Novembro encontra Sá Carneiro na Alemanha, onde, entre outras missões, pretende filiar o PPD na Internacional Socialista. Willy Brandt, político que muito admira, é evasivo. O lugar já pertencia ao Partido Socialista. De volta a Portugal, empenha-se a fundo no Congresso de Aveiro, em Dezembro. Vai ser, uma vez mais, o lugar onde ocorre uma luta de vida ou de morte entre Francisco e os seus adversários. Não faz cedências, não assume compromissos. Ou ganha, ou perde. Ganhará em toda a linha, impondo o seu projecto de estatutos, a sua lista para os órgãos do partido, o seu programa político. É nesse tempo que muda do Hotel Tivoli para a York-House, às Janelas

LIVRO editado em Abril de 1975

Verdes. Então, dá-se um almoço decisivo, que fica na mi-

na Publicações

tologia dos grandes romances portugueses. Num almoço

D. Quixote

com a poetisa Natália Correia, Francisco pergunta-lhe co-

de Snu

mo era a sua editora, Snu Abecassis, que não conhece pes-

Abecassis

soalmente. Natália, conta Maria João Avillez, responde: «É melhor não saber como ela é. [...] É uma princesa nórdica num esquife de gelo à espera que venha o príncipe encantado dar-lhe o beijo de fogo», diz-lhe a escritora. E acrescenta: «Esse príncipe encantado é você. Porque ela é a mulher da sua vida!»

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Quando chega à nova sede do partido, na Rua de Buenos Aires, Francisco pede a Conceição Monteiro que telefone a Snu Abecassis, convidando-a para almoçar com ele.

SNU Snu, como é conhecida desde pequena (chamava-se Ebba Merete Seindanfaden), vem para Portugal devido ao seu casamento com Vasco Abecassis, um jovem que conhecera em Londres enquanto estudava. Tendo nascido na Dinamarca, desde pequena que vivia na Suécia, em virtude do segundo casamento de sua mãe com um editor de Estocolmo. Cresce no meio editorial. Após o casamento com Vasco, vai residir para Nova Iorque, onde o marido trabalha no negócio da família. Alguns anos depois decidem viver em Portugal. Têm dois filhos, Mikaela Linea e Ricardo. O ambiente social do país atrasado e provinciano que Portugal era, aos olhos de uma mulher cosmopolita, vai fazer-lhe a maior das confusões. Snu é excepcionalmente culta e inteligente, além de ser muito bela. Em Portugal, Snu enfada-se com a inactividade e o papel que é socialmente aceitável para as mu lheres. Evidentemente recebe com primor, é uma excelente dona de casa. Mas o seu espírito aspira a outros voos. Por isso tem uma ideia: fundar uma editora. Assim, cria aquela que viria a ser uma das mais importantes casas de

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edição em Portugal, a Dom Quixote, sendo o marido igualmente sócio. Quando este parte para a Guiné, prestando serviço militar, Snu fica sozinha. Mas não se deixa atemorizar. Enfrenta as dificuldades, chega a ser vendedora dos seus próprios livros. Em Maio de 1967 tem a ideia de convidar o poeta Ievgueni Ievtuchenko para visitar Portugal. A enorme repercussão da presença do escritor soviético, o impacte que teve nos meios intelectuais, traduziu-se num grande êxito de vendas e na perseguição da PIDE, que começa uma escalada de ameaças à jovem editora. Mas Snu não se deixa amedrontar e chega mesmo a ir à sede da polícia política protestar a apreensão de um livro, discutindo com os agentes. É esta mulher que Francisco convida para

SNU

almoçar, a 6 de Janeiro de 1976, no restaurante A Varanda do Chanceler. No final do almoço, de regresso ao partido, vem com um sorriso nos lábios: «Ela é brilhante», diz simplesmente.

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ELEIÇÕES PERDIDAS No mês seguinte Francisco vai viver para o Restelo, num apartamento arrendado. As visitas ao Porto são cada vez mais esporádicas. O relacionamento com Isabel deteriora-se acentuadamente. Até porque, de novo, a política o chama com toda a intensidade. Estava a começar a campanha eleitoral para a Assembleia da República. É uma tarefa dura, marcada por longas viagens, dormir mal, fazer propaganda em todo o país. São tempos difíceis, marcados pela violência verbal, e até física, que Francisco vai enfrentar sem medo, com aquela coragem que o caracterizava quando tinha de enfrentar situações difíceis. Afadiga-se, desmultiplica-se. É convincente e em muitos lugares sente a profunda implantação nacional que o partido conhecera desde o seu nascimento. Mais a norte que a sul, como é natural. A campanha termina. Realizam-se as eleições para a Assembleia da República. Apesar dos esforços e das esperanças, o resultado é desconsolador: 24,38%. Sá Carneiro esperava ganhar. Chegar ao poder era, de facto, a sua ambição, mas não um desígnio gratuito. No seu romance Os Meninos de

Ouro, inspirado em Sá Carneiro (a personagem José Matil des), Agustina Bessa-Luís escreve: «[...] o poder não era para ele uma consequência da classe patronal, era um destino a ser vivido, com todas as suas misérias e decepções, suas grandezas e desprazeres. Era, em suma, uma das poucas figuras favoráveis à tragédia que a pátria tem produzido depois de Alcácer Quibir ou depois de D. Pedro V.»

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A CHEGADA AO PODER

O PRIMEIRO-MINISTRO e os seus ministros no Parlamento

Após duros anos de combate político, Francisco Sá Carneiro vai encontrar a estratégia certa para tomar o poder. A sua hora chegara, e ele encontrava-se mais enérgico, determinado e pessoalmente feliz do que nunca. Ambicionava tudo. Ter a maioria, ser Governo, eleger um Presidente. A todos estes desafios se entrega. E será total o seu empenho. Até ao fim.

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A QUESTÃO PRESIDENCIAL Um novo desafio eleitoral vai mobilizar o PPD e Sá Carneiro: as eleições presidenciais. São aventados muitos nomes para a candidatura. Certo é que a legitimidade do futuro Presidente da República passava pelo facto de este ser um militar. Não era circunstância que agradasse a Sá Carneiro, mas havia que jogar o jogo que as circunstâncias lhe impunham. Sá Carneiro tem uma preferência pessoal por Pires Veloso. Outros nomes são avançados, discutidos – Costa Brás, Firmino Miguel. Porém, quando tem conhecimento do provável apoio dos socialistas a Ramalho Eanes, Francisco joga a sua cartada estratégica de antecipação, deixando os seus correligionários espantados. O candidato do PPD será o homem que comandara o 25 de Novembro. Afinal de contas Eanes era um democrata moderado, prestigiado na sociedade e na instituição militar. Além disso era um homem recto, íntegro, que dava garantias de imparcialidade e bom-senso na ocupação do cargo de Presidente da República. Eanes é eleito, derrotando por larga margem Otelo, Octávio Pato (do PCP) e Pinheiro de Azevedo. Sá Carneiro esperava, face aos resultados eleitorais, dos quais não resultara uma maioria absoluta, ser chamado ao Governo. Mas Ramalho Eanes começa desde o início a revelar que tem ideias próprias. O PPD não é chamado para o gabinete governativo. A desilusão é tremenda e desde logo nasce uma animosidade para com o Presidente que não cessará de crescer.

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RAMALHO

Francisco não gosta de ser desafiado. Não esquece nem perdoa.

EANES discursa na Assembleia da República

Vira-se para o partido, procurando a unidade interna e o reforço das posições programáticas que lhe permitissem ser cada vez mais activo, desempenhando um forte papel de oposição. Entretanto, no final desse ano de 1976,

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o partido consegue por fim mudar de designação: passa a chamar-se Partido Social-Democrata, como sempre fora intenção de Sá Carneiro.

DOIS EM UM Leiria é local de pacificação interna

No célebre Congresso de Leiria, o terceiro, que convoca o quarto para o dia seguinte, numa história rocambolesca como só os Congressos do PSD proporcionam, Sá Carneiro rodeia-se de alguns dos seus mais fiéis seguidores e forma uma equipa de luxo. Magalhães Mota é o secretário-geral. Rui Machete, Barbosa de Melo e Sousa Franco serão vice-presidentes. É um congresso de pacificação e unidade.

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NO CENTRO DA FOGUEIRA POLÍTICA A relação de Francisco com Snu é cada vez mais importante na sua vida. Não hesita e começa a aparecer com ela em público, apesar de ainda estar casado. Anda feliz e sorridente, e à sua volta todos notam esse facto, estranho numa personalidade normalmente taciturna. Está apaixonado. Snu acabará por obter o divórcio, mas Sá Carneiro enfrentará dificuldades muito maiores. Quando finalmente solicita a Isabel Maria que lhe conceda o divórcio, esta vai recusar liminarmente por motivos morais e religiosos e porque ainda sente afecto por ele. É uma grande desilusão para Francisco, que vê assim adiado um problema que desejava resolver. No plano político acentua, logo no início de 1977, as suas críticas ao Governo de Soares, censurando-lhe asperamente a linha de rumo da economia. Entretanto surge-lhe a ideia de se aliar à direita, ao CDS, partido que nascera de parto difícil nos calores da revolução mas que se conseguira afirmar nas eleições, com um total de 16 deputados. É assim que surge a Convergência Democrática, embrião da coligação que o encaminhará até ao poder. Então, os dois partidos decidem convidar o PS para esta frente. Mário Soares, porém, não se mostra interessado. A Convergência Democrática morre à nascença. Na frente parlamentar desenham-se novas batalhas, com a discussão de leis de grande importância para o país, como as respeitantes à Reforma Agrária e ao Investimento Estrangeiro. Sá Carneiro acentua as críticas ao Governo, e não concorda com a posição do seu partido em

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PINTURA MURAL a favor da reforma agrária

relação à Lei da Reforma Agrária. Por isso faltará à votação. Mais uma vez põe as suas convicções acima de tudo. É essa convicção que coloca em todos os actos da sua vida, tanto pública como pessoal, que o levará a assumir definitivamente a sua relação com Snu, passando a viver com ela na Rua D. João V, residência da editora. Atiça ainda mais a luta contra o Governo socialista. Clama por um governo de salvação nacional. O Presidente faz «orelhas moucas» a esta pretensão e discursa a 15 de Outubro no Parlamento, apontando a via do socialismo como uma boa meta. Este discurso polémico tem duas reacções. A primeira é a de causar boa impressão em grandes franjas do PSD. A segunda, decorrente da anterior, leva Francisco Sá Carneiro a demitir-se, entregando o cartão de militante número um a Magalhães Mota. Vendo

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a sua demissão ser recusada, Sá Carneiro reassume-a, saindo de mais um Conselho Nacional batendo com a porta e designando-se «presidente não em exercício». Convoca um Congresso Extraordinário. Em Dezembro, o Governo de Mário Soares avança com uma Moção de Confiança na Assembleia da República e o Governo cai. Sá Carneiro, por seu lado, mantém-se afastado da ribalta, ausente da liderança, na expectativa. Está em profundo desacordo com o caminho que o partido segue e não o esconde. Encara mesmo a possibilidade de se afastar de todo da vida política e regressar à advocacia. Passa a maior parte dos seus dias em casa, trabalhando, estudando os dossiês, usufruindo da companhia de Snu que era agora, para ele, uma presença vital e apaziguadora. Em Abril de 1978 tem lugar o VI Congresso do PSD. Confrontam-se os partidários do documento «Opções Inadiáveis», oponentes de Sá Carneiro, e aqueles que defendem as suas ideias e o concomitante regresso de Francisco à liderança. Sem surpresa este ganha por larga margem e é aclamado. O partido está de novo nas suas mãos. Em Julho cai o Governo PS/CDS. Sá Carneiro apoia Nobre da Costa, o nome de iniciativa presidencial apontado por Ramalho Eanes para primeiro-ministro. Os outros partidos, contudo, votam contra. Nesse ano, assolado pela tragédia pessoal – morrera-lhe o pai e a irmã mais nova – e pela contrariedade política de ver Eanes convidar Mota Pinto, então dissidente do PSD, para primeiro-ministro de um Governo de inicia-

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tiva presidencial, só a companhia de Snu, os períodos em que viajam, o tempo que passam juntos, servem de alívio a Sá Carneiro. Contudo, não cessa de intervir politicamente. Começa a formar um «governo-sombra», escreve e publica um projecto de revisão constitucional.

FINALMENTE O PODER De novo o partido entra em convulsão. Por ocasião da aprovação do Orçamento Geral do Estado, apresentado por Mota Pinto ao Parlamento, cerca de 40 deputados não concordam com a posição da Comissão Política, que decidira votar contra, e abandonam o hemiciclo. Entre eles está Magalhães Mota. Sá Carneiro via, deste modo, afastarem-se os adversários internos. Para ele, que não gostava do compromisso, até era uma boa notícia. Está decidido a chegar ao poder. A inexistência de um partido que obtivesse maioria absoluta leva-o a encarar cada vez mais a ideia de criar um bloco político. Primeiro vai tentar fazê-lo com os socialistas, mas as conversas redundam em nada. Então olha para os centristas e vê neles um aliado possível para conquistar o eleitorado. Assim nasce, a 5 de Julho de 1979, a Aliança Democrática (AD), congregando igualmente o Partido Popular Monárquico de Gonçalo Ribeiro Teles. O Verão traz consigo a convocação de eleições. Sá Carneiro está preparado. Conjuntamente com os seus aliados, a que se juntam alguns renovadores saídos do PS co-

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Três dirigentes, três partidos unidos numa ALIANÇA DEMOCRÁTICA

COMÍCIO DA AD no Campo Pequeno

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mo António Barreto, parte para a campanha eleitoral. Insiste na elaboração de um programa claro, que traga algo de novo ao país. A campanha eleitoral foi árdua. Sá Carneiro desdobra-se por todo o país apregoando a mudança. Fala mais da realidade do país que de grandes tiradas ideológicas. Snu está ao seu lado durante toda a campanha. Em 2 de Dezembro realizam-se as eleições. A AD arranca 42,5% dos votos. Sá Carneiro chegara, finalmente, ao poder.

GOVERNANTE Enquanto primeiro-ministro, Sá Carneiro vai dedicar-se profundamente à questão da economia, procurando combater a inflação, ao mesmo tempo que adopta uma série de medidas que o popularizam – aumentos das pensões, do salário mínimo, novos modelos de segurança social. É agora a imagem de um governante sério, determinado, ponderado. Outra das suas frentes de trabalho consiste no início dos contactos conducentes à integração na Comunidade Económica Europeia, que ele considera prioritária. Por outro lado, irá fazer do afastamento progressivo do peso dos militares na vida política um dos seus cavalos de batalha. Preocupa-o, igualmente, a questão presidencial. Pensa vagamente na ideia de ser ele próprio candidato. Po rém, a sua situação familiar continua por resolver e nem a ameaça de pedir a anulação canónica do casamento de-

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SOARES

move Isabel Maria. Está, por isso, impedido de pensar sequer na sua candidatura. Finalmente, ouvindo algumas

CARNEIRO, o candidato à presidência

opiniões, escolhe o general na reserva Soares Carneiro como o nome a avançar para Belém, contra Ramalho Eanes, apesar do pouco entusiasmo que aquele desperta no partido. Para Sá Carneiro era fundamental vencer Eanes. O seu objectivo era só um: um Governo, uma maioria, um Presidente. Neste período da sua vida, Sá Carneiro tem de enfrentar uma duríssima campanha do jornal O Diário, alinhado com o Partido Comunista Português, que o acusa de dever dezenas de milhar de contos à Banca, então nacionalizada. Será uma dura provação, que ele vai enfrentar com determinação, inclusivamente nos tribunais.

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Aproximam-se, agora, os dois actos eleitorais: legislativas em Outubro, presidenciais em Dezembro. É com entusiasmo e confiança que, após 10 meses de governação, AS «CARAS» DA

AD: Soares

Sá Carneiro parte de novo para a estrada. A campanha

Carneiro,

corre bem à Aliança Democrática, que aumenta o seu re-

Sá Carneiro,

sultado para quase 45% dos votos. O líder do PSD exulta.

Freitas do Amaral e Ribeiro Teles

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Afirmará: «Esta vitória da AD constituiu a primeira volta das eleições presidenciais.»


Contudo, as coisas começam a correr mal. Soares Carneiro não desperta grande entusiasmo junto do eleito rado. Eanes, pelo contrário, é bastante popular. Francisco Sá Carneiro impacienta-se, desespera. As sondagens não são favoráveis. Como lhe é característico, empresta ao combate redobrado ardor. Não concebe conviver politicamente com Ramalho Eanes nos anos que se seguirão. Desdobra-se, incita, ameaça quem não o acompanha com o mesmo afã. Anda tenso.

Adelino Amaro da Costa Nasce em Lisboa, a 18 de Abril de 1943. Forma-se em Engenharia Civil no Instituto Superior Técnico, em 1966, e torna-se director do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Educação de Veiga Simão, antes do 25 de Abril. A seguir à revolução fundou, com Diogo Freitas do Amaral, o Centro Democrático-Social (CDS), num clima político de grande adversidade, dada a radicalização da vida política portuguesa. O CDS é mesmo considerado, por muitos, um partido neofascista e alvo de múltiplos ataques, alguns deles envolvendo violência considerável. Com as eleições para a Assembleia Constituinte, o CDS afirma-se na vida política, elegendo 16 deputados. Amaro da Costa é nomeado presidente do grupo parlamentar e revela-se um tribuno competente, truculento, irónico. É ele quem dita, nos seus fundamentos essenciais, a linha ideológica do partido.

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Em 1978 está na origem da formação do II Governo Constitucional (PS-CDS), que contou com a presença de membros do partido como Sá Machado e Rui Pena. No ano seguinte negociou pelo CDS a criação da Aliança Democrática (AD), juntando-se ao PPD e ao PPM. Em 2 de Dezembro de 1980 a AD atinge a maioria absoluta nas eleições. AMARO DA

COSTA

Amaro da Costa torna-se ministro da Defesa. Era o primeiro ministro civil da Defesa desde o 25 de Abril de 1974. Exerceu durante pouco tempo o cargo. Conheceria a morte no desastre de aviação ocorrido em Camarate a 4 de Dezembro de 1980, quando seguia com Sá Carneiro e acompa nhantes para o Porto, onde participaria num comício da campanha para a presidência da República. Ainda hoje se discute se a queda do avião Cessna foi um acidente ou resultou de um atentado, havendo quem defenda que o alvo desse hipotético crime seria Adelino Amaro da Costa.

O FIM No dia 4 de Dezembro de 1980 Sá Carneiro decide deslocar-se ao Porto de modo a participar no comício de apoio à candidatura de Soares Carneiro. Adelino Amaro da Costa, que também participaria no comício, pergunta-lhe

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se não quer viajar no avião em que se deslocaria à capital nortenha, acompanhado da mulher. Sá Carneiro aceita. Consigo levará Snu e António Patrício Gouveia, seu chefe de gabinete. O primeiro-ministro e os seus acompanhantes estão no aeroporto às 19 horas e 20 minutos. Amaro da Costa e a sua mulher chegarão poucos minutos depois. Entram dentro do pequeno Cessna. Os motores têm problemas para arrancar. É pedido um gerador para auxiliar o arranque. Decorre quase meia-hora até que os dois motores entrem finalmente em funcionamento. Às 20 horas, 16 minutos e 42 segundos o avião descola. Alguns segundos depois sai da sua rota e começa a perder altitude. Despenha-se em Camarate. Para Francisco Sá Car-

SÁ CARNEIRO

neiro e os seus acompanhantes a vida chegara ao fim.

E

SNU

Anos mais tarde, no início de 2003, o porta-voz da comissão de peritos do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves, que investigou a fundo o ocorrido, afirmou que o Cessna era um autêntico «chasso». Tinha um longo historial de problemas técnicos e caiu devido a uma conjugação de falhas: «Paragem inadvertida do motor esquerdo, indevida utilização de

flaps na descolagem, não embandeiramento da hélice do motor esquerdo e centro de gravidade do avião fora dos limites.»

141


Este relatório, feito a pedido da VIII comissão de inquérito parlamentar ao caso Camarate, contraria a tese de atentado ainda hoje defendida por muitos. Há quem alegue que o avião se despenhou por deflagração de um engenho explosivo que teria sido colocado no seu interior. Aventa-se a ideia de que o objectivo era a eliminação de Adelino Amaro da Costa, que estaria a investigar o envolvimento de militares portugueses no tráfico interA MULTIDÃO

nacional de armas, no âmbito da guerra entre o Irão e o

junto ao

Iraque, utilizando verbas do Fundo de Defesa Militar do

Mosteiro dos

Ultramar, um «saco-azul» que Amaro da Costa extinguira.

Jerónimos, onde se realizou

Talvez a verdade sobre o desastre de Camarate

a missa de

nunca se venha a apurar. O certo é que Portugal perdeu,

corpo presente

além das outras vítimas, um homem apaixonado pela

142


CHOQUE E COMOÇÃO

NO CEMITÉRIO do Alto de São João

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política, profundamente envolvido com o seu tempo e o seu país, e que nessa paixão arrastou consigo multidões, fazendo sonhar uma geração. O seu cortejo fúnebre foi acompanhado por milhares de pessoas nas ruas por onde passava. Portugal inteiro, gostando ou não dele, comoveu-se com a morte de Francisco Sá Carneiro, um dos pais fundadores da democracia portuguesa.

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CRONOLOGIA

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CRONOLOGIA 1934

1954

No Porto, às 2 horas da manhã

Conhece Isabel Maria, numa festa.

do dia 19 de Julho, nasce Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro,

1956

quinto filho de Maria Francisca

Termina a licenciatura em Direito.

Judite Pinto da Costa Leite

Começa a trabalhar no escritório

(Lumbrales) e do advogado José

do pai e, pouco tempo depois,

Gualberto Sá Carneiro.

na Revista dos Tribunais.

1951

1957

Tendo terminado o liceu, Francisco

Francisco casa com Isabel Maria,

ingressa na Faculdade de Direito

em Miragaia.

de Lisboa.

1958 Nasce o primeiro filho do casal Sá Carneiro, que se chamará Francisco como o pai. Mais filhos nascerão: Isabel (1959), Teresa (1961), José (1963), Pedro (1964).

1966 Funda com alguns amigos, no Porto, a Confronto, cooperativa de acção cultural.

1967 Francisco recebe do pai o Eirado do Esperigo, terreno onde construirá

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CRONOLOGIA uma casa que será sempre o lugar

1968

da sua predilecção.

A 6 de Setembro, na sequência de um acidente vascular cerebral, Salazar é afastado do Governo por motivos de saúde e Marcello Caetano é nomeado primeiro-ministro. Sá Carneiro envolve-se directamente no fim do exílio do bispo do Porto.

1969 Francisco Sá Carneiro é convidado, em conjunto com outros jovens quadros, para integrar a lista da União Nacional que se apresenta

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CRONOLOGIA às legislativas de Outubro, com

a 27 de Julho. Nesse mesmo

a promessa de ter liberdade de

mês morre José Pedro Pinto Leite,

actuação e a garantia de evolução

deputado da ala liberal e grande

progressiva do regime para um

amigo de Sá Carneiro.

modelo democrático. Após pensar

É fundada a SEDES – Associação

e discutir o assunto, aceita.

para o Desenvolvimento Económico

Em Outubro realizam-se as eleições.

e Social.

No meio da falange de deputados do partido único forma-se o grupo que

1971

ficará conhecido como ala liberal.

Na nova sessão legislativa os

Integrava, entre outros, Pinto Leite,

deputados da ala liberal apresentam

Sá Carneiro, Pinto Balsemão,

um projecto próprio de revisão

Magalhães Mota e Miller Guerra.

constitucional, do qual Francisco Sá Carneiro é o principal mentor.

1970

Visita Angola durante três

Ao fim de cerca de ano e meio

semanas, integrando uma

de doença, Salazar morre em Lisboa,

delegação parlamentar.

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CRONOLOGIA A 25 do mesmo mês, Sá Carneiro, desiludido com o constante boicote à sua intervenção política, abandona o Parlamento, renunciando ao seu lugar de deputado. Numa reunião da Acção Socialista Portuguesa, realizada perto de Bona, é fundado o PS, no dia 19 de Abril. Primeira reunião clandestina de capitães em Bissau, no dia 21 de Agosto.

1972 Sá Carneiro apresenta no Parlamento um conjunto de projectos de lei que vão causar brado e mal-estar nas hostes do regime. Abordam temas como a liberdade de reunião e de associação, o Código Civil, a organização do sistema judicial. A Assembleia Geral da ONU reconhece, a 2 de Novembro, a «legitimidade da luta armada contra Portugal, em África».

1973 No dia 20 de Janeiro, Amílcar Cabral, líder do PAIGC, é assassinado em Conakry.

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CRONOLOGIA 1974

Manifestação do 1.º de Maio,

Em Fevereiro é publicado o livro

em Lisboa, congrega cerca de

Portugal e o Futuro do general

500 000 pessoas. Outras grandes

António de Spínola, no qual

manifestações decorreram nas

este defende uma solução política

principais cidades do país.

para a guerra. A 16 de Março ocorre uma tentativa de golpe militar contra o regime. Só o Regimento de Infantaria 5 das Caldas da Rainha marcha sobre Lisboa e o golpe fracassa. No dia 25 de Abril o Movimento das Forças Armadas derruba o regime que se iniciara com o Estado Novo, 48 anos antes. É instaurada a democracia em Portugal.

No dia 6 de Maio Francisco Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão e Joaquim Magalhães Mota fundam o Partido Popular Democrático (PPD). Tomada de posse do I Governo Provisório a 16 de Maio, presidido por Adelino da Palma Carlos. Deste Governo fazem parte, entre outros, Mário Soares, Álvaro Cunhal e Sá Carneiro. O primeiro-ministro Palma Carlos pede a demissão do cargo a 9 de Julho, afirmando não ter condições

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CRONOLOGIA

políticas para governar. Com ele

1975

solidarizam-se alguns ministros

Em Fevereiro, Sá Carneiro é operado

do seu Gabinete, entre eles Francisco

de urgência. Tem uma oclusão total

Sá Carneiro.

do intestino. A sua vida corre perigo.

A 28 de Setembro, em resposta à

Em Março parte para Londres, para

anunciada manifestação da Maioria

ser observado. Em Maio é de novo

Silenciosa, erguem-se barricadas

operado. As melhoras tardam e Sá

populares junto às saídas de Lisboa

Carneiro decide que o partido precisa

e um pouco por todo o país. São presas mais de 100 pessoas conotadas com a direita e a extrema-direita. O Presidente da República, general António de Spínola, demite-se a 30 de Setembro. É substituído no cargo pelo general Costa Gomes. Nos dias 24 e 25 de Novembro decorre o I Congresso do PPD.

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CRONOLOGIA de um secretário-geral interino. O nome escolhido em Conselho Nacional será Emídio Guerreiro. No dia 11 de Março ocorre uma falhada tentativa de golpe de Estado por parte de militares afectos a Spínola, que foge para Espanha. O Governo procede a nacionalizações da Banca, Seguros e Transportes, entre outros sectores.

Em Julho Sá Carneiro vai repousar

Realizam-se eleições para a Assem-

no Sul de Espanha. Regressa em

bleia Constituinte em 25 de Abril,

Setembro a Lisboa e a 27 e 28

com uma taxa de participação

reassume a liderança do partido,

de 91,7%. Resultados dos partidos

num Conselho Nacional histórico.

com representação parlamentar:

A 12 de Novembro o Parlamento

PS 37,87%; PPD 26,38%;

é cercado e os deputados sequestra-

PCP 12,53%; CDS 7,61%;

dos. No dia 25 de Novembro, pára-

MDP 4,14%; UDP 0,79%.

-quedistas da Base Escola de Tancos

152


CRONOLOGIA com representação parlamentar: PS 35%; PPD 24%; CDS 15,9%; PCP 14,6%; UDP 1,7%. Eleições presidenciais a 27 de Junho. António Ramalho Eanes é o primeiro Presidente da República constitucionalmente eleito com 61,5% dos votos. Tomada de posse do I Governo Constitucional, chefiado por ocupam o Comando da Região Aérea

Mário Soares, a 23 de Setembro.

de Monsanto e seis bases aéreas.

Em Outubro, o PPD passa

Os militares ligados ao Grupo dos

a designar-se PSD (Partido

Nove decidem actuar militarmente

Social-Democrata).

contra os revoltosos para controlar

Decorre o III Congresso, em Leiria,

o país. Militares afectos ao Governo

a 31 de Outubro, imediatamente

controlam a situação.

seguido pelo IV, no dia seguinte.

Congresso do PPD, em Aveiro,

Francisco pede, pela primeira vez, o

a 6 e 7 de Dezembro.

divórcio a Isabel Maria. Esta recusa.

1976 Sá Carneiro conhece Snu Abecassis no início do ano. Aprovação pela Assembleia Constituinte da Constituição da República de 1976, no dia 2 de Abril. Eleições legislativas, no dia 25 de Abril. Resultados dos partidos

153


CRONOLOGIA

1977

Morte do pai de Francisco Sá

Contrariado com a decisão favorável

Carneiro, em Fevereiro. Em Abril

do partido à Lei da Reforma Agrária,

publica Impasse, livro de reflexão

Sá Carneiro ausenta-se propositada-

sobre a situação política.

mente do Parlamento, para não ter

Em Lisboa, no mês de Julho,

de votar. No dia 7 de Novembro

realiza-se o VI Congresso do PSD,

demite-se do partido. A demissão

que Sá Carneiro vence convincente-

não é aceite e Francisco declara-se

mente, com dois terços dos votos.

«presidente não em exercício».

Nesse mesmo mês cai o II Governo

A 8 de Dezembro o I Governo

Constitucional, constituído pela

Constitucional cai no Parlamento.

coligação PS/CDS. Seguem-se-lhe as iniciativas presidenciais para

1978

a formação de governos – Nobre

Em Janeiro realiza-se no Porto

da Costa, Mota Pinto, Maria

o V Congresso do PSD.

de Lourdes Pintassilgo.

154


CRONOLOGIA 1979

Amaro da Costa e a mulher, assim

A 5 de Julho Francisco Sá Carneiro

como António Patrício Gouveia,

(PSD), Diogo Freitas do Amaral

embarcam num avião Cessna rumo

(CDS) e Gonçalo Ribeiro Teles (PPM)

ao Porto. A aeronave despenha-se

assinam o acordo que dá origem

38 segundos depois de ter descolado.

à AD (Aliança Democrática).

Todos os passageiros, e os dois

No dia 2 de Dezembro realizam-se

pilotos, morrem no desastre.

as eleições intercalares. A AD vence, com 42,52% dos votos.

1980 Toma posse o VI Governo Constitucional. Francisco Sá Carneiro é o primeiro-ministro. Em Março, o Conselho Nacional do PSD aprova o nome do general Soares Carneiro para candidato à presidência da República. Sá Carneiro sofre, em Maio, um acidente de viação em Inglaterra, que lhe causará dores fortíssimas durante meses. No dia 5 de Outubro a AD vence as eleições legislativas com 44,91% dos votos, aumentando a sua representação parlamentar. A 4 de Dezembro, Francisco Sá Carneiro, Snu Abecassis, Adelino

155


BIBLIOGRAFIA AVILLEZ, Maria João, Francisco Sá Carneiro: Solidão e Poder, Cognitio, Lisboa, [s.d.] CARNEIRO, Francisco Sá e BALSEMÃO, Francisco Pinto, Revisão da Constituição Política: Discursos dos Deputados Subscritores do Projecto CARNEIRO, Francisco Sá, Uma Constituição para os Anos 80: Contributo para Um Projecto de Revisão, Dom Quixote, Lisboa, 2.ª edição, 1979 CARNEIRO, Francisco Sá, Impasse, Macroplan, Lisboa, 1978 CARNEIRO, Francisco Sá, As Revisões da Constituição Política de 1933, Brasília, Porto, 1971 CARNEIRO, Francisco Sá, Textos, Ed. Progresso Social e Democracia, Lisboa, [1981-1984] PARTIDO POPULAR DEMOCRÁTICO, Estatutos do Partido Popular Democrático: Aprovado pelo 1.º Congresso Nacional do Partido em 24 de Novembro de 1974, PPD, 1974 PARTIDO POPULAR DEMOCRÁTICO, A Nossa Proposta para Um Portugal Livre, PPD [s.d.] PARTIDO POPULAR DEMOCRÁTICO, A Social Democracia para Portugal: Programa do Partido Popular Democrático, PPD, 1974 SEABRA, José Augusto, Francisco Sá Carneiro: da «Ala Liberal» ao 25 de Abril, Nova Renascença, Porto, vol. 14, 1994

156


BIBLIOGRAFIA SOUSA, Marcelo Rebelo de, A Revolução e o Nascimento do PPD, 2 vol., Bertrand Editora, Lisboa, 2000

Agradecemos ao Arquivo Audio-Visual do PSD a cedência das fotografias.

157


ÍNDICE

FRANCISCO SÁ CARNEIRO 7

UM FURACÃO

41

NO SÉCULO XX

A PRIMAVERA MARCELISTA

8 O FINAL DO SALAZARISMO

42 O DESAFIO DO PODER

9 A GRANDE ENCRUZILHADA

44 IDEIAS CLARAS

12 UM DURO DESAFIO

47 ELEIÇÕES

14 Marcello Caetano

50 A Acção Nacional Popular

17 «RENOVAÇÃO NA CONTINUIDADE»

52 PARLAMENTAR

18 A ALA LIBERAL

54 O DEPUTADO CENSURADO

20 O TEMPO DE TODOS OS PERIGOS

58 O DOM DA PALAVRA

25

AS ORIGENS DE UM GOVERNANTE

63

FINALMENTE A LIBERDADE

26 RAÍZES

64 A ALVORADA DE ABRIL

28 UMA FAMÍLIA BURGUESA

67 ABANDONO

31 A praia da Granja

70 UM HOMEM NO LIMBO

33 PROMISSOR E TEMPERAMENTAL

72 RENASCIMENTO

36 A IMPORTÂNCIA DA FÉ

73 AO ENCONTRO DE UM DESÍGNIO

37 D. António Ferreira Gomes

75 NASCE O PARTIDO POPULAR

40 ACENTUA-SE O MUNDO REAL

158

DEMOCRÁTICO


ÍNDICE 77 Fiéis companheiros

115 UM REGRESSO ARRASADOR

79 O GOVERNO DE PALMA CARLOS

117 UM PAÍS DIVIDIDO

81 Adelino da Palma Carlos

120 António Ramalho Eanes 122 UMA INTRIGANTE EDITORA

83

A CONSTRUÇÃO

123 SNU

DE UM PARTIDO

125 ELEIÇÕES PERDIDAS

84 DO GOVERNO PARA O PARTIDO

A CHEGADA AO PODER

85 LUTA EM DUAS FRENTES

127

87 PROBLEMAS EM CASA

128 A QUESTÃO PRESIDENCIAL

89 Uma cor e um símbolo

131 NO CENTRO DA FOGUEIRA

91 NO FIO DA NAVALHA

POLÍTICA

93 UMA DEFINIÇÃO

134 FINALMENTE O PODER

96 O PRIMEIRO CONGRESSO

136 GOVERNANTE 139 Adelino Amaro da Costa

99

AFIRMAÇÃO

140 O FIM

E AFASTAMENTO 100 DOENÇA E TURBULÊNCIA

145 CRONOLOGIA

101 ACTIVIDADE INCESSANTE 103 DEFINIÇÕES INCÓMODAS

156 BIBLIOGRAFIA

105 AGONIA 106 CONVULSÕES E RADICALISMO 108 Mounier e o personalismo cristão 109 UM PARTIDO VIVO

111

O RENASCIMENTO

112 PROLONGA-SE O SOFRIMENTO 112 FORA DOS ACONTECIMENTOS 114 RECUPERAÇÃO

159



GRANDES PROTAGONISTAS

DA HISTÓRIA DE PORTUGAL

Francisco Sá Carneiro traçou um percurso político fulgurante e controverso na vida nacional. A sua personalidade solitária, a coragem que emprestava ao combate das ideias (e dos ideais), a determinação com que perseguia os seus objectivos, fizeram dele uma figura singular. Chegando à política na esperança da renovação marcelista, vai descobrir que o regime continuaria indefinidamente no marasmo. Como tantas vezes faria no futuro, rompe. Não estabelece compromissos. É arrebatado pela ideia da social-democracia e quando chega o 25 de Abril está pronto. Forma o seu partido, o PPD, desde o início vocacionado para o poder. Intuitivo e apaixonado, Sá Carneiro lutará intensamente para vergar a realidade às suas aspirações. Afronta os mais difíceis desafios políticos e pessoais, correndo sempre para a frente, numa pressa de viver e de vencer que parecia prenunciar um destino fatídico. Morre jovem, no fulgor da sua vida de homem e de estadista. Falecido Sá Carneiro, nascia um mito que perdura até hoje.


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