Práxis | nº2

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ERRATA Em 4 de outubro de 1988, quando assembleia deliberou pela criação do SINTE/SC, a presidenta da ALISC era Ideli Salvati, e não Ana Aquini, como informado pela revista Práxis na matéria principal da primeira edição. Em maio de 1989, aprovou-se o estatuto do SINTE/SC em assembleia e manteve-se a diretoria da ALISC como diretoria provisória até o 1o Congresso do SINTE/SC, em Joinville, em setembro de 1989. A primeira diretoria não provisória do SINTE/SC assumiu com Rita de Cássia Pacheco Gonçalves eleita presidenta para o biênio 1990-1992.

EXPEDIENTE

DIRETORIA EXECUTIVA – GESTÃO 2016/2019

A Revista Práxis é uma publicação do Sindicato dos Trabalhadores em Educação na Rede Pública de Ensino do Estado de Santa Catarina (SINTE/SC) > Ano 1 – Número 2 – Outubro de 2016 PRODUÇÃO EDITORIAL Coordenação Editorial Carlos Alberto Lopes Figueiredo (Secretário de Imprensa e Divulgação – SINTE/SC) Redação e Edição Amilcar Oliveira (SC 00462 JP) Projeto gráfico e Diagramação Cristiane Cardoso (Entrelinha) Ilustrações Bruna Ferencz Impressão: Gráfica Coan Tiragem: 3.000

Coordenador Estadual – Aldoir José Kraemer Vice-coordenador Estadual – Ilone Moriggi Secretário Geral – Sandro Luiz Cifuentes Secretário de Finanças – Diego de Souza Manoel Secretário de Formação Política e Sindical – Evandro Accadrolli Secretária de Organização e Interior – Francisco Assis Rocha Secretária Adjunta de Organização – Oeste – Angela Bedin Siebel Secretária Adjunta de Organização – Planalto – Anna Julia Rodrigues Secretário Adjunto de Organização – Norte – Osvaldo de França Secretária Adjunta de Organização – Sul – Michel Flor Secretário Adjunto de Organização – Vale – Cassiano Antonio Marafon Secretária Adjunta de Organização - Grande Florianópolis – Estela Maris Cardoso Secretária dos Aposentados e Assuntos Previdenciários – Alvete Pasin Bedin Secretário de Políticas Sociais e de Gênero – Susete Ramos Melo Secretário de Assuntos Educacionais e Culturais – Luiz Carlos Vieira Secretária de Imprensa e Divulgação – Carlos Alberto Lopes Figueiredo Secretário de Assuntos Jurídicos e Trabalhistas – Robson Cristiano da Silva Assessora de Imprensa - Graciela Fell

Os artigos assinados não expressam necessariamente a opinião do SINTE/SC. CONTATO COM A REDAÇÃO: para sugestão de pautas ou comentários, envie email para sinte-sc@sinte-sc.org.br


Editorial

É preciso reagir ao golpe O segundo número da revista Práxis é publicado em meio a uma sucessão de acontecimentos extremamente desfavoráveis para a classe trabalhadora. Essa edição dedica-se a tornar mais claro o momento político e econômico do Brasil para quem atua na educação em Santa Catarina. Assim, cumpre-se o que é uma das principais tarefas dos meios de comunicação sindicais: fazer o contraponto à desinformação proposital dos meios de comunicação nacionais, ocupados que estão em tirar a sua parte na pilhagem escancarada em andamento no Brasil. Este é um filme gasto, surrado, que se repete ao longo da história do Brasil. Livros foram escritos, tramas foram reveladas, mas a maioria da população, como não tem acesso ao conhecimento de sua própria história, torna-se refém de uma mídia que se dedica dia e noite a moldar

mentes com informações deturpadas, de um Judiciário sem limite, de um aparato policial que se encarrega de “manter a ordem”, agredindo direitos fundamentais de cidadãos indignados, e de uma classe dirigente degradada, que só se importa em encher os bolsos, sem se preocupar que o País fique à míngua. O cenário atual começou a ser montado logo após o resultado das eleições de 2014. A oposição, que não se conformou com a derrota do projeto que agora coloca em andamento, dedicou-se de corpo e alma ao golpe. Para isso, foi fundamental a Operação Lava-Jato, tendo como foco único as denúncias de corrupção na Petrobras, empresa detentora dos direitos de exploração de um dos maiores patrimônios nacionais, o pré-sal. As vítimas preferenciais foram escolhidas a dedo, com políticos que ocuparam o governo tão logo o golpe se efetivou deixados

convenientemente de lado. Nesse momento, as panelas pararam de bater, como se todos os problemas do Brasil tivessem sido resolvidos. Desde antes do golpe, porém, já tramitavam no Congresso Nacional as medidas que agora são aprovadas a toda pressa: PEC 241, que congela investimentos por 20 anos, PL 4567, que desobriga a Petrobras de ser a operadora da exploração do pré-sal, que destinaria trilhões de recursos para a educação e a saúde, reforma do Ensino Médio por medida provisória, PLC 257, que prevê limites nos gastos com serviços públicos. Todas têm uma só finalidade: retirar recursos da economia nacional e transferi-los para a banca internacional, que avança com fúria sobre o patrimônio e as riquezas de brasileiros e brasileiras. A reação não pode tardar, sob pena de ficarmos mais algumas décadas lamentando as oportunidades perdidas.

• Sumário

4 | O avanço conservador

8 | A pedra de toque da formação

7 | ARTIGO: A PEC do Golpe 10 | ENTREVISTA: Juçara Dutra Vieira 13 | ARTIGO: Gestão da educação numa

ENCARTE | Bullying e Assédio Moral

20 | ENTREVISTA: Marcia Tiburi

14 | ARTIGO: Violência, literatura e sala de aula 16 | ARTIGO: BNCC e aprendizagem escolar 18 | ARTIGO: Diversidade na escola

perspectiva transformadora Outubro 2016 | SINTE - SC | PRÁXIS | 3


• Golpe

O avanço conservador No Brasil tem sido assim: a cada solavanco na política, a educação acusa os impactos, com as melhores escolas e as melhores práticas destinadas aos ricos e uma educação voltada ao mercado para os trabalhadores

D

e canetada em canetada, o grupo que assumiu o governo após o golpe contra a presidente Dilma Roussef vai implantando as medidas para as quais foi colocado no poder. Medidas que congelam investimentos em saúde e educação por 20 anos (PEC 241), reforma da Previdência que prejudica principalmente a classe trabalhadora, entrega dos recursos naturais (gás e pré-sal), tudo retorna a toque de caixa. O exemplo mais evidente é a aprovação em tempo recorde, no dia 5 de outubro, do projeto de lei 4567/16, de autoria do senador tucano José Serra, atual ministro das Relações Exteriores do governo Temer, pelo plenário da Câmara dos Deputados. O projeto, que já havia sido aprovado no Senado, desobriga a Petrobras de ser a operadora da exploração do pré-sal, que destinaria bilhões de recursos para a educação e a saúde. A Petrobras está no centro das denúncias de corrupção da Lava-Jato. Enfraquecer a empresa é fortalecer os interesses estrangeiros e tirar recursos do povo brasi4 | PRÁXIS | SINTE - SC | Outubro 2016

leiro em áreas vitais. É um filme que retorna na forma de pesadelo e que já está cobrando a fatura de quem achou que tudo se tratava apenas de combate à corrupção. Os ganhos da inclusão realizada a partir de 2003 caem por terra um a um. Voltam as receitas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial, para quem a educação é subordinada ao mercado. As mudanças no Ensino Médio, aprovadas por meio da Medida Provisória 746 sem debate com a sociedade levaram à apressada necessidade de esclarecimento à opinião pública, sob alegação de “erro de comunicação”, quanto à extinção da obrigatoriedade de algumas disciplinas: Filosofia, a Sociologia, as Artes e a Educação Física. Justamente os conteúdos que preparam mentes e corpos para o enfrentamento crítico das disputas na sociedade. Segundo os primeiros anúncios, apenas Português, Matemática e Inglês seriam obrigatórias durante os três anos do Ensino Mé-

A resposta das ruas

dio. As demais matérias passariam a ser optativas da metade para o fim da etapa, a depender da área de conhecimento que o aluno decidir seguir, entre cinco possibilidades: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Formação Técnica e Profissional. Ao reconhecer o “erro”, o ministro da Educação José Mendonça Filho afirmou que o governo esperará a publicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o que deve ocorrer até metade de 2017. Em entrevista concedida à global Miriam Leitão, na Globo News, no dia 29 de setembro, o ministro da Educação teve espaço generoso para se defender: “Se não tomássemos a medida de reformarmos a educação de Ensino Médio no Brasil via medida provisória, ficaria secundarizado o tema da educação”, disse. Sobrou tempo ainda para a jornalista defender o aumento da idade para a aposentadoria de educadores e educadoras. O conteúdo da MP ignora o desnivelamento das


ARQUIVO

SINTE/SC

Manifestação em Florianópolis contra PEC 241 e MP do Ensino Médio regiões do País, as naturais mudanças de percursos ao longo da vida de alunos ainda em processo de formação, e o mais grave, propõe um direcionamento técnico, em função das exigências do mercado, em detrimento de um aprendizado que alie conhecimentos técnicos a uma formação crítica e humanista. Em Santa Catarina, o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e secretário de Estado da Educação, Eduardo Deschamps, defendeu a medida do governo federal. Em entrevista ao jornal Diário Catarinense, no dia 24 de setembro, tergiversou ao afirmar que o debate com a sociedade “começa agora”. Para o coordenador estadual do SINTE/SC, Aldoir José Kraemer, o secretário dá a entender que quer aplicar as medidas imediatamente. A única saída para essa avalanche, defende, é a mobilização dos trabalhadores de todos os setores. “O conjunto de medidas que afrontam os interesses da população não são ataques a catego-

RUBENS LO

PES | SINTE

rias específicas, mas ao interesse da Nação. O serviço público sofrerá um congelamento de 20 anos, o pré-sal pode ser vendido para multinacionais, a aposentadoria fica comprometida, são vários fatores”, afirma. Para que essa mobilização seja possível, a união do campo das esquerdas é urgente, com uma pauta clara e concreta que sensibilize a população. Para isso, também é fundamental associar-se à juventude, que está nas ruas desde os primeiros movimentos do golpe ainda em movimento. Mas também é importante estar presente nas entidades e fóruns de classe, fortalecendo as ações conjuntas das centrais de trabalhadores. “Nos últimos anos, as lutam foram corporativas. Agora, será necessário reinventar nossas práticas para darmos conta dessa nova realidade. No caso específico da MP do Ensino Médio, vamos cobrar a posição do governo do estado e debater o assunto no Fórum Estadual de Educação e em todas as instâncias possíveis”, diz Aldoir.

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Ataques e contra-ataques

A proposta da reforma no Ensino Médio provocou reação. Estudantes, principalmente, foram às ruas em várias partes do País no final de setembro, tornando esse um dos temas importantes das manifestações contra o governo Temer e os governantes locais. Em Florianópolis (SC), a polícia reprimiu ato contra a PEC 241 e a reforma do Ensino Médio, na segunda-feira, 10 de outubro, provocando a reação dos manifestantes, com vários feridos. Presos, o fotógrafo Gabriel Rosa e as estudantes Larissa Neves Ferreira e Vanessa Micheli Canei, do curso de História da UFSC, acusam a polícia de agressão. Os debates nas redes se intensificaram. O filósofo e educador Gaudêncio Frigotto, professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), disparou, em artigo publicado no site da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED): “O argumento de que há excesso de disciplinas escon-

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HENRIQUE ALMEIDA AGECOM/UFSC/SINTE/SC

AGÊNCIA ALESC/SINTE/SC

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Montysuma: visão coronelista da elite se expressa na atualidade

Aldoir, do SINTE/SC: necessidade de união das esquerdas para derrotar medidas contra o povo

de o que querem tirar do currículo – Filosofia, Sociologia e diminuir a carga de História, Geografia, etc. E o medíocre e fetichista argumento que hoje o aluno é digital e não aguenta uma escola conteudista mascara o que realmente o aluno detesta, uma escola degradada em seus espaços, sem laboratórios, sem auditórios de arte e cultura, sem espaços de esporte e lazer e com professores esfacelados em seus tempos, trabalhando em duas ou três escolas em três turnos para comporem um salário que não lhes permite ter satisfeitas as suas necessidades básicas”.

expressão no exercício profissional, incentivando a delação anônima de professores por estudantes e familiares e a coação por meio de notificações extrajudiciais, que ameaçam os docentes com processos de perda do direito ao exercício profissional, perda patrimonial e prisão. Esses projetos pretendem constituir uma única forma de pensar, impedindo a pluralidade de ideias própria à educação pública”.

A reviravolta ocorre em um contexto em que avançam propostas ultraconservadoras como a Escola sem Partido, iniciativa do advogado Miguel Nagib, de São Paulo (SP), cujo pretexto é evitar a doutrinação dos alunos por professores comprometidos com uma visão política específica. Impõe-se a questão: já não há doutrinação suficiente nas salas de aula, com a presença de práticas e de símbolos sobre os quais ninguém perguntou se deviam estar ali? A reação da Frente Nacional Escola sem Mordaça solicitou o arquivamento de projetos de lei protocolados no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, nas Assembleias e nas Câmaras de Vereadores de todo o Brasil por defensores do Movimento Escola sem Partido. A alegação é de inconstitucionalidade, já que esses projetos buscam “produzir uma escola sem reflexão crítica sobre a realidade, impedir a formação para a cidadania e a liberdade de 6 | PRÁXIS | SINTE - SC | Outubro 2016

O professor Marcos Montysuma, do Programa de Pós-Graduação em História e do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), aponta o que considera central na crítica aos comandantes do avanço conservador no Brasil: “A geração que comanda o Brasil hoje foi formada dentro do espírito de que a qualificação não é necessária. Para essa geração, estudo e formação não eram valorizados. É uma visão coronelística que se expressa na atualidade”. Para o professor, a esse elemento se agrega o fato de que historicamente o povo tem delegado às elites a gestão de seu destino e a fatura vem, mais cedo ou mais tarde. “Ao romper o acordo firmado com as elites, o povo se rebela, e não é aceito. No momento em que é derrotado, é destruído, e o período seguinte é sempre um período de terror”, afirma. Este, segundo Montysuma, é o cenário que se desenha para os próximos tempos. Mas o ataque à educação não se dá apenas via medida provisória. A PEC

Frigotto: alunos não querem mais equipamentos digitais, querem espaços dignos para estudar

241 (ver artigo na página 7) propõe o congelamento de investimentos federais em educação e saúde por 20 anos, anulando os avanços no combate à desigualdade, à pobreza e à fome dos últimos anos. Integrantes da Campanha Nacional pelo Direito à Educação entregaram dossiê sobre os riscos à garantia do direito à educação no Brasil ao Enviado Especial da ONU para a Educação Global e Presidente da Education Commission, Gordon Brown, ex-Primeiro Ministro do Reino Unido, durante a 71a Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque (EUA), que se mostrou preocupado com as possíveis consequências dessas ações no País. Segundo o dossiê, “A PEC 241/2016 é uma grande ameaça ao direito à educação e coloca em risco a educação de cerca de 3,8 milhões de crianças e adolescentes de 4 a 17 anos, que estão fora da escola, de acordo com pesquisa da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e do UNICEF, no âmbito da iniciativa ‘Fora da Escola Não Pode!’”. Enquanto isso, o Projeto de Lei Complementar 257 (PLC 257) foi aprovado na Câmara dos Deputados no início de agosto. Prevê limites nos gastos com serviços públicos, um filme antigo, que promove o sucateamento das instituições públicas e sobrecarrega ainda mais os servidores. Sem a imediata resposta, as consequências podem ser ainda mais trágicas para os setores populares. De certa forma, o secretário Deschamps tem razão: a luta está só começando.


• PEC 241

DIEESE/SC-SINTE/SC

A PEC do Golpe e a valorização do professor JOSÉ ÁLVARO DE LIMA CARDOSO

Economista e Supervisor Técnico do DIEESE em Santa Catarina

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241/2016, do governo golpista, dentre outras coisas define novo teto para o gasto público, que passará a ter como limite a despesa do ano anterior corrigida pela inflação. Os gastos sociais, como os de saúde e educação serão congelados em termos reais, passando a ser apenas corrigidos pela inflação. A Constituição Federal estabelece em 18% dos impostos federais o investimento mínimo da União em educação, e em 25% para os estados, o Distrito Federal e os municípios. Na saúde, os gastos são de 15% da receita para os municípios e 12% para os estados. Em relação à União, conforme a Emenda Constitucional 86, promulgada em março de 2015, é fixado o limite mínimo de gastos com saúde para 13,2% da receita corrente líquida em 2016, 13,7% em 2017, 14,1% em 2018, 14,5% em 2019, e 15% em 2020. Pela PEC do golpe, em 2017 o limite de gastos será a despesa primária federal de 2016, incluindo os restos a pagar, reajustada pela inflação de 2016. A partir de 2018, o reajuste será aplicado usando o teto de gastos do ano anterior acrescido da inflação. A proposta trata das despesas primárias, ou seja, exclui os gastos do governo com o pagamento dos juros e amortização da dívida pública, verdadeira razão do déficit público. O congelamento do gasto público valerá por 20 anos. Neste período, segundo o governo, o dinheiro economizado será destinado ao pagamento dos juros e do principal da dívida pública. A concepção dos formuladores desta PEC é a de que o problema fiscal brasileiro decorre do aumento

“O DIEESE fez uma simulação do que teria ocorrido entre 2002 e 2015 nas áreas da saúde e da educação se fosse aplicada a regra prevista na PEC do golpe: a perda na área da saúde de 2002 a 2015 teria sido de R$ 239,4 bi e, na educação, R$ 268,8 bi.” acelerado da despesa pública primária, ou seja, dos gastos sociais, com saúde, educação, funcionalismo, etc. Pela proposta, irão acabar as vinculações orçamentárias previstas na Constituição para saúde e educação, fruto de décadas de lutas da sociedade brasileira. Pelas regras atuais, em 2016 seria aplicado um montante mínimo em ações e serviços públicos de saúde de 13,7% da receita corrente líquida da União. Na educação, a previsão é de pelo menos 18% da receita de impostos federais, deduzidas as transferências constitucionais. Se a proposta for aprovada, a tendência é que, com o passar dos anos, os gastos com educação e saúde se reduzam proporcionalmente ao PIB, em relação aos percentuais atuais. O que significa que a trajetória de acesso crescente da população pobre aos serviços públicos de educação e saúde, que vinha se verificando nos últimos anos no Brasil, será interrompida. Serão afetados justamente os serviços públicos oferecidos aos mais pobres, que já são insuficientes. Em função dessa PEC, e do conjunto de maldades que o governo Temer vem fazendo para cima dos direitos trabalhistas, é quase desnecessário observar que qualquer possibilidade de valorização do profissional da educação fica completamente afastada com o governo golpista. Pelo contrário, a intenção evidente é de expropriar o máximo de recursos da sociedade e dos trabalhadores, para transferir aos bilionários que vivem dos juros da dívida pública brasileira. Outubro 2016 | SINTE - SC | PRÁXIS | 7


• Práticas Pedagógicas

A pedra de toque da formação Curso de especialização a distância sobre gênero, questão racial e deficiência com educadores das redes estadual e municipal pode chegar ao fim como mais uma consequência do golpe

O

processo de ensino e aprendizagem, razão de ser das escolas, muitas vezes deixa de ser a preocupação principal nos debates sobre a educação. O motivo não raro é que se coloca em xeque a própria existência das escolas, cursos e outras iniciativas, com fechamentos, demissões, abandono, supressões de toda ordem, além de ausência de condições mínimas de atuação dos profissionais que trabalham nesses ambientes. Nesses casos, continuar a pensar estratégias de formação de professores para lidar com temas tão complexos como sexualidade, gênero, racismo, formação cidadã é a ponte que permite transpor o abismo entre a realidade e o que é necessário para transformá-la. O curso de especialização a distância em Gênero e Diversidade na Escola (GDE), promovido pelo Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (IEG/ UFSC), gratuito e com duração de 8 | PRÁXIS | SINTE - SC | Outubro 2016

dois anos, é uma dessas iniciativas que não se conformam com o estado atual da arte, e tenta aglutinar educadores em torno da ideia da formação como necessidade básica para a atuação em sala de aula, de maneira a superar os limites da prática pedagógica. Como outras, essa também é vítima dos solavancos que abalam a educação no País. Duzentas e cinquenta pessoas foram aceitas após um período de seleção na edição de 2015, a terceira. Pelo menos 150 chegaram ao final, elaborando trabalhos de conclusão, critério para a conclusão, que serão apresentados até o final de 2016. É um curso interdisciplinar, com professores de vários departamentos da UFSC e da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). A maioria das cursistas do GDE Especialização em 2015 são mulheres brancas, entre 20 e 40 anos de idade, das redes estadual e municipais. O

número de homens não atinge 10% do total de inscritos. A presença de poucas mulheres negras chama a atenção. “Esse sempre é um problema. As discussões estão muitos presentes no curso, mas a participação das mulheres negras ainda é pequena, apesar de priorizarmos o fator racial na seleção. Tivemos um módulo exclusivo de questões étnico-raciais e a intersecção com os outros temas foi feita o tempo todo”, afirma Pedro Magrini, pós-doutorando em Antropologia e coordenador de tutoria do curso, que acompanhou os encontros com os participantes nos cinco municípios-polos (veja quadro). A abordagem do tema deficiências é uma novidade que só existe em Santa Catarina, garante Pedro, entre todas as iniciativas semelhantes em outras universidades do País. Os temas são tratados por professores das áreas de Antropologia, Ciências Sociais, Saúde Pública, Psicologia, Letras e Serviço Social.


PARA SABER MAIS

FOTOS: ARQU

IVO PESSOA

L/SINTE/SC

Iniciativa inédita

Discussões mobilizaram mais de mil participantes de todo o estado nas três edições do curso

O curso é resultado de uma articulação da Secretaria de Políticas para Mulheres, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, ambas da Presidência da República, e da Secretaria de Educação Continuada para a Diversidade (SECADI) junto ao Ministério da Educação (MEC). As três não existem mais. “Provavelmente não teremos mais no curto prazo essa iniciativa no Brasil”, afirma Pedro. “O GDE foi pensado como uma política pública com o objetivo de formar profissionais da educação, principalmente aquelas(es) vinculadas(os) a escolas públicas, em temáticas de gênero, diversidades, sexualidade, orientação sexual, relações étnico-raciais, preconceitos e deficiências. Desde o início do ano, todos os cursos pelo Brasil já estavam minguando, morrendo. Com o golpe, acabaram de vez as esperanças de continuidade”, diz, enfatizando a palavra “golpe”.

Depois de dois anos, os resultados começam a ser colhidos, com mudanças nas práticas das participantes. “Esta é uma política pública incrível e fundamental. Um curso de especialização gratuito e de alta qualidade. Sentimos nos relatos de trabalhos e provas que há uma mudança muito grande na prática das pessoas. Elas saem transformadas do curso. Hoje elas refletem muito sobre suas práticas frente às diferenças em sala de aula. Antes não sabiam como lidar com uma pessoa transgênero, por exemplo. Não que saiam prontas para lidar com tudo, mas já refletem esse tipo de experiência. Mudaram suas práticas e replicam em sala de aula.” O coordenador refere-se às participantes quase sempre no feminino. Explica-se: 90% são mulheres, e 90% professoras das redes estadual e municipal que se interessam por discussões de gênero.

Ofertado primeiramente como projeto piloto pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ), a partir de 2008 o curso começou a ser oferecido para todas as Instituições Públicas de Ensino Superior do país que se interessassem em ofertar cursos pelo Sistema da Universidade Aberta do Brasil (UAB). Em Santa Catarina, sob a coordenação do Instituto de Estudos de Gênero (IEG/UFSC), o GDE está em sua terceira edição. A primeira ocorreu entre março e julho de 2009 em 10 polos espalhados por todo o estado (Blumenau, Braço do Norte, Canoinhas, Chapecó, Concórdia, Florianópolis, Itajaí, Itapema, São José e Videira), com 500 vagas, em sua maioria para professoras(es) de escolas públicas. A segunda edição ocorreu entre 2012 e 2013 em cinco polos (Florianópolis, Itapema, Palmitos, Pouso Redondo e Praia Grande), com 300 vagas. Ambas as edições ocorreram na modalidade curso de extensão universitária. Na terceira edição, que começou em 2015, o curso foi realizado na modalidade especialização, também em cinco polos do Estado de Santa Catarina, nos seguintes municípios: Concórdia, Florianópolis, Itapema, Laguna e Praia Grande. O curso tem como base teórica os campos de Estudos de Gênero, Sexualidades, Relações Étnico-raciais e Estudos da Deficiência e uma metodologia que inclui a participação obrigatória das(os) cursistas no Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem (AVEA). Ao contrário das duas primeiras edições, a duração prevista para a realização do curso foi de dois anos, divididos em 12 disciplinas, incluindo mais uma etapa de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). A maioria é graduada em Pedagogia e atua na rede pública de ensino em Santa Catarina. Também há cursistas com formação em outras áreas do conhecimento: Física, Matemática, Educação Física, Psicologia, História, Ciências Sociais, Administração, Letras, Direito, entre outros.

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• Saúde

Alerta ligado

CNTE/SINTE/SC

São conhecidos os relatos de falência na saúde de trabalhadores(as) da educação. A aceleração dos processos não foi acompanhada do respectivo cuidado que o ambiente educativo e a sociedade devem proporcionar a esses profissionais. Mas as mudanças não devem se dar apenas na questão estrutural. Envolvem sobrecarga de trabalho, salas cheias, mas também novas exigências de aprendizado e ensino, melhores salários, combate ao assédio moral, ao uso de medicamentos ou outros procedimentos terapêuticos e aos abalos emocionais ou mentais

JUÇARA DUTRA VIEIRA

Doutora em Políticas Públicas de Educação, ex-presidente da CNTE

Práxis – Como você costuma abordar a temática da saúde do(a) do(a) trabalhador(a) em educação? Juçara Dutra Vieira – A escola tem enfrentado muitos desafios, tanto na questão da violência quanto das dinâmicas a que se obriga para dar conta de seu funcionamento: falta de recursos materiais, profissionais em número insuficiente para as atividades que integram o projeto político-pedagógico, dificuldade para abrir-se aos interesses e demandas da comunidade onde se insere. Também é importante registrar que esta geração de estudantes tem outras expectativas em relação à educação, especialmente em relação ao uso das tecnologias da comunicação e da

informação. Esse descompasso geracional interfere na atividade do(a) trabalhador(a) em educação, em dois sentidos: positivamente, pois os estudantes desenvolvem um raciocínio mais interativo e, negativamente, na medida em que a escola não consegue acompanhar esse processo. Desenvolver habilidades no uso das tecnologias de informação e de comunicação é um aprendizado que exige formação permanente e disponibilidade de tempo. Falo de processos cognitivos novos que precisam superar a forma cartesiana de estudo que foi a tônica da minha geração, por exemplo. Essas questões se mesclam na disponibilidade e utilização de tempo para o exercício profissional, o lazer e a fruição estética e cultural.

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Práxis – Segundo o Dieese, cláusulas associadas à saúde psicológica já estão presentes em 26% das convenções e dos acordos coletivos, quer dizer, triplicaram em 10 anos. Como o ambiente da educação lida com essa situação? Juçara Dutra Vieira – Isso significa o reconhecimento do vínculo entre saúde psicológica e exercício profissional, o que é positivo em termos de direitos. Ao mesmo tempo, porém, indica que há um aumento do adoecimento e os sindicatos precisam intensificar as campanhas de conscientização da categoria, dos governos, dos patrões (no caso da iniciativa privada) e da sociedade. Em qualquer circunstância, o fundamental é a prevenção.


Então, o passo inicial é a tomada de consciência do problema. Com esse objetivo, a CNTE realizou, no final dos anos 1990, em cooperação com a Universidade de Brasília (UNB), uma abrangente investigação, envolvendo 52.000 entrevistas, que resultou no livro “Educação: carinho e trabalho – Burnout, a síndrome da desistência do educador, que pode levar à falência da educação”. O estudo agrupou as respostas em três categorias, obtendo os resultados, que aparecem no gráfico acima, para os sintomas de despersonalização, exaustão emocional e perda de envolvimento pessoal com o trabalho. O estudo serviu, inclusive, para esclarecer aos profissionais da educação que eles eram vítimas e

não “culpados” por apresentar os sintomas inerentes à doença. Depois desse trabalho exaustivo sobre burnout, a Confederação analisou, ponto a ponto, as pesquisas “Retrato da Escola 1 e 2” efetuadas, nos anos 2000 e 2001, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais do Ministério da Educação (INEP/MEC), baseadas nas informações do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Esses dados oficiais permitiram à CNTE a organização de cinco relatórios – infraestrutura, drogas e violência, gestão democrática, trabalhadores em educação e qualidade da educação – organizados por Silva e Aguiar e publicados, em livro, por Abicalil e Fernandes (ver referência). Coube-me, na sequência, investigar aspectos relaciona-

dos ao trabalho, ao lazer e à saúde dos trabalhadores em educação em dez estados da federação (Alagoas, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Tocantins). Os dados das 4.656 entrevistas aplicadas foram processados pelo Dieese e deram também origem a um livro (ver referência). Os principais aspectos investigados relacionados à saúde foram: a própria existência de problemas/ doenças (30,4%), a ocorrência de licenças médicas (22,6%) e a incidência de cirurgias (43,7%). (Ver gráfico pág. 12). Os dados evidenciaram que um terço dos trabalhadores em educação tinha problemas de saúde e, inclusive, muitos conviviam com isso, pois o per-

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centual de licenças era menor que o de adoecimentos, ainda que significativo. Embora as perguntas não identificassem o porte nem a gravidade das intervenções cirúrgicas, o dado foi muito expressivo, indicando vulnerabilidade da saúde dos educadores. É plausível inferir que parte importante desse percentual fosse decorrente da condição feminina que, à época do estudo, correspondia a 83% dos(as) entrevistados(as).

Práxis – A situação é diferente na iniciativa privada? Juçara Dutra Vieira – A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (CONTEE), que organiza os profissionais vinculados à iniciativa privada, entre os quais os SINPRO – que são sindicatos de base estadual – tem políticas similares às da CNTE, como secretaria específica sobre saúde em seu organograma. No meu estado, o SINPRO/RS tem uma pesquisa, feita por internet e disponível em seu sítio eletrônico, denominada “Condições de Trabalho e Saúde dos Trabalhadores do Ensino Privado no Estado do Rio Grande do Sul”. O estudo revela, por exemplo, que um dos sérios e crescentes problemas enfrentados pelos trabalhadores é o assédio moral, praticado tanto por estudantes, como por chefias e por pais de alunos. As tarefas fora do horário de trabalho atingem 70% na soma das situações “sempre” e “frequen-

temente”. Praticamente a metade dos profissionais (49%) usa medicamentos ou outros procedimentos terapêuticos. O mais preocupante, porém, diz respeito às questões emocionais ou mentais. Somente 17% dos entrevistados não se enquadra em nenhum item.

Práxis - Como as organizações sindicais estão tratando desses problemas? Juçara Dutra Vieira – A CNTE criou a Secretaria de Saúde do(a) Trabalhador(a), por meio da qual desenvolve programas, cursos, campanhas e produções diversas, instituiu o Coletivo de Saúde, espaço que serve de intercâmbio entre os sindicatos filiados e mantém o debate atualizado. Destaco a importância da investigação que trouxe para o debate nacional, por exemplo, a síndrome de burnout ainda nos anos 1990. A próxima pesquisa da Confederação ocorrerá em janeiro de 2017, durante o 33º Congresso Nacional da entidade. Contribuí para a elaboração do protocolo que trará questões similares às de investigações anteriores, objetivando a comparação de dados. A nova pesquisa também introduzirá questões ainda não colhidas, cientificamente, embora conhecidas de forma empírica como, por exemplo: identidade de gênero e orientação sexual, além de estratificação por sexo; acessibilidade nas condições físicas das escolas/instituições;

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relação do educador com as redes sociais e suas ferramentas, além do uso das TIC já investigado em levantamentos anteriores. A parte central será a questão da saúde da categoria, composta por professores, pedagogos e funcionários de escola. Investigará desde a existência de CIPA ou equivalente na instituição até os tipos de plano de saúde disponíveis para a categoria. Além de manter as questões sobre a síndrome de burnout, a pesquisa investigará a existência e alcance da “síndrome do pensamento acelerado” que, aparentemente, terá impacto semelhante sobre as condições de vida e de trabalho dos educadores brasileiros. Referências ABICALIL, Carlos Augusto; DOURADO, Luiz Fernandes. Retrato da Escola no Brasil. [Aída Maria Monteiro Silva e Márcia Ângela da Silva Aguiar, organizadoras]. Brasília: CNTE, 2004. CNTE. Estatuto [com as modificações congressuais de] 2014. Disponível em: <http://www.cnte.org.br/>. Acesso em: 7 out. 2016. CODO, Wanderley [Coordenador]. Educação: carinho e trabalho – Burnout, a síndrome da desistência do educador, que pode levar à falência da educação. Rio de Janeiro: Vozes; Brasília: CNTE/UnB, 1999. SINPRO/RS. Condições de Trabalho e Saúde dos Trabalhadores do Ensino Privado no Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.sinprors.org.br/ pesquisa/>. Acesso em: 7 out. 2016. VIEIRA, Juçara Dutra. Identidade Expropriada: retrato do educador brasileiro. 2 ed. Brasília: CNTE, 2004.


Encarte Especial da Revista Práxis – SINTE/SC Outubro de 2016

Os medos que nos perseguem Crescem os números de casos de bullying e assédio moral, duas das principais causas de adoecimento no ambiente escolar

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Assédio moral: A insuportável pressão

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Bullying: O mal mais cruel

BRUNA FERENCZ

ENCARTE

Assédio moral e bullying


Editorial

Um passo de cada vez

É sabido que a educação é um dos ambientes em que mais ocorrem casos de assédio moral e bullying. Além das denúncias, que chegam às organizações de defesa dos(as) trabalhadores(as) cada vez em maior número, há outros elementos que comprovam o aumento dos casos. Por exemplo, a inclusão de dispositivos que visam proteger a saúde mental e emocional nos acordos coletivos de trabalho. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), esses dispositivos triplicaram nos últimos 10 anos. O SINTE/SC tem se dedicado a combater os casos de assédio já há algum tempo. Elabora materiais informativos, promove palestras e encontros, dá orientação para a categoria, através de sua assessoria especializada. Mais do que isso, luta para que as condições de trabalho melhorem a cada momento. Nem sempre consegue sucesso, ainda mais em uma conjuntura avessa à defesa dos direitos dos(as) trabalhadores(as). Esta edição da Práxis representa mais um passo do sindicato para levar informação e análise sobre assédio moral e bullying para a categoria. Não é uma abordagem exaustiva. Esse é o tipo de assunto que deve estar permanentemente no centro das preocupações do sindicato e dos(as) trabalhadores(as). Somente com ações coletivas, envolvendo sindicato, base e outros atores da sociedade civil e do governo, conseguiremos debelar essas pragas, que vão muito além dos muros das escolas e das possibilidades individuais dos sujeitos que atuam nesses locais. Trata-se de violência. E violência não tem uma só origem, uma só causa. Em uma sociedade doente, com extrema desigualdade, competição e desrespeito a direitos básicos da cidadania, os casos de violência se multiplicam de forma assustadora. Para superar esse cenário, é preciso mudar as próprias estruturas da sociedade desigual. Como não se consegue, nesse momento, levar essa tarefa gigantesca a efeito, temos de dar um passo de cada vez. Informação, mobilização e cuidado, então, passam a ser fundamentais com esse objetivo. 2 | PRÁXIS | SINTE - SC | Encarte

Denunciar: ainda um dos grandes obstáculos contra a violência

EXPEDIENTE Este encarte integra a Revista Práxis, publicação do Sindicato dos Trabalhadores em Educação na Rede Pública de Ensino do Estado de Santa Catarina (SINTE/SC). Ano 1 – Número 2 – Outubro de 2016

Gestão 2016/2019 PRODUÇÃO EDITORIAL Coordenação Editorial Carlos Alberto Lopes Figueiredo (Secretário de Imprensa e Divulgação SINTE/SC) Redação, Edição e Revisão Amilcar Oliveira (SC 00462 JP) Diagramação Cristiane Cardoso (Entrelinha) Ilustrações Bruna Ferencz


FOTO: SINTE/SC

Desafios além dos muros da escola Análise de casos individuais deve ser feita; mais importante, porém, é o ambiente que torna possível o surgimento da violência P3* sofreu assédio durante sete anos em uma escola estadual em Santa Catarina. O sotaque e as ideias diferentes sobre como poderia ser realizado o trabalho originaram a perseguição da diretora e de uma colega da secretaria. Quase se separou do marido, que também é educador, e que sofria o mesmo problema, na mesma escola. Reataram após terapia. Em outra localidade, os professores perceberam que a própria estrutura física da escola gerava problemas de relacionamento entre os alunos e destes com os professores e funcionários. O ambiente escolar tem sido cenário de dificuldades cada vez mais desafiadoras, que vão muito além do processo de ensino-aprendizagem. Não são desafios oriundos apenas da revolução tecnológica ainda em curso, embora essa contribua para potencializar os problemas. Houve um tempo em que trabalhadores e trabalhadoras na educação eram orientados para, de certa forma, deixar as dificuldades de ordem pessoal do lado de fora da escola. Hoje, apesar das vozes cada vez mais audíveis que insistem em manter essa separação, em nome de uma ilusória isenção na prática educativa, a escola tornou-se caixa de ressonância, amplificando as mazelas do lado de lá dos muros. Sem entender esse caráter inseparável das dificuldades da desigualdade social, da pressão por

Melhores condições de trabalho são fundamentais para combater assédio e bullying resultados, do desemprego, da mão de obra cada vez menos preparada, e os reflexos na escola, torna-se difícil estabelecer medidas eficazes para enfrentar os casos cada vez mais frequentes de doenças relacionadas a assédio moral e bullying, que podem levar até ao suicídio. Além de alimentar um ciclo, na forma da necessidade de reproduzir maus-tratos sofridos – a síndrome dos maus-tratos repetitivos. Na visão dos especialistas, isolar a escola das influências externas não será solução para o tratamento dessas anomalias. Ao contrário. Desde que começou a se dedicar ao estudo e à apresentação de alternativas para debelar essas práticas, o SINTE/ SC entende que somente com medidas estruturais, que passem pela análise global da situação dos trabalhadores e trabalhadoras em educação e dos alunos é que se avançará no cuidado desses problemas. A violência referida nas próximas páginas como característica tanto

do bullying quanto do assédio moral é produto de desequilíbrios que perpassam as relações sociais. E que prometem se aprofundar com as medidas adotadas por governantes de vários níveis, a começar pelo governo federal. Em Santa Catarina, o cenário promete ser sombrio, a julgar pelos sinais de alinhamento do governo estadual com o governo federal na aprovação das medidas que afetam diretamente a educação, descritas ao longo dessa edição da Práxis. Nas próximas páginas, você lerá entrevistas com especialistas no trato tanto do bullying quanto do assédio moral. Na última página, apresentamos algumas iniciativas do SINTE/ SC para lidar com esses problemas e também indicações bibliográficas para os interessados em se aprofundar nos temas.

* Nome fictício que se refere a um participante de atividade de grupo de combate ao assédio moral da UFSC.

Assédio moral e bullying | SINTE - SC | PRÁXIS | 3


A insuportável pressão O grupo de Combate e Prevenção ao Assédio Moral no Trabalho, vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tem estado ocupado nos últimos anos. O crescimento dos casos de assédio moral está ligado diretamente ao aumento da pressão por resultados, cumprimento de metas de produtividade, disputas internas em organizações. É mais um item para colocar no balaio das doenças psicossociais desses tempos de exigências, confrontos e intolerâncias. Nessa entrevista para a Práxis, os pesquisadores Suzana Tolfo e Renato Tocchetto, da UFSC, dedicam-se a esclarecer alguns pontos desse que é um dos piores problemas do ambiente de trabalho, tendo na educação um dos seus campos preferenciais.

Práxis – Como podemos caracterizar o assédio moral?

nizações, de baixo para cima, dos subordinados para a chefia.

Suzana Tolfo – Partimos da concepção de que assédio moral é violência, caracterizada por humilhações, constrangimentos, desqualificações. Em boa parte das vezes, começa de forma mais sutil, por meio de brincadeiras. Independente disso, é violência relacionada ao trabalho, que identificamos por meio dos ditos comportamentos negativos. E que ocorrem em um contexto social, econômico e organizacional que têm de ser coniventes para que isso aconteça. O assédio é predominantemente vertical, mas não só*. Produzimos uma cartilha em que mostramos que o assédio aponta em várias direções. A mais comum é a vertical, porque é uma relação que envolve poder e na qual o trabalhador está sujeito a manter ou não seu emprego, facilitando o abuso de poder por parte da chefia. Mas pode ser horizontal, misto ou, o que é menos usual nas orga-

Renato Tocchetto – Nos países anglo-saxões se utiliza muito o bullying at work, ou workplace bullying. Porque tanto o bullying quanto o assédio são uma intimidação, decorrente de uma relação de poder. É uma busca de poder, em que há necessidade de humilhar, desqualificar o outro. Claro que os sujeitos melhor situados na hierarquia têm maiores pontos de poder: poder de recompensa, poder de punição, poder de retirar os meios de trabalho de uma pessoa, poder de isolar a pessoa. Em função dos recursos do poder, é mais comum o assédio vertical, de cima para baixo.

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Práxis – Como vocês trabalham esse tema na universidade? Suzana Tolfo – Temos um grupo de apoio psicológico na UFSC. Já vieram pessoas de várias cidades do estado.

Em muitos casos, os alunos desqualificam professores, que entram em depressão e conseguem atestado médico porque não têm condições de estar na sala de aula (veja a descrição de um caso nessas páginas). Recorrem a medicamentos e tratamento terapêutico, em alguns casos desistindo da sala de aula. É um grupo por semestre. Não fazemos psicoterapia. O objetivo do grupo é promover o entendimento sobre o que é o assédio, de maneira coletiva, para pensar-se coletivamente, para que não procurem soluções individualizadas, procurem seus sindicatos, se for o caso. Há uma parte informativa e depois as discussões de estratégias para fazer o enfrentamento dessas e de outras situações com que venham a se defrontar. Como resultados, temos casos de pessoas que diminuem o uso de medicamentos, de pessoas que tomam coragem para pedir remoção. Em alguns casos, há desistência de trabalhar no local. E, em menor número, casos de ações judiciais.


ARQUIVO PESSOAL/SINTE/SC

A vida por um fio Relato feito durante as atividades do Grupo de Apoio para Trabalhadores e Estudantes Assediados, realizado pela equipe do Projeto de Extensão Combate e Prevenção ao Assédio Moral no Trabalho para a Promoção da Saúde do Trabalhador, vinculado ao Departamento de Psicologia da UFSC. O grupo reúne de oito a nove participantes, em até 10 encontros, e está na sexta edição.

Suzana da Rosa Tolfo, professora do Departamento de Psicologia da UFSC, Doutora em Administração; Renato Tocchetto de Oliveira, mestre em Engenharia de Produção pela UFSC, dedica-se à construção de um Modelo Preventivo para as Questões Psicossociais do Trabalho

Práxis – O assédio emite sinais que acabam não sendo muito difíceis de identificar. Suzana Tolfo – Partimos da ideia de que são ambientes de extrema competitividade, e muitas vezes os fins justificam quaisquer meios. A probabilidade nesse momento de crise, de elevadas metas de produtividade, de segurar-se em qualquer tábua de salvação, faz com que apareçam as piores características, do ponto de vista da gestão das organizações, que precisam atingir metas, e do ponto de vista pessoal, na disputa por vagas, promoções, etc. Mas é importante frisar que a causa do assédio não é individual, depende de todo um contexto que propicia sua eclosão. Veja que é uma sociedade contraditória, que reproduz esses problemas, ao mesmo tempo em que se fala de diversidade, gênero, de relações étnico-raciais. Renato Tocchetto – Também é importante referir que o individua-

lismo e a falta de solidariedade são condições básicas para que os casos de assédio ocorram. E estamos vivendo um individualismo exacerbado. Muito em função da precarização das relações de trabalho e as medidas que estão em curso no País, que podem vir a contribuir cada vez mais para o aumento dos casos de assédio.

* No livro Assédio Moral no Trabalho, indicado na página 8, são citadas várias categorias de assédio moral: assédio vertical descendente – o(s) agressor(es) é(são) a chefia e a vítima um subordinado; assédio vertical ascendente – os agressores são um ou mais subordinados e a vítima é um superior hierárquico. Algumas formas utilizadas pelos funcionários são a falsa acusação de assédio sexual e reações coletivas em grupo; assédio horizontal – o(s) agressor(es) é(são) os próprios colegas. Geralmente este ocorre quando colegas disputam um mesmo cargo ou promoção; e assédio misto – os agressores são colega e chefias (pág. 203).

“P3 é formada em Pedagogia e trabalha em uma escola da Grande Florianópolis. O marido de P3 é formado em Administração, tendo sido admitido em caráter temporário para atuar no mesmo local que P3. Após aproximadamente três anos, uma das funcionárias, que fazia parte da direção do local e que atualmente é a diretora, passou a tratar P3 de maneira que desmerecia seu trabalho. A partir desse momento, P3 sofre assédio por parte dessa diretora e de uma colega, que divide as atividades da secretaria com ela. O marido de P3 trabalhou por dois anos na mesma escola em que ela trabalha até o momento e sofre assédio moral. A situação teve reflexos na relação do casal. No período entre o distanciamento, os conflitos e a posterior reaproximação, haviam decidido separar-se, mas buscaram terapia e reconsideraram a decisão.”

Assédio moral e bullying | SINTE - SC | PRÁXIS | 5


ARQUIVO PESSOAL | SINTE/SC

O mal mais cruel Escola tradicional, presa a métodos ultrapassados, não consegue ser espaço de convivência democrática e de transformação das relações. Contra esse contexto, alunos são chamados a ser protagonistas, participando do desenvolvimento de estratégias de combate à intimidação. Leia a entrevista com a pesquisadora Luciene Tognetta, da UNESP. Práxis - Este é um momento em que a violência, o ódio e a agressividade parecem ter se tornado banais. Ofender alguém nunca foi tão fácil. Evidente que a emergência das redes sociais favorece essa constatação. Ampliaram-se, por consequência, os espaços para a disseminação do bullying, agora, também cyberbullying. E as formas de cuidado, ampliaram-se na mesma medida? Luciene Tognetta – Não se pode dizer que exista um aumento da violência no seu sentido mais restrito. Agressividade e ódio são presentes desde os primatas. O homem foi e ainda é violento. A questão é que a violência hoje se manifesta de diferentes maneiras. E é sentida também de diferentes maneiras. Por exemplo, na escola. Professores se queixam de que a violência aumentou. O que aumentou foram as incivilidades, a indisciplina, e essa está ligada ao currículo tedioso da escola. Mas há, sim, a violência explicitada nas redes sociais que, na verdade, são apenas a continuidade das relações físicas. Quem é autor de cyberbullying é aquele que não se apropriou da justiça ou do respeito como necessários mesmo 6 | PRÁXIS | SINTE - SC | Encarte

que uma autoridade não esteja presente. Portanto, se faltar a professora ou outra autoridade qualquer, fará na vida real assim como faz no espaço virtual, acreditando não poder ser pego. Certamente, as formas de cuidado não se ampliam da mesma maneira. Temos uma lei antibullying (Lei 13.185/2015), que reitera a importância da compreensão do fenômeno e de seu combate. Contudo, ainda estamos longe de equacionar medidas de prevenção e de intervenção sustentadas no que de fato as pesquisas sobre o tema têm conseguido chegar: só se supera o problema quando se implementa na escola o contrário da violência, a convivência.

Práxis - Como se trata essa violência, que transcende a mera questão de gosto, de opinião, mas está ancorada na própria forma de organização da sociedade, que exclui e gera desigualdades, muitas delas na raiz das diferenças não aceitas? Luciene Tognetta – Bullying é sim uma forma de preconceito. Mas todo preconceito não é bullying. O bullying é mais do que isso. Se fosse apenas uma rejeição à diferença, todos os negros, muito brancos,

muito magros, muito gordos, muito altos, muito baixos – ou seja, todos os diferentes seriam vítimas de bullying. Mas não são. É mais que isso. Bullying é uma forma sutil de violência cujas peculiaridades se dão a partir do momento em que as ações agressivas são intencionais, repetitivas e realizadas entre pares. Geralmente, o autor escolhe um alvo frágil para agredir, ofender, maltratar e humilhar, sempre diante de um público, e independente do tipo de agressão (física, verbal, psicológica). Todas as situações de bullying são marcadas pelo desrespeito, já que guardam tanto a intenção do autor em ferir quanto a consequência danosa para a vítima, que se sente humilhada, diminuída e exposta diante dos outros colegas. Portanto, uma ação intimidatória pode ser considerada bullying quando se enquadra nessas características.

Práxis - As pesquisas têm mostrado altos percentuais de reprodução desse tipo de violência, o que a professora Cleo Fante chamou em palestra de “dinâmica expansiva do bullying”. Luciene Tognetta – Bullying é um dos grandes problemas que a


Luciene Regina Paulino Tognetta, Dra em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP e pela Universidade de Genebra, com pós-doutorado pela Universidade do Minho, de Portugal. Professora do Departamento de Psicologia da Educação da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP - Campus de Araraquara, pesquisadora e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM - Unicamp/Unesp)

escola hoje enfrenta. Mas não é o único e nem o primeiro. Contudo, é seu mal mais cruel. A escola hoje sofre o amargor de uma instituição que não se apoderou das conquistas das ciências. As pesquisas que mostraram a necessidade de que a escola seja um espaço de convivência e que a postura dos que lá convivem seja baseada na democracia já reiteram esse fato há anos, mas a escola ainda pouco caminhou para transformar suas relações. Trabalha-se em pleno século XXI com cópias da lousa. E cria-se tédio naqueles que são muito mais desenvolvidos do que meros copistas. A mesma escola desconsidera o bullying porque está focada nos problemas que incidem diretamente no ensino: ou seja, se atrapalhar a aula, este é o problema. Assim, o bullying, que é um fenômeno escondido, pouco tem chances de ser evidenciado ou trabalhado pela escola. Presa aos conteúdos tradicionais, o espaço dos sentimentos, das relações entre as pessoas, não tem vez nessa escola ao menos com um século de atraso. As consequências são gritantes: jovens que saem da escola e não sabem conviver com os demais, jovens que perdem seus empregos por não saberem usar o celular (porque não aprenderam isso na escola, já que nela não

Presa aos conteúdos tradicionais, o espaço dos sentimentos, das relações entre as pessoas, não tem vez nessa escola ao menos com um século de atraso. Só se supera o problema quando se implementa na escola o contrário da violência, a convivência.

poderiam utilizar esse recurso). Jovens que resolvem seus problemas por meio da submissão do outro às suas vontades, pela agressão, pela ofensa. Jovens que não sabem eleger seus candidatos porque nunca foram questionados sobre questões do cotidiano. E quanto ao bullying: jovens agressores que estarão fadados à solidão na vida adulta, porque ninguém suporta por todo o tempo alguém que submete ao outro às suas vontades. Jovens vítimas que continuaram inexpressivos, submissos, depressivos, e jovens testemunhas que não se indignarão com os problemas de violência que veem, porque lhes é natural.

Práxis - Que iniciativas a senhora citaria como exemplos bem sucedidos e que poderiam ser disseminados para o combate à violência nas escolas, particularmente o bullying? Luciene Tognetta – Temos realizado no Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM) um trabalho sistemático em diferentes redes de ensino públicas e escolas particulares do estado de São Paulo com o intuito de garantir a formação de profes-

sores e sua participação na elaboração e construção de um projeto antibullying na escola que preze pela convivência, ou seja, que busque estratégias de implementar momentos de convivência com valores morais e não apenas como intervenção na violência. No segmento de Ensino Fundamental II, temos experiências interessantes no Brasil que seguem os trabalhos de nosso companheiro de grupo, o professor José Maria Avilés Martinez, da Universidade de Valladolid, na Espanha, que criou o que chamamos de “equipes de ajuda”. São estratégias pensadas para promover a participação daqueles que mais têm a contribuir para a superação do bullying – os alunos. Chamamos de suporte entre iguais as estratégias de protagonismo infanto-juvenil, em que os alunos são chamados, escolhidos pelos seus pares e formados para ajudar aos outros que sofrem e que precisam de ajuda – agressores, vítimas e espectadores de bullying. Os resultados parciais de nossas investigações com as escolas de Campinas mostram que, efetivamente, os problemas de intimidação diminuem quando existe na escola um trabalho em que a convivência seja desenvolvida, respeitada e difundida.

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Romper a barreira do silêncio O maior desafio para combater o assédio moral e o bullying nos locais de trabalho talvez seja romper a barreira do silêncio. Com o aumento das denúncias de casos envolvendo trabalhadores(as) na educação em Santa Catarina, nos últimos anos o SINTE/SC intensificou as campanhas de conscientização. Cartazes, boletins, jornais murais, cartilhas, encontros se sucederam para que as denúncias sejam estimuladas. O entendimento do sindicato é de que a informação é fundamental para o enfrentamento do problema. Mas também a atuação de profissionais de várias áreas – advogados, médicos do trabalho e outros profissionais de saúde, sociólogos, antropólogos e grupos de reflexão. Além de medidas preventivas nos locais de trabalho e de aprendizado. Somente assim será possível impedir a perpetuação

Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral Marie-france Hirigoyen Bertrand do Brasil - 2005 Uma das principais referências no assunto, chamou a atenção para um fenômeno até então subestimado. Uma sucessão de testemunhos, divulgação na mídia dos “casos” de assédio, tanto no âmbito privado quanto no público, de debates entre profissionais de várias áreas e criação de associações ligadas ao tema decorreram da publicação da obra.

da violência nas escolas e em outros ambientes relacionados à educação. O contexto de desemprego, dessindicalização, violência urbana e degradação geral das condições socioeconômicas da população reflete-se diretamente na educação. As mudanças que afetam crianças, jovens e adultos encontram nesses locais um ambiente explosivo. Sem o preparo adequado, a pressão chega a níveis insuportáveis, refletindo-se em perseguições e disputas que necessariamente adoecem o ambiente de trabalho. Como está disposto na cartilha Não se cale! Denuncie! (veja imagem e acesse o conteúdo no site do sindicato), elaborada pelo SINTE/SC em res-

Assédio moral no trabalho, características e intervenções Suzana da Rosa Tolfo Renato Tocchetto de Oliveira (orgs.) Lagoa Editora - 2015 O livro apresenta as várias formas que podem caracterizar assédio: relacionamento, clima e concorrência, práticas de liderança, padrões de trabalho. É produto de uma parceria entre a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Estado de Santa Catarina (SRTE/SC) e o Fórum Saúde e Segurança do Trabalhador (FSST/SC).

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posta ao problema, “não são apenas as leis que resolverão o problema, mas, principalmente a conscientização da vítima, do agressor e da própria sociedade”. A organização coletiva dos(as) trabalhadores(as) é fundamental nesse sentido.

Preconceito e repetição: diferentes maneiras de entender o bullying Joseth Jardim Martins e Raquel Kämpf Editora Positivo - 2014 O livro reflete sobre os diferentes fatores que estão ligados à manifestação deste tipo de violência, abordando as influências dos fatores sociais e as repercussões do fenômeno na sociedade; os diferentes tipos de bullying, a gravidade do problema, a relação entre preconceito e intolerância, os aspectos legais relacionados ao problema, assim como um panorama de pesquisas e estudos realizados sobre o assunto no Brasil nas últimas décadas.

Fenômeno bullying: como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz Cleo Fante Verus Editora - 2011 A autora é uma das principais especialistas no assunto. Neste livro, apresenta o bullying como um fenômeno preocupante, no Brasil e no mundo. O livro traz um programa para ser aplicado nas escolas. Algumas escolas já aplicam os métodos apresentados pela autora.


• Gestão democrática

ALESC/SINTE/SC

Gestão da educação numa perspectiva transformadora ALVETE PASIN BEDIN

Secretária de Aposentados e Assuntos Previdenciários do SINTE/SC

Os gestores da educação pública catarinense, representantes dos principais partidos tradicionais da política brasileira, há muito travam luta ferrenha para mantê-la sob os bastiões de visões e práticas conservadoras, contra todos os avanços concretos que vêm sendo construídos na forma de ver e fazer, no chão da escola, envolvendo alunos, pais e professores. A prática social avança, mas o conservadorismo faz de tudo para impedir mudanças que sejam significativas para as camadas populares, no sentido de se apropriarem dos seus destinos e conquistarem direitos. Há um caldo social que pressiona por transformação das práticas de gestão na educação, desde muito tempo, e que se expressa inclusive em inúmeras leis nos âmbitos nacional, estadual e municipal. É o caso, para citar um exemplo, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) – Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que em seu artigo 14 é textual, afirmando o caráter democrático da gestão, embora o legislador (proveniente dos status partidários dominantes) busque colocar freios no desejo da sociedade. Art. 14º. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (LDB). Vê-se que o caput do artigo sugere a gestão democrática de forma ampla. Já nos princípios há um cerceamen-

to, dando margem à ação dos setores conservadores, que atuam nos governos, nos Conselhos de Educação, nas Casas Legislativas, nos Tribunais. Trata-se de uma trava que querem impor, por conta do crescimento permanente da cidadania, em especial de setores de trabalhadores, das camadas populares, de muitos intelectuais, de instituições que vêm lutando há anos pelo crescimento da consciência política, que buscam maior democracia participativa na gestão pública de um modo geral e, em especial, da educação. É, portanto pela lógica conservadora e pelo arbítrio do poder que a gestão pública tem se efetivado, valendo-se do respaldo de instâncias de poder do Judiciário, do Ministério Público, ignorando os direitos e normas legais. Tudo porque se trata de algo que atende setores mais populares, com os quais os status dominantes pouco se importam, a não ser apenas quando esses lhes convêm. Por que em todas as instituições de educação pública superior, todos os processos de escolha da gestão são frutos de escolhas democráticas, com eleições? Seriam os estudantes do ensino superior e seus professores, uma casta superior aos professores, pais, estudantes da educação básica? Parece que não, o que mostra que a gestão da educação básica pública não é democrática apenas e tão somente por conta do conservadorismo das classes políticas que dirigiram e dirigem os destinos da escola pública. Precisamos compreender e perceber que o caldo de transformação que viemos construindo ao longo dos anos nos permite vislumbrar a possibilidade de uma gestão democrática e transformadora. Basta acreditarmos e continuarmos a luta juntos. Outubro 2016 | SINTE - SC | PRÁXIS | 13


• Cultura

RQUIVO PESSOAL/SINTE/SC

Violência, literatura e sala de aula FABIO SOARES

Mestre em Literatura Brasileira e Doutor em Teoria Literária

A presença da violência na nossa literatura é um fenômeno recente, ainda em debate, mas que desde os anos 1970 vem se tornando crescente. Isso é sintoma de que há algo mais profundo aí, algo enraizado no próprio processo social brasileiro, que pede por compreensão. Quando Rubem Fonseca começou com seus contos, especialmente com Feliz Ano Novo, o teórico que mais se debruçou sobre isso foi Alfredo Bosi, que compreendeu o fenômeno como algo que chamou de brutalismo, com um pouco de influência da literatura americana, mas também do processo de urbanização do Brasil. Mais recentemente, o foco se deslocou, já não mais centrado tanto na questão de influências narrativas ou da urbanização, mas de uma violência maior: o próprio processo de modernização conservadora do Brasil, que coincide com a ditadura militar. Temos então dois elementos que se combinam - a violência do Estado, através do golpe e da ditadura, e a violência social e econômica, quando milhões de pessoas são arrancadas do meio rural e obrigadas a viver na miséria nas cidades. Esse fator beneficia a indústria com mão de obra barata, e esta retribui dando o suporte político e financeiro à ditadura, como foi o caso das indústrias paulistas, que financiaram o sistema de repressão e torturas do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), órgão subordinado ao Exército, de inteligência e repressão do governo brasileiro, durante a ditadura militar. Assim o sistema se fecha. Cidade de Deus, o romance de Paulo Lins adaptado para o cine14 | PRÁXIS | SINTE - SC | Outubro 2016

ma, foi muito feliz em seu recorte temporal, porque abrange desde esse período até os anos 1990. Há ainda um terceiro tipo de violência, com base nos preconceitos sociais de classe, raça, sexualidade e gênero, que se entrelaça às demais. Interligam-se, dessa forma, basicamente, três tipos de violência: a violência socioeconômica, que está ligada à miséria, exploração da mão de obra e criação de guetos; a violência de gênero e raça, ligada ao preconceito contra mulheres, homossexuais, índios, negros e imigrantes; e a violência estatal e criminal, a face visível de confrontos armados. Podemos fazer essa separação em três aspectos da violência, mas tendo em mente que estão interligados. A violência é una, engloba os três tipos, e não consegue se evitar uma enquanto não se mexe nas outras duas, motivo pelo qual as políticas de combate à violência pelo aparato estatal sempre fracassam. Como pensar então nessa violência? O caminho passa centralmente sobre a questão da indiferença e da invisibilidade. Para Honneth, um teórico da terceira geração da escola de Frankfurt, a chave dessa questão está no reconhecimento. A partir do momento em que as pessoas começam a ser confinadas em guetos, excluídas do mercado de consumo, excluídas da possibilidade de emprego, excluídas pela cor ou gênero, ou sexualidade, nesse momento uma violência grande está sendo cometida. Não é somente a violência material, de alijar a pessoa do acesso a bens, mas principalmente uma violência simbólica porque, se todo ser humano tem os mesmos direitos assegurados perante a lei, ao reconhe-


Indicações de leitura ASSIS, Machado de. Obras Completas, vol. I, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. Artenova, 1975. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003. LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997

ILUSTRAÇÃO: BRUNA FERENCZ

cer direitos a menos a uma pessoa estou basicamente relegando-a a uma categoria menos humana, ou não humana. Os discursos de ódio, o racismo, a xenofobia e as discriminações de gênero operam sempre nessa rotina. Transformam o alvo do seu ódio em coisa, a coisificação do ser humano, justamente para poder atacá-lo. A literatura tenta correr atrás do fenômeno, compreender, e isso se dá de várias formas. Uma delas é a própria estrutura da obra literária, que tem dificuldades de compreender na totalidade um mundo violento e fragmentado. A literatura, mesmo que não esteja tratando da violência como tema, precisa usar de uma forma violenta, uma linguagem mais agressiva e fragmentária. Decorre daí uma tendência crescente a gêneros menores e fragmentários, micronarrativas, micropoemas, obras que dão conta não da totalidade do problema da violência, mas do esfacelamento do indivíduo frente a ele. Outra forma de lidar com o assunto seria através de romances, como faz Paulo Lins, que busca aprofundar essa temática. Mesmo nesse tipo de obra, vemos a repetição do fenômeno, a fragmentariedade e a violência na linguagem. Essas pistas que a literatura nos dá, incorporando elementos na sua estrutura, ajudam a compreender nosso mundo. Uma obra literária tem várias camadas de leitura, e certas nuances da sociedade estarão sempre presentes. O preconceito é apenas uma delas. Para dar conta da abordagem dessas obras em sala de aula, deve-se considerar a importância de uma boa for-

mação para o professor. Porque não adianta só dar um texto para o aluno ler porque se trata de uma obra importante. É preciso debater. É preciso atualizar e discutir aquilo que está nos livros, seja de um autor recente ou antigo. O trabalho do professor em sala de aula é essencial para a formação do aluno, mais do que o texto. Além disso, quando debatemos um assunto, nos apropriamos dele, tornamos aquilo nosso, vira conhecimento. Uma obra literária só está viva quando ainda consegue suscitar debates significativos no presente. Caso contrário, está morta, destinada apenas ao registro histórico. Dom Casmurro é um bom exemplo nessas mudanças em relação ao gênero. Quando publicado, foi compreendido apenas como a história de um homem que se lamentava sobre sua mulher infiel. Mas estavam lá no livro dezenas de referências a Shakespeare, principalmente a Otelo, que é basicamente uma obra sobre a maldade do ciúme e o comportamento do ciumento. Só mais recentemente, quando pesquisadoras, isto é, mulheres, se debruçaram sobre o tema, é que se pôde mostrar o óbvio, que escapara a décadas de críticas masculinas: Dom Casmurro é um livro sobre o ciúme, sobre o ciúme doentio. Inaugurou-se assim uma forma de abordagem importante para compreendermos Machado de Assis, que parte do narrador não confiável, e que serve para os demais livros do autor. Através do debate, nesse caso, de uma reflexão atualizada sobre os problemas de gênero, podemos lançar novas descobertas e olhares sobre obras do passado, que permitem uma melhor compreensão delas e de nosso próprio tempo presente.

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• Currículo

RENATO ALVES/SINTE/SC

Só a BNCC não resolve o problema da aprendizagem escolar ROBERTO FRANKLIN DE LEÃO Presidente da CNTE, vice-presidente mundial da Internacional da Educação e professor de Artes da rede pública de ensino do Estado de São Paulo

A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), entidade representativa de mais de quatro milhões de trabalhadores/as das escolas públicas de nível básico no país, entre professores, pedagogos/especialistas e funcionários da educação – efetivos e contratados, ativos e aposentados – pauta sua luta social e sindical na defesa dos direitos da categoria, mas também na qualidade social da educação pública, sob os princípios da gratuidade, do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, da laicidade, da diversidade sociocultural, étnica, sexual e de gênero, e da democracia escolar e dos sistemas de ensino, priorizando a ampla participação da comunidade escolar nas decisões das políticas educacionais. Esses princípios de atuação da CNTE são importantes para demarcar a posição da entidade e de suas afiliadas, entre as quais, o Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Rede Pública de Ensino do Estado de Santa Catarina (SINTE/SC), diante de temas que envolvem a profissionalização, o trabalho cotidiano dos/as educadores/as nas escolas públicas e o conteúdo curricular que deve ser definido e posto em prática, em última análise, pelo projeto político-pedagógico (PPP) das escolas. Em relação ao currículo escolar, a CNTE o define como importante instrumento para o processo de emancipação da escola, por meio da qualidade socialmente referenciada da educação, a qual pressupõe vincular a função social da escola aos anseios de sua comunidade, valorizando a construção coletiva dos espaços, tempos e gestão escolar – elementos indispensáveis para a implementação do PPP.

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Antes de adentrar propriamente ao debate da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), é importante enfatizar que significativas contribuições para o currículo das escolas brasileiras (públicas e privadas) já constam de pareceres do Conselho Nacional de Educação – a exemplo das diretrizes para a educação básica e o Ensino Médio, que privilegiam a indissociabilidade da formação humana, científica, cultural e profissional. Outra questão fundamental para qualificar a função social da escola, por meio de currículos emancipadores, diz respeito a pressupostos que conduzam a ações sistêmicas e não apenas focalizadas em uma única política educacional. Daí a necessidade de os sistemas de ensino, pari passu com a discussão do currículo, (i) horizontalizarem o processo de decisão sobre as ações pedagógicas, investindo na gestão democrática das escolas e do Sistema; (ii) valorizarem os profissionais da educação, aplicando o piso salarial nacional numa estrutura de plano de carreira atraente (metas 17 e 18 do Plano Nacional de Educação - PNE); (iii) investirem em condições de trabalho para os profissionais e de aprendizagem para os estudantes, em todas as escolas; (iv) aplicarem corretamente os recursos destinados à educação, à luz dos indicadores de Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) e Custo Aluno Qualidade (CAQ) descritos nas estratégias 20.6 a 20.8 do PNE (Lei 13.005), ainda que em esfera estadual ou municipal; (v) priorizarem o debate escolar sobre a avaliação estudantil e do Sistema, com base nos princípios do art. 11 e nas estratégias 7.3, 7.4 e 7.21 do PNE, criando


“Em suma, a posição da CNTE consiste em não dissociar o debate curricular das condições efetivas das escolas, pois dessas dependem o sucesso das políticas pedagógicas e curriculares.”

mecanismos próprios e democráticos de avaliação da educação e não apenas de determinados segmentos escolares. Os requisitos para a qualidade da educação acima listados são importantes, pois nenhuma teoria educacional, por mais inovadora, democrática e engajada no processo de construção social do conhecimento conseguirá ser processada nas atuais estruturas de nossas escolas. A aprendizagem com qualidade exige conhecimento profundo dos atores escolares e a garantia de insumos indispensáveis à qualidade da educação, que vão da infraestrutura e dos suportes pedagógicos à valorização dos profissionais, que necessitam de formação e condições de trabalho adequadas para implementar a proposta curricular. Em suma, a posição da CNTE consiste em não dissociar o debate curricular das condições efetivas das escolas, pois dessas dependem o sucesso das políticas pedagógicas e curriculares. E essa visão sistêmica deve priorizar ações intencionadas com vistas, por exemplo, a democratizar a escola, fazendo com que o PPP seja a referência máxima de uma gestão composta de conselhos deliberativos e de diretores/as eleitos/as pela comunidade, a fim de que essas estruturas rejam as ações pedagógicas e deem respostas coletivas sobre o desempenho (social) da escola à sua comunidade. Com relação à BNCC, as principais preocupações dos trabalhadores em educação residem no temor desse referencial se transformar em verdadeiro currículo único e mínimo, abdicando do processo de conhecimento criativo, pautado na autonomia escolar e no

respeito à diversidade do povo brasileiro. O currículo mínimo, a pretexto de servir de mecanismo para se atingir melhor padrão de qualidade, enseja um ensino pasteurizado, conteudista, antiplural e antidemocrático, na medida em que retira a autonomia dos sistemas de ensino, das escolas e dos profissionais da educação. Neste sentido, a BNCC não pode se pautar nos conceitos de competências laborativas, que predominam nos atuais currículos escolares, mas sim numa concepção polissêmica e comprometida com a vivência social e a produção de conhecimentos na escola. A CNTE entende que, mais do que um “cardápio” de conteúdos, a BNCC deve orientar a construção de currículos que atraiam a juventude para a escola – sobretudo os 20% de jovens entre 15 e 17 anos que não estudam nem trabalham e os mais de 60 milhões de adultos que não concluíram o Ensino Médio. Essas pessoas precisam enxergar na escola um espaço social de oportunidade efetiva para melhorar suas condições de vida, e a escola pública, que concentra mais de 80% das matrículas no nível básico, deve ser o principal alvo de investimento das políticas do Estado. Portanto, para que os pressupostos defendidos pelos/ as trabalhadores/as em educação sobre a BNCC sejam atingidos, é essencial garantir o debate coletivo e plural desse documento poderoso – algo ameaçado neste momento no país em razão do golpe institucional –, não abrindo mão de conjugar essa política com outras também fundamentais para a elevação da qualidade da educação brasileira com valorização de seus profissionais.

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• Diversidade

É preciso “fazer diferença” na escola pública brasileira PAULO CARRANO

Professor da Faculdade de Educação e dos programas de Pós-Graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) e Cultura e Territorialidades (Mestrado) na Universidade Federal Fluminense, primeiro secretário da ANPEd e pesquisador Cientista do Nosso Estado/FAPERJ

A pergunta provocativa que me fizeram para este artigo é por que existiriam tantas resistências para se tratar de questões relacionadas com a ampla agenda da diversidade na escola. Há uma longa história de tentativas de exclusão da cultura e da história afro-brasileira e ameríndia e das questões de gênero da vida escolar. E, mais recentemente, temos mais um capítulo no ataque às diferenças, incluindo a diferença de pensamento, com a arbitrária Medida Provisória 746/2016 do governo federal, que reformula de forma dualista o Ensino Médio e retira dos currículos as Artes e a Educação Física e deixam na indefinição de uma arbitrária Base Nacional Comum Curricular, ainda não concluída, a oferta de Filosofia e Sociologia.

Na organização dos currículos escolares há uma evidente secundarização do discurso e das práticas relacionadas com as noções de diferença ou diversidade. É um equívoco colocar em disputa o uno e o diverso. Uma das consequências negativas desta falsa polarização é a de nos afastar de um dos mais importantes desafios civilizatórios no Brasil e no mundo de hoje, que é o da convivência entre os diferentes. Se a escola, mas não só ela, não conseguir trabalhar para que possamos dar uma resposta satisfatória à pergunta “podemos viver juntos?”, caminharemos para formas de apartheid social e barbárie contra tudo aquilo que divergir dos padrões dominantes, quer sejam eles expressos pela aparência do corpo ou diferença de pensamento.

A organização do conhecimento na escola brasileira está hoje fortemente orientada para o estabelecimento de “conteúdos universais” que possam ser ensinados e apropriados por todos. No Brasil se disputa o que crianças e adolescentes precisam aprender e o que os professores devem ensinar. Negligencia-se, contudo, o como e em que condições se aprende. Ordenar é sempre mais confortável ao poder do que organizar as condições e dotar as instituições de estruturas para que as comunidades escolares possam organizar as aprendizagens e convivências na base da autonomia e da liberdade. Garantir as condições e proporcionar suportes para que os sujeitos da educação superem seus desafios de ensinar e aprender pressupõe investimentos sociais – estes mesmos que estão sendo congelados por 20 anos em Projeto de Emenda Constitucional (PEC/241) encaminhado ao Congresso pelo governo que emergiu do recente golpe parlamentar de 2016.

Reconhecemos que existem dificuldades com o conceito de diferença na escola porque há uma questão mais ampla no contexto da própria sociedade. Toda vez que estamos diante de um “outro”, colocamos em jogo também nossos próprios valores. Todo valor expressa crenças, convenções e particularidades que adquirimos ao longo da vida. E os valores são significações já estabelecidas em nossos modos de estar no mundo e representá-lo. Assim, não basta afirmar que somos diferentes. É preciso controlar aquilo que nossa percepção informa sobre a diversidade que emerge das aparências e das representações que temos deste “outro” diferente de nós. Isso porque, ao mesmo tempo em que o olho percebe, ele atribui um valor; e, como nos diz Muniz Sodré (1999), o grau de valor social se deduz da aparência. Na vida social, já pela “cara do outro” se intui um valor social e uma atribuição de conduta. O Brasil vive uma verdadeira epidemia de assassinato de

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BRUNA FERENCZ

Devemos controlar aquilo que nossa percepção informa sobre a diversidade que emerge das aparências e das representações que temos deste “outro” diferente de nós jovens negros e moradores das periferias das cidades. A maior letalidade que recai sobre esses jovens é conferida pelo “estigma” de periculosidade e violência que as forças policiais – e, verdade seja dita, as representações sociais coletivas – projetam sobre este grupo populacional. No Brasil, país com o maior índice de assassinatos do mundo, mais da metade dos homicídios tem como alvos jovens entre 15 e 29 anos. Destes, 77% são negros. Ou seja, em cada dez assassinatos de jovens, oito são negros (ANISTIA INTERNACIONAL, 2016). Mas a identidade que atribuímos ao outro é algo em movimento. O preconceito, contudo, é algo que fixa a identidade do outro e se transforma numa forma automatizada e empobrecida de conhecê-lo. Esta ignorância do “outro” realmente existente é também uma exclusão afetiva e intelectual; corpórea, enfim. Somente com a busca de uma verdade não violenta orientada para o diálogo com a diversidade, real e concreta, e não aquela imaginada por nossos valores fixados, é que se pode construir o campo do relacionamento que reconhece o outro em sua inteireza. É comum que pensemos a escola como o lócus da universalidade por excelência. Mas não se deve pensar que existam “conteúdos universais” desprovidos de história. A expansão colonial europeia, que tem seu início no século XVI, criou novo padrão de dominação social expresso na noção de “raça”. Esta foi uma nova chave conceitual, que atualizou a mais antiga das noções de dominação da humanidade, que era o conceito de gênero. E isso significava que toda mulher era, por definição, inferior a todo homem. Até que surge a ideia de raça. A raça classifica “as

gentes” como naturalmente superiores ou inferiores. Daí por diante, toda mulher da “raça superior” passaria a ser considerada superior a todo homem da “raça inferior”. Todo homem branco seria superior a todo homem ou mulher das terras conquistadas – aqueles e aquelas dos povos que por imposição conceitual dos conquistadores viriam a ser chamados de “índios”. A escola democrática não pode se realizar sem enfrentar este debate. Para isso, precisa rejeitar a tese da “neutralidade” do conhecimento. As diferenças escondem relações de poder. É por isso que se torna importante estar atento ao “pluralismo hierárquico”. Ou seja, em muitas situações o discurso da “diversidade” ou do “multiculturalismo” é enganoso e se põe a serviço da ocultação das desigualdades e da manutenção das injustiças. É comum que um discurso apenas elogioso da diversidade abstrata camufle assimetrias entre regiões, classes sociais, cor de pele, gêneros e idades. A adoção pela escola de uma perspectiva que enfrente na prática o diálogo com os grandes temas da diferença (o racismo, as relações de gênero, a violência e o preconceito contra os pobres, os imigrantes, etc.) é um desafio que, bem equacionado, pode fazer com que a escolarização tenha um sentido real no contexto de uma sociedade complexa, diversa e desigual como a brasileira. Referências INTERNACIONAL, Anistia. Jovem Negro Vivo. 2016. Campanha “Queremos ver os jovens vivos”. Disponível em: <https://anistia.org. br/campanhas/jovemnegrovivo/>. Acesso em: 08 out. 2016. SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Rio de Janeiro/petrópolis: Vozes, 1999. 272 p.

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SIMONE MARINHO/SINTE/SC

• Comunicação

MARCIA TIBURI Filósofa, artista plástica, escritora e professora

Contra a barbárie, a radicalidade crítica “Precisamos ter coragem de ocupar a política para fazer política” 20 | PRÁXIS | SINTE - SC | Outubro 2016


“Achei ótimo que Gregório Duvivier tenha falado ‘Fora, Temer!’ na televisão. Não pensemos que isso não abala a cena. Incomodar não é inocente.”

É no momento em que a barbárie se instala que se deve aprofundar a visão crítica, diz a filósofa, artista plástica, professora e escritora Marcia Tiburi nessa entrevista à revista Práxis. O Brasil do momento é um cenário perfeito para exercitar as reflexões da pensadora. Marcia também fala sobre a partidA, definida como “movimento feminista interseccional, que respeite e lute no âmbito da questão racial e de classes também, além do gênero”, a Escola sem partido (que qualifica de “ignominiosa e estúpida”) e a importância da tomada do poder para “impedir que os mesmos de sempre continuem abusando da democracia e do povo”. Para ela, professores e intelectuais desempenham um papel central com esse objetivo.

Diante do quadro político e do clima de ódio, intolerância e incompreensão que vivemos, de que se tem um grande espelho nas redes sociais, dá para dizer que vêm tempos sombrios por aí? Marcia Tiburi - Já estamos vivendo à sombra do capitalismo em sua versão mais antidemocrática, que é o neoliberalismo. Como o neoliberalismo é uma proposta econômica e política antipopular, e também impopular, ele precisa criar adesão de algum modo e o faz por dois caminhos: a produção da ignorância e a sedução barata que substituem opressões mais violentas e anestesiam as pessoas para a produção e o consumo. As redes sociais fazem parte dessa sedução. Muitas pessoas chegam a desenvolver uma espécie de relação existencial com as redes, sobretudo com o facebook, assim como tinham com a televisão há um tempo. Já o que chamamos de ódio e de intolerância não “aparece” ou “comparece” simplesmente nas redes, é gerado nelas. Estamos mergulhados em uma profunda incompreensão quanto ao sentido desses ambientes como meios ou fins. Talvez possamos hoje em dia dizer que vivemos à sombra das redes sociais. Sem lastro político, devido à falta de formação, as pessoas se tornam presas fáceis de todo tipo de mistificação. Em relação ao futuro, com um governo ilegítimo voltado

ao neoliberalismo mais tosco, ao patriarcado, ao colonialismo, não poderemos esperar nada de melhor.

Recentemente, em uma entrevista você abordou a questão das palavras de fachada, como a democracia, a ética. São palavras que não encontram eco nas práticas sociais. Podese dizer o mesmo da liberdade de imprensa, liberdade de expressão, entre outras. Ao mesmo tempo, coloca-se um véu sobre outras, como golpe, desigualdade, e sobre a natureza do próprio sistema que as determina, como se não fizessem parte da vida nacional. Isso contribui para aquela dificuldade de diálogo que compõe o quadro descrito por você no livro Como conversar com um fascista. Como é possível superar a impossibilidade de diálogo em um ambiente tão conturbado? Marcia Tiburi - O diálogo nunca foi fácil e, em momentos históricos como esse que atravessamos, ele é resistência. Agora, há impedimentos radicais em relação aos detentores do poder incapazes de incluir a escuta em sua política. Na verdade, a rigidez cadavérica do poder voltado aos benefícios próprios odeia também a escuta e o diálogo. No meu

livro, pensei o diálogo como resistência subjetiva. Um modo de manter-se vivo como um ser pensante e de posse da própria atenção em tempos em que ela é sequestrada pelos meios de comunicação. De fato, você toca em uma questão seriíssima. Em um livro chamado Olho de Vidro: a televisão e o estado de exceção da imagem, desenvolvi a questão sobre os meios de comunicação como próteses de conhecimento, As pessoas se entregam aos meios, elas acreditam no apresentador de televisão como acreditam no pastor ou no padre. Não há discernimento, não há dúvida. Vivemos em um mundo de verdades absolutas vendidas pelas telas. Certamente, nesse contexto, vence quem administra o discurso verbal ou imagético. A linguagem é, mais do que nunca, o capital.

Somos um sindicato que lida com as questões da educação, às voltas com movimentos como Escola sem partido, avanço do fundamentalismo religioso nas escolas, dificuldade para incluir assuntos considerados proibidos nos currículos, como as questões de gênero. De onde pode vir a reação a esse avanço conservador no curto e médio prazos? Marcia Tiburi - A meu ver, cada professor precisa assumir sua soberania como nunca. De um lado, temos

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que defender a liberdade de cátedra e agir em sua direção. De outro, proponho que os professores em massa ocupem os partidos e candidatem-se em 2018. Temos que mudar esse Congresso. Temos que tomar o poder, que impedir que os mesmos de sempre continuem abusando da democracia e do povo. Talvez minha proposta surja como exagerada, mas é o que penso, que precisamos de uma atitude radical nesse momento. E nada melhor do que trocar a ditadura da ignorância da bancada BBB (boi, Bíblia e bala) pelos professores que são, a meu ver, a massa crítica capaz de fazer um projeto de país. Para isso, precisamos ter coragem de ocupar a política para fazer política. Contra o projeto ignominioso e estúpido que é o Escola sem partido, proponho uma bancada forte de professores e intelectuais no poder a partir de 2018.

Houve um momento em que a crítica da esquerda ao modelo capitalista não deu mais conta das dificuldades de parte das pessoas. Por exemplo, ao incorporar precariamente as questões de gênero e de raça às suas demandas. Atualmente, os antigos condutores das lutas políticas à esquerda estão claramente na defensiva. A realidade atropelou o pensamento que se propunha a não ser conservador? Marcia Tiburi - O que você chama de realidade é o peso do poder que se lança sobre os corpos das vítimas para destruí-los. Isso faz parte da estratégia capitalista. Ela é material e atua sobre corpos e sobre a linguagem, que é uma espécie de corpo-espírito. No Brasil essa estratégia tornou-se literal. Trabalhadores, mulheres, jovens negros, povos indígenas, todos são massacrados por todo tipo de violência, da morte à perda de direitos. Cada vez mais afundamos na barbárie. A meu ver, é nesse momento que o pensamento deve se fazer ainda mais crítico.

SIMONE MARINHO/SINTE/SC

Crítico, analítico, corajoso. Não podemos ceder por medo de machucar, ferir, ou piorar as coisas. Falar a verdade é necessário, com lisura e respeito, mas sem escamotear a situação. Como dizem, “sem tapar o sol com a peneira”.

Urgente para nós é lutar contra a desigualdade de maneira direta, estimulando também a formação de mulheres para a política. É nisso que trabalhamos hoje, além de estimular campanhas. Atualmente há várias candidatas em partidos tradicionais que são candidatas da partidA. A própria Luiza Erundina e Luciana Boiteux, no Rio, são partidA. Há várias candidatas a vereadoras que fazem parte e defendem as propostas básicas da partidA: direitos fundamentais, reformas de base, educação como projeto de país e toda a pauta dos direitos das mulheres voltados ao fim das desigualdades sociais.

Algumas iniciativas tentam dar conta de absorver as demandas da sociedade. Muitas delas, alheias ao âmbito institucional, dos poderes constituídos, da democracia formal. A partidA (proposta de partido das e para as mulheres) é uma dessas iniciativas? Como está? Tem adesão?

Outro dia alguém cobrava do Gregório Duvivier por escrever na Folha de S. Paulo, embora reconhecesse que há outros articulistas que também são críticos da postura do jornal e escrevem nele. Você participou do programa do GNT Saia Justa. Por que chancelar ou legitimar o papel desses veículos, se a voz discordante de sua linha editorial e política será sempre minoritária, e mesmo nula?

Marcia Tiburi - A partidA cresce pelo Brasil afora. Trata-se de um movimento que funciona como partido. Anárquico, sem líder, sem hierarquia, pensamos que, hoje em dia, somos uma espécie de partido clandestino. Somos de algum modo suprapartidárias. Ocupamos partidos atualmente, fazemos campanhas de filiação entre nós e estimulamos as candidaturas. Nossa intenção não é apenas ser um partido para mulheres ou de mulheres. Antes, queremos ser um partido feminista, com uma proposta de democracia radical, ou seja, uma democracia feminista interseccional, que respeite e lute no âmbito da questão racial e de classes também, além do gênero. Talvez venhamos a ser partido algum dia, mas a resposta a essa pergunta não está na linha das nossas urgências.

Marcia Tiburi - Acho que, para a televisão tradicional, e para a mídia tradicional de um modo geral, colocar pessoas críticas em cena é como dar um tiro no pé. Não diminui o poder da crítica, ao contrário. Os críticos ficam no imaginário do povo, que não é bobo. Talvez alguns intelectuais tenham ficado incomodados comigo, mas muita gente aderiu à potência do pensamento que hoje em dia precisa novamente ser apagada. Uma participação dessas não é uma revolução, mas um abalo nas estruturas. Tanto é verdade que, em um momento como esse, esconde-se o que se pode. A televisão manipula descaradamente. Achei ótimo que Gregório Duvivier tenha falado “Fora, Temer!” na televisão na primeira oportunidade que teve. Não pensemos que isso não abala a cena. Incomodar não é inocente.

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ILUSTRAÇÃO: BRUNA FERENCZ


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