Bandeiras PositHIVas

Page 1



Editorial

E

sta edição é especial. Dedicada aos 30 anos do Programa Estadual de Aids-SP e a toda rede de pessoas que compõe a estrutura responsável pela resposta paulista a epidemia: coordenadores dos programas municipais, profissionais da saúde, parceiros institucionais de outras secretarias e universidades, organizações não governamentais, voluntários de diversos campos do conhecimento e pessoas vivendo com HIV/aids (PVHIVA).

Em 1983, ano de criação do Programa Estadual de Aids, muitos profissionais não queriam trabalhar em serviços que atendiam pacientes com quadro suspeito da doença. Na época, não se conhecia seu agente causador, nem todas as suas formas de transmissão. Abrir novos serviços era um trabalho árduo. Aos poucos, as barreiras foram vencidas.

Hoje, em todo o estado estima-se em mais de 10 mil o número de profissionais de saúde que trabalham direta ou indiretamente no campo da aids para dar conta da assistência as PVHIV, da vigilância epidemiológica e de ações de prevenção, diagnóstico precoce, pesquisa, gestão e articulação com a sociedade civil. Contamos com uma vasta rede de serviços de assistência especializada em DST/aids, centros de testagem e aconselhamento, hospitais-dia e de assistência domiciliar terapêutica descentralizados, sob responsabilidade dos municípios. Ressaltamos ainda a importância da participação da atenção básica de saúde na assistência às DST e a realização das ações de prevenção e incentivo à testagem do HIV, além do controle da transmissão vertical do HIV e sífilis. Nas páginas seguintes contaremos um pouco de nossa história: quem fomos, quem somos, quem queremos ser. O que fizemos, fazemos e ainda temos por fazer. Gestores, profissionais, pacientes e ativistas dão seu testemunho do caminho percorrido. Compartilham lembranças e emoções, dificuldades e vitórias.

São muitos os desafios para a quarta década da epidemia. É preciso definir as melhores estratégias para a incorporação das novas tecnologias biomédicas de prevenção como a Profilaxia Pós Exposição (PEP), a Profilaxia Pré Exposição (PreP) e o tratamento como prevenção sem perder de foco a promoção de práticas de sexo seguro. Por outro lado, o aumento do tempo de vida das PVHIV associado a relativa complexidade do seu acompanhamento assistencial demandará investimento adicional e permanente nos serviços que atendem esta população. É sobretudo essencial evitar a banalização da epidemia. Agradecemos a dedicação, a competência e o trabalho incansável de todas as pessoas que compartilham dos ideais preconizados pelo sistema único de saúde, e fazem a diferença no dia a dia de quem vive com DST/HIV/aids. Maria Clara Gianna Coordenadora do Programa Estadual DST/Aids-SP

Artur Kalichman e Rosa de Alencar Souza Coordenadores Adjuntos do Programa Estadual DST/Aids-SP Paulo Roberto Teixeira Primeiro Coordenador do Programa Estadual DST/Aids-SP


Secretário de estado da Saúde David Uip Coordenadoria de Controle de Doenças Marcos Boulos Coordenação do programa estadual DST/aids-Sp Maria Clara gianna Coordenadores adjuntos do programa estadual DST/aids-Sp Artur Kalichman e Rosa de Alencar Souza Conselho editorial (ordem alfabética) Alexandre gonçalves, André Correa, Artur Kalichman, ângela tayra, Denize Lotufo, Emi Shimma , Ivone de paula, Leda jamal, Maria Clara gianna, paulo Roberto teixeira, paulo Mineiro, Rosa de Alencar Souza e Vilma Cervantes edição final Artur Kalichman Emi Shimma Maria Clara gianna paulo Roberto teixeira Rosa de Alencar Souza Jornalista Responsável Emi Shimma MtB 172 346 776/Sp Reportagem e redação Eliane pereira gonçalves Emi Shimma nívea Maria Corrêa de Souza paulo giacomini Sylia Rehder Revisão Suzel tunes projeto gráfico e edição de arte Antonio jader Marques e thaís trindade - Assessoria de Comunicação Secretaria de Estado de Saúde produção de Capa - Denis Delfran - CRt DSt/Aids-Sp fotografia Felipe Andrade Foto Contracapa - Bruno Delfran pereira Bandeiras positHIVas é uma publicação do Centro de Referência e treinamento DSt/Aids-Sp programa Estadual DSt/Aids-Sp Coordenadoria de Controle de Doenças Secretaria de Estado da Saúde-Sp

ISSn 1984-9370


Sumรกrio


4

Programa Estadual DST / Aids - SP

QUEM SOMOS NÓS

o que pensamos, fazemos e sonhamos

N

o início eram poucos. Hoje são milhares. Em 1983, ano de criação do Programa Estadual de Aids, muitos profissionais não queriam trabalhar em serviços que atendiam portadores de HIV. “Na época, não se conhecia o agente causador da doença nem todas as suas formas de transmissão. Esses profissionais manifestavam preconceito e medo de infectarse”, lembra o médico Paulo Roberto Teixeira. “Quem trabalhava com aids também era discriminado”, comenta. À medida que a epidemia crescia, novas providências tornaram-se imprescindíveis. Em 1988, foi criado o Centro de Referência e Treinamento em Aids (CRT-A) , vinculado ao gabinete do Secretário da Saúde. “O CRT tinha como meta prioritária, além da referência técnica, atuar como capacitador e gerador de normas técnicas, com vistas a um processo de descentralização das atividades de prevenção, vigilância e assistência no estado de São Paulo”,

lembra Maria Clara Gianna, coordenadora do Programa Estadual DST/Aids-SP. Era preciso capacitar profissionais, estruturar e supervisionar um número crescente de serviços. Abrir novos serviços era um trabalho árduo. Aos poucos, as barreiras foram vencidas. Em 1983 a maior parte do atendimento era feito pelo Instituto de Infectologia Emílio Ribas e pelo Instituto de Saúde. Hoje, o estado de São Paulo conta com 200 serviços de assistência especializada em DST/aids, 130 centros de testagem e aconselhamento em 95 municípios, 31 hospitais-dia, 26 serviços de assistência domiciliar terapêutica e 580 leitos para portadores de HIV/aids. Se, no começo da epidemia, poucos laboratórios faziam o teste diagnóstico para HIV, hoje ele é realizado por uma extensa rede laboratorial – pública e privada – com assessoria do Instituto Adolfo Lutz, um aliado do Programa Estadual desde 1983.

Na época, não se conhecia o agente causador da doença nem todas as suas formas de transmissão. Esses profissionais manifestavam preconceito e medo de infectar-se (Dr. Paulo Roberto Teixeira)


7

Coordenadores do PE DST / Aids - SP: Artur Kalichman, Maria Clara Gianna e Rosa de Alencar

A notificação de casos de AIDS, realizada inicialmente pelo Centro de Vigilância Epidemiológica da Secretaria da Saúde, expandiu-se ao longo do tempo para os 26 Grupos de Vigilância Epidemiológica do estado. Os pontos de dispensação de medicamentos também foram ampliados. Hoje, o estado conta com 43 polos de distribuição com mais de 159 unidades dispensadoras. “Mais de 80 mil pacientes recebem medicamento antirretroviral e para as doenças oportunistas no estado de São Paulo”, conta Edjane Falcão, da Logística de Medicamentos do CRT DST/Aids-SP. Em todo o estado, estima-se em mais de 10 mil o número de profissionais de saúde que trabalham direta ou indiretamente no campo da aids para dar conta da assistência aos portadores de HIV/aids, da vigilância epidemiológica e de ações de prevenção, diagnóstico precoce, pesquisa, gestão e articulação com a sociedade civil. Se incluirmos as instituições parceiras, o número aumenta. Desde sua criação o Programa Estadual de DST/Aids tem investido em interlocuções e parcerias. “Trabalhamos afinados com a Secretaria da Educação, Justiça, Assistência Social, Administração Penitenciária,

e também com os programas de Saúde da Mulher, Saúde do Homem e Atenção Básica vinculados à Secretaria da Saúde”, conta Ivone de Paula, gerente da área de prevenção. Para manter as diretrizes alinhadas e os diálogos em dia, desde a década de 1990 a coordenação estadual DST/Aids-SP promove reuniões semestrais com os dirigentes dos 145 municípios prioritários e também com a sociedade civil organizada. “É o momento para avaliar e uniformizar as estratégias do estado de São Paulo”, diz Vilma Cervantes, gerente da Área de Planejamento do CRT DST/Aids-SP. Para Maria Clara Gianna, muito foi feito nestes 30 anos, porém, ainda há muito a se fazer. “Estamos o tempo todo construindo, em constante transformação, abertos a novidades e atentos a novas necessidades”, declara. “O aumento de sobrevida das pessoas vivendo com HIV/aids, a complexidade do tratamento e o número crescente de casos, apesar das ações de prevenção, demandarão investimento adicional e permanente nos serviços que atendem esta população”, ressalta Maria Clara. É essencial evitar a banalização da epidemia.


8

GESTORES QUE FAZEM A DIFERENÇA A médica Iris Bandeira Roquim, a psicóloga Ilham El Maerrawi e as enfermeiras Léa Cristina Bagnola e Fátima Regina de Almeida Lima Neves começaram a trabalhar na gestão do Programa de Aids no final da década de 1980. Logo depois vieram a assistente social Tânia Maria Guelpa Clemente, o cirurgião dentista Moisés Taglietta e a enfermeira Eliane Regina Catalano Monteiro, entre outros. Era uma época marcada pelo preconceito e medo em relação à doença. “Muitos médicos não tinham preparo nem interesse em trabalhar nessa área. Tínhamos medo de lidar com o desconhecido, mas o sentimento de cuidar era maior”, lembram Iris e Fátima. Iris, Ilham, Léa, Fátima, Tânia, Moisés e Eliane são, respectivamente, coordenadores municipais DST/Aids de Taboão da Serra, São Vicente, Votuporanga, Ribeirão Preto, Bragança Paulista, Piracicaba e Bauru. “Em 1995, a coordenação era eu. Tínhamos um único SAE (Serviço de Assistência Especializada) e CTA (Centro de Testagem e Aconselhamento)”, conta Fátima. “Hoje, 18

anos depois, temos 4 SAEs, 6 CTAs, sendo um itinerante (unidade móvel), um Centro de Referência e Treinamento e um serviço de Assistência Domiciliar Terapêutica, todos com equipes específicas”, comemora. A dedicação, a competência e o trabalho incansável desses gestores foram fundamentais para a estruturação de serviços de saúde para as pessoas vivendo com HIV/ aids em seus respectivos municípios. Os tempos mudaram, muitas dificuldades foram superadas, outras continuam na pauta do dia: como acessar e trazer a população vulnerável para dentro dos serviços? “O acesso aos grupos vulneráveis numa cidade pequena ou média é difícil”, comenta Léa. “É preciso lutar contra a exclusão, a invisibilidade destes grupos, dentro dos próprios ambientes de trabalho. Os serviços precisam ser mais inclusivos. Envolver e sensibilizar outros profissionais, para além de nossas equipes técnicas, é um desafio permanente”, observam Fátima e Tânia.

DESAFIOS PARA OS PRÓXIMOS ANOS

Fátima Neves, Eliane Monteiro, Iris Roquim, Moisés Taglietta, Ilham El Maerrawi e Léa Bagnola

Os gestores apontam outros aspectos a serem enfrentados na quarta década da epidemia. “Um grande desafio é a incorporação das velhas tecnologias de prevenção (preservativo e gel) e a apropriação das novas (PEP- profilaxia pós-exposição sexual e PrEP- profilaxia pré-exposição) pelos profissionais de saúde e pelos usuários dos nossos serviços”, diz Fátima. Para Léa é preciso também combater o preconceito, capacitar profissionais e melhorar o entrosamento das redes de serviços. “Temos dificuldade imensa em articular profissionais

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


9

e pessoas soropositivas de cidades vizinhas a Votuporanga, em situações que envolvem gestantes HIV e seus bebês, por exemplo”, conta Léa. Há também uma preocupação permanente em relação aos recursos humanos. “É necessário adequar os recursos humanos às reais necessidades dos serviços, em especial às ações de prevenção junto aos grupos de maior vulnerabilidade”, diz Ilham. “É também essencial reivindicar melhores condições e valorização dos serviços de saúde e dos profissionais de saúde”, diz Fátima. Para Moisés é preciso manter a política de financiamento das ações de controle das DST/ Aids, seja para as organizações governamentais, seja para as não governamentais, e recolocar a área como alta prioridade nas agendas do setor de saúde. Estimular o acesso ao diagnóstico precoce como forma de garantir melhor qualidade de vida também está no pacote dos desafios. “Precisamos ampliar cada vez mais o acesso à testagem e ao tratamento precoce”, diz Tânia. “E continuar lutando pela defesa de direitos e garantia de acesso ao tratamento”, completa.

APRENDIZADOS EM TEMPOS DE AIDS O mundo da aids proporcionou a quem trabalha neste campo inúmeras reflexões e aprendizados. “O contato com profissionais do sexo, dependentes químicos, população LGBT e testes anti-HIV colhidos sem autorização do usuário levou-me a refletir sobre a vida, a ética, a sexualidade e também sobre meus valores como mulher, profissional e cidadã. Tive de rever meus valores para poder trabalhar livre dos medos e preconceitos que vinham de minha formação”, diz Léa. “Aprendi muito com os pacientes e suas famílias. Vi nascer, vi morrer. Aprendi o que é compaixão.

Sou conhecida como a Léa da aids”, emenda. Assim como Léa, Tânia e Moisés ampliaram seus horizontes pessoais ao entrar para o mundo da aids. “Nos tornamos pessoas mais tolerantes, aprendemos a nos posicionar no mundo com dignidade e respeito pelo ser humano”, declaram. Além de aprendizados pessoais, os profissionais investiram em capacitação pessoal para dar conta do recado. “Aprendi na prática o que é saúde pública: sua gigantesca importância e seus grandes desafios. Coordenar um Programa me fez optar pela saúde pública. Fiz especialização, mestrado, doutorado. Quero continuar me aprimorando”, relata Ilham. Assim como Ilham, Iris também aprofundou seus conhecimentos específicos. “Fui me aprimorando na área de infectologia. Minha especialização em cirurgia plástica perdeu espaço, mas lembro dela quando preciso fazer preenchimento facial”, diz Iris. Os gestores orgulham-se de pertencer ao Programa Estadual DST/Aids de São Paulo. “São Paulo foi o primeiro estado a organizar a estrutura de serviços, a envolver a sociedade civil, a lutar contra o preconceito e a discriminação e a oferecer um atendimento digno às pessoas vivendo com HIV. Também foi pioneiro no desenvolvimento de políticas e tecnologias de prevenção voltadas às pessoas em contextos de maior vulnerabilidade, além de pesquisas clínicas e comportamentais”, declara Tânia. “Estamos sempre na vanguarda na luta contra a aids, seja na assistência, na prevenção ou na promoção de saúde e de qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV”, orgulham-se Fátima e Moisés. *


10

É PRECISO CAPACITAR E CUIDAR Com a eleição de novos prefeitos nos municípios paulistas em 2012, novos coordenadores municipais de DST/Aids foram nomeados. Para auxiliá-los em sua tarefa, o CRT DST/Aids-SP realizou, em maio deste ano, um Curso de Gestão e Planejamento em DST/Aids para coordenadores com menos de um ano no exercício da função. Para Rosa de Alencar Souza, coordenadora adjunta do Programa Estadual DST/Aids-SP, “a qualificação profissional dos coordenadores municipais de DST/Aids, por meio de conhecimentos e habilidades em gestão, planejamento, monitoramento e avaliação, é fundamental para a qualidade da gestão dos serviços”. O curso abordou temas diversos, desde saúde coletiva a estratégias de comunicação em DST/aids, passando por conceitos básicos de Epidemiologia e Informação em Saúde e articulação com a sociedade civil. A enfermeira Rosemeire Castanha, que assumiu a coordenação do Programa Municipal DST/Aids de Franco da Rocha há 3 meses, participou do curso. “Estou voltando para minha cidade com reflexões e olhar ampliado para dar conta dos desafios que temos pela frente”, declara. A enfermeira Rachel Santana Ramirez, de Marília, há 6 meses no cargo, retorna pra casa mais tranquila do que chegou. “A pouca experiência gera grande ansiedade. Com o respaldo oferecido, a troca de conhecimentos e o estabelecimento de bons vínculos com os demais coordenadores, creio que conseguiremos fazer um bom trabalho”, declara. “Espero atender às expectativas da minha equipe de trabalho”, diz Viviane Lopes Ferreira, enfermeira, do município de Mongaguá, que começou a trabalhar com aids no ano passado.

Fórum de Dirigentes do Programa Estadual DST / Aids -SP

PESQUISA - PERFIL PROFISSIONAL Para conhecer um pouco mais de perto os profissionais que constituem esta ampla rede de atenção às pessoas vivendo com HIV/aids, o CRT DST/Aids-SP iniciou este ano uma pesquisa com objetivo de descrever o perfil profissional dos gestores, interlocutores estaduais e municipais, trabalhadores que atuam na atenção direta a usuários em serviços especializados no atendimento à aids no estado e profissionais que trabalham em ONGs financiadas pelo CRT DST/Aids-SP. A pesquisa deverá ser concluída em 2014. A primeira etapa do estudo foi realizada durante o fórum de dirigentes, em abril deste ano, quando 62 gestores responderam a questionários semiestruturados. Análise preliminar do material coletado indica que na amostra predominam gestores do sexo feminino de nível superior (enfermagem). “Cerca de 50% trabalham na área há menos de 4 anos e 25% desde a década de 1980. Apenas 10% não têm especialização prévia na área”, observa Paulo Seixas, da Gerência de Recursos Humanos. Entre os desafios apontados pelos participantes da pesquisa estão: apoio junto aos gestores municipais, utilização adequada dos recursos financeiros, acesso a populações mais vulneráveis, melhor integração com a rede básica e com serviços especializados, ampliação do quadro de recursos humanos qualificados e educação continuada.

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


Canais de Comunicação

ESCUTA HUMANIZADA

MELHORA A QUALIDADE DO ATENDIMENTO

“D

esculpa. Quero muito falar com você. Mas agora não vai dar”. Era a terceira vez na mesma semana que a Bandeiras Posithivas tentava uma entrevista com a psicóloga Marilda Martins, que trabalha na instituição há 25 anos. A negativa veio acompanhada de uma justificativa: “É que agora estou atendendo uma pessoa que está com dificuldades para receber um medicamento. Posso te ligar mais tarde?” Há 7 anos, Marilda faz parte da equipe do Serviço Disque DST/Aids, canal direto de comunicação entre a população e o CRT DST/Aids-SP. A palavra “disque” pode levar a pensar que se trata de mais um serviço de telemarketing com dezenas de jovens que mal terminaram o ensino médio, equipados com telefones headsets, munidos com um script e treinados para fugir da cobrança de clientes com uma romaria de verbos no gerúndio. Não. Esse não é o Disque DST/Aids. As semelhanças ficam restritas ao nome e ao prefixo do número 0800 16 2550. Enquanto Marilda precisa adiar o fim da jornada de trabalho porque minutos antes recebeu a ligação de uma pessoa que teve o diagnóstico positivo de HIV – o que significou um atendimento de mais de 90 minutos -, em um serviço de telemarketing tradicional o tempo de diálogo entre quem atende e quem é atendido não ultrapassa os 5 minutos (a menos que seja uma ligação para cancelar algum tipo de contrato). O Disque DST/Aids registra, em média, 22 ligações por dia. Já um único atendente no telemarketing cuida de uma média de 74 ligações diárias.

Robson Zamboni, coordenador do Disque Aids do CRT, está no CRT DST/Aids-SP desde 1988, e sintetiza a filosofia do trabalho: “Nossa preocupação é escutar o outro. Escutar as angústias e oferecer orientação”. Para não ter dúvidas, ele é enfático: “Estou falando de escutar. Escutar não é a mesma coisa que ouvir. É comum atendermos pessoas com quadro de depressão, cercadas de angústias e com muito medo. Sem contar casos bem delicados como os de violência sexual”, explica o coordenador, que de tão apaixonado pelo tema também se transformou no guardião das peças de campanha e faz as vezes de anfitrião dos muitos estudantes que visitam o CRT DST/ Aids-SP. O serviço do Disque DST/Aids nasceu com o Programa de Aids de São Paulo. O primeiro programa de combate à aids do país foi inaugurado no dia 5 de setembro de 1983. Nesse dia, 19 pessoas ligaram para o novo serviço para tentar entender que doença era

Quem recorre a nós busca acolhimento, segurança e profissionalismO. (Robson Zamboni)

9


12

aquela. Eram tempos em que a informação era mínima e as dúvidas proliferavam: como reconhecer os sintomas da aids? Como ela passava de uma pessoa para outra? Como evitar? Menos de um mês depois já eram centenas de pessoas telefonando diariamente. Três décadas depois, em uma sociedade cada vez mais imersa em redes sociais da internet, o centenário sistema de telefonia continua sendo uma bela alternativa para quem precisa de informação personalizada, rápida e discreta. O que mudou, de lá para cá, foram as dúvidas. Em 2012, 57% das ligações trataram de dúvidas em relação ao diagnóstico: onde fazer o teste, o que é a janela imunológica e como pegar o resultado. Ao longo do ano foram registradas 5.317 ligações.

Outra mudança é que o telefone deixou de ser meio exclusivo de comunicação. O CRT DST/Aids-SPmantém endereços de email à disposição da população para contato direto com o serviço. O disque-dstaids@crt.saude. sp.gov.br e o duvidasaids@crt.saude.gov.br são monitorados pela equipe do Disque Aids e o contato@crt.saude.sp.gov.br, pela assessoria de imprensa da instituição. Em média chegam 10 mensagens por dia de pessoas querendo tirar dúvidas ou pedindo ajuda. A vantagem dos endereços virtuais é que no reino do www as fronteiras são bem mais tênues. Não raro, a equipe do Disque DST/Aids atende pessoas de outros países. No geral, são brasileiros vivendo no exterior, principalmente no Japão e em Portugal, como uma gestante soropositiva que estava morando no Japão e queria voltar

Marilda Martins, Robson Zamboni e Jucimara Ferreira - Equipe do Serviço Disque DST/Aids

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


13

para o Brasil. Os trâmites foram facilitados com a ajuda do Disque DST/ Aids. Seja no telefone ou pela internet, para Robson é fundamental ter conhecimento e estar seguro em relação à qualidade da informação e orientação fornecidas a quem nos procura. “Quem recorre a nós busca acolhimento, segurança e profissionalismo”.

OUVIDORIA - FOCO NO USUÁRIO

Outro canal que coloca cidadãos, profissionais de saúde e gestores em contato direto é a Ouvidoria. A diferença entre ela e o Disque DST/Aids é o foco. Enquanto o segundo segue esclarecendo dúvidas de quem está do outro lado do mundo, a Ouvidoria é voltada para o usuário do CRT DST/Aids-SP A Ouvidoria está preparada para receber as dúvidas, sugestões e reclamações dos cerca de 9 mil usuários do serviço. Faltou algum medicamento? A demanda é encaminhada. O atendimento não foi adequado? A crítica é registrada. O resultado do exame atrasou? Acionam-se os ouvidores. Não é à toa que ela

Quando as pessoas chegam até aqui é porque passaram por outras áreas e não conseguiram solução. Por isso, é preciso preparo e paciência. (Sérgio Gomes de Oliveira)

fica localizada estrategicamente ao lado da Farmácia no térreo. Sem contar as nove urnas espalhadas por todos os andares da instituição. Além de ocorrências espontâneas – casos mais simples que não chegam a ser registrados –, a Ouvidoria do CRT DST/Aids-SP recebeu 565 demandas em 2012. Dessas, 434 foram reclamações e 85 elogios. A diferença não assusta. Sérgio Gomes de Oliveira, que há quatro anos coordena o serviço, sabe que, apesar de bem-vindos, a Ouvidoria não foi criada para registrar elogios: “Quando as pessoas chegam até aqui é porque passaram por outras áreas e não conseguiram solução. Por isso, é preciso preparo e paciência”. A reflexão vem com a segurança de quem trabalha em um hospital que é tido, em todo o país, como uma referência na qualidade da atenção. Sérgio sabe que o trabalho realizado por ele e sua equipe tem impacto nessa avaliação: “Ninguém melhor do que o usuário para apontar onde estão os problemas”. A cada seis meses, as demandas registradas na Ouvidoria transformam-se em um relatório que vai parar na diretoria do CRT DST/AidsSP e na Ouvidoria da Secretaria de Saúde. São informações preciosas que ajudam a acertar o prumo das áreas que apresentam maiores problemas. A existência de ouvidorias em instituições públicas está prevista em uma lei estadual de 1999. Como a lei não obriga - apenas recomenda a implantação – na prática, a Ouvidoria do CRT DT/Aids-SP é a única especializada em HIV, aids e DST em todo o Estado de São Paulo. Resultado: canaliza críticas e sugestões que seriam destinadas a outros serviços de saúde. “Nós registramos. Não temos como interferir, mas encaminhamos tudo para a instituição responsável”, explica Sérgio. *


14

Pessoas vivendo com HIV/aids

É PRECISO SABER VIVER Coragem e esperança marcam a trajetória de QUEM VIVE COM HIV/aids

Q

uando recebeu o diagnóstico de aids, Hugo Hagstrom, técnico em publicidade, tinha 24 anos. Entrou em pânico. Seu mundo desabou. Durante muito tempo negou a doença. No início da epidemia, há 30 anos, receber o diagnóstico de aids era praticamente uma sentença de morte. A sobrevida era menor que seis meses. O tratamento era paliativo. “Tinha medo de morrer, de sofrer, de fazer os outros sofrerem”, conta Hugo, hoje com 52 anos.

Assim como Hugo, Beto Volpe, Nair Brito e Paulo Marchesan entraram em “choque” quando souberam ser portadores do vírus da aids. “Eu fiz o exame num laboratório privado. Abri no estacionamento, sozinha. Na hora, fiquei sem rumo. Tinha 31 anos”, conta Nair Brito, pedagoga, 52 anos. O publicitário Luiz Alberto Volpe, hoje com 51 anos, recebeu a notícia no final de 1989, estava então com 29. “Passa muita coisa na cabeça, inclusive pensei em suicídio”. A pulsão

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


15

A GRANDE VIRADA

Adesão é mais que tomar remédio: é aceitação do fato de sermos portadores de uma doença crônica, superar os próprios preconceitos. É aderir à vida (Hugo Hagstrom)

de vida foi mais forte. Passado o “choque”, Beto resolveu “viver cada dia como se fosse o último”. Paulo Marchesan, 57 anos, ator e educador, também fez o teste por conta própria, em 1996, aos 40 anos. A princípio, não acreditou no resultado. “Reli milhões de vezes”, conta. Além do desespero, foi invadido por um enorme sentimento de culpa. Pensava: “Só há um fracasso maior que ter aids e ter infectado outras pessoas. Ser pai de uma criança de 12 anos e ter aids. Vivi um tempo avassalado pela culpa judaico-cristã”, conta. Na primeira década da epidemia, a morte civil doía tanto quanto a doença. “As pessoas não morriam só de aids. Muitos amigos morriam de abandono, de tristeza, vergonha, preconceito”, conta Hugo. ”As pessoas não gostam de moribundos. O afastamento dos amigos doía demais”, lembra Beto Volpe.

O fim da década de 1980 trouxe esperanças concretas. Em 1987 surgiu o AZT. Este começou a ser distribuído pelo Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP em 1989. Outras drogas mais potentes surgiram ao longo da década de 1990. Nair, que havia se tornado ativista depois da descoberta de seu status sorológico, entrou em contato com amigas que usavam os novos medicamentos durante a Conferência Mundial de Aids de 1996, realizada em Vancouver, Canadá. No retorno ao Brasil, por meio da advogada Áurea Abbade, fundadora da primeira ONG/Aids do país, ela reivindicou na justiça seu direito ao Saquinavir, na época um novo inibidor de protease. Nair encontrava-se internada no Hospital Emílio Ribas, sem forças nem para falar. Áurea levou-lhe um pacote com os medicamentos, após ganhar a decisão judicial. “Naquele dia, voltei a ter esperanças”, lembra. Começava ali um novo capítulo da história da aids no Brasil. Com o início da terapia combinada e distribuição universal dos medicamentos antirretrovirais pelo SUS, em 1996, o panorama da aids mudou radicalmente. Em 1995 foram notificados no Estado de São Paulo 7.739 óbitos. Já em 2011, 3.006: uma queda de 60%. Com a chegada dos ARV, milhares de portadores de HIV/aids recuperaram sua saúde e qualidade de vida. No caso de Beto, assim como os ARV, a internet chegou para revolucionar sua vida. Foi nas salas de batepapo que Beto encontrou outros soropositivos. Sim, existiam pessoas que estavam vivendo situação semelhante à dele. “Compartilhar essas histórias foi essencial para melhorar meu quadro clínico e psicológico”, diz. Em 1999, ele criou a ONG Hipupiara, que dá suporte aos portadores do HIV e combate a epidemia em São Vicente, litoral de São Paulo.


16

Os novos medicamentos não impediram Beto e Hugo de adoecer gravemente. Estiveram internados várias vezes. “Com tantas idas e vindas, o hospital acabou sendo apelidado, carinhosamente, de hotel. Em 1996 fui considerado paciente terminal. Eu ainda estou por aqui”, conta Beto Volpe. Hugo adoeceu em parte por dificuldade na adesão aos antirretrovirais. Em 1996, em uma das internações, ele ficou mais de cem dias hospitalizado. “Em vários momentos quis morrer, mas a energia dos profissionais - médicos, enfermeiros, faxineiros - que cuidavam de mim era maior, e ela prevaleceu e me fez voltar à vida”, lembra Hugo. Depois dessa internação, Hugo tornouse aderente aos ARV. “Adesão é mais que tomar remédio: é aceitação do fato de sermos portadores de uma doença crônica, superar os próprios preconceitos. É aderir à vida”, declara Hugo, que participou do Grupo de Adesão do CRT DST/Aids-SP e, desde 1998, faz parte do Grupo de Incentivo à Vida.

Ao fazer uma retrospectiva, Hugo avalia que a qualidade de vida de quem vive com HIV/aids hoje é muito boa. Porém, não é simples. “Envolve uma rotina de consultas médicas, exames e disciplina para tomar todos os medicamentos, além de encarar efeitos colaterais dos ARV, como a lipodistrofia”, diz. Hoje, os portadores de HIV/aids contam com 20 tipos diferentes de medicamentos disponibilizados na rede pública de saúde. Ao longo do tempo, graças a campanhas educativas, o preconceito em relação às pessoas vivendo com HIV/aids foi reduzido, mas não eliminado. Como no passado, continua sendo angustiante revelar o diagnóstico “Foi difícil contar para as pessoas. Aos poucos, um amigo aqui, um casal conhecido ali. Mas, um dia, chegou a vez da família, do filho. Tentei esconder do menino, mas a ex-mulher deu um ultimato, contei. Somos grandes parceiros de vida”, lembra Paulo Marchesan.

Foi difícil contar para as pessoas. Aos poucos, um amigo aqui, um casal conhecido ali. Mas, um dia, chegou a vez da família, do filho. (Paulo Marchesan)

Paulo Marchesan e a esposa Nancy

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


15

A VIDA E A LUTA CONTINUAM Nos últimos anos, Beto Volpe enfrentou muitos percalços em seu caminho: osteonecrose, linfoma, sessões de quimio e radioterapias, a morte do irmão caçula que tanto o apoiou, isquemia, H1N1. Não é pouco, mas não foi suficiente para abalar sua vontade de viver. “Acho que o destino não é uma fatalidade. Ele pode ser mudado por nossas atitudes de cada dia. Passei por muita coisa, hoje eu me amo mais, me sinto mais seguro e pleno”, declara. “Aceitei o HIV e o fato de ser uma pessoa que vive com HIV/aids”, diz. “Passei por momentos difíceis, de solidão, insegurança, quase resignado a um futuro sem amor. Queria ser amado pelo que sou”, conta Paulo. Ele não desistiu e soube esperar. Valeu a pena. Em 1997, conheceu Nancy na sala de espera do CRT DST/Aids-SP. Nancy descobrira ser portadora do vírus HIV aos 36 anos, em 1996. “Não fiquei com medo do vírus. Meu maior medo era não encontrar um grande amor”, diz. Paulo e Nancy estão juntos desde então, há 16 anos. Desde 2002, vivem em um sítio em Aiuruoca, sul de Minas. O casal vem a São Paulo regularmente para as consultas médicas. “O que mais queremos da vida é saúde”, declaram. Hugo considera-se uma pessoa bem resolvida com o HIV/aids. Tem um companheiro há 10 anos, está há três anos na diretoria do Grupo de Incentivo à Vida e administra sua loja de artesanato, inaugurada em janeiro de 2012, em Higienópolis, São Paulo. Nair tem dedicado sua agenda e sua vida à causa da aids. Realizou durante muitos anos consultorias para as três esferas de governo (federal, estadual e municipal) e hoje é consultora do Programa de Aids das Nações Unidas para países de língua portuguesa. “Participo da construção de políticas públicas para aids voltada às mulheres”, conta. “Enquanto a cura não vem, é preciso garantir dignidade e qualidade de vida das pessoas que vivem com HIV/aids”, conclui.

Enquanto a cura não vem, é preciso garantir dignidade e qualidade de vida das pessoas que vivem com HIV/aids. (Nair Brito)


18

A CAMINHO DA ELIMINAÇÃO DA TRANSMISSÃO VERTICAL Rosana Garcia, 26 anos, nasceu com HIV. Não conheceu seus pais biológicos. Quando tinha sete anos, sua pediatra, autorizada pela mãe adotiva, revelou seu diagnóstico. Rosana já desconfiava que havia algo de errado com sua saúde. Sua infância fora marcada por idas e vindas a hospitais. Apesar disso, ela nunca deixou de alimentar seus sonhos: crescer, estudar, casar e ter filhos. Em 2011, Rosana conheceu o marido, também soropositivo. Ambos encontravam-se internados. “Os funcionários sugeriram que eu conversasse com ele, em uma tentativa de encorajá-lo a aderir à medicação”, conta. Conversa vai, conversa vem, dali a um mês começaram a namorar. Em 25 de novembro de 2012 Rosana casou-se e, claro, convidou para a festa os “cupidos” do CRT DST/Aids-SP. A aids deixou várias seqüelas na vida de Rosana. “Perdi parte da visão do olho direito por conta do citomegalovírus e meu corpo apresenta sinais de lipodistrofia”, conta. Hoje ela e o marido mantêm um pacto de adesão. “Tomamos o remédio no mesmo horário. Ele faz parte da minha alimentação, da minha vida”, diz. Rosana inclui-se entre os 5.114 casos de aids por transmissão vertical (mãe para filho) registrados entre 1984 e 30 de junho de 2012. Atualmente,mais de 3.700 crianças e jovens vivem com aids no estado de São Paulo. “Queremos eliminar a transmissão vertical até 2015”, declara a médica Luiza Matida, que coordena a área de prevenção e eliminação do HIV e sífilis congênita no CRT DST/Aids-SP. A testagem no pré-natal, profilaxia com antirretrovirais durante a gestação, AZT para a parturiente infectada e seu bebê, indicação da melhor via de parto e não amamentação são medidas simples que previnem a infecção vertical do HIV. Hoje, o estado de São Paulo tem um dos menores índices do mundo de

transmissão vertical: apenas 2,7% dos bebês nascidos de mães soropositivas são infectados pelo vírus. Assim como Rosana, Jaqueline Lima, 23, descobriu ainda criança que era soropositiva, infectada por transmissão vertical. Até os sete anos de idade, Jaqueline perambulou com a mãe e o irmão pelas ruas de Campinas. Foi adotada por uma tia. Aos 10 anos soube de seu diagnóstico. “Foi muito difícil encarar essa realidade. É difícil tomar medicamento para o resto da vida”, observa. Como toda jovem, Jaqueline começou a namorar e transar - sempre com preservativo. Um dos namorados quis ter filhos. Ela resistiu, mas acabou concordando. Durante a gestação teve total apoio de seu médico e equipe que a assiste. “Aos poucos, perdi o medo do bebê nascer soropositivo”, diz. Jaqueline vive e trabalha em Jundiaí. “Meu filho hoje tem três anos, não tem HIV. É uma criança inteligente, carinhosa e brincalhona”, conta. “Ele é minha vitória! É também uma vitória da equipe que cuida de mim”, conclui. *

Luiza Matida: em busca da eliminação da transmissão vertical do HIV e Sífilis

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


Artigo

O ESTADO DE SÃO PAULO E A RESPOSTA NACIONAL À EPIDEMIA DA AIDS Pedro Chequer

U

ma análise retrospectiva dos fatos leva-nos a constatar que a resposta brasileira no campo da aids fundamentou-se no pioneirismo e experiência do Programa do Estado de São Paulo. Já em 1983, enquanto o nível federal discutia se a aids viria mesmo a ser um problema de saúde pública, o Estado de São Paulo, sob a gestão de Franco Montoro e João Yunes, aliada à diretriz técnica e liderança de Paulo Roberto Teixeira, tomava a decisão política de criar uma área programática para construir uma política pública com base científica e parâmetros técnicos a fim de fazer frente ao novo agravo de saúde. Isto ocorre num cenário em que a formulação de normas, diretrizes e modi operandi era uma árdua tarefa, dada a precariedade de experiências congêneres e incertezas no meio científico. São inúmeros os exemplos que serviram de referência para a formulação da política nacional. Dentre as experiências bem sucedidas que se fizeram presentes desde o primeiro momento, registra-se a construção de políticas públicas baseadas em evidência, e com ampla participação da sociedade, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e afetados pela doença. Estas duas referências passaram a ser a pedra angular no estabelecimento das políticas públicas em nível nacional e se mantiveram ao longo do tempo, qualificando e marcando a resposta brasileira. Também na área de tratamento, o Programa Estadual DST/Aids-SP foi uma das primeiras referências, servindo de campo de capacitação e treinamento para as demais unidades federadas, dada a expertise rapidamente acumulada. Com o decorrer do tempo, registra-se na grande maioria das unidades federadas, reflexo possivelmente do cenário nacional, um desnivelamento da prioridade política da área de aids. Este cenário não se observa de modo tão adverso em São Paulo, cuja agenda política ainda circunscreve a aids como uma das prioridades estabelecidas. São 30 anos de dedicação de servidores públicos que se mantêm fiéis à fundamentação científica e função do Estado como regulador e promotor das políticas de saúde e implementação do SUS segundo parâmetros constitucionais. Esperamos que, na adversidade do cenário atual, este perfil se mantenha e contribua para o resgate da política nacional de HIV/aids. *

19


20

Profissionais de Saúde

O SER HUMANO, ACIMA DE TUDO

Equipes mULTIPROFISSIONAIS CUIDAM DA SAÚDE INTEGRAL DE PESSOAS VIVENDO COM HIV / AIDS

A

s grades nas janelas do prédio de número 122 da Rua Antônio Carlos, centro de São Paulo, são marcas deixadas pela aids. O lugar foi escolhido, em 1988, para abrigar o recém-criado Centro de Referência e Treinamento em Aids. As grades chegaram pouco tempo depois e tinham um objetivo: evitar suicídios. Anna Luiza Placo lembra-se bem de quando elas foram instaladas: “Era uma época de desespero”. Anna entrou para o CRT para ajudar a montar o primeiro laboratório de análises clínicas da unidade. “Para não ter dúvida do resultado, repetíamos o exame várias vezes. Era difícil

Nossa energia era voltada para dar conforto às pessoas e tratar as infecções oportunistas enquanto aguardávamos o surgimento de medicamentos. (Denize Lotufo)

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


21

convencer os profissionais no laboratório a assinar os laudos com um diagnóstico positivo para HIV. Era como assinar um atestado de óbito”. Até a descoberta dos antirretrovirais, a sobrevida média de pacientes com aids não chegava a seis meses. A proximidade com a morte moldou práticas profissionais. No lugar de lutar contra o fim, o foco era cuidar da vida: “Nossa energia era voltada para dar conforto às pessoas e tratar as infecções oportunistas enquanto aguardávamos o surgimento de medicamentos”, lembra a infectologista Denize Lotufo. Os profissionais que atenderam os primeiros pacientes de aids também tiveram que aprender a lidar com o medo. A psicóloga Elvira Maria Filipe entrou para o Programa Estadual de DST e Aids em 1985. Era responsável pelo atendimento psicológico do ambulatório, da internação e da clínica e lembra-se da insegurança provocada pelo desconhecimento sobre as formas de transmissão e como isso se traduzia em equipamentos de segurança: “Era máscara, gorro e avental até o pé. Parecíamos astronautas quando entrávamos no quarto de um paciente”. O caldeirão de desafios impostos pela aids não ficaria completo sem a discussão sobre preconceito e discriminação. De uma hora para outra os profissionais de saúde passaram a lidar com pessoas que até então viviam em guetos e eram mantidas à margem: homo e transexuais, usuários de drogas, profissionais do sexo... “De repente, nos deparamos com realidades e comportamentos que não sabíamos que existiam. Ninguém falava de homem que faz sexo com homem. Era um tabu. Foi preciso aprender a lidar com as diferenças”, lembra a infectologista Marinella Della Negra, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, que se tornou referência no tratamento de crianças e adolescentes com aids. “Hoje, o mundo é muito diferente do que era há 30 anos, muito dessa mudança deveu-se à aids ”, declara.

Elvira Maria Filipe - psicóloga

Outra veterana da infectologia em aids, Rosana Del Bianco, estava no terceiro ano de residência na terapia intensiva do Emílio Ribas quando atendeu o primeiro paciente com aids. Para ela o mais marcante foi compreender, na pele, a dimensão da desinformação, do medo e do estigma que seus primeiros pacientes enfrentavam: “Até os médicos que trabalhavam com aids eram vítimas de preconceito. As pessoas me evitavam, tinham medo de mim”, lembra. ‘”Nos sentíamos impotentes, era difícil lidar com a morte praticamente todos os dias”, observa o enfermeiro José Reinaldo da Piedade, há 25 anos no CRT DST/Aids-SP. “Era difícil, perdi dois pacientes por suicídio. As histórias dos pacientes tocam a gente”, declara a assistente social Zilfa Domingues, no CRT desde 1987. Leila tinha 21 anos em 1988, quando começou a trabalhar no CRT DST/Aids-SP. Por um breve período, foi responsável pela


20

recepção da pediatria. Nessa época, a futura administradora hospitalar levava doces para as crianças sem imaginar que chocolates pudessem atrapalhar o exame clínico. Foi assim que cativou o pequeno Victor Hugo. “A mãe só conseguia trazê-lo para cá porque dizia que ‘era uma visita para a tia Leila’”. Quando se lembra dos últimos dias do menino, traduz o aprendizado de 25 anos de trabalho: “Eu vi o sofrimento das pessoas, eu vivi a história, aprendi muito. O que mudou nesses anos todos? Mudei a forma de ver a vida”, explica Leila.

A revolução tecnológica

Após a introdução da terapia combinada, a partir de 1996, a aids passou a ganhar contornos de uma doença crônica. A expectativa média de vida das pessoas pulou dos pouco mais de cinco meses para 58 meses. As expressões “aumento da sobrevida” e “redução da taxa de óbito” tornaram-se cada vez mais presentes na rotina. Para Denize Lotufo, o Brasil vive uma situação privilegiada: “Contamos com todos os antirretrovirais disponíveis. O mais recente passou a ser adquirido pelo Ministério da Saúde em 2013. Isso dá uma tranquilidade. Quando o tratamento do paciente não está dando certo, temos possibilidades de resgate”, declara. São esses recursos que ajudam a explicar a presença de um número cada vez maior de pacientes que vêm sendo acompanhados há mais de duas décadas por serviços como o CRT DST/Aids-SP e o Emílio Ribas. A incorporação de novas tecnologias aconteceu em todas as frentes: dos medicamentos aos prontuários, passando pelos laboratórios. Nesses últimos, o diagnóstico ficou cada vez mais preciso e mais rápido. “Com o passar dos anos, os exames foram se tornando mais sensíveis, diminuíram os prazos de janela imunológica e os exames foram automatizados. Caíram as chances de erro de transcrição. Antes, esses dados

eram registrados um a um em grandes livros pretos”, comenta Anna Placco. A médica Luciana Kondo chegou ao CRT DST/Aids-SP em 2005 e, quando vai falar sobre os avanços, lança mão de dados objetivos, como queda da mortalidade. Mas o mais interessante é ouvir a diretora da internação falar sobre outra tecnologia: “Trabalhamos com uma equipe multidisciplinar bastante coesa, que cuida do paciente como um todo. Quando ele [o paciente] chega, sabe que o tratamento vai ser diferenciado. Não vamos tratar só a doença. Não adianta cuidar só da ‘pneumonia’. Se não lidarmos com o paciente como um todo, amanhã ele vai abandonar a medicação. Poder contar com assistentes sociais, psicólogos e fisioterapeutas, além dos médicos e enfermeiros, é um diferencial em relação às outras instituições”.

Luciana Kondo - Diretora do Núcleo de Internação do CRT DST / Aids


23

Anna Placco - Biologista do laboratório do CRT DST / Aids

Desafios de ontem, hoje e amanhã O regime de trabalho de Marcos Brasiliense é de 12 por 36 horas. Dia sim, dia não, o motorista prepara a van do CRT que leva a equipe de Atendimento Domiciliar Terapêutico Paliativo (ADTP) à casa dos pacientes que não conseguem mais ir ao serviço de saúde. Marcos sabe o que cabe à equipe: “Cuidar do paciente e dar suporte para sua família. Eles se sentem mais fortalecidos”. Os pacientes atendidos estão sob cuidados paliativos, ou seja, têm aids há algum tempo. “Geralmente, são pacientes com CD4 baixíssimo e que apresentam várias comorbidades. São problemas ortopédicos, neurológicos, doenças de idosos. Lidamos com pessoas de 40 anos com problemas equivalentes a uma de 70”, explica Rosângela Martins Conceição, coordenadora da ADTP. “A aids passa a ser um diagnóstico secundário. O profissional precisa estar preparado para esse trabalho, que envolve, além do cuidado, perdas e lutos”, conclui. Em julho de 2013,

30 pacientes eram acompanhados pelo atendimento domiciliar paliativo. Em média, a cada ano, morrem cerca de 11 mil pessoas por aids no Brasil. Destas, pouco mais de 3 mil no estado de São Paulo. De forma geral, cerca de 40% desses óbitos poderiam ser evitados se as pessoas começassem a fazer o tratamento na hora certa. Em São Paulo, cerca de 9% das pessoas que iniciam o tratamento morrem nos primeiros 20 dias, justamente porque começam a tomar os medicamentos quando já estão com graves comprometimentos clínicos. Ou seja, para um a cada dez pacientes, os benefícios dos antirretrovirais ainda não estão acessíveis. Na busca por solução, o Programa Estadual de DST e Aids de São Paulo promove campanhas de estímulo ao diagnóstico. Entre 2008 e 2012, a campanha Fique Sabendo, que convida as pessoas a conhecerem seu status sorológico, realizou um total de 843 mil testes.


24

A expectativa é realizar, até o final de 2013, um milhão de exames no estado de São Paulo. Para Karina Wolffenbüttel, coordenadora do projeto Fique Sabendo, “tem sido um grande desafio sensibilizar a população mais vulnerável a realizar o teste”, diz. Se por um lado é preciso aumentar a testagem, dar o resultado - em especial quando este é “reagente” - não é simples. Para Judit Busanello, diretora do Centro de Testagem e Aconselhamento do CRT DST/ Aids-SP, “é difícil dizer para a pessoa que ela tem o vírus. Demanda muita energia psíquica e emocional, além de capacidade de acolhimento”. A adesão ao tratamento é outro desafio que vem tirando o sono dos profissionais. Segundo dados da Coorte Brasil, pesquisa multicêntrica que analisa a toxicidade dos antirretrovirais, sob coordenação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, mais de 40%

dos casos de falha terapêutica estão ligados a intolerância e efeitos adversos. Para Denize Lotufo a maior preocupação são os jovens: “Tenho pacientes jovens, que não estão conseguindo tomar o medicamento. A cada consulta, ficamos nos perguntando o que estamos fazendo de errado“. Há quase três décadas, a prevenção da aids no Brasil tem uma política clara: a camisinha é a melhor forma de evitar a transmissão do HIV. O banner instalado no corredor do ambulatório do CRT DST/Aids-SP repete o velho mantra, mas mostra que já existem alternativas para quem não conseguiu usar o preservativo. Abaixo da imagem de uma pilha de comprimidos aparece o seguinte texto: “PEP. Profilaxia Pós-Exposição. Aqui tem!”. O texto segue em tom mais didático: “Se você viveu uma situação de risco, a camisinha se rompeu durante a relação sexual, fale conosco. A PEP é um recurso para você se prevenir do HIV/aids”. Como o nome diz, PEP é a prevenção feita depois que a pessoa se expôs ao HIV. A tecnologia consiste em usar os antirretrovirais para evitar que o vírus se instale no organismo.

é difícil dizer para a pessoa que ela tem o vírus. Demanda muita energia psíquica e emocional, além de capacidade de acolhimento. (Judit Busanello)

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


25

O recurso já era adotado há alguns anos para casos de acidentes de trabalho. Depois, foi ampliado para a prevenção da infecção em casos de violência sexual e, agora, começa a ser adotado como uma alternativa para todas as pessoas que se veem, por algum motivo em uma situação de risco. Trata-se de um procedimento de urgência e o ideal é começar o tratamento até 2 horas depois da exposição e no máximo 72 horas depois. Quanto mais cedo, mais eficaz será o tratamento. Outra tecnologia que no futuro pode ser incorporada à política de prevenção é a PrEP, a Profilaxia Pré-Exposição. Como a PEP, ela também lança mão dos antirretrovirais para evitar a infecção, mas nesse caso os medicamentos são tomados antes da provável

exposição ao HIV. A eficácia da PrEP ainda está sendo avaliada. Um estudo que acompanha 2.499 homens que fazem sexo com homens em seis países (incluindo o Brasil) mostrou que, com boa adesão aos medicamentos, a PrEP chega a alcançar até 96% de eficácia. Índice muito semelhante ao da eficácia do uso consistente do preservativo. As novas tecnologias que aos poucos vão sendo incorporadas à prevenção parecem sinalizar uma nova etapa na resposta à epidemia. “Sabemos que hoje as pessoas com aids têm mais qualidade de vida, que as pessoas podem viver com o HIV. Mas não dá para fingir que não existe sofrimento”, reflete Judith no intervalo entre um aconselhamento e outro. “Espero que o resultado do HIV nunca seja banalizado”. *

AMBULATÓRIO DE SAÚDE INTEGRAL PARA TRAVESTIS E TRANSEXUAIS PORTA ABERTA ÀS POPULAÇÕES MAIS VULNERÁVEIS Elegante em seus tailleurs bem cortados, brincos enormes e saltos altíssimos, Brenda Lee não passava despercebida quando chegava ao CRT buscando ajuda para algum paciente que trazia no colo. A travesti e ativista fez história ao romper preconceitos e distribuir solidariedade ao criar a primeira casa de apoio para pessoas com aids. O primeiro paciente do Palácio das Princesas – como era conhecido o local – chegou em 1984. Em menos de um ano, a casa acolhia 40 pessoas. Nesse tempo, a aids ainda era a “peste gay” e as pessoas eram rejeitadas até mesmo pela família. Brenda Lee era tida como um anjo da guarda das travestis. Junho de 2009. É inaugurado, no CRT

DST/Aids-SP, o primeiro serviço público de saúde do país voltado à saúde integral para travestis e transexuais. Urologia, proctologia, endocrinologia, implantes de próteses de silicone e cirurgias de mudança de sexo integram a gama de atendimentos. O foco está nas especificidades da população. A semente da tolerância plantada 25 anos atrás rendeu frutos e novos desafios: institucionalizar a adoção do nome social no cartão SUS, descentralizar esse tipo de serviço, capacitar profissionais de saúde para que eles aprendam a lidar com a diversidade e não reproduzam preconceitos são os próximos passos.


26

Vigilância Epidemiológica

INFORMAÇÃO ESTRATÉGICA os sistemas de notificação que orientam as políticas de assistência e prevenção DA aids

E

m 17 de julho de 1983, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo determinou que os casos suspeitos e diagnosticados de aids deveriam ser notificados compulsoriamente ao serviço de Vigilância Epidemiológica, por caracterizar um agravo inusitado à saúde. “As notificações começaram a ser realizadas imediatamente e eram feitas por meio de entrevistas pessoais nos consultórios e hospitais”, lembra Paulo Roberto Teixeira, na época diretor do Programa de Aids de São Paulo. “Os médicos resistiam bastante para notificar”, comenta a dermatologista e sanitarista Luiza Keiko, responsável pela vigilância naquela época. No Brasil, a aids tornou-se doença de notificação compulsória por meio da Portaria do Ministério da Saúde nº542, de 24 de dezembro de 1986. Maria Clara Gianna, atual coordenadora do Programa Estadual DST/Aids-SP, fazia residência no serviço de vigilância, em 1987, e entrevistava os pacientes para notificação. “Procurávamos pistas para identificar as formas de transmissão da doença”, relata. “Foi ali, conversando com os pacientes, é que tive certeza de que queria trabalhar com aids”, diz. Com o número de casos aumentando, chegou um momento em que a entrevista pessoal tornou-se inviável. As notificações passaram a ser feitas utilizando informações de prontuários médicos. Nesse momento, a jovem pediatra e sanitarista recém-chegada ao Centro de Informações de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde, Carmen Sílvia Bruniera Domingues, junto com a equipe que constituía o serviço de vigilância, em 1987, elaborou a primeira base informatizada de dados para

registrar os casos de aids no país. Ainda em 1987, iniciou-se a investigação e notificação dos óbitos por aids registrados no Serviço Funerário do Município de São Paulo. Rapidamente o sistema de vigilância em aids cresceu, expandiu-se para outros municípios e foi gradativamente aprimorado. O médico Artur Kalichman, atual coordenador adjunto do Programa Estadual DST/Aids-SP, começou a trabalhar no serviço de vigilância em 1988, na ampliação dos serviços de notificação. “Eu viajava pelo estado para ajudar a organizar serviços e ações de vigilância”, lembra Kalichman. No início da epidemia a notificação era coordenada pelo Centro de Informações de Saúde. Em 1988 passou para o Centro de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde, que delegou em 1995 o trabalho ao Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP, onde permanece até hoje.

NOTIFICAR É PRECISO

Como outros agravos, os casos de aids fazem parte da Lista de Doenças de Notificação Compulsória (LDNC) e são incluídos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Os dados são revisados (retirada de duplicidade, casos descartados, inconsistências) e analisados. O envio das notificações para o nível federal segue um fluxo já estabelecido. As vigilâncias municipais, regionais, estaduais e nacionais têm a responsabilidade de analisar, consolidar e divulgar as informações geradas pelo Sistema de Vigilância Epidemiológica (SVE).

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


27

“A equipe de vigilância epidemiológica do Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo trabalha praticamente seis meses na produção do boletim epidemiológico anual”, relata Ângela Tayra, gerente do Serviço de Vigilância Epidemiológica do CRT DST/Aids-SP. “As informações produzidas, além de permitir o monitoramento de indicadores presentes no pacto pela saúde, também subsidiam as ações de controle e prevenção das DST/aids no Estado”, explica Angela Tayra. A notificação dos casos ocorre por meio da “vigilância passiva e/ou ativa”. “A vigilância passiva baseia-se na notificação espontânea pelos serviços que identificam os casos. Esta apresenta um maior risco de subnotificação, pois depende da iniciativa dos profissionais e serviços”, explica Mariza Vono Tancredi. “Já a ativa é realizada por meio de consultas a

prontuários médicos, visitas a serviços de saúde e comunidades e pesquisa de outros meios que possibilitem identificar casos que porventura possam não ter sido notificados”, continua. “A vigilância ativa de casos é uma das principais estratégias para a redução da subnotificação. A existência de vários sistemas de informação em saúde e o estabelecimento de fluxos com laboratórios contribui para a busca ativa e aumento da captação de casos”, declara Ângela Tayra. Além do sistema de notificação de casos, outras fontes desenvolvidas pelo Ministério da Saúde são usadas na rotina da vigilância epidemiológica de HIV e aids. O Sistema de Controle de Exames Laboratoriais (SISCEL) monitora os procedimentos de contagem de linfócitos T CD4+/CD8+ e de quantificação da carga

Carmen Domingues, Ângela Tayra e Mariza Tancredi - Serviço de Vigilância Epidemiológica do CRT DST/Aids


26

A existência de vários sistemas de informação em saúde e o estabelecimento de fluxos com laboratórios contribui para a busca ativa e aumento da captação de casos. (Ângela Tayra)

viral do HIV, para avaliação de indicação de tratamento e monitoramento de pacientes em terapia antirretroviral (TARV). Por meio deste sistema, é possível captar os pacientes com T CD4+ abaixo de 350 células/mm³ (o que caracteriza o caso aids no Brasil) que ainda não foram notificados no SINAN. Por sua vez, o Sistema de Controle Logístico de Medicamentos (SICLOM) realiza a gestão dos medicamentos antirretrovirais e, da mesma forma que o SISCEL, permite identificar pessoas em TARV que ainda não foram notificadas no SINAN. Já o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) , criado em 1976 a partir do modelo padronizado da Declaração de Óbito (DO) e implantado em todo território nacional 3m 2000 (Nota da revisão: não entendi, é uma sigla?), fornece subsídios para traçar o perfil de mortalidade no país. “Casos de aids que evoluíram para o óbito e que não foram notificados no SINAN podem ser resgatados através do SIM”, explica Carmen Domingues. No estado de São Paulo a vigilância do HIV/aids utiliza também o sistema de mortalidade da Fundação SEADE, para reduzir a subnotificação, atualizar e completar as informações de casos de aids.

O Sistema de Informações Hospitalares (SIH) apresenta informações relativas às principais causas de internações no Brasil, aos procedimentos mais frequentes realizados mensalmente em cada hospital, município e estado. Trata-se de um instrumento adicional de identificação de casos de aids. Os sistemas de informação têm contribuído para o trabalho da vigilância epidemiológica na redução da subnotificação. “Através do relacionamento das bases de dados SISCEL/ SICLOM e Sistema de Mortalidade da Fundação SEADE, foi possível incorporar 22.318 casos adicionais, ou seja, 10% do total de casos de aids do estado São Paulo até 30 de junho de 2012”, ressalta Angela Tayra.

NOTIFICAÇÃO DE GESTANTES E ASSINTOMÁTICOS

A vigilância do HIV positivo teve início no estado de São Paulo em 1994, com a implantação do “Sistema de Informação sobre Portadores Assintomáticos do HIV” (SIHIV). Na época, a notificação não era compulsória e o sistema era “serviço-dependente”, o que dava margem a subnotificação. A partir de 2002, estas notificações passaram a ser informadas no SINAN, seguindo o mesmo fluxo da notificação dos casos da doença. A análise das informações dos casos notificados de portadores de infecção pelo HIV tem mostrado antecipadamente novas tendências da epidemia, como o aumento da infecção pelo HIV em HSH (homens que fazem sexo com homens) desde 2000, segundo o Boletim Epidemiológico DST/Aids do estado de São Paulo, publicado em 2012. “Estas informações são importantes para subsidiar as ações de prevenção dos Programas de DST/Aids estadual e municipais”, observa Mariza Tancredi. Em 2000, além de uma série de medidas já anteriormente implantadas, visando à redução da transmissão vertical da infecção pelo HIV, o Ministério da Saúde tornou compulsória a


29

notificação de gestantes infectadas pelo HIV e de crianças expostas ao risco de transmissão vertical (Portaria nº 993 do GM/MS, de 4 de setembro de 2000). Além de notificar os soropositivos, a identificação de todas as gestantes HIV positivo, por meio do SINAN, continua sendo um desafio. “A vigilância laboratorial dos resultados sorológicos de testes anti-HIV e o contínuo monitoramento das gestantes no pré-natal são fundamentais para a prevenção da transmissão vertical do HIV”, informa Carmen Domingues. Sistemas como o SISCEL e o SICLOM são utilizados para a vigilância ativa de gestantes infectadas pelo HIV.

A VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA E A POLÍTICA PÚBLICA PARA AIDS

A política de assistência e prevenção no estado de São Paulo inicialmente era delineada somente a partir dos perfis dos casos notificados. Gradualmente, estudos de soroprevalência, comportamento e atitudes, além de outras medidas em grupos específicos, como o teste obrigatório em bancos de sangue, a partir de 1987, permitiram aprofundar as análises do comportamento da epidemia no estado. “Em 1988, já tínhamos o panorama da epidemia: primeiro homossexuais e hemofílicos, depois mulheres e, mais à frente, as crianças. Não existia um único grupo de risco”, lembra a médica Naila Janilde Seabra Santos, que dirigiu o Serviço de Vigilância Epidemiológica do CRT DST/Aids-SP, de 1994 a 2003. A partir de 1992, uma nova tecnologia de vigilância epidemiológica foi incorporada no estado de São Paulo e no Brasil: a vigilância sentinela em serviços de obstetrícia e de DST. Estudos nacionais de prevalência em HIV e sífilis em parturientes têm sido realizados periodicamente, constituindo-se como principal instrumento para estimar a prevalência do HIV na população brasileira .

O Sistema de Informação dos Centros de Testagem e Aconselhamento (SICTA) permite a obtenção de dados sobre indivíduos que realizaram teste anti-HIV nos Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA). “Este sistema traz informações relevantes sobre subgrupos populacionais vulneráveis às infecções sexualmente transmissíveis”, refere Mariza Tancredi. O conjunto de informações colhidas de várias fontes permite acompanhar a dinâmica da epidemia em nosso meio e apontar tendências que orientam as medidas de controle da infecção adotadas pelo estado. Para Ângela Tayra, os desafios da vigilância epidemiológica das DST/aids para a próxima década são vários. Entre eles, destacamse: formação de novos profissionais em vigilância epidemiológica para atuar no sistema público de saúde, implementação da vigilância do HIV e das DST de notificação compulsória, notificação das DST/aids na rede privada e incorporação de tecnologias para aprimoramento das bases de dados. *


30

Voluntariado

O TRABALHO QUE FAZ A DIFERENÇA QUEM GANHA SÃO OS USUÁRIOS

S

ão quase sete da noite quando a advogada voluntária do ambulatório de Saúde Integral a Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/ Aids-SP encerra aquele que seria o último atendimento do dia. Duas pessoas aguardam na sala de espera do escritório instalado no primeiro andar. Karen é objetiva: “Vocês marcaram hora? Só atendo com horário marcado”. Não. Fabiana e Eliane não tinham agendado a consulta com a advogada. Mesmo assim foram atendidas. Pragmática, a advogada vai direto ao ponto: “Vocês querem informações sobre mudança de nome, não é? Posso atender as duas juntas?” Karen não cobra honorários advocatícios para abrir e acompanhar processos civis e criminais dos pacientes do ambulatório. Em quatro anos de atendimento como voluntária, incluindo o período em que trabalhava apenas na ONG SOS Dignidade, já foi quase uma centena de processos abertos em defesa dos direitos de travestis e transexuais. A maior parte “ações de retificação de registro civil” (o tal processo de mudança de nome, tema central para quem não se identifica com seu sexo biológico). Nenhum pedido negado. A advogada Karen Schwach é uma das mais de duas dezenas de pessoas que trabalham como voluntárias no CRT DST/Aids-SP e a

assessoria jurídica, uma das várias atividades realizadas por aqueles que, da mesma maneira, aplicam seu tempo em solidariedade. Na “Brinquedoteca”, os voluntários atendem crianças com aids ou filhas de pacientes soropositivos. Na “Assistência Espiritual”

ESSA É A PARTE MAIS LEGAL DO QUE FAÇO. O MEU BOLSO FICA FELIZ QUANDO COBRO PELO MEU TRABALHO. EM COMPENSAÇÃO, QUANDO DEFENDO OS DIREITOS HUMANOS, QUEM FICA FELIZ É MEU ESPÍRITO. SÃO PEDAÇOS BEM DIFERENTES DO MEU CORPO. NÃO DÁ PARA CONFUNDIR. (Karen Schwach)

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


31

eles acolhem quem busca apoio na fé. Com a “Arteterapia”, a “Dança Circular” e o “Leia Comigo”, entram em cena a arte e a poesia como recursos complementares ao tratamento. Os “Cuidadores Solidários” e a equipe do “Apoio na Adesão” oferecem tempo, ouvidos e dicas para quem está enfrentando os desafios impostos pelo tratamento do HIV. Juntos, os voluntários do CRT DST/Aids-SP atendem cerca de 120 usuários por semana. Tânia Nogues, coordenadora dos voluntários, dá a dimensão do trabalho: “Não tem preço”. Ela explica: “São pessoas especiais, que sabem como lidar com a diversidade e que não têm receio de entrar em um hospital de doenças infecciosas para apoiar pessoas com hábitos, culturas e crenças diferentes das suas. Se já é difícil encontrar pessoas assim entre amigos ou familiares, imagine entre desconhecidos?”. Mas o que não tem preço,

tem impacto. Por exemplo, entre 25 pessoas que mudaram de nome com a ajuda de Karen, apenas uma refere que não conseguiu melhorar sua autoestima. Antes, 13 pessoas estavam desempregadas. Após a mudança, nove conseguiram colocação no mercado de trabalho. Os dados são de um levantamento feito pela própria Karen, em 2012.

É preciso disponibilidade para se colocar no lugar do outro. Se a pessoa está down, é possível perceber isso em seus trabalhos (Rosa Higasi Narvion)


30

Mas de onde vem tanto altruísmo? Para a artista plástica Rosa Higasi Narvion, a resposta está nos astros: “Sou de peixes, com ascendente em peixes. O trabalho voluntário faz parte da minha vida”. Acreditando ou não no zodíaco, o fato é que Rosa sempre atuou como voluntária. Ela começou a dar aulas de artesanato na Fundação Casa (quando ainda se chamava Febem) e passou por um abrigo para pessoas de baixa renda até chegar ao CRT DST/Aids-SP, onde há 10 anos ensina técnicas de pintura em aquarela. Rosa, que aprendeu a pintar com artistas como Manabu Mabe e Tikashi Fukushima, sabe que seu trabalho vai bem além da técnica com pincéis: “Não é só a arte. É preciso disponibilidade para se colocar no lugar do outro”. Perceber o que o outro está sentindo é técnica que ela aprimorou com

o passar dos anos: “Se a pessoa está down, é possível perceber isso em seus trabalhos”. Para a psicóloga do CRT DST/Aids-SP que coordena os grupos de Arteterapia, Marisa Nakae, esse tipo de sintonia tem impacto direto na saúde dos pacientes: “As aulas de pintura contribuem para o resgate da autoestima, ajudam a trabalhar as emoções e promovem a ressocialização. Criando novos vínculos fica mais fácil combater a depressão e isso melhora, por exemplo, o processo de adesão ao tratamento”, explica. A técnica da pintura, além de estimular a criatividade, é um recurso que conecta o mundo interno e externo: através da expressão de imagens e cores, o indivíduo transforma os conteúdos psíquicos, muitas vezes inconscientes, em imagens e símbolos. A


33

tela ou o papel fazem esta ponte. “O indivíduo expressa de forma não verbal seu mundo interno com a possibilidade de elaborar e resolver seus conflitos, harmonizando seu emocional”, comenta a psicóloga Laura Bugamelli que, junto com Marisa, Fabiana Lo Bello e Lenira Romero, coordena a Oficina de Arteterapia. A interação entre a psicologia, serviço social e arte plástica, no caso das oficinas de pintura em tela, permite que o indivíduo seja visto como um todo em suas necessidades, ampliando o campo de atuação do tratamento, com excelentes resultados. Leandro Costa*, que começou o tratamento em 1994 e há três anos é assíduo frequentador dos encontros de Arteterapia, usa das próprias lembranças para confirmar o raciocínio da psicóloga: “Poucas coisas são tão boas como as pessoas olharem um trabalho seu, elogiarem e ainda toparem pagar um preço por ele”, falando das feiras e exposições organizadas dentro do próprio CRT DST/Aids-SP. Mas o reconhecimento de Leandro não termina aí: “O mais impressionante é que a pessoa que te ajuda não te pede nada em troca”. Ivone chega à instituição, cumprimenta a equipe de enfermagem, confirma o nome dos pacientes que estão internados e, em seguida, dirige-se a um dos quartos. Na mão, ela leva algumas revistas. Para próximo à porta e pede licença para entrar. Minutos depois, ela e o paciente estão trocando receitas de pães. “Se a pessoa não quer, se prefere ficar sozinha, eu não forço a barra. Mas se ela estiver precisando de alguém para conversar, para desabafar, chorar ou falar amenidades, estou à disposição”, explica a voluntária. Quem vê a desenvoltura da dona de casa pelos corredores do centro de internação não imagina os desafios que ela teve de superar. Para Ivone Quedas, o trabalho voluntário foi parte de um processo terapêutico. Oferecer apoio a pacientes em diferentes estágios da aids cooperou para que ela própria fechasse o

As aulas de pintura contribuem para o resgate da autoestima, ajudam a trabalhar as emoções e promovem a ressocialização. (Marisa Nakae)

ciclo de luto pelo filho, que morreu devido às complicações causadas pela doença. A inserção de Ivone foi gradativa. Ela começou como voluntária do projeto “Leia Comigo”, que disponibiliza estantes de livros em pontos estratégicos do CRT DST/Aids-SP como forma de estimular a leitura e incentivar a socialização entre os usuários do serviço. Só


34

depois, quando já estava mais fortalecida, é que passou a realizar as visitas na internação. “Quando comecei no voluntariado, minha família estranhou. Eles diziam que eu estava ficando louca por querer ficar revivendo tudo o que havíamos sofrido. Com o tempo entenderam. Hoje, eu percebo que a perda do meu filho é uma ferida aberta. Não vai fechar nunca. Mas sei que minha dor lá de trás pode ser compensada toda vez que eu consigo dar um mínimo de conforto para outra pessoa”. Depois de quase oito anos como voluntária, Ivone aprendeu a tomar alguns cuidados. Um deles é tentar manter um certo distanciamento e evitar vínculos muito fortes com os pacientes: “A dor da perda é maior quando você se torna amigo”. Outro aprendizado é que para ajudar

outras pessoas é preciso estar de bem consigo mesmo. “Se eu não estiver bem, se a cabeça estiver cheia de preocupações, não consigo ajudar ninguém”. Para o educador de Saúde Pública Paulo Stockler, que coordenou a equipe de voluntários do CRT durante 10 anos, as etapas de aprendizado atravessadas por Ivone são fundamentais: “Algumas pessoas acham que vão encontrar no trabalho voluntário uma terapia. O voluntário precisa estar com suas questões emocionais já resolvidas. Caso contrário, ao invés de doar o trabalho, poderá levar problemas para os pacientes”. * * Nome fictício

O QUE É PRECISO PARA SER UM VOLUNTÁRIO Trabalho voluntário não significa boa ação a ser feita “quando der na telha”. No CRT DST/ Aids-SP, o interessado passa por uma capacitação geral sobre a instituição e, caso não tenha formação específica, faz um treinamento na área em que vai atuar. Os voluntários são subordinados a um supervisor que, por sua vez, está subordinado a um Coordenador de Voluntário, que define as diretrizes gerais do projeto. Regras básicas: - Identificar-se com o projeto de saúde pública do CRT DST/Aids-SP; - Atuar com ética, respeitando os valores e os princípios da instituição; - Ser assíduo e pontual; - Informar ausências com antecedência; - Participar das reuniões com a equipe de voluntários, quando for convidado; - Trabalhar em harmonia e compromissado com sua tarefa, equipe e a instituição. A instituição que recebe o voluntário também segue algumas normas: - A jornada de trabalho não pode ultrapassar oito horas semanais; - A atividade deve ser complementar ao serviço oferecido pela instituição; - Os voluntários não podem realizar atividades que são de obrigação dos funcionários da instituição.

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


Artigo

33

CoNquISTaS No Campo DaS DST VALDIR MOntEIRO pIntO, HERCULAnO DUARtE ALEnCAR, ELISABEtH OnAgA

N

o final da década de 1990, o Ministério da Saúde adotou o tratamento sindrômico para as DST. Evidências científicas levaram à fusão dos programas de DST e aids em São Paulo, em 1995. Com isso, as ações programáticas passaram a convergir em direção às interfaces entre as duas epidemias. O controle das DST passou a ser uma ação estratégica para o controle da infecção HIV e, consequentemente, da aids. Nestes últimos 18 anos, a principal estratégia do Programa Estadual DST/Aids para o enfrentamento das DST tem sido a descentralização da assistência dos casos sintomáticos para a atenção básica, por intermédio da implementação desta abordagem nos casos de úlceras genitais, corrimentos uretrais, corrimentos cervicovaginais e desconforto e dor pélvicas. Inúmeros treinamentos descentralizados vêm sendo realizados para os profissionais médicos, enfermeiros, para a equipe multiprofissional e, inclusive, para membros da sociedade civil organizada que desenvolvem trabalhos para populações vulneráveis, por meio de oficinas de atenção integral às DST, abrangendo todas as regiões do estado, com formação de polos regionais de capacitação. Apesar da alta rotatividade de profissionais na atenção básica, dos entraves das diferentes políticas municipais, em particular quanto ao diagnóstico sindrômico e à prescrição de medicamentos pelos enfermeiros, e da resistência das unidades básicas de saúde em aplicar a penicilina, obtivemos algumas vitórias ao longo desse tempo. A redução da resistência ao manejo sindrômico das DST, a demanda persistente e crescente de treinamento para o manejo sindrômico das DST por parte dos municípios e o interesse pela “abordagem sindrômica” de sociedades médicas com interface para DST em congressos estaduais, regionais e nacionais, retratam o fruto do trabalho construído arduamente em todo estado. Outro indicador positivo é o aumento da produção científica de técnicos do Programa Estadual de DST/Aids, por iniciativa própria ou em colaboração com outras entidades em projetos de pesquisa. Uma das grandes conquistas obtidas pela Coordenação Estadual DST/Aids foi a produção, em 2011, de uma publicação técnica pioneira no país, para orientar o manejo das DST nas pessoas vivendo com HIV e facilitar a assistência às DST nos Serviços Especializados (SAE). Para os próximos anos, pretendemos estabelecer uma estratégia para diagnóstico e tratamento precoce das DST assintomáticas, particularmente a infecção por clamídia. Esperamos também contribuir de modo decisivo na redução da transmissão vertical da sífilis por meio do controle da sífilis adquirida, em especial em gestantes. * * Médicos responsáveis pela interlocução DST do Programa Estadual DST/AIDS-SP


36

Pesquisa

PIONEIRISMO E CREDIBILIDADE Estudos realizados pelo CRT DST/Aids-sp SÃO RECONHECIDOS PELA COMUNIDADE CIENTíFICA

A

pesquisa faz parte da missão do Centro de Referência e Treinamento DST/ Aids-SP (CRT DST/Aids-SP). Nestes 30 anos de epidemia foram realizadas inúmeras pesquisas clínicas, epidemiológicas e sociocomportamentais voltadas às DST, aids e hepatites. Além de constituir-se em vasto campo para pesquisas, o CRT DST/Aids-SP é também berço para a formação de pesquisadores. O primeiro estudo de acompanhamento de grupo populacional (coorte) realizado no campo da aids foi o Projeto Bela Vista, iniciado em 1994 e concluído em 2001. O estudo acompanhou cerca de 1500 voluntários HSH (homens que fazem sexo com homens) com o objetivo de calcular a incidência da infecção pelo HIV neste segmento da população, examinar os fatores sociocomportamentais associados à infecção e avaliar a factibilidade de futuros testes de vacina. Considerado preparatório para a vacina, o estudo foi uma iniciativa da Organização Mundial de Saúde (OMS), juntamente com organismos de saúde pública de vários países. No Brasil, foi desenvolvido em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. O Projeto Bela Vista foi conduzido pelo Instituto de Saúde, CRT DST/Aids-SP e Instituto Clemente Ferreira, todos vinculados à Secretaria de Estado da Saúde. “Na época, a OMS vislumbrava grandes possibilidades de uma vacina em um curto período de tempo. Foram muitos os desafios enfrentados pelo projeto. Entre eles, a dificuldade estrutural de conseguir a adesão de voluntários, em parte pela falta de tradição do Brasil na realização

de estudos que dependem dessa participação”, lembra Alexandre Grangeiro, então técnico do CRT DST/Aids-SP. “O Bela Vista foi um marco na pesquisa da aids porque, além de revelar aspectos sociocomportamentais e clínicos na população HSH, capacitou cientificamente o Brasil para a realização de outros estudos de coorte com o tema aids”, completa Grangeiro. Em 2005 foi realizado outro grande estudo nos moldes do Bela Vista. O estudo HIM (do inglês, HPV in Men) – História Natural da Infecção pelo HPV, coordenado pelo urologista Roberto José Carvalho da Silva, do CRT DST/ Aids-SP, acompanhou 1400 homens voluntários na faixa etária de 18 a 70 anos, moradores da Grande São Paulo. Considerado o maior estudo internacional multicêntrico sobre o tema, o HIM foi realizado por centros de excelência do Brasil, México e Estados Unidos. No Brasil, a condução da pesquisa ficou sob o comando do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer e do CRT DST/Aids-SP. No campo de ensaios clínicos, o CRT iniciou atividades em 1995, com a participação no estudo multicêntrico que avaliou a eficácia e segurança do indinavir, na época uma nova e promissora droga antirretroviral. O estudo contou com a participação de 84 voluntários recrutados pelo CRT, que colaboraram para a aprovação do medicamento, um dos primeiros na classe de inibidores de protease, que se juntaria a outras duas drogas formando o arsenal do coquetel. “Muitos pacientes estão vivos até hoje porque tiveram a oportunidade de usar este medicamento, informa José Valdez

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


37

Madruga, responsável pela área de pesquisa clínica no CRT DST/Aids-SP. A participação nesse ensaio clínico, além de contribuir para a comprovação da eficácia do medicamento, capacitou a instituição e seus técnicos para a condução de outras pesquisas. Foram realizados, a partir de então, mais 40 estudos. Atualmente, sete pesquisas de medicamentos estão em andamento, envolvendo 230 voluntários. Entre elas está a Start, financiada pelo National Institutes of Health (NIH), dos Estados Unidos, que conta com a participação de 223 centros de saúde, em 35 nações de todos os continentes. “Este estudo avalia qual é o melhor momento para iniciar tratamento antirretroviral nos pacientes soropositivos, conforme o nível de CD4”, conta Valdez. A instituição também participa de estudos de duas novas drogas para tratamento de hepatite C em pacientes coinfectados com HIV: o faldaprevir e o telaprevir, ambos inibidores de protease do vírus da hepatite C.

Este estudo avalia qual é o melhor momento para iniciar tratamento antirretroviral nos pacientes soropositivos, conforme o nível de CD4. (Valdez Madruga)

Em busca da vacina contra a Aids O mundo aguarda a vacina que irá conferir proteção ao vírus responsável pela pandemia de Aids. O CRT DST/Aids-SP participa desde 2001 da Rede Mundial de Ensaios de Vacina (HVTN), financiada pelo National Institute of Health (EUA). Entre os projetos patrocinados pela HVTN está o estudo realizado em diversos países para avaliar a segurança de uma vacina anti-HIV. No Brasil, o CRT, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade Federal de São Paulo conduzem a pesquisa, integrando esforços mundiais para a descoberta de um método seguro de prevenção da doença. Mas o vírus é desafiador. “Não vejo perspectivas animadoras, pelo menos para os próximos dez anos. Um dos grandes entraves para a descoberta da vacina é o poder de mutação do vírus e a dificuldade do organismo humano em desenvolver uma defesa efetiva contra o HIV”, esclarece Artur


36

um dos graNdes eNtraves para a descoberta da vaciNa é o poder de mutação do vírus e a dificuLdade do orgaNismo humaNo em deseNvoLver uma defesa efetiva coNtra o hivcd4. (artur Kalichman)

Kalichman, coordenador adjunto do CRT DST/ Aids-SP. Enquanto a vacina não chega é preciso monitorar o tratamento e seus efeitos adversos. Para isso, o Ministério da Saúde deu início, em 2003, ao estudo Coorte Brasil, com a perspectiva de acompanhar por dez anos 5.313 pacientes de todas as regiões do país, em tratamento com antirretrovirais. O estudo em andamento avalia a efetividade das drogas, eventos clínicos e epidemiológicos, tempo de sobrevida e o surgimento de efeitos colaterais ou doenças relacionadas. No âmbito nacional, esse projeto é coordenado pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Instituto de Saúde, da Secretaria de Estado da Saúde. O CRT DST/Aids-SP encabeça o estudo no Estado de São Paulo e dele também participam os programas municipais DST/Aids de São Paulo e de São José do Rio Preto. “Esse é um estudo multicêntrico envolvendo 11 cidades, das quatro regiões brasileiras e 13 serviços ambulatoriais

para a Aids. São Paulo contribui com 31,4% de voluntários”, informa Artur Kalichman.

A CREDIBILIDADE FAZ A DIFERENÇA A credibilidade do trabalho realizado pelo CRT DST/Aids-SP facilita a adesão de voluntários. Além de contar com um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) próprio, o CRT DST/Aids-SP tem em seu corpo técnico profissionais comprometidos com essa questão. O Brasil tem uma legislação entre as mais avançadas do mundo, que estruturou os organismos responsáveis por garantir a ética na pesquisa. Por meio de uma resolução federal de 1996 foi criado o Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), ao qual estão subordinados os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) das instituições de ensino e serviços de saúde. “Além de preservar princípios éticos, como garantia de sigilo, a legislação garante ao voluntário o acesso aos medicamentos pós-estudos”, esclarece Eduardo Lagonegro, coordenador do CEP do CRT DST/Aids-SP.


39

Exemplo de projeto cujo sucesso se deve à adesão de voluntários é o Sampa Centro, que reúne pesquisadores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, Unicamp, USP, Instituto Adolfo Lutz e Fundação Oswaldo Cruz, coordenado pela pesquisadora do CRT DST/Aids-SP Gabriela Calazans. “Tratase de um estudo sobre comportamentos e práticas sexuais, acesso à prevenção do HIV e prevalência da infecção pelo vírus entre gays, travestis e homens que fazem sexo com homens, frequentadores de espaços de encontro social na região central do município de São Paulo”, conta Gabriela. Ao todo foram entrevistadas 1217 pessoas, de novembro de 2011 a janeiro de 2012. Do total dos entrevistados, 778 aceitaram fazer o teste e destes, 16% tiveram resultado positivo para o vírus da aids.

Intercâmbios internacionais

O CRT mantém intercâmbio com diversos países. O mais antigo e frequente é a França. O Programa de Cooperação Técnica e Científica Brasil-França, do governo federal, é de 1990. Na primeira turma de intercâmbio entre os dois países, em 1992, estava Leda Jamal, assessora de pesquisa do CRT. “Conheci de perto as estratégias da rede social francesa em relação aos usuários de drogas, que incluíam trabalho, moradia e salário-poupança”, lembra Leda. Em 2003, a pesquisadora foi novamente à França, dessa vez para conhecer o sistema de vigilância para o HIV. Na assessoria à pesquisa Leda Jamal organizou uma comissão com a tarefa de reunir a produção científica da instituição, atuar como facilitadora no desenvolvimento dos projetos e recomendar que as pesquisas realizadas sejam de interesse para o efetivo controle de doenças. A produção do CRT de artigos publicados em revistas indexadas, nacionais e internacionais, é relevante. Entre 2010 e 2013, pesquisadores

e técnicos da instituição publicaram cerca de 50 artigos científicos, como primeiros autores ou como coautores. Vários trabalhos tiveram impacto internacional. Entre eles estão dois artigos publicados no The Lancet, periódico inglês de prestígio mundial, dos quais Valdez Madruga é o primeiro autor. “Um dos estudos foi o TITAN, que comparou o uso das drogas darunavir e lopinavir em pacientes em falha de tratamento e que nunca tinham feito uso destes medicamentos. O outro estudo foi o DUET, sobre a eficácia do tratamento com darunavir e etravirina, medicações aprovadas para pacientes em falha virológica e sem opções de tratamento”, conta Valdez. Ao todo, 50 profissionais atuam como pesquisadores no CRT DST/Aids-SP. Desses, 19 são doutores e 33, mestres. Muitos fizeram pós-graduação tendo a instituição como campo de pesquisa. Marisa Tancredi é exemplo disso. Sua experiência de quinze anos de trabalho no CRT apontou para o tema do doutorado finalizado em 2010: “Sobrevida de pacientes com HIV e Aids nas eras pré e pós terapia antirretroviral de alta potência”. *

Leda Jamal - Assessora de Pesquisa do CRT DST / Aids - SP


40

Perfil

CATALINA RIERA

A DENTISTA QUE DEVOLVE SORRISOS E COLECIONA ABRAÇOS

N

a metade da década de 70, a jovem Catalina Riera vivia as dúvidas e incertezas típicas da adolescência. Mas uma decisão já havia sido tomada. Sua profissão seria na área médica. Esse foco começou a ser definido após a leitura de um dos livretos de “Seleções do Reader`s Digest” cuja história era sobre um doutor humanista que, junto com atendimento médico, oferecia acolhimento e retaguarda emocional a seus pacientes. A opção pela odontologia delineou-se diante do fascínio causado pela observação de seu próprio dentista manipulando “pequenos objetos”, segundo sua visão de adolescente. Na faculdade, um mestre despertou sua admiração e foi seu grande inspirador: Ruy Alfredo Antonini, médico que resolveu fazer odontologia para aprofundar o conhecimento no diagnóstico bucal. “Ele foi meu professor e me ajudou a definir qual seria meu campo de trabalho. A boca era território de ninguém na questão de diagnóstico. E eu fui percebendo que as manifestações de boca eram quadros muito mais importantes do que simplesmente problemas com os dentes”, lembra Catalina. Em 1980, Catalina colou grau, mas não abandonou a universidade. Jovem, misturando-

se aos alunos, começou a dar aulas. A disciplina junto a meninos e meninas que passariam por seus colegas era conseguida com a energia de escorpiana, descendente de espanhóis. “Eu impunha respeito apesar da pouca idade. Tanto que, quando eu estava com apenas 25 anos, os meus alunos quiseram me homenagear na conclusão do curso. E ouviram um não da direção da faculdade. Disseram que era um desrespeito com os professores mais velhos”. O consultório fazia parte de sua segunda jornada de trabalho, junto com a universidade. De lá sairia o registro do seu primeiro diagnóstico de aids por observação de lesão bucal. “No início dos anos 80 eu fazia parte da Clínica Integrada na Universidade de São Paulo, onde era professora voluntária. Lembro-me de que o programa Fantástico, da TV Globo, apresentou a matéria sobre uma nova doença que estava atingindo o público gay. Aquilo me intrigou e eu compartilhei com meus colegas minha incredulidade: como assim, peste gay?!”. As informações sobre a doença eram raras e as fontes nem sempre seguras. Então, Catalina fez contato com Cesar Augusto Migliorati, um dentista do grupo da USP que estava trabalhando em uma universidade de São Francisco, e pediu informações sobre o que estava acontecendo. “Ele passou a me enviar recortes de jornais. Após dois meses veio ao Brasil e nos deu uma aula sobre o assunto. Na mesma época, eu atendia no meu consultório um paciente com lesão de boca que também apresentava um quadro de comprometimento imunológico. Com suspeita sobre qual seria o diagnóstico, pedi para o Cesar, recém-chegado de São Francisco, ver meu paciente”, recorda Catalina.

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


39

A suspeita de Catalina foi confirmada pelo colega dentista. Ela lembra que seu paciente a procurou com uma dúvida: “Você vai continuar me atendendo?” A resposta dada foi: “Sim, só que agora de luvas”. Catalina começa, então, a colocar em prática o diferencial inspirado pelo médico do conto da revista Seleções, lá atrás, na adolescência. Ofereceu acolhimento e retaguarda emocional ao seu paciente, além de seu saber técnico. A esse caso, outros se somaram. A prática no atendimento a pessoas com aids a colocou como profissional de referência para os debates, eventos, aulas e entrevistas sobre o tema, pelo Brasil e pelo mundo. A aids dava sinais de que tinha vindo para ficar entre nós por mais tempo do que se imaginava e tomava dimensões de epidemia. Isso tornou a aproximação da dentista com a saúde pública inevitável. “Levados pelas discussões sobre meu paciente de consultório, eu e o Cesar fomos conhecer o trabalho que o Paulo Roberto Teixeira realizava junto à Secretaria de Estado da Saúde. Na época, ele atendia no Departamento de Dermatologia Sanitária, embrião do que seria hoje o Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP”, conta Catalina. “Entusiasmados com o atendimento que estava sendo estruturado pelo Paulo, eu e Cesar nos oferecemos para trabalhar de forma voluntária. Dessa forma, nós dois fomos os primeiros dentistas a trabalhar com HIV”. O voluntariado terminaria em 1986, quando foi aberto o concurso para integrar dentistas para o atendimento de pessoas com HIV aos quadros do Estado. Duas vagas apenas, e o resultado seria a colocação dos dois únicos dentistas com experiência nessa área: Cesar e Catalina. Cesar decidiu voltar para a academia nos EUA. Catalina continua no CRT DST/Aids-SP. Em 1988 o grupo de profissionais de saúde familiarizados com a questão da aids ainda era pequeno e, mesmo assim, a grande maioria concentrava-se em São Paulo. O Ministério da Saúde receberia a visita de Jens Pindborg,

consultor da Organização Mundial da Saúde, que viria ao Brasil para tratar sobre lesões de boca relacionadas à aids. Catalina foi localizada como a única especialista do país. “Eu conhecia o James da literatura. Poder estar perto e contar como o Brasil estava trabalhando a aids foi uma honra”. Oportunidade que ela estendeu a seus pacientes, que naquela época já eram atendidos no prédio do recém-criado Centro de Referência e Treinamento. “Eu selecionei os casos que não conseguia resolver e comuniquei aos pacientes que eles teriam a oportunidade de serem examinados por um grande especialista. Ele viu muitos casos nesse dia”. O atendimento odontológico no CRT DST/ Aids-SP é uma história que já dura 29 anos. E Catalina comemora que muitos dos seus pacientes estão com ela há anos, recebendo seus cuidados. “Muitas vezes os dentes são apenas um detalhe”, brinca. Finalizada a entrevista, na rampa do CRT DST/Aids-SP, Catalina é parada por um deles. “Não posso ficar sem dar um abraço nessa mulher”, diz, afetuoso. E os abraços devem ser uma rotina na vida dessa dentista que militou com tanto amor na causa da aids que se esqueceu até de cuidar da sua própria vida de funcionária pública. Perto de completar 60 anos, somente agora está investindo no doutorado. “Eu ajudei a formar tantos doutores e pós docs e isso me deixa muito orgulhosa. Preocupo-me em deixar um corpo técnico eficiente para assumir o trabalho que realizo hoje”. Se no início da epidemia era ouro ter profissionais de saúde para cuidar de pacientes com aids, hoje o cenário é diferente. “Existe muito jovem talentoso e comprometido com a saúde pública, disposto a oferecer um atendimento de qualidade”, comemora. Há o tempo do doutorado, o tempo da pesquisa, do atendimento no CRT. E o futuro em médio prazo? “Penso em continuar realizando um trabalho ligado à cidadania. Talvez com educação, que tem tudo a ver com saúde”, conclui. *


42

Cooperação internacional

Experiências compartilhadas

RESPOSTA BRASILEIRA À EPIDEMIA É ADAPTADA EM VÁRIOS PAÍSES

“P

retendemos implantar dez centros de testagem rápida anti-HIV no Panamá ainda este ano”, revela Sandra Juarez, representante do Centro de Controle de Doenças (CDC) para a América Central. Sandra fez parte da delegação de técnicos de 13 países que vieram a São Paulo em julho deste ano, com apoio da Organização Panamericana de Saúde, para aprender a validar e realizar teste rápido anti-HIV. Durante o treinamento, o médico equatoriano Manuel Gonzalez apontou o que considera um ponto alto na política brasileira para HIV-aids: a produção local de medicamentos antirretrovirais e kits para diagnóstico. “Tratase de uma forma de reduzir custos e ofertar testagem e tratamento a um maior número de pessoas”, observou. A atividade contou com a participação de especialistas do Departamento Nacional DST-Aids, do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP (CRT DST/Aids) e do Instituto Adolpho Lutz. Na última década, a resposta brasileira à epidemia de aids ganhou o mundo. O Brasil foi convidado a compartilhar sua experiência em vários fóruns de discussão internacionais e houve uma intensa troca com vários países. Inúmeras delegações internacionais vieram a São Paulo conhecer de perto as estratégias de prevenção e assistência que reduziram a transmissão vertical do HIV e a mortalidade por aids em adultos. A taxa de incidência de aids em crianças passou de 4,7 para 1,4 casos por 100.000 crianças entre 1998 e 2011, o que significa um declínio de 70,2%. Já a mortalidade por aids em adultos passou de 22,9 para 7,6 óbitos por 100.000 habitantes/

O TESTE RáPIDO É uma forma de reduzir custos e ofertar testagem e tratamento a um maior número de pessoas. (Manuel Gonzalez)

ano. Os medicamentos antirretrovirais adquiridos pelo Ministério da Saúde são distribuídos para mais de 103 mil portadores de HIV/aids do Estado de São Paulo. “O acesso universal aos antirretrovirais é uma conquista brasileira e modelo a ser seguido”, destaca Paulo Roberto Teixeira, do Programa Estadual DST/Aids-SP. O Ministério da Saúde promoveu a visita de parlamentares, gestores e técnicos de quase 40 países ao CRT DST/Aids-SP: África

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


43

do Sul, Angola, Argentina, Bolívia, Barbados, Botsuana, Chile, China, Colômbia, Congo, Costa Rica, Cuba, El Salvador, Equador, Estados Unidos, Gana, Guatemala, Holanda, Honduras, Índia, Japão, Malaui, Moçambique, Namíbia, Nicarágua, Panamá, Peru, Quênia, República Dominicana, Rússia, Senegal, Suriname, Tailândia, Tanzânia, Ucrânia, Uruguai e Zâmbia. Algumas visitas consistiram em treinamentos de 15 a 30 dias, organizados pelo CRT, nos quais se apresentou a gestão pública, a organização dos serviços no Brasil e em São Paulo e o relacionamento entre governo e sociedade civil no enfrentamento da epidemia. A agenda internacional do ano de 2006 foi particularmente intensa. Em fevereiro, o CRT DST/Aids-SP recebeu uma delegação da Índia, que incluiu Rahul Gandhi (neto da primeira ministra Indira Gandhi) e Milind Deora, membros do Parlamento Indiano. Eles conheceram de perto a política pública para aids no estado de São Paulo, reuniramse com o Conselho Nacional Empresarial de

Prevenção às DST/Aids e visitaram a casa de apoio Siloé. Nesse mesmo ano, em agosto, veio uma comitiva da Indonésia, patrocinada pelo Projeto de Cooperação Australiana. “A delegação contou com a presença de vários médicos que atuam no tratamento de doentes de aids, em especial das pessoas que fazem uso de drogas injetáveis”, lembra Fábio Mesquita, atual coordenador do Departamento Nacional para DST-Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, que solicitou a visita e coordenou a missão. A visita rendeu frutos. “Os visitantes ficaram impressionados com a existência de um local como o CRT DST/Aids-SP, capaz de treinar profissionais do Brasil e do exterior”, diz Mesquita. “E foi implantado em Jacarta um centro de referência e treinamento nos moldes do CRT DST/Aids-SP”. Ainda em 2006, em setembro, o CRT DST/ Aids-SP recebeu a visita de Kuniaki Miyake, na época vice-diretor do Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar do governo japonês;

REFERÊNCIA INTERNACIONAL

O CRT DST/Aids-SP é também frequentado por estudantes internacionais. Em 2010, 2011 e 2012, recebemos alunos do Programa “Saúde e Comunidade” do International Honors Program da organização World Learning. Ao todo vieram cerca de 100 alunos provenientes de diferentes universidades norte-americanas. “Eles passam um semestre fora dos EUA, estudando questões ligadas à saúde em três países, Brasil, Vietnã e África do Sul”, explica Glenda de la Fuente, coordenadora de intercâmbios internacionais nas áreas da saúde e programas comunitários em São Paulo. “No CRT eles observam como o estado realiza a vigilância, prevenção e pesquisa no campo do HIV/aids. Ali também vivenciam o carinho e comprometimento dos profissionais e a preocupação em oferecer um tratamento digno às pessoas vivendo com HIV/aids”, comenta Glenda. “O CRT é referência nacional e internacional”.


42

de uma delegação chinesa composto por 11 técnicos, liderados por Tan Mingjie, diretor do Departamento de Saúde de Guangxi, e de técnicas do Programa de Aids das Nações Unidas do Paraguai. Nos anos que se seguiram, inúmeros países compartilharam conosco suas experiências e vieram conhecer a resposta brasileira para o enfrentamento do HIV/aids. “Os projetos de cooperação técnica entre o Brasil e os países visitantes nos permitem conhecer diferentes realidades e contribuir para o enfrentamento da epidemia em locais diversos”, explica Maria Clara Gianna, coordenadora do Programa Estadual DST/Aids-SP. Em agosto de 2012, também esteve no CRT DST/Aids-SP uma delegação composta por membros do Congresso dos EUA e do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC). “O encontro teve o objetivo de avaliar o resultado da parceria estabelecida entre o governo norte-americano e o brasileiro para o financiamento de projetos”, comenta Maria Clara Gianna, coordenadora do Programa Estadual DST/Aids-SP. Fizeram parte da delegação John Bartrum (Casa Branca), Laura Friedel (Senado dos EUA), Abraham Miranda (Departamento de Saúde), Gray Handley (National Health Institute), Tom Frieden, Kristin Kelling e Kimerbly Dills (CDC). Ainda em 2012, a Comissão Intergovernamental de HIV do Mercosul promoveu, em parceria com o CRT DST/AidsSP, a oficina “Mapa Falante”, com a participação de representantes dos Comitês de Fronteira de Quaraí (Bella Unión) e Uruguaiana (Paso de los Libres). Os participantes aprenderam a utilizar um instrumento que amplia o conhecimento da realidade local por meio de mapeamento colaborativo, promove o exercício da democracia participativa e pode ser utilizada para a construção de políticas públicas de saúde. Este ano, além de uma delegação da China, um grupo de dez técnicos de Moçambique,

assessores do Núcleo Provincial de Combate ao HIV/SIDA e dos pontos focais distritais de HIV/ SIDA da Província de Gaza, também veio realizar treinamentos no CRT DST/Aids-SP. “Qualificar as lideranças e representantes da sociedade civil contribui para o fortalecimento da resposta moçambicana ao HIV/Aids ”, comenta Vilma Cervantes, assessora da Área de Planejamento do CRT DST/Aids-SP, que organizou a capacitação. Para Rojério Paulo Moreira, coordenador da missão moçambicana, “o curso atendeu às expectativas do grupo. A formação foi proveitosa, pois permitiu ampliar o nosso horizonte no campo das DST/aids”, diz. “Voltamos ao nosso país muito gratos pelo acolhimento recebido em todos os locais onde estivemos e pelo conhecimento compartilhado conosco”. *

Qualificar as lideranças e representantes da sociedade civil contribui para o fortalecimento da resposta moçambicana ao HIV/Aids (Vilma Cervantes)


45

Vilma Cervantes, Jean Dantas, Luiza Matida e Dreyf de Assis visitam instituição em Moçambique - 2013

CAPACITAÇÃO MULTIPROFISSIONAL Especialistas brasileiros também têm levado sua experiência a outros países. Maria Clara Gianna, coordenadora do Programa Estadual DST/Aids-SP esteve em Angola em 2003, 2004, 2005 e 2008, para auxiliar na elaboração de um plano estratégico nacional para HIV e uma proposta para o Fundo Global de Luta contra Aids, Tuberculose e Malária. Em 2007, esteve em Moçambique para dar consultoria na área de saúde e prevenção das DST/HIV/aids nas escolas. Em 2002, as psicólogas Tânia Regina Correa de Souza e Anália Amorim e os médicos Simone Queiroz e Sidnei Pimentel foram convidados a realizar uma capacitação para médicos em HIV/AIDS em Maputo, Moçambique, abordando os aspectos psicossociais da aids. “Eles estavam começando a estruturar as ações de prevenção e assistência, sentiam muita angústia diante da doença e da morte”, lembra. Em 2008, Tânia realizou esse trabalho em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. “Conseguimos transformar a capacitação, que era exclusiva para médicos, numa capacitação para equipe multiprofissional. Foi extremamente gratificante”, relata a psicóloga. Nossos técnicos também realizam projetos de cooperação internacional em países da América Latina. Em 2004, os médicos Denize Lotufo, Valquíria Brito, Sidnei Pimentel e a psicóloga Judit Busanello realizaram oficinas com a duração de três dias em Assunção, no Paraguai, para a capacitação de médicos e psicólogos no manejo da infecção pelo HIV em adultos e gestantes. Em 2008, Carmen Lúcia Soares, Márcia Fernandes dos Santos e Rosaria Maria M. Otero, do laboratório do CRT DST/Aids-SP, juntamente com dois técnicos do Ministério da Saúde, tiveram a oportunidade de visitar um laboratório de saúde pública e um Hospital Regional em Guayaquil, no Equador. “A troca de experiências com profissionais de outros países nos permite conhecer outra realidade, divulgar o que temos feito e também o que devemos e podemos melhorar em termos de qualidade de atendimento aos pacientes”, observa Márcia Santos. No começo deste ano, Vilma Cervantes (Planejamento), João Bosco Alves de Souza (Recursos Humanos) e Luiza Matida (responsável pelo plano de eliminação da transmissão vertical do HIV e sífilis) estiveram em Moçambique realizando oficinas para o grupo que nos visitou em março.


46

Sociedade Civil

PARCERIA PELA VIDA A epidemia de Aids trouxe uma lição: Estado e movimentos sociais precisam trabalhar em sintonia

A

rticulação sempre foi a palavra de ordem. Desde o início da epidemia, nos anos 80, estado e sociedade civil construíram um espaço privilegiado de diálogo e parceria. Graças a esta interlocução foi possível responder, de forma rápida e organizada, à epidemia que começava a alastrar-se pelo país. A advogada Áurea Abbade, presidente do Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS (GAPA/ BR-SP), a primeira ONG/Aids do país, lembrase das primeiras reuniões em torno do tema. “O Paulo Roberto Teixeira, diretor do Programa de Aids, convidava as lideranças dos grupos gays, familiares e amigos de pessoas doentes para conversar sobre a doença e os cuidados necessários no contato pessoal com os pacientes. O auditório Vranjac no oitavo andar [da Secretaria de Estado da Saúde] ficava lotado, com gente em pé e no corredor”, relata. “Houve uma conjunção de fatores positivos num momento histórico de redemocratização, aliado ao empenho de sanitaristas como João Yunes e Paulo Roberto Teixeira”, declara Mário Scheffer, presidente do Grupo Pela Vidda-SP e professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “O governo tinha clareza de que seria imprescindível trabalhar em parceria com a sociedade civil para acessar as populações mais vulneráveis à epidemia”, diz. Desde os primeiros casos notificados de aids até os dias de hoje, muito se fez para se

O governo tinha clareza de que seria imprescindível trabalhar em parceria com a sociedade civil para acessar as populações mais vulneráveis à epidemia (Mário Scheffer)

conter o avanço da epidemia. A criação do Fórum de ONGs/Aids do Estado de São Paulo, em 1996, foi um marco histórico. Atualmente, o Fórum conta com 102 ONGs, que fazem o monitoramento da política para as DST/aids em municípios e regiões, identificando desafios e sugerindo soluções. “Apontamos dificuldades locais, desde problemas pontuais de logística de medicamento à demanda por cirurgias reparadoras em decorrência de lipodistrofia”, declara Rodrigo Pinheiro, presidente do Fórum de ONGs/Aids-SP desde 2008. A construção de uma agenda política assertiva com a participação dos movimentos sociais foi fundamental para fazer frente aos grandes desafios e complexidade da epidemia. “É com a sociedade civil que se discute a formulação de políticas públicas, a potencialização das ações de prevenção em

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


47

projetos sociais, a articulação técnica e política com os municípios, as inovações tecnológicas, as dificuldades do serviço”, ressalta Vilma Cervantes, gerente de planejamento desde 2000. “A sociedade civil tem sido parceira estratégica ao longo dos anos para corrigir rumos, ampliar horizontes e garantir o cumprimento da nossa missão institucional”, comenta.

Apontamos dificuldades locais, desde problemas pontuais de logística de medicamento à demanda por cirurgias reparadoras em decorrência de lipodistrofia

Ao longo destes 30 anos, muito se construiu a partir desta parceria. No campo da articulação, a criação do Grupo de Trabalho Assessor do Programa Estadual DST/Aids para Articulação entre organizações governamentais (OG) e organizações não governamentais (ONG), em 2000, fez a diferença. “O GT fortaleceu os laços e explicitou papéis entre governo e sociedade civil. Trata-se de um espaço fundamental para o aprimoramento da política institucional de apoio e suporte às ONGs”, comenta Jean Dantas, responsável pelo Núcleo de Articulação com a Sociedade Civil. Em 2002, a partir da publicação da Portaria 2313/2002, o Programa Estadual DST/AidsSP passa a financiar projetos de ONGs por meio de seleção pública, com recursos provenientes do Ministério da Saúde. “Desde o início, o financiamento é articulado e discutido com o Fórum de ONGs/Aids-SP, Fórum Paulista LGBT, Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids e o Movimento Nacional das Cidadãs PositHIVas, no que se refere aos objetivos e populações contempladas, uso racional do

recurso público e monitoramento”, conta Valéria Nanci Silva, do Núcleo de Articulação com a Sociedade Civil. Até hoje foram repassados às ONGs R$ 32.272.884,33 para o financiamento de 559 projetos. Graças a esse recurso, por exemplo, o Instituto Vida Nova criou em 2006 uma academia de atividades físicas para soropositivos com lipodistrofia. “Atualmente, 86 pessoas frequentam a academia”, comenta Américo Nunes Neto, coordenador de projetos do Instituto Vida Nova. Em relação aos projetos, Américo tem uma sugestão: “Seria importante rever os critérios dos editais. “O boletim epidemiológico apresenta lacunas e margem de erro nas notificações, ou seja, nem sempre reflete a necessidade das pessoas vivendo com HIV/aids em tempo real”, diz. A criação de uma comissão, em 2008, para avaliar a necessidade de novos antirretrovirais, evitando demora e ações judiciais, também foi uma conquista da parceria OG/ONG. “Na ocasião, São Paulo disponibilizou o acesso ao Maraviroque e ao Raltegravir, medicamentos

CONQUISTAS E DESAFIOS PARA A QUARTA DÉCADA DA EPIDEMIA

(Rodrigo Pinheiro)


48

recomendados para resgate terapêutico e que começaram a ser distribuídos em todo país no início de 2009”, comenta o advogado Cláudio Pereira, presidente do Grupo de Incentivo à Vida (GIV). No campo da prevenção, o acesso à profilaxia pós-exposição (PEP) e a discussão sobre a profilaxia pré-exposição (PrEP) estão entre as prioridades do momento, além da ampliação da testagem precoce anti-HIV em populações mais vulneráveis. “Há uma fragilidade persistente no campo da prevenção, apesar dos vários avanços em outras áreas”, declara Mário Scheffer. “É preciso criar um modelo, uma resposta adequada à epidemia concentrada. A luta contra a homofobia, financiamento de ONGs voltadas a gays e criação de fóruns de discussão sobre homossexualidade não são suficientes. Os dados de incidência de infecção em gays e homens que fazem sexo com homens (HSH) são impactantes, ou seja, há falhas na política de prevenção em relação a estes grupos”, declara. Cláudio Pereira concorda com Mário Scheffer. “A prevenção não acompanhou os avanços na assistência. Faltam campanhas específicas para grupos mais vulneráveis e ações voltadas a locais de trabalho para

Temos de oferecer um cardápio que dê conta da diversidade cultural, etária, sexual e religiosa dos brasileiros (Vera Paiva)

diminuir o estigma, o preconceito e a discriminação em relação às pessoas vivendo com HIV/aids”. Diante deste panorama, Vera Paiva, coordenadora do Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids (Nepaids) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo defende a ampliação do leque de tecnologias de prevenção. “Temos de oferecer um cardápio que dê conta da diversidade cultural, etária, sexual e religiosa dos brasileiros”, aponta Vera. Para Mário Scheffer e Rodrigo Pinheiro temos grandes desafios pela frente. ”O SUS está em apuros, ameaçado, com o projeto do sistema de saúde indefinido. Não apenas no que se refere a financiamento, mas principalmente a gestão”, observa Scheffer. “Os grandes problemas enfrentados hoje pelos programas de Aids fogem da governabilidade estadual ou municipal”, emenda.”Mais do que nunca é preciso fazer o controle social, ter capacidade de articulação e formulação de políticas públicas para aids condizentes com a necessidade do momento”, diz. Aliada a questões políticas, a falta de novas e fortes lideranças no movimento social é outro ponto nevrálgico. “Os novos ativistas não têm ideia do que já enfrentamos. Falta conhecimento da trajetória histórica da epidemia, da estrutura do SUS, dos espaços políticos para negociação”, comenta Rodrigo Pinheiro. “Além disso, ao longo do tempo, muitos ativistas acabaram sendo convidados para ocupar cargos no governo e com isso, ganhou-se por um lado, mas perdeu-se por outro”, observa Rodrigo. “É preciso transmitir o que aprendemos aos novos, eles continuarão nossa história”, conclui. *

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


Artigo

É pOSSíVEL ELIMInAR A TRaNSmISSÃo VeRTICaL DO HIV E A SÍfILIS LUIZA MAtIDA

N

estes 30 anos de epidemia do HIV, em função das diferentes estratégias profiláticas empregadas, podemos dizer que estamos muito próximos da eliminação da transmissão vertical do HIV. Já a sífilis congênita, apesar de ser um agravo 100% prevenível e da plena disponibilidade de insumos e recomendações necessárias para sua prevenção, ainda requer cuidados. É importante ressaltar que, quando observamos o perfil da gestante notificada com sífilis ou casos de aids por transmissão vertical, encontramos grupos de mulheres altamente expostas a estes dois agravos: moradoras de rua, usuárias de drogas lícitas e ilícitas, mulheres privadas da liberdade, adolescentes, migrantes e parceiras sexuais de populações vulneráveis. Entre 2012 e 2013, um grande passo foi dado pela Secretaria de Estado da Saúde. Realizamos em parceria com a Secretaria da Administração Penitenciária, atividade de testagem para HIV e sífilis em todas as penitenciárias femininas do estado de São Paulo. Aceitaram realizar o teste 8.914 mulheres. Destas, 2.947 encontram-se em presídios da capital e 5.967, do interior. Entre os dados preliminares apresentados observou-se que 2,8% das mulheres apresentaram resultado reagente para HIV e 7,0% para testagem rápida de triagem para sífilis. A taxa de prevalência de HIV na população geral é de 0,4 e de sífilis, 1,6%. A média de idade da população testada é de 34,3 anos. Em relação ao tempo de detenção, a média é de 59,8 meses. Verificou-se que 80% das detentas são brasileiras, 17,3% são estrangeiras e 2,7% de procedência ignorada. As mulheres privadas de liberdade que participaram deste levantamento receberam informações pré e pós-teste para sífilis e HIV. Os profissionais dos serviços envolvidos foram capacitados para esta orientação. No caso de positividade para o HIV ou sífilis, foram garantidos os procedimentos de acompanhamento e tratamento estabelecidos pelo SUS. Ações desenvolvidas asseguram o aconselhamento, tratamento e acompanhamento das participantes da pesquisa que vierem a ter problemas de saúde, com ênfase nos agravos levantados. Até 2015, pretende-se elaborar e implementar, de forma escalonada e regionalizada, o projeto de DST/Aids da Proposta Integrada de Atenção à Saúde da População Privada de Liberdade, em parceria com a Secretaria da Administração Penitenciária. É a primeira ação deste porte no estado de São Paulo. Trata-se de uma iniciativa que poderá contribuir para a melhoria da qualidade de vida das mulheres, em decorrência disso, a medida repercutirá também no controle da transmissão vertical do HIV e sífilis. * * Médica responsável pelo projeto de eliminação da transmissão vertical do HIV e sífilis congênita.

49


50

Tecnologia

CAPACITAÇÃO SEM BARREIRAS

Videoconferências ultrapassam os obstáculos da distância, do tempo e da falta de recursos

A

nsiedade no ar. Os psicólogos Karina Wolffenbuttel, coordenadora da Campanha Fique Sabendo, do Estado de São Paulo, e Dreyf de Assis, gerente de comunicação institucional do Centro de Referência e Treinamento DST/ Aids-SP andam agitados de um lado para outro. Na cabeça, a mesma preocupação: “Será que o sistema vai funcionar?” Funcionou. O dia 15 de outubro de 2009 marcou o início de uma nova era na capacitação de recursos humanos do Programa Estadual de DST/Aids-SP. Nesse dia foi realizada a primeira videoconferência “Fique Sabendo” como estratégia de atualização técnica e programática. “A campanha Fique Sabendo de 2009 inaugurou um novo jeito de informar e planejar uma atividade em todo o estado”, destaca Karina Wolffenbuttel. Foram semanas de muito trabalho e afinação entre todos os envolvidos nesta nova empreitada: Centro de Formação para o Desenvolvimento de Recursos Humanos (Cefor) da Secretaria de Estado da Saúde, Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap) e os Grupos de Vigilância Epidemiológica (GVE), que serviriam de polos receptores das videoconferências. A videoconferência, tecnologia que permite o contato visual e sonoro entre pessoas que estão em lugares diferentes, possibilita a comunicação entre grupos ou pessoas. Podese acompanhar uma videoconferência de um computador (no trabalho ou em casa) ou a partir de um polo receptor. Durante o debate online, o participante pode fazer perguntas e dar sugestões em tempo real.

“É interessante reunir coordenadores municipais num polo receptor, no caso uma GVE. É um momento de se compartilhar novas ideias, alinhar diretrizes e dividir tarefas e responsabilidades”, comenta Karina. A novidade é bem-vinda. “A tecnologia economiza tempo e otimiza recursos humanos e financeiros. “As equipes são restritas, nem sempre é fácil liberar funcionários para atualizações em outras localidades”, observa Carlos Roberto de Oliveira, interlocutor de DST/Aids da GVE Barretos, polo de recepção para 18 municípios, localizado a 440 km de São Paulo. “Ainda não consigo avaliar o desempenho do profissional capacitado pela videoconferência, mas reconheço a importância da iniciativa e a necessidade de manter o profissional e o serviço atualizados”, observa Gisele Gutierres Carvalho Ciciliato, diretora da GVE Assis, distante 434 km da capital paulista. “São ferramentas que nos instrumentalizam para melhor enfrentarmos a epidemia”, diz. Para André Correa, gerente de Recursos Humanos, a utilização de novas tecnologias não apenas reduz distâncias, mas em especial custos. ”As videoconferências que realizamos até o momento comprovaram seu custo benefício, independentemente da audiência”, aponta. O outro ganho é a apropriação de novas ferramentas de trabalho. “Precisamos capacitar nossos recursos humanos no campo da informática. O PE-DST/Aids-SP tem cada vez mais incorporado o uso de tecnologias de informação e de comunicação em processos que envolvam formação ou orientação continuada”, ressalta.

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


51

ESTRATÉGIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA Nos últimos quatro anos foram realizadas 27 videoconferências. Não apenas como atividade preparatória para a Campanha Fique Sabendo, mas também para atualizar profissionais em diversos campos do conhecimento. “Utilizamos a videoconferência para capacitar nossos técnicos durante implantação do Teste Rápido Diagnóstico (TRD) para HIV”, declara Karina Wolffenbuttel. Cerca de 300 pessoas já participaram das videoconferências, que abordaram entre outros temas: diretrizes em prevenção (saúde do homem), atualização em transmissão vertical do HIV e sífilis, insumos de prevenção (promoção do acesso à população), atualização em profilaxia pós-exposição sexual, mulheres profissionais do sexo e prevenção das DST/aids (trabalhando vulnerabilidades), campanha “Travesti e Respeito: Olhe e Veja além do Preconceito”, direitos sexuais e reprodutivos. Até meados de 2013 mais de 1,5 mil profissionais foram atualizados e capacitados em todo o Estado de São Paulo. “Antes do advento deste recurso, as equipes deslocavamse para os municípios para realizar a reciclagem dos técnicos”, lembra. Além de videoconferências pontuais voltadas à preparação de campanhas de testagem e atualização de consensos terapêuticos antirretrovirais, o CRT DST/Aids-SP pretende utilizar este recurso para realizar outros cursos à distância. “Estamos preparando um curso com duração de um mês para implantação de testes rápidos de HIV, sífilis e hepatites B e C para profissionais de saúde de nível superior”, antecipa Karina. “Pretendemos também organizar ainda este ano treinamento para

implantar o TRD de HIV e a triagem de sífilis na Rede Básica de Saúde. São mais de seis mil unidades de saúde. Um desafio e tanto”, conta entusiasmada. Para Dreyf de Assis, as vantagens da informática são indiscutíveis, porém não se pretende abrir mão dos encontros presenciais. “Não queremos viver no mundo virtual. Os encontros reais são imprescindíveis para a formação de vínculos e alianças profissionais e pessoais”, pondera. *

Estamos preparando um curso com duração de um mês para implantação de testes rápidos de HIV, sífilis e hepatites B e C para profissionais de saúde de nível superior (Karina Wolffenbuttel e Dreyf de Assis)


52

Acidente Profissional

TRABALHO SEM RISCO

rigoroso protocolo garante a segurança dos profissionais de saúde

Q

uando Josevânia, recepcionista de um laboratório privado da cidade de São Paulo, se ofereceu para ajudar uma colega da enfermagem, não esperava que fosse entrar para as estatísticas dos acidentes de trabalho. Ela só precisava ajudar a conter um menino que protestava, com socos e pontapés, contra a agulha usada na coleta, mas quando foi pegar a luva, Josevânia colocou a mão na caixinha errada: a de descarte de objetos perfurocortantes. O pequeno furo no dedo pareceu uma bobagem. Calçou as luvas, ajudou a conter o menino e, só depois, quando voltou para o seu posto de trabalho, é que a colega avisou: “Você precisa fazer o teste de aids”. O que parecia nada virou pânico: “Fiquei assustada, achei injusto e fiquei brava. Depois o RH me encaminhou para o Centro de Referência e Treinamento DST/Aids”. A falta de experiência de Josevânia misturase a outras histórias de profissionais de saúde que se acidentaram em local de trabalho. “O problema costuma começar com o descarte errado do material: agulhas soltas no lixo ou perdidas em lençóis estão entre os relatos mais frequentes”, lembra Ana Lúcia Monteiro. “Não é à toa que os auxiliares de enfermagem e os profissionais de limpeza sejam as principais vítimas dos acidentes”, conclui a enfermeira que, desde 1989, acompanha casos de acidentes de trabalho. Ana recorda-se de que a necessidade surgiu entre os próprios colegas no início da epidemia: “Sabíamos pouco sobre a doença e não havia remédios. Lembro-me da primeira pessoa que atendi. Uma auxiliar de

enfermagem angustiada por ter a mão ferida por uma agulha”. Em 25 anos, Ana nunca deu um diagnóstico reagente: “Acho que o dia que isso acontecer, eu paro”, pondera. Meire Ishibashi, diretora do Atendimento Extra do CRT, onde os casos de acidentes dão entrada, convive com a angústia dos profissionais que se machucam com agulhas e bisturis: “As pessoas costumam chegar nervosas e com medo”. O primeiro argumento que ela usa para acalmar as pessoas é contar sua experiência de 12 anos: “Quando conto que nunca conheci alguém que contraiu o HIV por acidente de trabalho, a pessoa para, toma

Lembro-me da primeira pessoa que atendi. Uma auxiliar de enfermagem angustiada por ter machucado a mão com uma agulha (Ana Lúcia Monteiro)

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


53

fôlego e se acalma. Só então começo a explicar como é feito o acompanhamento”, conclui. Os dados epidemiológicos confirmam a vivência: em 30 anos de epidemia foi notificado um único caso de infecção por acidente de trabalho no país: uma auxiliar de enfermagem, em 1994, no interior de São Paulo. Mas não é pelo fato de ter ocorrido uma única vez que se pode descuidar. Estudos do Centro de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos mostram que o risco de infecção pelo HIV em acidentes perfurocortantes é de cerca de 0,3%, índice semelhante ao da transmissão por via sexual. Para a hepatite B, o risco chega a 6%. E há o agravante de que acidentes de trabalho envolvem complexas legislações e direitos trabalhistas. O protocolo de atendimento é rigoroso. Se o profissional conhece o paciente-fonte, basta fazer um exame de sangue. Se o resultado nesse paciente for negativo, está tudo resolvido. Já se o resultado for positivo ou o paciente-fonte for desconhecido, o profissional de saúde passa a receber o tratamento de profilaxia pós-exposição com antirretrovirais. Esse é um acompanhamento que dura seis meses e que chega a reduzir em até 80% as chances de infecção. O infectologista Nilton Fernandes foi um dos protagonistas na elaboração do protocolo adotado no Brasil para acidentes de trabalho. Ele fez parte da equipe do Instituto Emílio Ribas que atendeu os primeiros casos de aids no país. “Nessa época, conversando com os colegas, percebíamos que, às vezes, ocorriam acidentes biológicos e ninguém sabia muito bem o que fazer. Começamos a guardar o sangue das pessoas que

se acidentavam, só por garantia. Anos depois conseguimos desenvolver um protocolo. Começamos com hepatite B, incluímos a hepatite C e, depois o HIV. Viramos referência e chegamos a atender 800 acidentes por ano”, lembra. Entre 1985 e 2013, o Emílio Ribas acompanhou cerca de 10 mil casos de acidentes de trabalho, calcula Fernandes. Hoje, ele é presidente da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do Instituto Emílio Ribas e reconhece que o principal avanço da área é a formação de especialistas: “São mais de 10 anos treinando profissionais da área de infectologia para atender casos de acidentes de trabalho”. Se dá para melhorar? Fernandes não hesita: “Cada vez mais, cada unidade de saúde, cada hospital deve estar habilitado a acompanhar seus próprios profissionais. É um desafio”. *


54

Artigo

DO ALARMISMO À INDIfeReNÇa MARtHA SAn jUAn FRAnçA*

Q

uem acompanhou a cobertura dos jornais sobre a explosão da epidemia de aids nos primórdios lembra que ela foi acompanhada também de uma explosão de notícias. “A aids é a primeira doença da mídia”, dizia o jornal francês Le Figaro, em 30 de outubro de 1985, chamando a atenção para a sua ampla difusão nos meios de comunicação de massa. Não que as notícias se destacassem por sua qualidade ou isenção. Expressões como “câncer gay”, “mal incurável”, “doença maldita” e “ameaça à saúde do século” caracterizaram uma parte do noticiário sobre a epidemia na primeira década de sua propagação, aprofundando preconceitos e distorções que existiam na sociedade. Um horror. No entanto, passados 30 anos, e muitos trabalhos acadêmicos, já é possível analisar com certo distanciamento aquele momento histórico. A análise do noticiário no contexto da época considera que, por paradoxal que possa parecer, as matérias sobre aids, muitas das quais preconceituosas ao extremo, não somente conseguiram enxergar algo naquela doença que ia além do número de vítimas, como se adiantaram em alguns anos às respostas dos setores governamentais e não governamentais, dos profissionais de saúde e dos movimentos sociais. De forma complementar, a aids abriu as portas do noticiário para a ciência da saúde. Sobre uma epidemia tão divulgada, tudo era motivo de interesse: as alterações no sistema imunitário, a capacidade de mutação do HIV e a sua dificuldade de ser tratado por

vacinas, a propagação do vírus a partir de primatas africanos, a descoberta da estrutura genética do HIV, o mecanismo de reprodução e assim por diante. O esforço para explicar a síndrome estendeu-se para outras notícias, que ganharam mais clareza, apesar das dificuldades em traduzi-las de forma que todo mundo entendesse. Com o passar do tempo, felizmente, o destaque das notícias sobre aids passou a ser o aumento da eficiência dos medicamentos antirretrovirais, a diminuição das mortes e sua substituição pela vida quase normal das pessoas infectadas. Mas aí o assunto foi ficando em segundo plano. A doença continuou a existir, sua gravidade nunca foi negada, as novidades mais recentes sobre terapias noticiadas, mas o interesse diminuiu. Sem destaques que chamassem a atenção para as suas verdadeiras dimensões, ficou a ilusão de que a aids seria uma doença com a qual se poderia conviver sem problemas. O resultado já pode ser notado: em 2011, houve um aumento dos casos em todas as regiões do país, com exceção do Sudeste. Como a síndrome passou a ter um caráter crônico e os casos de morte diminuíram, as pessoas ficaram menos cautelosas em relação à prevenção. O estilo alarmista e preconceituoso do passado deixou de existir, mas não foi substituído por informações corretas – capazes de educar, prevenir e manter a sociedade em alerta em defesa de sua saúde. Pior ainda, deu margem à indiferença que trouxe o aumento do risco.* *Jornalista com Doutorado em História da Ciência - PUC - SP

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


55


56

Bandeiras PositHIVas – Uma publicação do CRT DST/Aids-SP


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.