Toda quinta-feira e domingo, no seu jornal e no aplicativo do CORREIO.
ISBN Coleção As Sete Portas da Bahia: 978-85-68287-00-2
A Feira de Água de Meninos Texto e desenhos de Carybé Posfácio de Jorge Amado
Copyright © 2014 Instituto Carybé
Ilustrações e texto: Carybé
Projeto editorial: Pan ArtWorks / GBDG Editorial Ltda. Design e diagramação: Gabriel Duarte Revisão dos originais: Marcelo Stern
• A feira de Água de Meninos: ISBN 978-85-68287-01-9 • Coleção As sete portas da Bahia: ISBN 978-85-68287-00-2
2014 Todos os direitos desta edição reservados à Pan ArtWorks / GBDG Editorial Ltda. Rua Frederico Simões, 98 - s: 713/714 41820-774 - Salvador - Bahia T.: +55 71 2137-9858
Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/PanArtworks Curta Carybé no Facebook: www.facebook.com/InstitutoCarybe
Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.
A Chave
A Bahia não é uma cidade de contrastes. Não é não. Quem pensa assim está enganado. Tudo aqui se interpenetra, se funde, se disfarça e volta à tona sob os aspectos mais diversos, sendo duas ou mais coisas ao mesmo tempo, tendo outro significado, outra roupa, até outra cara. Me explico? Quero dizer que aquela ruma de São Jorge que Alfredo Simões, o santeiro, esculpe e encarna é São Jorge mas ao mesmo tempo é Oxóssi; um era Capadócio, o outro das terras de Ijebu Odé, cada qual andou sua distância e aqui na Bahia, ou Roma Negra, ou Cidade do Salvador, ou simplesmente Salvador, se irmanaram, viraram carne e unha e ali estão, em cores fulgurantes na prateleira do Simões, ou em forma de arco e flecha de ferro na barraca do Camafeu, no Mercado. Quando chegam reis à Bahia, ou presidentes ou personalidades mundiais, é de praxe oferecer-lhes um almoço em Palácio. Aí o rei come caruru e caruru é amalá, comida de Xangô, come acarajé que é de Iansã, come pipocas que são de Omolu e assim o rei faz um almoço litúrgico conversando de política ou do grande prêmio de Long-Champs. De contrastes seria se fosse uma cidade com coisas que uma nada tem que ver com a outra, mas aqui tudo tem que ver. Tudo está alinhavado, tudo surge de seu bojo magico com grossas raízes, profundas raízes que se alimentam de rezas, ladainhas, orikis, alujás, farofas de azeite o ano todo, bacalhau na semana santa, trêmula luz de velas nos altares e água fresca nas quartinhas dos pejis. Tudo misturado. Tudo misturado: gente, coisas, costumes, pensares. Vindos de longe ou sendo daqui, tudo misturado. O político consulta Ifá e faz promessa ao Senhor do Bomfim para ser eleito; O doente entra na sala de operações ao mesmo tempo que se faz Ebó para que o cirurgião corte o mal com precisão absoluta. Além da terra onde um dia descansaremos, há duas coisas: o preto e o branco. Havia. A loura de biquíni tem uma estrutura de ombros formidável, genuinamente sudanesa. A vendedora de mingau, escura como a noite, tem um holandês nos olhos. Tudo misturado.
A Bahia, cidade gorda, farta de cacau e fumo, está debruçada sobre o mar, fingindo não saber de nada, tomando a fresca, vendo a Lua se escamando na maré de enchente, vendo a descaração na Ladeira da Misericórdia, vendo os saveiros serenos. Se fosse outra noite, se fosse uma noite de trovoada, por uma boca tiraria ladainhas a Santa Bárbara e pela outra cantaria para Iansã, bonita como o quê, enfrentando coriscos com seu alfanje de ouro. Dançando ao som dos pipocos, porque ela não tem medo de relâmpagos nem de Eguns do outro mundo. Dança levando na cabeça o fogo que roubou a Xangô enquanto a chuva derrete o barro vermelho que vira sangue vale abaixo até ir tingir o começo do mar. Verdes e doces vales da Bahia. Divisores das colinas coroadas de conventos, de sobrados multicores, de mosteiros e fortes e enlouquecidas de torres sonoras de sinos, que cantam aleluias ou reboam soturnos toques de finados. Reboam também os couros de bode dos atabaques chamando deuses africanos. Oxum para coisas do amor, Omolu para doenças ou Oxalá em sua infinita pureza, e, como eu estava dizendo, Oxalá é o Senhor do Bomfim. Outras colinas mais novas dão onde morar aos pobres, são colinas franciscanas que dão tudo que é seu, chão para sustentar pequenas casas agrupadas e alegres como colegiais, mangueiras, jaqueiras e tamarindeiros imensos para que os garotos façam um pouco de cultura física e se alimentem, bananeiras e as tetas douradas dos mamoeiros para menino pequeno e velha sem dente. Dão sua carne, seu barro, para fazer as paredes de sopapo, manacás e jasmineiros para perfumar a noite. De tardinha os fifós vão abrindo quadros familiares na escurama. Modestos jantares servidos, ampliações de retratos de casamento, máquinas de coser e gente, muita gente fazendo coisas, representando a vida nos pequenos teatros das janelas e portas iluminadas. Uma sombra densa engoliu o verde das bananeiras, as jaqueiras, os coqueiros, o povo. Só ternos brancos e vestidos mal-assombrados sobem e descem as ladeiras como se não tivessem ninguém por dentro ou passam cachorros silenciosos como que voando na noite. E os jasmineiros aromando. Detrás do samba fanhoso do alto-falante do armazém, palpita o som gordo dos atabaques. Exu recebe oferendas, canta-se o padê. Ao mesmo tempo sobem aos céus os cânticos dos Filhos de Jeová tentando salvar o mundo. Dona Frutuosa Ferreira de Aragão acende as lamparinas à santa de sua devoção, a Senhora Sant’Ana, que ao mesmo tempo é Nanã Burucu, pelo menos para Lindaura, a cozinheira, que salva dizendo: — Saluba! O manacá aromando, misturado com perfume de namorada. Há muita confusão aqui, Senhor! Os sinos badalam nas torres cor de osso, São Lázaro come pipocas, há anjos de madeira com asas de arara e Oxês escuros empapados de azeite. Incenso, mirra, ouro e munguzá; ouro nas farofas e nas enlouquecidas naves barrocas, mirra e incenso não faltam, estão no ar transparente, nas brisas que vem de tão longe, no aromado passar de uma crioula.
E tem a Feira de Água de Meninos É como se fosse a enxurrada das ladeiras do Canto da Cruz, do Quebrabunda, da Lapinha e da Água Brusca. Fica lá embaixo, junto ao mar, num amontoado inverossímil de barracas, divididas por becos, ruelas e passadiços, formigando de gente, de saveiros, de jegues, frutas, legumes, jabá, cestas e tamancos, camarão seco e raladores de coco, fifós, cana e farinha de guerra. Cerâmica de todo o recôncavo. De todos os feitios e para todos os usos. Como os depósitos de inflamáveis invadiram o território da feira, um areal alvo onde se comia, à noite, sarapatel e mocotó, onde se amava, se dormia ou se ouviam histórias do mar ao pé dos saveiros — areal que deu nome aos famosos capitães da areia — pois bem, como os depósitos de inflamáveis invadiram seu território, a feira invadiu a rua. Começa do lado de fora entre as palmeiras reais. Mercam-se alí panelas de alumínio, bacias, canecos e bules. Banha de jibóia para reumatismo, canela de ema para a asma e folhas, cascas e paus para curar de tudo. Quase sempre há uma barraca onde se exibe “o homem-fera” ou “a mulher-macaco”, bancas de ferro-velho e algum cego tirando cantigas. Na principal rua, a rua que atravessa a feira, mal se pode passar de tanto povo, carroças, caminhões, jegues encangalhados, vendedores, camelôs, balaios. Para andar com um sossego relativo é preciso passar às estreitas ruas entre barracas: alí o espetáculo humano é inesgotável, as mulheres do carimã peneirando a puba, sumidas no cone de sombra de seus enormes chapelões, quando mercam deixam ver seu riso tão branco como os cubinhos de goma que estão oferecendo. Há barracas especializadas em passarinhos onde esvoaçam campeões do canto e da cor, às vezes algum macaco enriquece a fauna, e, um pouco avacalhado com a cor das cuiúbas e dos sofrês, se movimenta amarrado pelo meio fazendo caretas e obscenidades para regozijo da molecada. Há montanhas de cachos de banana, de laranja, de pinhas, de limas e canade-açúcar, pois é aí que se abastecem os vendedores ambulantes, os hotéis, restaurantes e as famílias pobres. Hercúleos carregadores descarregam os saveiros, entram na água até o umbigo e voltam carregados com tijolos, carvão, balaios
imensos de jiló, porcos, capoeiras de galinhas d’angola ou feixes de caibros. Numa técnica toda especial, passam a carga a outro e este a outro mais, conforme a distância entre o saveiro e o depósito. No setor das carnes verdes há um personagem sinistro, é o homem que tira miolos e língua das cabeças de boi. Com seu cepo de jaqueira e seu grande machado, este carrasco proletário destrincha as cabeças esfoladas onde os grandes olhos esbugalhados parecem perguntar onde está o resto do boi. Esse personagem está rodeado de mandíbulas e ossos e descarrega suas machadadas com a mesma precisão que seu velho antepassado inglês, o encarregado de decapitar Ana Bolena. Em Água de Meninos se concentra a produção do Recôncavo. Chegam as mercadorias de Santo Amaro, Nazaré das Farinhas, Cachoeira, São Francisco do Conde e outras cidades, estivadas na barriga chata dos saveiros, que esperam banzos, adernados, que os livrem desse peso todo. O mal da feira é o cheiro espesso a maresia, o barro se chove ou a poeira se faz sol. Mas o colorido e a vida compensam e um gole de cachaça com arruda de um dos inúmeros botequins nos limpa a goela e o coração, fazendo-os esquecer o cheiro de mangue na maré de vazante, o pó e a inhaca das capoeiras de galinha.
Obá Onã Xocun e a memória da Bahia
O cidadão brasileiro Hector Júlio Páride Bernabó nasceu na cidade de Buenos Aires, de pai italiano e mãe brasileira, boa mistura. Menino na Itália, adolescência e juventude no Brasil que o italiano não era de assentar a bunda em lugar nenhum. Aos 19 anos, lá se vai a família outra vez para Buenos Aires, onde o rapaz que cursara belas-artes no Rio fez-se cantor de tangos (medíocre), cabaretier, tocador de pandeiro quando o Bando da Lua e Carmem Miranda por lá apareciam. Como o irmão mais velho era o pintor Bernabó, Hector começa a assinar desenhos, aquarelas, quadros, com o nome de Carybé, hoje famoso. Viaja os Andes, é preso na Bolívia onde iniciara sua carreira, igualmente coroada pelo sucesso, de ladrão de igrejas (agora aposentado, ao que afirma), rapta, vestido a caráter, cavalheiro negro de esporas e poncho vermelho, a mais bela filha de Salta, a moça Nancy, e demonstra sagacidade pois a conserva até hoje graças a ebós variados e constantes, além de lábia de mel e pimenta. O irrequieto senhor Hector Júlio Páride Bernabó retorna ao Brasil já audacioso desenhista e pintor para fazer jornal e cinema, no Rio e em São Paulo. Morre jagunço, em combate, em “O Cangaceiro”, de Lima Barreto. De paletó almofadinha, segundo o depoimento insuspeito do pintor Jenner Augusto; ávido de cores morenas, segundo o escultor Mário Cravo, outro ávido; bonito de ver-se, olhar irresistível, na opinião já menos desinteressada do artista Mirabeau Sampaio, desembarca finalmente na Bahia nos idos de 1938, em busca do pai-de-santo Jubiabá. Transformou-se então seu destino pois foi de novo parido. Nasceu Obá Onã Xocun, o terceiro homem ou melhor dito o terceiro elo dessa espécie de Santíssima Trindade mística, e ao mesmo tempo pagã, um dogma, se quiserem, um mistério baiano, se preferirem. Obá Onã Xocun resultou do primeiro casamento de Oxum, quando esposa do caçador Oxóssi, rei do Ketu, senhor da floresta e dos javalis. Oxum não é o que se chama um caráter adamantino, sendo tirada a vaidosa conquistadora, anda nos dengues e nos trinques. Enquanto Oxóssi caçava chifres de búfalos, com
eles, Oxum ornou-lhe a testa deitando-se na cama do cunhado, Xangô, senhor da guerra. Assim se explica ser Obá Onã Xocun ao mesmo tempo filho de Oxóssi e ministro de Xangô, e até presidente do Axé Opô Afonjá, terreiro onde reinaram Aninha e Senhora, as veneráveis. Aqui não quero falar dos desenhos — o desenhista Carybé ganhou, ex-aequo com o desenhista Aldemir Martins, o Grande Prêmio da Bienal de São Paulo — nem da pintura, nem sequer dos painéis espalhados mundo afora pelo artista fabuloso. Meu interesse é apenas dizer que, quando tudo se faz na Bahia para degradar a grandeza da cidade, roubar-lhe o verde das árvores, a brisa do mar, as velas dos saveiros, poluir o céu e as praias, matar os peixes e reduzir os pescadores à miséria, quando agridem a paisagem a cada momento, com espantosos edifícios rompendo a harmonia dos locais mais belos, fazendo da lagoa do Abaeté e da doçura de Itapoã, cantadas por Caymmi, caminhos do lucro imobiliário sem o menor controle, quando tantas forças se juntam para destruir a cidade da Bahia, “construída no oriente do mundo”, onde os sangues se misturaram para criar a nação brasileira, nessa hora de agonia e vileza, Obá Onã Xocun, dito Carybé, nascido Hector Júlio Páride Bernabó na primeira encarnação, tomou dos instrumentos, da goiva, do formão, do macete, dos materiais mais nobres, a madeira, o cimento, o barro, e armado com a força dos orixás, fixou para sempre a face da verdadeira Bahia, a que está sendo assassinada. Quando nada mais restar de autêntico, quando tudo já se fizer apenas representação, mercadoria a transformar-se em dinheiro na sociedade de consumo, a memória perdurará pura pois o filho de Oxóssi e de Oxum, o obá de Xangô, guardou a verdade íntegra na criação de uma obra sem igual pela autenticidade, pela beleza, feita com as mãos, o talento e o coração. Em Congonhas do Campo os profetas do Aleijadinho são a memória de um tempo e de um povo. Na cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos, os orixás, os jagunços, os beatos, as mães e as filhas-de-santo, os mestres de saveiro, o rei de Ketu e a Senhora-das-Águas, a criação de Carybé, Obá Onã Xocun, são a memória imortal e mágica, do mistério, do axé da Bahia.
Jorge Amado
Toda quinta-feira e domingo, no seu jornal e no aplicativo do CORREIO.