descaminhos - Experimentação da sinestesia como comunicação em instalações artísticas

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Gabriela

Ribeiro

da Costa

Gabriel

Falconiere

Koritzky

Lopes

descaminhos Experimentação da sinestesia como comunicação em instalações artísticas

Universidade

Federal de

Ouro Preto Mariana

2015


Gabriel Koritzky Falconiere Lopes e Gabriela Ribeiro da Costa

des​ caminhos Experimentação da sinestesia como comunicação em instalações artísticas Memorial descritivo de produto jornalístico apresentado ao curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Jornalismo. Orientadora:​ Profª Drª Maria Lucilia Borges

Mariana 2015



Ao Prof. Dr. Reges Schwaab, por ter sido o primeiro a acreditar no nosso projeto e nos impulsionado a ousar mais. À Paróquia de Nossa Senhora da Assunção, por ter aberto astricentenárias portas da Catedral da Sé à nossa pesquisa. À Profª. Dr.ª Priscila Borges pelas excelentes ideias e contribuições. Aos queridos amigos: Alessandra Alves, Flávia Silva, Neto Medeiros e Thiago Caldeira (Chumbinho), pela leveza da disponibilidade em ajudar a tornar esse projeto real. E finalmente, à nossa querida orientadora, Profª. Dr.ª Lucília Borges, sem a qual nada disso teria sido possível, e que nos acompanhou durante todas as etapas desse (des)caminho.

Agradecimentos

A Profª. Drª. Gabriela de Souza Guerra Leal, por todo o apoio e orientação que foram essenciais na primeira etapa desse projeto.

À Gabi pela paciência, pelos brigadeiros e pela coragem de embarcar nessa jornada comigo. - Gabriel Ao Gabriel pelo coração puro, pelo riso solto e por ter descoberto comigo quantos anões cantam na história da Branca de Neve. - Gabi


“É por isso que um bom poema parece falar de tudo e de nada, ao mesmo tempo. É por isso que um (bom) poema não se esgota: ele cria modelos de sensibilidade” Décio Pignatari


Resumo Este trabalho é o memorial descritivo da instalação artística des​ caminhos​ , que é uma experimentação da comunicação que acontece pelo sensível, tendo em vista a possibilidade de contar com as sensações sinestésicas (sensações em uma via sensorial cujo estímulo correspondente pertença a outra via sensorial) como reagente nesse processo. Montada em uma sala com isolamento acústico, a instalação é composta por narrativas que se constroem a partir da interação sonora do público. A história narrada e a interferência do público são transduzidas nas imagens projetadas que, junto com os sons propostos em cada cena, compõem o ambiente. Para embasar o projeto, olhamos os conceitos de arte instalação e sinestesia a fim de entendê-los como parte de processos sensíveis de comunicação. Por fim, apresentamos o processo de construção do produto, mostrando o projeto inicial, as referências artísticas e as escolhas que delinearam o resultado final da instalação. Palavras-chave​ : Comunicação sensível; arte instalação; interação; potencial sinestésico.


Abstract This work is a descriptive memorial of the art installation des​ caminhos​ , which consists of an experimentation of communication that happens through the sensible, focusing on the possibility of having synesthetic sensations (i.e. sensations on a certain sensory pathway with a corresponding stimulus on a different sensory pathway) as co-agents in this process. Assembled in an acoustically-isolated room, the installation features a storyline which builds itself through the sound interaction of participants. The narrated story and the public interference are transduced into projected images which, along with the proposed sounds on each scene, compose the space. For an academic grounding, we have applied the concepts of art installation and synesthesia so as to comprehend them as part of sensible communication processes. Finally, we outline the construction process of the product, presenting the initial draft, artistic references and the choices which guided the final result. Key-words​ : Sensible communication; art installation; interaction; synesthetic potential.


ApĂŞndices

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Figuras 1 e 2 Figuras 3 e 4 Figuras 5 e 6 Figuras 7 e 8 Quadro 1 Figuras 9 e 10 Figuras 11 e 12 Figuras 13 e 14 Figuras 15 e 16 Figuras 17 e 18 Figura 19 Figura 20 Figuras 21 e 22 Figura 23 Figuras 24 e 25 Quadro 2 Quadro 3 Figuras 26 e 27 Figura 28


Sumário

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Introdução Comunicação sensível Veículo: Arte instalação Da escultura à instalação O corpo incômodo Sinestesia na comunicação O conceito de potencial sinestésico Ofício de Trevas Os caminhos da nossa arte Referencial artístico O projeto Processo Produto O protótipo Considerações finais Referências bibliográficas Anexos


Introdução Como bem observou Lúcia Santaella, em seu texto ​ Comunicação e Pesquisa ​ (2001), não é preciso ser um grande observador do mundo contemporâneo para perceber que o termo “comunicação” é incansavelmente empregado, inclusive dando nome à sociedade atual. Tendo como cenário uma overdose de informações, a agilidade com que elas são pulverizadas e, ao mesmo tempo, a efemeridade dessas relações, a comunicação facilmente é limitada ao factual, às midias, às novas tecnologias comunicacionais. Não obstante a essa realidade, Santaella afirma que muitos autores “têm colocado ênfase na pluralidade dos fenômenos que podem ser chamados de comunicacionais” (p. 16). Assim como a emergência da semiótica nos modelos do processo comunicativo rompeu com a noção de comunicação como puramente “transferência de informação” (SANTAELLA, 2001), cercados pelo ambiente jornalístico da graduação, decidimos nesta pesquisa explorar outras experiências comunicacionais. Arquitetando o projeto, elegemos a sinestesia, a religião e a arte - temas que particularmente nos instigam - e nos desafiamos a encontrar neles fenômenos comunicativos. Ao descobrir o universo dos processos sensíveis de comunicação, encontramos a brecha. Pensando que há esse viés “da comunicação que se expressa pelas vias da percepção da obra de arte, onde a sensação toma o lugar da razão” (BORGES & BARRETOS, 2014), nos voltamos para as sensações sinestésicas como uma possibilidade de percepção de ambientes artísticos e não artísticos. Partimos da hipótese de que eventos (ambientes experimentados por um espectador) poderiam ser capazes de provocar nos participantes percepções sensoriais através de um estímulo em outra via sensorial. Ou seja, uma pessoa poderia experimentar, por exemplo, o gosto de maçã ao entrar em uma instalação artística, ou a sensação de flutuar enquanto visualiza uma peça teatral, entre outros. Para isso, trouxemos o conceito de potencial sinestésico, que corresponde ao conjunto de percepções sinestésicas que poderiam ser causadas por um determinado evento em seus participantes. O fenômeno da sinestesia é intrigante, e pesquisas recentes indicam que ele não é exclusividade dos sinestetas, ou seja, pode ser experimentado por uma maioria da população que não possui essa condição neurológica. O fato de que nossos sentidos não agem em separado na construção de percepções nos leva a questionar de que forma realmente percebemos o mundo a nossa volta. Para verificar a possibilidade da existência do potencial sinestésico, conduzimos uma pesquisa de sensações com os participantes do rito católico do Ofício de Trevas, que relataram suas percepções através de questionário auto-aplicado. Os resultados indicam um possível potencial do rito para causar sensações olfativas. A pesquisa nos levou a perceber que é possível contar com a sinestesia como um meio de experienciar determinados ambientes a partir desse potencial particular que ele dispõe. Desta

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forma, propomos a criação de uma instalação artística com o objetivo de estimular criativamente os participantes, de modo a disparar neles possíveis sensações sinestésicas. Os conceitos que guiaram e instigaram a concepção do nosso produto, e os caminhos percorridos até chegarmos nele estão apresentados e descritos neste memorial. Elaboramos um breve histórico sobre arte instalação e uma pesquisa de referências visuais, como forma de compreender melhor os processos de desenvolvimento dessa modalidade artística. Usamos a sinestesia como tema para o nosso projeto, e replicamos na instalação parte da experiência sinestésica através da transdução sensorial. A narrativa, construída a partir de trechos de diversos poemas, é o que conduz a obra e o que permite instigar o imaginário do público, tanto através dos signos que emergiram dela para a construção das imagens e sons projetados, quanto através da interação que ela pede, a fim de modificar a história a cada visita. Para iniciar a apresentação dos conceitos, comecemos pelo fio condutor da pesquisa: a comunicação.

Comunicação Sensível Para Shannon & Weaver, comunicação é definida como “todos os procedimentos pelos quais uma mente pode afetar outra. Isto, obviamente, envolve não apenas o discurso oral e escrito, como também música, artes visuais, teatro, balé e, certamente, todo comportamento humano” (SHANNON & WEAVER, 1949:3 apud SANTAELLA, 2001, p. 18). Essa definição abre de maneira eficaz a discussão sobre comunicação nesse projeto, pois, segundo Santaella, a partir dela qualquer forma de comportamento não-verbal pode tornar-se comunicativo. O esforço deste tópico é exatamente esse: romper com a ideia de comunicação voltada para emissão e recepção de mensagens racionalmente preestabelecidas e caminhar com essa noção até chegar ao que tratamos aqui como comunicação sensível. Santaella nos ajuda a entender parte dessa transição ao fazer um panorama geral das definições de comunicação a partir de diversos autores. Uma das formulações apresentadas por ela é a feita por Prieto, dizendo que “todo ato comunicativo pressupõe uma intenção da parte do emissor, que tem que ser identificável por parte do receptor” (PRIETO, 1966:20 apud SANTAELLA, 2001, p. 20). Martinet, também exposto pela autora, pelo viés da linguagem, se refere à comunicação como a “necessidade que alguém tem de ser entendido”. Olhando para essas definições, compreendemos a comunicação como apenas uma ferramenta social de interação. Anne Cauquelin (2005) reforça essa ideia, afirmando que uma das primeiras virtudes de um cidadão responsável e o grande trunfo em qualquer profissão é a “competência comunicativa”. Se enchergarmos o conceito de comunicação sob essas lentes, esbarraremos na dificuldade de compreensão da arte e das experiências sensíveis como processos comunicacionais válidos, devido a sensação de ineficácia comunicativa que eles podem gerar. É o que aprofunda Queiroz (2009):

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Há ainda quem afirme que a capacidade artística de sensibilizar com muito mais facilidade do que efetivamente colocar algo de objetivo e concreto na significação humana, tenderia a uma incomunicabilidade da arte, por comunicar não à razão, mas sim aos sentidos. Mas, partindo de um ponto de vista contrário, acredita-se que esta capacidade de sensibilizar é a principal veia comunicativa da arte, pois assim como afirma René Berger, “a arte transforma o ato de comunicar em uma gênese” (1977, p.133). (QUEIROZ, 2009, p. 189-190)

Retomando a linha de autores desenhada por Santaella, Watzlawick et al. observam que comunicação humana acontece tal como seu comportamento: sem oposição. “Ninguém pode não se comportar (1967: 48). Assim, também ‘ninguém pode não se comunicar’ (ibid.: 49). Mesmo o silêncio e o ‘não comportamento’ têm o caráter de uma mensagem” (SANTAELLA, 2001, p.21). Diante disso, a comunicação foge do controle racional ou de uma ação premeditada e abre brechas à produção de sentido pelas vias sensoriais, e não mais só pela linguagem verbal. Assim é a percepção diante de uma obra de arte, por exemplo. A comunicação acontece não por estar carregada de uma bagagem informativa, mas pelo sensível. Para Queiroz, “a comunicação na arte não está na obra enquanto espaço físico, mas sim na comunicabilidade que se processa por meio das emanações sensíveis destes objetos, ‘não-objetos’ ou proposições artísticas no momento em que atravessam e afetam ao outro” (Ibid., p. 190) Na obra de Gilles Deleuze, dois conceitos nos ajudam a compreender esse processo: o poder e a potência. Para Borges & Barretos, Os poderes variam entre graus de poder sobre (poder que um corpo exerce sobre outro) e poder de (que define um ser, seu esforço ou potencial de manter-se si mesmo), onde o poder sobre (o pouvoir) exerce-se de forma a produzir tristeza e, consequentemente, a diminuir (retrair) a potência de agir ou força de existir dos corpos envolvidos na relação/encontro. A potência (poder de, puissance), ao contrário, expande a força de existir dos corpos, produz alegria. (BORGES & BARRETOS 2014, p.4)

A partir de Espinosa, as autoras consideram que nós somos seres dotados de potência e de forças que têm o poder de afectar e serem afectadas. E, assim como nos encontros que acontecem cotidianamente, diante de uma obra de arte os relacionamentos de poder dessas forças ditam a maneira como percebemos esse encontro - seja resistindo, afectando ou sendo afectado (Ibid, p.5). Para Deleuze e Guattari (1992, p.213) “a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos” que existe em si, independentes do homem - seja ele seu criador ou aquele que experiencia a obra. A potência que existe nos ambientes artísticos - e não artísticos - é o que atravessa o público. Chega como a mensagem dos processos comunicativos, é percebida no encontro através dos sentidos e sensações e fica, ou passa, conforme cada um se permite afectar.

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Veículo: Arte instalação Quando optamos por desenvolver um produto, logo decidimos: será uma arte instalação. Através dessa linguagem, vamos experimentar a comunicação que acontece pelo sensível, tendo em vista a possibilidade de contar com as sensações sinestésicas que podem ser disparadas a partir do potencial que a instalação pode vir a oferecer. Para isso, vamos mergulhar brevemente nesse conceito. O vocabulário das artes visuais ganhou um novo termo entre as décadas de 60 e 70: a arte instalação. A Enciclopédia do Itaú Cultural define instalação como uma “modalidade de produção artística que lança a obra no espaço, com o auxílio de materiais variados, na tentativa de construir um ambiente ou cena cujo movimento é dado pela relação entre objetos, construções, o ponto de vista e o corpo do observador”. Existe até hoje uma dificuldade em marcar com exatidão essa origem, mas nomes como Merz, Kurt Schwitters e Duchamp produziram expressivas obras de arte com características inerentes ao termo, que antecedem os anos 60. Marcel Duchamp (1887 - 1968) é convidado em 1937 pelos surrealistas Paul Éluard e André Breton para trazer ideias à International Exhibition of Surrealism1, que aconteceria no ano seguinte na Gallerie de Beaux-arts, em Paris. Duchamp assume – de maneira precursora – o papel de artista-curador, responsável pela concepção e montagem da exposição. 1200 Coal Sacks Room é a principal inferência do artista na exposição. A sala, que abrigou quadros surrealistas, foi transformada em uma espécie de gruta, com as paredes escurecidas e teto recoberto por 1200 sacos de carvão. Um braseiro de ferro foi instalado no chão como uma luminária invertida, e a foligem dos sacos caía constantemente nos convidados, trazendo à percepção da obra uma experiência sensorial. Figuras 1 e 2:​ 1200 Coal Sacks, International Exhibition of Surrealism, Gallerie des Beaux-arts, Paris, 1938.

Fonte:Autor desconhecido2.

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A Exposição Internacional do Surrealismo contou com a participação de mais de 60 artistas de diferentes países, mostrando aproximadamente 300 obras, entre pinturas, colagens, objetos, fotografias e até performance. (RUPP, 2011, p. 134) 2 As imagens foram feitas em 1938. Devido à longa data, perdeu-se a informação do autor das fotos. As usadas neste memorial foram retiradas do flickr “lola.mcdowell”, do álbum “Chapter II”, que pode ser visitado no link abaixo:

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Duchamp rompe com a ideia de sala branca e amplia a noção de espaço na arte. Como curador, ele interfere na obra e cria um ambiente para além do objeto. E é exatamente nesse pensamento que surge a instalação, segundo Gaudêncio Fidelis. Ele a define como: “[...] Categoria culturalmente estabelecida a partir das práticas dos anos 1960 e 70, com o objetivo de tornar visíveis os artifícios ideológicos que cercam a exposição do objeto artístico. A instalação viria a problematizar definitivamente as relações condicionadas pela existência da obra em um local específico, definindo seu campo de ação como sendo fundamentalmente de uma política de intervenção no campo da exposição.” (FIDELIS, 2005, p. 19).

Da escultura à instalação Com o surgimento das exposições, surge também a necessidade de alguém que as organize. É nesse contexto que o curador ganha seu espaço. No entanto, Fidelis afirma que os “procedimentos curatoriais tomam de assalto a colocação da obra no espaço da exposição” (FIDELIS, 2005, p. 19). Pensando que a exposição é o que ativa o poder de definição do objeto, movendo-o para um processo de afirmação de identidade (MCEVILLEY apud RUPP, 2011), o artista-curador passa a ter uma influência direta na essência da obra, A artista e pesquisadora Betina Rupp, em seu artigo “O curador como autor de exposições” (RUPP, 2011), fala da comunicação do objeto com o público e afirma, baseada em García Blanco, que a exposição é o que media essa comunicação. A interferência do curador ao lançar a obra no espaço, colocando-a em uma estrutura simbólica na exposição e criando ambientes que as acolham, dá a ele parte inegável nessa identidade. A partir dessa realidade, os artistas desenvolveram um novo modo de apresentar o objeto, expandindo a obra para o ambiente e apropriando-se do espaço através do próprio trabalho (FIDELIS, 2005, p. 19). A colocação da obra no espaço passou a ser definida pelo próprio artista. Sobre o processo de transformação da escultura tradicional, Lílian Campesato observa que “na escultura, o objeto está no espaço, e na instalação, o espaço é o objeto, a obra” (2007, p. 33). Eva Hesse fez parte dessa mudança. Suas obras adotam um viés orgânico, usando materiais como látex, fibras de vidro e luz, e se rendem ao espaço de maneira quase natural. Um exemplo mais recente é o artista pernambucano Tunga, com sete obras expostas em Inhotim3. Ele busca relações fortes entre os materiais em seu trabalho, e usa do ambiente como uma expansão da sua obra, como em True Rouge (figuras 3 e 4) - que surge do poema homônimo, de Simon Lane, que descreve a ocupação do espaço pelo vermelho. Apesar da sensação de protecionismo por parte dos artistas, Fidelis ainda afirma que “esse processo não foi somente uma resposta ingênua à vontade do artista, mas também uma mudança epistemológica com o objetivo de transferir o significado do objeto para o contexto” (2005, p. 28). Nessa virada dos paradigmas modernistas entre o final dos anos de 1960 e início dos anos 70 acontece o que Fidelis chama de “uma abordagem mais ‘cinemática’ do espaço” (2005, p 28).

https://www.flickr.com/photos/32491186@N05/sets/72157622719863708/ 3 Inhotim é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), localizada em Brumadinho-MG, e possui um dos mais relevantes acervos de arte contemporânea do mundo.

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Figuras 3 e 4:​ Tunga - True Rouge, Inhotim, Brumadinho, 1997

Fonte: Fotografia de Marcel Vincenti.

Fonte: Fotografia de Daniela Paoliello.

O corpo incômodo A ativação do espaço pela instalação “cria um ambiente que convida o público a envolver seus sentidos e, assim, participar” ​ (LINKE, 2006, p. 135)​ . O envolvimento do espectador se torna um elemento da instalação, rompendo com a postura contemplativa e quebrando os limites de ação. Campesato reforça esse argumento: “Na escultura, o objeto tem uma certa autonomia em relação ao espaço, o que leva a uma atitude de contemplação frente à obra na qual o espectador se coloca, se movimenta e age. Usualmente a obra é mantida a uma certa distância do espectador, a qual é frequentemente enfatizada pelo uso de sinais que demarcam o ponto máximo de aproximação permitida. Já na instalação, o espectador é envolto por um contexto espaço temporal que o convida a uma situação imersiva, levando a uma possibilidade de interação efetiva” (2007, p. 33)

Um exemplo muito simbólico do que Campesato fala é a obra ​ Através​ , de Cildo Meireles (figuras 5 e 6). O artista marca a obra com uma espacialidade latente do ambiente e brinca com a ideia de limites, tanto fisicamente, quanto socialmente. A instalação é composta por diversos tipos de barreiras, como cortinas, grades, telas, divisórias dos mais variados tipos. Essas barreiras formam um labirinto que cerca a escultura central, tudo sobre o piso coberto por cacos de vidro. É visível no público que se aproxima da escultura circular a dúvida do “posso ou não posso” diante das barreiras mais próximas. A arte contemporânea, desde Duchamp, exige do público um desprendimento de suas expectativas habituais, como afirma Osório (2011), pois não é pelo embate puramente formal que se pode lidar com esses trabalhos. O ambiente da instalação cria situações que instigam o comportamento do espectador e o convidam a sair da zona de conforto para experienciar o trabalho. O corpo, incômodo, responde à obra adotando uma postura performática que a ativa, a atualiza pela interação.

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Figuras 5 e 6:​ Cildo Meireles - Através, Inhotim, Brumadinho, 1983 - 1989

Fonte: Fotografias de Pedro Motta.

Em des​ caminhos​ , propomos uma narrativa, em meio a uma teia de histórias, que emerge pela participação do público. A instalação acontece como um jogo, em que o visitante escolhe o caminho a seguir por meio de interações, envolvendo os seus sentidos, O espectador é colocado numa posição incômoda pelos comandos de ação e pela própria curiosidade: o corpo é ativado e a experiência sensorial vivida tece a obra, compondo a narrativa sonora-texto-visual. Campesato (2007) afirma que “as instalações são trabalhos que, de uma certa forma, direcionam-se para uma experiência sensorial mais completa do público, na medida em que usam materiais e conceitos que invocam os vários sentidos” (p. 31). Essas capacidade sensorial abre à arte instalação a porta da experiência sinestésica.

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Sinestesia como comunicação Tomando por base que o ser humano é, por natureza, um ser simbólico, de linguagem e de comunicação (SANTAELLA, 2001, p.13), consideramos que esta última pulsa em suas diversas relações, sejam elas sociais ou até mesmo biológicas. Para Rosnay, a “história da comunicação” perpassa a comunicação entre moléculas e células biológicas, a interação entre organismos até chegar à interação entre seres humanos (ROSNAY, 1975, p. 135 apud SANTAELLA, 2001, p. 18). Diante disso, consideramos as experiências sensoriais como uma possibilidade de comunicação e trazemos a sinestesia para a discussão. Sinestesia é uma condição sensorial na qual um indivíduo “experimenta sensações em uma modalidade quando outra modalidade é estimulada”4 (RAMACHANDRAN; HUBBARD, 2001, p. 33-34), sejam em modalidades sensoriais distintas (como tato e paladar) ou relacionadas (cor e grafemas, ambas visuais). Dessa forma, um indivíduo pode experimentar estímulos auditivos acompanhados de sensações visuais, olfativas, ou de qualquer outra modalidade, incluindo, em teoria, as somatossensoriais (i.e. sentidos do corpo, como temperatura e dor). A partir dessa definição, o termo sinestesia tem sido empregado para descrever uma gama de fenômenos diferentes. Baron-Cohen e Harisson (1997, p. 6) sugerem a seguinte distinção: [...] o uso da palavra sinestesia cobre ao menos cinco situações muito diferentes [...] (a) sinestesia desenvolvida; (b) sinestesia causada por uma disfunção neurológica; (c) sinestesia como consequência do uso de drogas psicoativas; (d) metáfora como pseudosinestesia; e por último (e) associação como pseudosinestesia.5

Roger Walsh, entretanto, conduziu um estudo com praticantes de meditação que sugere que a sinestesia pode ser cultivada, ou induzida, através de meditação introspectiva (WALSH, 2005). Através dessa indicação, o trabalho de Walsh adiciona uma nova categoria àquelas já identificadas por Harisson e Baron-Cohen, que é a sinestesia desenvolvida, ou sinestesia como consequência de experiências pessoais. Daphne Maurer e Catherine Mondlock conduziram ainda alguns estudos que apoiam a teoria da sinestesia neonatal (MAURER, MONDLOCK, 2004), afirmando que as percepções sensoriais de recém-nascidos não são experimentadas separadamente, mas constituem uma verdadeira “sopa sensorial” (CAMPEN, 2007, p. 29-33), em que todos os sentidos são experimentados como uma única percepção. Esses dois estudos apoiam a ideia de que a sinestesia, antes considerada um fenômeno restrito aos indivíduos conhecidos como sinestetas6, pode ocorrer em indivíduos normais. Ainda 4

“Synaesthesia is a curious condition in which an otherwise normal person experiences sensations in one modality when a second modality is stimulated”. 5

"the use of the word synaesthesia covers at the least five very different situations [...] “(a) developmental synaesthesia; (b) synaesthesia caused by a neurological dysfunction; (c) synaesthesia as a consequence of psychoactive drug use; (d) metaphor as pseudosynaesthesia; and finally (e) association as pseudosynaesthesia" 6

​ indivíduos que experimentam a sinestesia como parte normal de suas vidas.

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outros autores tecem comentários a esse respeito. Heinz Werner, em seus estudos sobre psicologia do desenvolvimento, introduziu a ideia de que existe uma camada primária da experiência sensorial que precede a divisão dos sentidos (WERNER, 1978). Essa ideia pode ser relacionada com a sensorialidade integrada de Maurer e Mondlock. Maurice Merleau-Ponty (2005, p.264) trabalhou sobre a ideia de Werner, teorizando que a percepção sinestésica está presente em todos os indivíduos, em nível pré-consciente, e emerge para o nível consciente como sentidos “separados”. Merleau-Ponty acreditava que, em determinadas ocasiões, as barreiras entre a percepção pré-consciente unificada e a consciência podem ser removidas, ocasionando experiências sinestésicas. Existem várias outras teorias a respeito de uma origem neural da sinestesia, e cada uma parece estar relacionada com um aspecto (ou tipo) de sinestesia em particular. Campen (2007, p. 120-3) reuniu teorias que identificam a sinestesia como tendo origem em processos cognitivos comuns, e outras que tratam o estado como uma disfunção do sistema nervoso. Algumas das teorias do primeiro grupo poderiam explicar os resultados de Walsh, em que a prática da meditação ocasionou o desenvolvimento de experiências sinestésicas em indivíduos normais. Charles Baudelaire (1961), relatando a respeito de suas experiências com haxixe, acreditava que novas correspondências entre modalidades sensoriais poderiam ser estimuladas a partir de um estado de maior abertura dos sentidos a estímulos. Campen compara esse estado ao que se conhece na medicina como hiperestesia ou hipersensibilidade, um estado de sensibilidade aumentada em determinada via sensorial (CAMPEN, 2007, p. 107-9). Baudelaire acreditava que esse estado de maior sensibilidade poderia revelar uma camada mais profunda de consciência em que não houvesse separação entre modalidades sensoriais, de maneira bastante análoga ao que descreve Merleau-Ponty. Através desta pesquisa, propomos uma experimentação artística voltada para o conceito de arte instalação a fim de explorar outras experiências comunicacionais que, por ventura, possam disparar sensações sinestésicas. A maneira como se percebe um ambiente dotado de potencial sinestésico, a partir do momento que o espectador é afectado por esse viés, torna a produção de sentidos daquele lugar diferente de quem o percebe pelas vias comuns. Ao identificar a existência desse conceito, poderemos explorá-lo na execução de nossa instalação.

O conceito de potencial sinestésico Nessa etapa do trabalho, aspiramos indicar a possível existência do ​ potencial sinestésico​ , que definimos como o potencial de um evento para causar sensações sinestésicas. Dessa forma, uma peça teatral (um evento cujos estímulos principais são visuais e auditivos) poderia causar no espectador, por exemplo, uma sensação de frio ou de dor, ou talvez um gosto de frutas. Outros eventos (situações que podem ser experimentadas por participantes, como instalações artísticas e ritos religiosos) poderiam ter um potencial para causar outros tipos de sensações. O conjunto de

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sensações sinestésicas que um evento pode causar em seus participantes define o seu potencial sinestésico. Caracterizamos esse potencial como uma forma de sinestesia, e não de alucinação, pelas seguintes razões: 1.

As sensações existem apenas na presença de um estímulo correspondente em outra modalidade sensorial (ou seja, dependem do evento específico que está sendo experimentado). Na alucinação não há estímulo correspondente em qualquer modalidade sensorial.

2. Dado determinado estímulo (neste caso, um evento), as sensações relatadas pelos participantes se apresentam de maneira consistente, ou seja, são relatadas percepções similares para participantes diversos da instalação. Campen define a consistência, na paridade sensação/estímulo associado, como um dos requisitos para distinguir entre sinestesia e alucinação (CAMPEN, 2007, p. 113). Usamos de um evento não artístico para colher informações capazes de nos ajudar na concepção da instalação. Para isso, fizemos uma pesquisa com os participantes do rito católico Ofício de Trevas. O objetivo da pesquisa era identificar, através das percepções dos participantes, os potenciais sinestésicos que poderiam estar associados a esta situação de comunicação. Matias Augé (1998) explica que “a liturgia se apresenta como verdadeira ‘tradição’, ou seja, transmissão do mistério salvífico de Cristo através de um rito, de uma forma sempre nova e adequada à sucessão dos tempos e à diversidade de lugares”. A liturgia é, dessa forma, o meio que a Igreja utiliza para comunicar seus mistérios de fé e, em diversos momentos, ela se vale dos sentidos para dilatar essa comunicação. Giorgio Agamben (2013) olha a liturgia sob a ótica artística, trazendo o conceito de performance, e constata que a religião cristã é um mistério, isto é, uma ação litúrgica, uma performance cujos atores são Cristo e seu corpo místico, ou seja, a Igreja. E tal ação é sim uma praxis especial, mas, ao mesmo tempo, constitui a atividade humana mais universal e mais verdadeira, na qual está em jogo a salvação dos que a realizam e daqueles que dela participam. (2013, p. 358)

O autor também considera que a liturgia abrange tanto uma dimensão salvífica, quanto uma dimensão performática. Na última, “a atividade criativa assume a forma de um verdadeiro ritual, desvinculado de todo significado social e eficaz pelo simples fato de ser celebrado” (Ibid., p. 359).

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Ofício de Trevas Acompanhamos a participação do público no rito católico intitulado “Ofício de Trevas” nos dias 16 e 19 de Abril de 2014, na Catedral Basílica Nossa Senhora da Assunção em Mariana (MG). Entre as características que diferem este rito de outros celebrados nesta igreja estão principalmente a presença de trechos cantados em latim, o uso de um candelabro com 15 velas (das quais 14 são apagadas gradualmente ao longo da cerimônia; ver figura 7) e o trecho de encerramento (cf. figura 8), no qual as luzes do interior da igreja são apagadas e os participantes enchem o templo com o som do bater de livros nos bancos. Houve diferenças entre as celebrações dos dias 16 e 19. A cerimônia do dia 16 ocorreu à noite, portanto ao final do rito o interior da igreja ficou quase completamente escuro, a única luz presente vinha de uma vela acesa à frente da nave. No dia 19 não houve o mesmo efeito, pois a cerimônia ocorreu durante o dia. Ainda, neste dia não foi realizada a batida de livros, embora os trechos cantados tenham sido acompanhados pelo órgão da igreja. Figura 7:​ Nave da Catedral durante a realização do rito, no dia 16. Note o coral de pé, no canto (ao centro) e o candelabro (logo acima à direita) com 15 velas acesas.

Figura 8: Nave da Catedral, ao final do rito, momentos antes de todas as luzes serem apagadas. Repare nas duas velas na parte inferior da imagem, que permanecem acesas durante o encerramento.

Fonte: Fotografia de Gabriel Koritzky

Fonte: Fotografia de Gabriel Koritzky

Apesar das diferenças na celebração do rito nos dias 16 e 19 de Abril, foi encontrado um numero similar de resultados positivos na aplicação do questionário em cada um desses dias, e várias das percepções se repetiram entre as duas celebrações.

Metodologia Neste estudo, os participantes relataram suas percepções sensoriais por meio de questionário auto-aplicado, que foi respondido ao final do evento. O questionário (Anexo I) tem 11 questões com o objetivo de tentar isolar as percepções de cada indivíduo nas seguintes vias sensoriais: Olfato (Questão 2), Termocepção (Q. 3), Paladar (Q. 4), Equilíbrio (Q. 5), Nocicepção (Q. 6), Propriocepção (Q. 7), Mecanorrecepção (Q. 8), Audição (Q. 9) e Visão (Q. 10). A percepção informada pelo participante só foi considerada válida se e somente se:

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I.

O participante respondeu afirmativamente à questão.

II.

O participante registrou por escrito uma descrição da percepção.

III.

O participante respondeu que não costuma sentir essa sensação fora do rito ou instalação.

IV.

A percepção não pode ser mais facilmente explicada por uma patologia ou resposta imunológica.

V.

A percepção não pode ter sido causada diretamente por um elemento presente no ambiente.

Alguns dos resultados que foram considerados negativos incluem: “Cheiro de velas” em um ambiente que possuía velas acesas (condição V). “Dor nas juntas por causa da minha artrite” (condição IV). “Arrepio” e “Calafrios” (condição IV), bem como diversas respostas não acompanhadas de descrição (condição II) e algumas sensações de dor que, segundo os participantes, também costumam ser sentidas fora do ambiente analisado (condição III). Resultados considerados positivos constam no Quadro 2, abaixo. Para identificar o possível potencial sinestésico vinculado a um evento procuramos não apenas obter as percepções dos participantes, mas validá-las através da frequência em que apareceram no evento. Portanto, não basta que uma sensação tenha sido percebida, é necessário que ela tenha sido percebida por várias pessoas diferentes. A razão para isso é tentar minimizar a possibilidade dessas sensações terem sido causadas por uma característica do indivíduo (em oposição a “do evento”), como alucinações, patologias não relatadas pelos participantes ou a possibilidade de que o próprio participante seja um sinesteta.

Percepções registradas 63 pessoas participaram do estudo durante os dois dias do evento. Dentre esses, 47 pessoas marcaram apenas respostas negativas ou deixaram o questionário incompleto. 8 pessoas marcaram pelo menos uma questão com sim, mas não justificaram, ou a justificativa não passou pelos critérios de validade. Outras 8 pessoas relataram percepções válidas. Estas últimas são apresentados na tabela abaixo: Quadro 1:​ Resultados positivos relatados pelos participantes do rito

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Nota sobre metodologia Neste estudo pode ter ocorrido enviesamento amostral decorrente de alguns fatores: 1.

A ordem fixa das perguntas (em oposição a uma ordem aleatória) pode ter contribuído para um aumento na frequência de percepções olfativas relatadas, em comparação com as outras modalidades sensoriais.

2. Foi pedido aos participantes que fizessem o relato apenas ao final do evento. A duração total do rito é de aproximadamente uma hora. É possível que neste tempo os participantes tenham esquecido algumas das suas percepções. 3. É possível que os participantes tenham desejado ou se sentido pressionados para contribuir, resultando em um número maior de respostas positivas. Os critérios III, IV e V da metodologia ajudam a minimizar esse efeito. 4. Alguma falta de esclarecimento sobre o estudo pode ter contribuído para reduzir a quantidade de resultados válidos, uma vez que houve várias respostas positivas sem justificativa.

Análise de resultados Dos 8 resultados positivos, 6 estão ligados ao olfato. Algumas sensações similares (1,2 e 7; 4 e 5) foram registradas em dias diferentes de evento. Isso sugere que mais participantes desse evento possam ter experimentado ou vir a experimentar as mesmas sensações. Por conta da frequência de relatos similares registrados por indivíduos diferentes, esses resultados sugerem a possível existência de um potencial sinestésico do Ofício de Trevas para sensações olfativas, em particular aquelas relacionadas com flores e papel queimado - dois elementos que não estavam presentes e nem foram sugeridos aos participantes ao longo da cerimônia. É importante ressaltar que a pesquisa foi feita com uma amostragem pequena, por isso o resultado apresentado não corresponde a uma generalização do potencial sinestésico do Ofício. No entanto, mesmo com a baixa amostragem, a constatação da existência do potencial sinestésico no rito católico abre para nós a possibilidade de explorar essas sensações do espectador em nossa instalação, de modo que o público também possa percebê-la a partir do viés sinestésico.

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Os caminhos da nossa arte Desde que iniciamos a pesquisa desse projeto, a potência da nossa instalação nos alcançou, mas o tempo que ela levou para “vir a ser”, de fato, foi longo. Esse processo de germinação foi permeado por encontros com diversas obras que nos inspiraram e deram à semente da instalação as condições propícias para a eclosão. Foi visando a construção de espaços que não só proporcionassem experiências sinestésicas, mas ilustrassem a própria sinestesia, tema deste trabalho, que iniciamos a pesquisa de referências. Nossas principais referências foram o Ofício de Trevas - rito católico -, e a instalação Murder of Crows - de Janet Cardiff & George Bures Miller, exposta em Inhotim. Delas extraímos a ideia de narrativa complementar, presente nos dois eventos, e poetizar a instalação.

Referencial artístico Na busca por referências artísticas, pesquisamos de início ambientes que faziam transduções entre modalidades sensoriais distintas. O primeiro trabalho que nos inspirou foi ​ Messa di Voce ​ (figuras 11 e 12), um projeto de visualização da voz que é tanto performance quanto instalação, criado por Golan Levin e Zachary Lieberman, com participação de Jaap Blonk e Joan La Barbara na versão performance. O projeto é composto de diversos módulos, cada um executando um tipo específico de visualização, constituindo o que os autores definiram como um “universo interativo ficcional perceptua e esteticamente plausível no qual a voz é de alguma forma visível”7 (LEVIN; LIEBERMAN, 2003). No projeto, os participantes interagem com a visualização por meio de sons e movimentos do corpo. Figuras 09 e 10:​ Dois dos módulos sonoro-visuais que constituem a versão instalação do projeto ​ Messa di Voce​ .

Fonte: Fotografias de Golan Levin e Zachary Lieberman. Reproduzido com permissão.

7

“perceptually and aesthetically plausible interactive ficcional universe in which speech is somehow visible”

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The Murder of Crows8 ​ (figuras 11 e 12) é composta por 98 caixas de som dispostas como uma orquestra na sala, dividindo espaço com as cadeiras que esperam o público. A instalação, que segue uma narrativa, foi concebida como um filme ou uma peça teatral cega. Sem o recurso de imagens visuais, a cadência do som, gerada por técnicas especiais de gravação e de reprodução polifônicas, torna a história concreta. “Um som dá sequência ao outro, evocando uma narrativa onírica de assustadora e desconcertante imediatez”, antecipa o texto de apresentação da obra. Figuras 11 e 12: ​ Estrutura da instalação ​ Murder of Crows, ​ 2008, de Janet Cardiff & George Bures Miller.

9

Fonte: Reprodução Inhotim .

Passage10 (figuras 13 e 14) é uma instalação do estúdio Bonjour Interactive Lab que identifica os participantes por detecção de presença e de som, e projeta sobre a parede uma interpretação desses dados, mostrando ao participante as suas “pegadas” no ambiente durante um breve momento. Figuras 13 e 14:​ Passage, Carrousel du Louvre, Paris, 2013

Fonte: Fotografias de​ Julya Baisson​ . Reproduzido com permissão.

8 9

https://www.youtube.com/watch?v=CKBxLX7bZZQ

Disponível em: http://inhotim.org.br/inhotim/arte-contemporanea/obras/the-murder-of-crows/

10

http://vimeo.com/69879128

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Matières Sensibles11 ​ (figuras 15 e 16) é uma escultura interativa da dupla Scenocosme, Gregory Lasserre & Anais met den Ancxt, que efetua a transdução sensorial entre o toque (mecanorrecepção) e o som (audição). A obra convida o participante a explorar com os dedos uma estrutura de madeira, que responde ao toque com sons diferenciados dependendo da região onde se toca. Figuras 15 e 16:​ Matières sensibles (Sensitive matters) Scenocosme: Gregory Lasserre & Anais met den Ancxt

Fonte: Fotografias de​ Gregory Lasserre & Anais met den Ancxt​ . Reproduzido com permissão.

Fine Collection of Curious Sound Objects12, de Georg Reil e Kathy Scheuring, é uma instalação que encerra objetos aparentemente simples, como uma caixa de fósforos e uma embalagem de detergente, porém adaptados para produzir alguma reação sonora inesperada. Cada objeto acompanha uma etiqueta, que apresenta a história fictícia da sua criação.

O projeto A partir dessa pesquisa de referências decidimos, inicialmente, pela criação de duas salas complementares, cada uma efetuando um tipo de transdução sensorial, usando o software desenvolvido em linguagem ​ processing13. A elaboração deste primeiro modelo e a experimentação dos softwares nos orientaram no projeto final da instalação.

11

http://www.scenocosme.com/matiere_e.htm

12

http://vimeo.com/10173262

13

Processing é uma linguagem de programação de código aberto e ambiente de desenvolvimento integrado (IDE) para as pessoas que querem programar imagens, animações e interações. É um projeto aberto iniciado por Ben Fry e Casey Reas, e pode ser baixado processing.org.

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Essa primeira ideia buscava provocar no participante experiências sinestésicas através de ambientes

que

iriam

imitar

a

sinestesia

nas

modalidades

Audição→Visão

e

Propriocepção→Audição. As instalações seriam compostas de ambiente e narrativa, colaborando mutuamente para a experiência artística. O visitante teria a possibilidade de interagir com a história em dois níveis: No primeiro nível, a interação interfere diretamente com a mensagem na forma de ruído (e.g. imagem sobre texto, som sobre voz). No segundo nível, o programa detecta a presença ou ausência de interação (e de tipos específicos de interação, como assobio ou palmas) em diversos momentos da experiência e usa dessa interação para modificar o rumo da narrativa.

Ambiente 1 Este ambiente consiste em uma sala escura com a mensagem transmitida através de uma projeção em uma das paredes. Microfones fazem a captação do som presente na sala, e o programa aplica um filtro limitador simples (threshold) para isolar o ruído do equipamento e permitir que hajam momentos de silêncio. Ao captar um som, o programa transforma a onda sonora em frequências através da transformada de Fourier. Depois, o programa analisa o momento atual da narrativa e faz uma conversão de som para forma e cor específica para aquele momento. A experiência se modifica quando o visitante fala ou emite algum ruído, uma vez que nessa ocasião serão projetados sobre o texto figuras geométricas que imitam a forma como um sinesteta dessa modalidade (Audição→Visão) poderia estar percebendo sua própria voz. Figura 17​ : Momento da história contado com silêncio por parte do visitante.

Figura 18​ : Mesmo momento contado enquanto o visitante fala ou emite algum ruído.

Fonte: Elaboração própria.

Fonte: Elaboração própria.

A experiência do participante se modifica conforme ele interage com a obra. Em silêncio, vê-se apenas a história (Figura 17). Ao falar ou emitir outros sons, a projeção se enche com formas e cores relacionadas ao momento atual da narrativa (Figura 18). Essas duas formas principais de interação (som e silêncio), além de interferirem diretamente na experiência estética (na forma de ruído), também serão usadas para modificar o rumo da narrativa.

26


Ambiente 2 Na sala iluminada a mensagem é transmitida por som, através de gravações de voz, efeitos sonoros e música. A experiência se modifica quando o visitante se movimenta dentro do ambiente, uma vez que esse movimento é captado por uma câmera, decodificado em som e adicionado à narração da história, imitando a forma como um sinesteta dessa modalidade (Propriocepção→Audição) poderia estar percebendo seu próprio corpo. O programa compara o frame atual capturado com o frame anterior para detectar todo o movimento ocorrido, e aplica um filtro limitador simples (threshold) para anular o ruído da câmera e pequenas variações na iluminação (figura 19). Figura 19:​ Processo de detecção do movimento. O programa considera a variação de cor, intensidade e luminosidade fazendo o cálculo da diferença entre dois pontos em um espaço de cores RGB tridimensional.

Fonte: Elaboração própria.

Após detectar as áreas onde ocorreu movimento, o programa divide a tela em uma grade simétrica e traduz para som as áreas onde houve maior variação (figura 20), considerando a quantidade de movimento como volume do oscilador e a posição (X,Y) na grade como as características específicas (e.g. timbre, ruído e altura) do oscilador. Figura 20​ : Tradução de movimento para som. O programa detecta as áreas onde ocorreu maior movimento e aciona um oscilador de acordo com a posição desse movimento na grade. Fonte: Elaboração própria.

Assim como no ambiente anterior, neste a experiência do participante também se modifica em função da sua interação com a obra. Se o participante estiver parado, ouvirá apenas a narração. A partir do momento em que ele se move pela sala, o som dos osciladores se projeta sobre a narração. O movimento do participante também será usado para guiar o rumo da narrativa em certos momentos.

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Processo Ao conceber a narrativa e iniciar o processo de concretização da instalação, vimos a necessidade de simplificá-la. Aplicando a história, a experimentação foi se delineando em um novo modelo e caminhando para outras formas de interação que nos fizeram esbarrar em limitações técnicas. A instalação foi configurada para uma única sala. Mantivemos a projeção da narrativa e a transdução do som em imagens, mas o som captado não vem mais só do participante, mas também da própria narração. Já o ambiente de interação que imitaria a forma como um sinesteta da modalidade Propriocepção→Audição poderia estar percebendo seu próprio corpo (movimento decodificado em som) não pode ser implementado no novo projeto. Mantivemos também o processo de transformação da onda sonora em faixas de frequência através da transformada de Fourier e o filtro limitador de volume (threshold). O projeto original do Ambiente 1, porém, previa uma história contada apenas através de texto, e visualizações que aparecem apenas através da interação sonora do participante, sendo assim uma sala fundamentalmente silenciosa. No novo projeto, decidimos adicionar som ao ambiente, que será captado pelos microfones e traduzido em formas e cores assim como as interações do participante, que passam agora a complementar a experiência sem ser parte essencial dela. Dessa forma, mesclamos a maneira como os dois ambientes do projeto iriam contar a história, e criamos uma sala única que trabalha através da integração desses elementos. Utilizamos músicas e sons registrados como Creative Commons e Domínio Público, através das quais é permitido o uso das obras em produtos não-comerciais desde que respeitado o direito do autor de ser identificado como criador das obras. Seus créditos de autoria estão apresentados nos quadros 2 e 3, no próximo capítulo. Para as visualizações recorremos a uma variedade de estratégias, derivando suas formas e padrões de movimento principalmente de cálculo trigonométrico (figura 21) e, em alguns casos, simulações de gravitação universal (figura 22). Figura 21​ : Cena “Primavera”. As flores são geradas através da junção de três funções trigonométricas — duas para o cálculo da trajetória circular, e uma para o cálculo do raio em determinado momento da trajetória.

Figura 22​ : Cena “Conto”. Os corações são formado pelo rastro de dois planetas que partem do vértice em direções diferentes e orbitam ao redor de dois sóis. Além desta, cinco outras cenas também usam gravitação.

Fonte: Elaboração própria.

Fonte: Elaboração própria.

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Produto Figura 23:​ Visualisação do trecho da cena “Vôo”.

Fonte: Elaboração própria.

“Qualquer caminho leva a toda a parte. Qualquer ponto é o centro do infinito. E por isso, qualquer que seja a arte De ir ou ficar, do nosso corpo ou espírito, Tudo é estático e morto. Só a ilusão Tem passado e futuro, e nela erramos. Não há estrada senão na sensação É só através de nós que caminhamos” (Fernando Pessoa)

Através de Fernando Pessoa, começamos a apresentar a instalação des​ caminhos​ . Descaminho porque desvia-se, muda-se o destino. Brincamos com ele - o destino - na estrada de sensações: da voz, do olhar, do ouvir, do sorrir ou travar. Descaminho é experimentar os rumos, escolher a viagem - inerte ou ativamente - dentre as finitas possibilidades, infinitas para os minutos da experimentação.

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O protótipo Uma sala com isolamento acústico e pouca iluminação, um microfone e a projeção da narrativa compõem o ambiente do des​ caminhos (figuras 24 e 25). A teia de histórias ganha corpo através de três diferentes vozes, duas femininas e uma masculina, que se misturam nos caminhos da experimentação. Quatro elementos constroem as cenas: narrativa, música, sons e imagens. A narrativa, formada pelos poemas selecionados, é apresentada ao mesmo tempo por voz e através de texto, projetado no centro da visualização (cf. anexo II). A música e os efeitos sonoros ambientam esculturalmente os acontecimentos da história. Figura 24 e 25:​ Layout lateral e vista aérea da instalação.

Fonte: Elaboração própria.

A narrativa A ideia de ter uma narrativa conduzindo a instalação veio da observação dos dois ambientes que chamaram nossa atenção durante a pesquisa: o Oficio de Trevas e a instalação ​ The Murder of Crows​ . Percebemos que os dois tinham a narrativa como base, seja a história do sonho do ​ The Murder​ , sejam os hinos e leituras do Ofício. Pelo que experimentamos pessoalmente desses ambientes, vimos que a narrativa apoia e por vezes até impulsiona a imersão neles. Diante disso, começamos o ​ brainstorm ​ da narrativa. Decidimos nos apropriar de outras obras para compor nossa história inspirados - talvez encorajados - pelo texto “A viúva e a vanguarda”, que Alejando Chacoff conta na Revista Piauí14. Ele fala sobre a discussão intertextualidade/plágio, permeando o caso da disputa judicial entre a herdeira do escritor Jorge Luis Borges e um jovem escritor, que se apropriou de uma obra de Borges para escrever a sua.

14

Edição 78 > questões autorais > Março de 2013.

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Após uma inquietante indecisão, escolhemos, enfim, partir de poemas. Décio Pignatari (2005) antecipou o argumento que nos fez caminhar por essa via. Ele diz que o poema é um ser de linguagem, e a linguagem é um ser vivo. O poeta trabalha as raízes da linguagem, criando e recriando o mundo, afirma o autor. “É por isso que um poema parece falar de tudo e de nada, ao mesmo tempo. É por isso que um (bom) poema não se esgota: ele cria modelos de sensibilidade” (PIGNATARI, 2005, p. 11-12). É nessa potência sensível do poema que acreditamos. Selecionamos, então, mais de 70 poemas de autores variados e, desses textos, recortamos cerca de 95 trechos para compor a narrativa. Organizamos esses recortes em palavras chaves que nos nortearam na criação das histórias. A intenção da narrativa, desde o projeto inicial, era que o participante pudesse interagir podendo mudar de rumo. Como um quebra cabeça, fomos juntando as partes e formando cenas, e delas, chegando às histórias (cf. anexo III). Os recortes nos trouxeram temas como primavera, pássaros, flores, rio, mar, trem, monstros, máquina, cidade e o tempo. Acreditamos que as temáticas, aliadas a experiência pessoal, podem ativar o imaginário dos participantes e, assim, ajudar na imersão e ativação dos sentidos na instalação. Escolhemos uma cena de início que oferece dois caminhos de opção: entrar no trem ou conhecer a cidade (cf. anexo IV). A partir desses dois ambientes e das temáticas que surgiram, a narrativa foi se delineando. Cada cena traz duas opções de caminhos, e assim segue até chegar a um final. São 10 opções de finais, que podem ser alcançados por diversas vias, traçadas pela escolhas que o próprio participante faz.

Cenas O público só é capaz de experimentar histórias diferentes pelo caráter modular da narrativa. As células que a compõem são as cenas, e o complemento vem por meio de uma música, que se apresenta em 22 das 25 cenas, constituindo 26 melodias ao todo (quadro 2). Além delas, diversos efeitos sonoros (quadro 3) ajudam a constituir a ambientação para cada momento da história. Quadro 2:​ Relação de músicas usadas nas cenas. Autor

Título

Autor

Título

Chan Wai Fat

Dream instrumental

Josh Woodward

Im Not Dreaming

Gillicuddy

A Garden And A Library

Josh Woodward

Private Hurricane

Gillicuddy

Jupiter The Blue

Josh Woodward

Stars Collide

Gillicuddy

Springish

Josh Woodward

Swansong

Gillicuddy

The Everlasting Itch For Things Remote

Josh Woodward

The Voices

Gillicuddy

Thinking Of You

Josh Woodward

Under the Stairs

Gillicuddy

Travelling Made-up Continents

Josh Woodward

Border Blaster

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Glenn Jones

Little Dogs Day

Montana Skies

Canyon Breeze

Hudson

Pursuit Through Grouse Canyon

Montana Skies

December Mourning

Hudson

Within the Fog

Montana Skies

Gringo Flamenco

Jason Shaw

Autumn Sunset

Montana Skies

Montana Skies

Jason Shaw

Bird In Hand

Montana Skies

The Edge of Night

Oskar Schuster

Sneeuwland

Montana Skies

Tunnels

Quadro 3:​ Relação de autores dos efeitos sonoros usados nas cenas. Crédito dos criadores dos efeitos sonoros acclivity, audiolarx, Ayliffe, beejeeb1314, Benboncan, bmccoy2, BristolStories, bsumusictech, bunting, cajo, CastleofSamples, ChemiCatz, clavellmorenet, cloudcloud, Corsica_S, cs272, cylon8472, daveincamas, digifishmusic, digitopia, dobroide, Erdie, erkanozan, fmaudio, genelythgow, hasbrouck, Heigh-hoo, IanStarGem, inchadney, jagadamba, jberkuta14, jmorrisoncafe330, johansyd, JohnnyBeCrafty, jorickhoofd, juskiddink, kangaroovindaloo, kantouth, K1m218, kwahmah_02, lebcraftlp, lth_stp, Lisa Stockton Wilson, mario1298, milton, missozzy, murraysortz, nnus, nornalbion, novino, Paul Morek, Reitanna, RHumphries, Robinhood76, RSilveira_88, silencyo, smartxxd, skydran, soundmary, skyumori, system_fm, thecluegeek, thehorriblejoke, urupin, viorelvio, williew705, XtreamGF, yottasounds, Zabuhailo

Todo o espaço sonoro da instalação (música, narração, efeitos sonoros e sons produzidos pelos participantes) é transduzido em tempo real para efeitos visuais, que denominamos de criaturas sonoras (figura 26), pois reagem de maneira quase orgânica a essas sonoridades. Cada uma delas responde a uma determinada faixa de frequências sonoras, que varia para cada efeito e cada momento da narrativa. Ao pensar cada cena, a potência das criaturas sonoras iam nos alcançando. Experimentamos já na concepção das animações um pouco da transdução sensorial que pretendemos transmitir. Enquanto líamos os trechos da narrativa, o sabor das cores e das formas iam pulsando e contornando a estética do des​ caminhos​ . Existem 40 criaturas na instalação, com cores, tamanhos e formatos diferentes, variando desde círculos que crescem em tamanho conforme a intensidade sonora até o rastro da órbita de um planeta ao redor de um ou mais sóis, que reage à sua frequência sonora mudando sua opacidade. Utilizando variações de cor, número, tamanho e posição, além de pequenas variações particulares de cada criatura, pode ser criada uma infinidade de efeitos diferentes. Ao todo, aproximadamente 800 efeitos compõem as visualizações da instalação. Além dessas, utilizamos também transições visuais, que são efeitos de tela cheia para ilustrar momentos chaves da narrativa, como a subida do mar na cena “Naufrágio” (figura 27) ou a alegria do pássaro na cena “Vôo” (figura 23). São 5 tipos diferentes de transições, que também puderam ser alteradas conforme a situação para dar origem a efeitos diferenciados.

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Figura 26: ​ Cena “Monstros”. Nesta imagem existem 19 criaturas sonoras, de quatro tipos: Serpente (laranja), flor (amarelo), espiral (amarelo) e potro (vermelho).

Figura 27: ​ Cena “Naufrágio”.Transição composta de várias criaturas sonoras do tipo onda sobrepostas.

Fonte: Elaboração própria.

Fonte: Elaboração própria.

Ao final das cenas, é dada ao participante a escolha de que caminho seguir. Caso ele se mantenha em silêncio, o programa irá enviá-lo para um dos rumos, escolhido aleatoriamente. Se desejar seguir um caminho diferente, pode fazer isso interagindo com a instalação por meio do microfone. Pensando que a arte contemporânea carrega em si esse movimento em direção à vida cotidiana, as escolhas que se dão no des​ caminhos se tornam muito simbólicas. Esse caráter automático do direcionamento da narrativa quando não há ação, se aproxima dos momentos que, passivos, observamos a vida - ou o destino - tomando decisões por nós. Figura 26:​ ​ Escolha da cena “Rua”.

Fonte: Elaboração própria.

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Considerações finais Ao final deste trabalho chegamos à incógnita da conclusão. O que esperar deste experimento? Apontar resultados no campo do sensível aparenta ser como segurar o vento. Não obstante isso, registramos o fazer artístico, capturamos sensações para estudar a sinestesia e propomos deslocar a noção aplicada de comunicação do racional para o sensível. O desejo de um respiro na avalanche de informações que nos alcançam a todo instante moveu, de modo subliminar, este projeto. A teia, ou ​ network​ , que ilustra os elementos iniciais deste memorial foi extraída de uma das cenas do des​ caminhos​ . Na apresentação, essa rede vai minunciosamente se movendo e encontrando novas ligações entre os pontos. A fluidez da ideia, do problema inicial deste projeto que era “como criar formas sinestésicas de comunicação”, nos conduziu pelos descaminhos da sinestesia, da comunicação e da arte. A dinâmica das ligações entre essas potências as alterava a todo instante, tornando o projeto diferente a cada olhar. Por isso, neste trabalho, o processo é o que marca o fim, como acontece literal[e não planejada]mente na instalação. Ansiávamos por experimentar a sinestesia como forma de comunicação, mas, mesmo quando não experienciada extraordinariamente, essa condição abre a uma nova percepção do mundo, trazendo mais sabor às situações cotidianas - ou mais perfume, como no caso do Ofício de Trevas. Não sabemos se a instalação construída vai, de fato, disparar sensações sinestésicas nos participantes, mas só a imersão nas cores, formas e sons que os poemas ofertam já enriquece o processo comunicativo que envolve a percepção desses “seres de linguagem”. Sensação sinestésica disso? Sabor de objetivo alcançado. Tendo em vista que o processo é o que se tornou mais rico para nós, disponibilizamos o código fonte e arquivos necessários para a instalação e execução do projeto. Eles encontram-se disponíveis como Open Source através de um repositório subversion (link abaixo), com exceção do ambiente de desenvolvimento processing, que pode ser obtido através de seu site oficial ( http://processing.org ). Url do projeto:​ http://sourceforge.net/projects/descaminhos Url do repositório:​ svn://svn.code.sf.net/p/descaminhos/svn

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Anexos I - Questionário aplicado para identificação de potencial sinestésico

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II - Visualizações

Cena “Fuga”

Cena “Rio”

Cena “Barco”

Cena “Primavera”

Cena “Máquina”

Cena “Mar”

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III - Narrativa

Início Noite Escura São João da Cruz

Vitral Adélia Prado Poema Transitório Mário Quintana

Em uma noite escura De amor em vivas ânsias inflamada Oh! Ditosa aventura! Saí sem ser notada, Estando já minha casa sossegada. Uma igreja voltada para o norte. À sua esquerda um barranco, a estrada de ferro. as moças da cidade vinham olhar o trem passar: elas suspirando maravilhosas viagens e a gente com um desejo súbito de ali ficar morando sempre... Nisto, o apito da locomotiva e o trem se afastando e o trem arquejando é preciso partir é preciso chegar é preciso partir é preciso chegar... Ah, como esta vida é urgente! Rua

A Casa Adélia Prado

A casa é um chalé com alpendre, forrado de hera. Na sala, tem uma gravura de Natal com neve. Não tem lugar pra esta casa em ruas que se conhecem. Casa

A Casa Fantasma Mário Quintana

A casa está morta? Não: a casa é um fantasma, um fantasma que sonha. a casa está sonhando com o seu pátio de meninos pássaros. A casa escuta... Meu Deus! a casa está louca, ela não sabe que em seu lugar se ergue um monstro de cimento e aço:

Enchente Cecília Meireles

Olha a chuva que chega! É a enchente. Olha o chão que foge com a chuva... Olha a chuva que encharca a gente. Põe a chave na fechadura. Fecha a porta por causa da chuva, olha a rua como se enche! Enquanto chove, bota a chaleira no fogo: olha a chama! Olha a chispa! Olha a chuva nos feixes de lenha! Vamos tomar chá, pois a chuva é tanta que nem de galocha se pode andar na rua cheia!

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Chá Envelhecer Mário Quintana

Antes, todos os caminhos iam. Agora todos os caminhos vêm A casa é acolhedora, os livros poucos. E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas. Corredor

Segunda canção de muito longe Mário Quintana Os degraus Mário Quintana

Havia um corredor que fazia cotovelo: Um mistério encanando com outro mistério, no escuro… Não desças os degraus do sonho Para não despertar os monstros. Monstros

Metamorfoses do vento Mário Quintana Relógio Mário Quintana

Sem título Lya Luft

Pterodáctilo, serpente sinuosa, manada De potros, monstro Arquejante e cravado de bandeirolas O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede: conheço um que já devorou três gerações da minha família. Como tudo o mais, o tempo não tem explicação: corrói ou transfigura, conforme cada um escolhe, sofre ou inventa Fuga

Poemas monstros Autor desconhecido

Eram poemas monstros, Com suas bocas enormes, E dentes afiados... Querendo me devorar, Engolir meus sonhos, Saborear minhas emoções, E depois mergulhar no breu Do esquecimento poético. Conto

Era uma vez um monstro que amou uma boneca de trapos Tiago Freitas

Era uma vez um monstro disfarçado. Fingia, o pobre! Que era príncipe encantado… Correu o monstro que era feito de giz Procurando a princesa iluminada. Procurou pensando em ser feliz Ao encontrar a princesa ainda nem desenhada… Ficou então o monstro logo muito contente Ao encontrar o grande castelo. Mas no castelo o silêncio reinou; Nada, nem ninguém respondia… Então a chorar o infeliz monstro correu Até que tropeçou em algo no seu caminho Era uma boneca, coitada muito feia Tinha a boca cozida sempre a sorrir; E o monstro que estava feito farrapo Começou logo a rir!

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Sendo princesa ou não! Ao certo, é que o monstro ficou feliz. Pois a boneca que tinha na mão Amou o príncipe que era de giz… Interseção Segunda canção de muito longe Mário Quintana

Mas vamos fechar os olhos E pensar numa outra cousa… Rio

Mundo pequeno Manoel de Barros

O mundo meu é pequeno, Senhor. Tem um rio e um pouco de árvores. Nossa casa foi feita de costas para o rio.

Ao longe, ao luar Fernando Pessoa

Ao longe, ao luar, No rio uma vela, Serena a passar, Que é que me revela? Margem

O cão sem plumas João Cabral de Melo Neto

Aquele rio era como um cão sem plumas. Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, da água de cântaro, dos peixes de água, da brisa na água. Sabia dos caranguejos de lodo e ferrugem.

De vez em quando Mário Quintana

De vez em quando do fundo do sono surgem os periscópios dos ouvidos: parece que além, nas margens, estão acontecendo misérias... (Os dinossauros mergulham, desinteressados...) Barco

Velas Tânia Martins

Tão longe, o barco as velas um ponto no infinito de água e azul solidão. Sem chamas, sem asas somente o som aflito das notas dolentes de um violão. Tempestade

Sem título Fernando Pessoa Mundo grande Carlos Drummond de Andrade

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva Não faz ruído senão com sossego. Chove. O céu dorme. Fecha os olhos e esquece. Escuta a água nos vidros, tão calma, não anuncia nada. Entretanto escorre nas mãos,

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tão calma! Vai inundando tudo... Tempestades também passam Tânia Martins

Deixa que a tempestade assole arrancando pela raiz o tronco secular. Deixa que o temporal arranque telhados; ponha no chão todas as estruturas. (Tudo é só vaidade mesmo e um dia tudo acabará. (Um dia tudo será só ruína.) Aquieta-te e deixa o vento, a água densa, os redemoinhos, a fúria dos vendavais arrasar teus canaviais, teus celeiros, teus casebres, choupanas, enxovias. Aquieta-te. A tempestade vem e vai. Deixa o barulho lá fora. Cultiva a esperança de que depois tudo se ajeitará.

Velas Tânia Martins

A fruta aberta Thiago de Mello

Das velas, as chamas já se extinguiram; do barco, as velas já não vejo mais; espaços enormes a serem preenchidos e o presente a passar não oferece cais. Agora sei quem sou. Sou pouco, mas sei muito, porque sei o poder imenso que morava comigo, mas adormecido como um peixe grande no fundo escuro e silencioso do rio e que hoje é como uma árvore plantada bem alta no meio da minha vida. Mar

Atravessa essa paisagem o meu sonho Fernando Pessoa O silêncio Xavin Penoni

E os navios passam por dentro dos troncos das árvores Com uma horizontalidade vertical, E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro... E então lançaram todos ao mar Foi aí que nasceu o silêncio Calaram-se. Estupefatos diante do crime que sofreram Abandonaram seus navios polissêmicos Alguns ainda tentaram nadar Mas logo se entregaram Ao clamor tirânico da correnteza. Emudeceram, mais uma vez. Por fim, caíram exauridos em praia Cuja areia sembrava deserto

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Sem título Paulo Leminski

aqui nesta pedra alguém sentou olhando o mar o mar não parou pra ser olhado foi mar pra tudo quanto é lado. Trem

Viagem Mário Quintana

Notícia da manhã Thiago de Mello

e no silêncio do trem, avança, imperceptivelmente avança... Apenas o relógio picota a passagem do tempo. Sonha a alma deitada no seu ataúde: lá longe lá fora no fundo do túnel, há uma estação de chegada (anunciam-na os galos agora) há uma estação de chegada com a sua tabuleta ainda [toda orvalhada... Há uma estação chamada... AURORA! a todos que não a viram contarei desta manhã – manhã é céu derramado é cristal de claridão – que reinou, de leste a oeste, de morro a mar – na cidade. Naufrágio

Canção Cecília Meireles

Pus o meu sonho num navio e o navio em cima do mar; - depois, abri o mar com as mãos, para o meu sonho naufragar O vento vem vindo de longe, a noite se curva de frio; debaixo da água vai morrendo meu sonho, dentro de um navio…

Canção Cecília Meireles

No desequilíbrio dos mares, as proas giraram sozinhas... Numa das naves que afundaram é que tu certamente vinhas. E o sorriso que eu te levava desprendeu-se e caiu de mim: e só talvez ele ainda viva dentro dessas águas sem fim.

As tuas mãos terminam em segredo Fernando Pessoa Inverno Cecília Meireles

Mas quando o mar subir na praia e for Arrasar os castelos que na areia As crianças deixaram, meu amor, Pode ser que o sol se levante sobre as tuas mãos sem vontade e encontres as coisas perdidas na sombra em que as abandonaste.

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Manhã Notícia da manhã Thiago de Mello

As árvores da rua, a réstia do mar, as janelas abertas, o pão esquecido no degrau, as mulheres voltando da feira, os vestidos coloridos, o casal de velhos rindo na calçada, o homem que passa com cara de sono, a provisão de hortaliças, o negro na bicicleta. o barulho do bonde, os passarinhos namorando à mulher que abre a janela, além deixa uma esperança, mais além uma coragem, e além, aqui e ali pelo campo e pela serra, aos mendigos e aos sovinas, aos marinheiros, aos tímidos, aos desgarrados, aos prósperos, aos solitários, aos mansos, às velhas virgens, às puras e às doidivanas também, a manhã vai derramando, uma alegria de viver, vai derramando um perdão, vai derramando uma vontade de cantar.

Cantem outros a clara cor virente Alphonsus de Guimaraens

Cantem outros a clara cor virente Do bosque em flor e a luz do dia eterno... Envoltos nos clarões fulvos do oriente, Cantem a primavera: eu canto o inverno. Primavera

Humanas flores Tânia Martins

Flores! Tantas cores, tantos tons, infinitos matizes, variegados olores para tantas flores de tantas formas, tantas configurações!

Flores Adélia Prado

A boa-noite floriu suas flores grandes, parecendo saia branca. Se eu tocasse um piano elas dançavam.

Graça Adélia Prado

O mundo é um jardim. Uma luz banha o mundo. A limpeza do ar, os verdes depois das chuvas, os campos vestindo a relva como o carneiro a sua lã

Máquina breve Cecília Meireles

O silêncio Xavin Penoni

O pequeno vaga-lume com sua verde lanterna, que passava pela sombra inquietando a flor e a treva Escuta. Por detrás do barulho Há o silêncio E por detrás do silêncio Há barulho Barulho leve Quase como sonho Como batidas ritmadas de tambor

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Escuta. Eles vêm em passos lentos Escravo Manuel Bandeira

Aqui é o misterioso reino dos ciprestes... Aqui eu estou parado, preso à terra, escravo dos grandes príncipes loucos. Aqui vejo coisas que mente humana jamais viu Aqui sofro frio que corpo humano jamais sentiu. É este o misterioso reino dos ciprestes

Canção Fernando Pessoa

Silfos ou gnomos tocam?... Roçam nos pinheirais Sombras e bafos leves De ritmos musicais.

Evolução Tânia Martins

Na policromia das cores, nas minhas tantas auroras, nos meus crepúsculos purpurinos sonho ridentes amores. Sonho só, muito embora sejam sonhos pequeninos. Inverno

Marcha Cecília Meireles

Quero... Tânia Martins

nosso caminho se alarga sem campos verdes nem fontes. Apenas o sol redondo e alguma esmola de vento quebram as formas do sono com a ideia do movimento. uma ave no espaço, livre, brincando nos ares desfaz distâncias... queria ser um pássaro. Pássaro

Poeminha do contra Mário Quintana

Leveza Cecília Meireles

Todos esses que aí estão Atravancando meu caminho, Eles passarão… Eu passarinho! Leve é o pássaro: e a sua sombra voante, mais leve. E a cascata aérea de sua garganta, mais leve. E o que lembra, ouvindo-se deslizar seu canto, mais leve. E o desejo rápido desse mais antigo instante, mais leve. E a fuga invisível do amargo passante, mais leve.

Sei que choveu à noite Mário Quintana

A música das almas Vinícius de Moraes

E, se duvidares muito, daqui a pouco sairão voando [todas as gravatas-borboletas, enquanto os seus [donos atônitos aguardam o sinal verde nas esquinas. [Decerto elas foram em busca de novos ares... Na manhã infinita as nuvens surgiram como a loucura numa alma E o vento como o instinto desceu os braços das árvores que estrangularam a terra...

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Como se moço e não bem velho eu fosse Alphonsus de Guimaraens

Ouvi gritos em mim como um alarme. E o meu olhar, outrora suave e doce, Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se Todo em raios, que vinham desolar-me.

Máquina breve Cecília Meireles

Quebrou-se a máquina breve na precipitada queda. E o maior sábio do mundo sabe que não a conserta.

Asas e azares Paulo Leminski

Asa ferida, asa ferida, meu espaço, meu herói. A asa arde. Voar, isso não dói. Vôo

Asas e azares Paulo Leminski

Voar com asa ferida? Abram alas quando eu falo. Que mais foi que fiz na vida?

Como se moço e não bem velho eu fosse Alphonsus de Guimaraens

Como se moço e não bem velho eu fosse, Uma nova ilusão veio animar-me, Na minh`alma floriu um novo carme, O meu ser para o céu alcandorou-se.

Poema de sete faces Carlos Drummond de Andrade

Mundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Canto

O relógio João Cabral de Melo Neto Marcha Cecília Meireles

e de pássaro cantor, não pássaro de plumagem: pois delas se emite um canto de uma tal continuidade Gosto da minha palavra pelo sabor que lhe deste: mesmo quando é linda, amarga como qualquer fruto agreste. Mesmo assim amarga, é tudo que tenho, entre o sol e o vento: meu vestido, minha música, meu sonho e meu alimento. Caminho

Discurso Cecília Meireles

Venho de longe e vou para longe: mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram. Também procurei no céu a indicação de uma trajetória, mas houve sempre muitas nuvens.

O segundo mandamento Mário Quintana Difícil ser funcionário João Cabral de Melo Neto

Porém um dia as pedras se iluminarão milagrosamente por dentro. porque só termina para todo o sempre o que foi artificialmente construído... Um dia, um dia as pedras gritarão! Carlos, há uma máquina Que nunca escreve cartas; Há uma garrafa de tinta

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Que nunca bebeu álcool. A voz subterrânea Mário Quintana

A máquina do mundo Carlos Drummond de Andrade

Às vezes ouvia-se um canto surdo, que parecia vir debaixo da terra. Até que os homens da superfície, para desvendar o mistério, puseram-se a fazer escavações. a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia. Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável Máquina

A máquina do mundo Carlos Drummond de Andrade

Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuições restavam a quem de os ter usado os já perdera convidando-os a todos, em coorte, a se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas

Entropia reversa Xavin Penoni

lá a supernova onde se enceram os brilhosos espólios de guerra há um cérebro composto de cérebros uma dança de matiz se mecaniza vazando óleo sobre terra olhar para cima é olhar para dentro que é olhar para o nada repleto de possibilidades pulsa um universo que não existe Perda

A máquina do mundo Carlos Drummond de Andrade

e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas.

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IV - Mapa Começo da história Escolha de cena Saída da interseção

Conto

Fuga

Monstros

Tempestade

Chá

Corredor

Entrada da interseção

Interseção

Casa

Naufrágio

Rua

Início

Trem

Manhã

Barco

Rio

Vôo

Pássaro

Inverno

Mar

Margem

Canto

Caminho

Máquina

Primavera

Perda


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