Morada do bicho homem

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A MORADA DO BICHO-HOMEM Dando a casa à taipa

Ivan Alves Filho

w w w. c s a a rq u i t et u ra . co m . b r


catedrais, como aquela de Milão. Como o homem nasceu sem teto que o projeta, ele criou a casa, que é o prolongamento do seu corpo como a roupa o é da pele. Onde está o homem, lá estará também o seu abrigo. E como o homem tem a mesma estrutura psíquica sempre, em todos os quadrantes e as mesmas necessidades básicas independentemente de sua cultura e seu ambiente geográfico, o abrigo se impõe como um dado da sua própria universalidade. Nesse sentido, a casa ilustra a validade de uma teoria como a do inconsciente coletivo, formulada no princípio do século XX pelo suíço Carl Jung. Ora, a arquitetura, como toda arte, é o inconsciente dando forma estética as emoções.

Ao cumprir uma função de abrigo desde os tempos mais recuados, verdadeiro símbolo de segurança diante do mundo exterior, a morada significa um espaço privativo moldado pelo homem para satisfazer algumas de suas necessidades mais importantes. É no conforto de seu interior que se tecem as histórias pessoais, as relações conflitivas e afetivas e de reprodução da espécie: um quadro que praticamente não se altera, das famílias alargadas do período tribal às famílias nucleares de hoje. O filósofo e revolucionário Karl Marx, reservou uma tal importância ao papel do abrigo na trajetória humana que não hesitou em recorrer à imagem da moradia enquanto materialização da essência profunda do homem. De fato, para Marx, o que separava a abelha, por maior que fosse sua habilidade, do arquiteto, é que este, antes de dar início à sua obra, a projetava primeiro no seu cérebro. Vale dizer, o específico da atividade humana é justamente essa capacidade de prever e controlar o processo de criação, a isso se subordinando a prática propriamente intuitiva. No início não havia o verbo, mas a imaginação.

O abrigo do homem certamente o protege, mas também o transcende. E, no caso específico da morada de taipa, trata-se de um abrigo que se identifica tanto com o homem e a sua experiência vital que de certa forma ele é o próprio homem erigido em barro e ca;. Afinal, os componentes orgânicos do homem se encontram igualmente presente nos vegetais, que crescem na terra. Isto é, no barro: no mesmo bom e velho barro em que Deus outrora plasmou Adão.

// CAPÍTULO 1

Homens são casas. A sua cabeça, o teto; os seus braços, as paredes; os seus pés, o chão e o seu coração, ora o seu coração são as portas e as janelas, as quais devem permanecer sempre abertas, acolhedoras. E o inverso também é verdadeiro: casas também são homens. Pois de outra forma não se explica a emoção que o visitante sente ao percorrer os aposentos de um Victor Hugo, na sua morada da Place de Vosges, a mais harmoniosa das praças parisienses. Dir-se-ia que o velho Hugo, o poeta dos desvalidos desse mundo, ainda se encontra ali por inteiro, como que amalgamado às paredes de pedra. E não é por acaso se milhares e milhares de páginas descrevam a morada de escritores e artistas, como se elas fossem personagens, não de suas obras, mas de suas vidas. Com essa ótica, como olvidar, por

A imaginação à serviço do abrigo ou uma forma com função bem definida. Este pode ser considerado o início da moradia humana. Pois todo homem mora, do útero materno sua primeira morada - às toscas escavações nas rochas e dessas, num salto extraordinário, ao refinamento de palácios, como aquele de Versailles, nos arredores de Paris, ou

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exemplo, que o poeta Pablo Neruda cultivou, por mais de três décadas, na Isla Negra, uma flor-vivenda debruçada sobre o mar, enquanto escrevia alguns de seus mais belos textos? Texto e esses que Neruda redigia no escritório propositalmente coberto de zinco para que pudesse ouvir os pingos da chuva martelando o teto enquanto trabalhava... Uma flor-vivenda do Pacífico que camarilha golpista do general Pinochet ousou profanar e que é hoje um dos símbolos culturais e afetivos, sobretudo afetivos, do povo do Chile. Como os homens, casas dão a volta por cima, após sacudirem a poeira. E o que dizer da morada de Anne Frank em Amsterdam, aterrorizada pela bestialidade nazista? O que dizer? São tantas as casas quantos são os homens e suas histórias. Tem sido sempre assim. E será sempre assim. Pois, ao existir, exteriorizamos. Foi o que o poeta Fernando Pessoa quis dizer com esses versos: “Vivo no cimo de um outeiro numa casa caiada e sozinha. E essa é a minha definição” Casas também são recordações. Todos trazemos na lembrança, a casa da nossa infância. O crítico e ensaísta Alceu Amoroso Lima foi um dos que nunca esqueceu a sua: “A Chácara da Casa Azul onde eu nasci e o leve rumor das águas que corriam rio abaixo, marcaram para sempre a lembrança da minha infância. (...)As casa que habitei sempre marcaram a minha vida. Fui caseiro desde o nascimento. Talvez por isso é que voltei à Casa de Deus depois de a ter abandonado. Tão quieto contava-me minha mãe, que ainda na Chácara da Casa Azul (o Cosme Velho nº02, a dois passos daquela onde passou Machado de Assis os últimos anos de sua vida, o que constitui para minha infância o único traço marcante que a ilustrou), contava minha mãe que ia por vezes à varanda para ver se eu tinha desaparecido, tal o silêncio em que brincava sozinho. Daí talvez, até a velhice, o meu culto pelo silêncio”.

Essa mesma sensação de agradável quietude vem à mente de poeta e cronista Vinícius de Moraes ao recordar-se da morada materna: “É sempre quieta a casa materna, mesmo aos domingos, quando as mãos filiais se pousam sobre a mesa farta do almoço, repetindo uma antiga imagem”, garante. Naturalmente casas também são amores. Tem a palavra agora o grande simbolista negro Cruz e Souza: “...só com ela, eu desejava bem estabelecer lar, fundar casa, não sobre alicerces de pedra e areia, mas sobre o alicerce profundo de nossa alma.” Amores que deixaram marcas para lá de positivas na alma do poeta latino Ovídio: “Era intenso o calor, passava já do meio-dia; Estendi-me na cama a repousar meus membros. Das janelas, em parte abertas, em parte cerradas, Vinha luz semelhante à que há dentro das matas Eis que chega Corina numa túnica ligeira, Cobriam os cabelos seu alvo pescoço; Assim entrava pela alcova a formosa Seríramis ... Devesti-lhe a túnica ligeira, Ela lutou, entanto, por cobrir-se com A túnica, mas sem nenhum empenho de vencer: Venceu-a, sem pensar, a sua traição. ... Quem não sabe o resto? Exaustos, repousamos depois. Que mais outros meios-dias prósperos me sejam.” ( tradução de José Paulo Paes)

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Ovídio até que teve sorte, já que amores por vezes decepcionam - o que a marchinha carnavalesca captou à sua maneira: “Eu ontem cheguei em casa, Helena, te procurei não encontrei Fiquei tristonho a chorar Passei o resto da noite a chorar Helena, Helena, Vem me consolar.” Nas casas há espaço para tudo. Como há espaço nas casas! Para recordações e olvidos. Gozos e brincadeiras. Zangas e arrependimentos. Para tudo. E há nas casas ainda lugar para a arte, expresso no mobiliário, nos quadros na parede e no cuidado com que se prepara um quitute, se cose uma roupa ou se manipula os originais de um livro. O aparente paradoxo da casa reside no fato de que, sendo um espaço da intimidade, sirva para tantas atividades externas. E que o campo da arquitetura - como o campo de toda arte e mais do que qualquer outra arte, talvez - é. a bem da verdade, específico, sem deixar de estar ligado a outros domínios da prática humana. Tanto a morada é uma experiência vital, múltipla, que uma das maiores aflições dos homens é justamente perder o rumo da casa. Todos temem isso. Os exilados e os bêbados que o digam. Fagundes Varela, um expatriado em sus própria terra e que se entregará a beira da bebida após a morte prematura do seu filho Emiliano, encontrou uma maneira poética de conviver com esse temor. Segundo os seus biógrafos, Varela amarrava uma corda à cintura ao partir para suas habituais bebedeiras, nas quais pendurava, pelos pés, alguns ... passarinhos! O poeta contava com o bom senso das avezinhas para despertá-lo, se porventura caísse pelas ruas. Resta saber o que São Francisco de Assis pensaria disso tudo (é possível que passasse a responsabilidade para o Deus Baco...) Casas dão a medida exata do ser humano. Há moradas de todos os tipos, par todos os sen-

timentos e ocasiões. Há quem tenha passado a vida em hotéis, como Mário Quintana ( “Eu sempre que parti/ fiquei nas gares/ olhando triste, para trás...). Há aqueles que moram em casas flutuantes, como os membros daquelas famílias psicodélicas estacionadas à beira do Amstel, na sempre surpreendente Amsterdam. E há quem viva em ocas, iglus, tendas, caravanas, arranha-céus ou até mesmo no tojo das árvores, como o simpático casal Tarzan e Jane da ficção de Edgar Burrough. E sobretudo há aqueles nossos irmãos que não têm onde morar - e por isso moram na areia. As casas, enfim, nada mais fazem do que traduzir a diversidade do homem e do próprio ambiente natural em que este vive. Vale dizer, casa é história. “História magistra vitae”, ensinou Cícero.

// CAPÍTULO 2 A rigor, tudo começou antes da história propriamente dita, isto é, ainda na chamada pré-história humana.

As pinturas rupestres mostram as caçadas, primeiras atividades colaborativas realizadas pelos homens. Assim nasceram as comunidades.

Vamos por etapa. O homem é, ao mesmo tempo, um ser biológico e um ser social. Isso significa que a sua natureza é histórica e a sua história é natural. Exemplificando: ao abrir suas narinas, o homem respira e, mantém, pelo oxigênio, o seu organismo funcionando. Ocorre, no entanto, que ao fazer o mesmo, com a boca, o alimento não penetra ali como o ar, automaticamente. É preciso algo mais para sustentar o

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seu corpo. É preciso que o homem coma. Ora, esse condicionamento biológico inicial, o fato de o homem ter de prover o seu corpo com um outro tipo de “alimento” além do oxigênio, fez com que o homem criasse as condições para extrair da natureza (como de alguma forma se dera com o próprio ar) o seu sustento. Só que, desta vez, não se trata para ele de se adaptar simplesmente ao ambiente natural: é necessário ir mais adiante, ou seja, produzir o que se come, por intermédio da transformação daquilo que está ao seu redor. E surge assim o trabalho ou mais exatamente a caça como primeira atividade socializada do homem. Como observam os estudiosos, o homem levava uma grande vantagem sobre os animais que perseguia: ele ficava de pé, adquirindo com isso uma visão total da situação. O olho funcionava como um apêndice da arma e suas mãos ficavam livres. Como foi dito, o homem só obtém alimento pelo trabalho, colocando por isso em movimento determinadas formas de cooperação e associação. Sozinho é que ele não vai a lugar nenhum, sucumbe diante das forças da natureza. E o homem se une. Devido a uma questão de maior força física, somente os homens tomam parte da caça. Mulheres, velhos e crianças não costumam participara dessa atividade, ficando baseados em acampamentos - justamente os abrigos humanos. Em outras palavras, os abrigos surgem de uma necessidade concreta, material: eles protegem a todos e, ao mesmo tempo, cumprem uma função de retaguarda da própria atividade produtiva. Nesses acampamentos - conforme o atestam numerosas pesquisas arqueológicas - os homens vão construindo os primeiros fundamentos daquilo que chamam lar. De fato, os homens ali se recolhem para o merecido descanso, após as caçadas; dividem o fruto de seu trabalho; saram eventualmente suas feridas; amam suas mulheres e filhos - aprofundam, enfim, os laços de socialização as espécie. E isso não é pouco. Os primeiros abrigos, os homens os encontraram prontos. São grutas, as cavernas. A essas habitações naturais, os homens vão,

pouco a pouco, acrescentando algo da sua criatividade. Adicionam, sintomaticamente, imagens às paredes das cavernas. É que a arte, como a fala e a fabricação de instrumentos e utensílios, é fator de humanização. E constróem como podem: escavações dos tempos atuais atestaram que, na planura urcraniana, os homens ergueram cabanas colossais, adaptando ossadas de mamutes caçados por eles. Devidamente recobertas de peles de animais, essas ossadas protegiam os primeiros homens dos intempéries da natureza. Ainda não é arquitetura, já que não há busca da beleza - mas já é um começo. E mesmo um bom começo, comparativamente aos animais, Afinal, o homem já pode viver numa criação sua. Voltemos à questão do trabalho e da caça. O que se sabe é que, uma vez estabelecidas nesses acampamentos, as mulheres se dedicam à coleta vegetal, o que teria proporcionado, mais para frente, o aparecimento da própria agricultura. Os conhecimentos disponíveis hoje não permitem dizer com exatidão o que teria levado o homem à atividade agrícola, se o acaso ou a necessidade. Talvez as duas coisas. Mas, pouco importa: o fundamental é que a agricultura possibilitou ao homem um maior controle sobre as forças da natureza. Fora isso, uma coisa parece igualmente certa: as primeira plantações teriam despontado em sítios onde não cresciam em abundância vegetais em estado selvagem. Foi compelido pela adversidade do meio que o homem plantou, em locais desprovidos de vegetação densa. A atividade agrícola se faz acompanhar por outro fenômeno: a sedentarização. Durante muito tempo o homem errou por esse mundo (a própria palavra “planeta”, em grego, significa “astro errante”). Ainda que o nomadismo não implicasse um eterno deslocamento (na realidade o homem delimita determinadas áreas e retorna sempre aos mesmos pontos iniciais que abandonou, como que deixan-

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do a natureza descansar, seguir o seu próprio ritmo, ensina o arqueólogo Leroi-Gourhan), a agricultura provoca, sem dúvida, uma maior estabilidade do homem, gerando os primeiros vilarejos e, posteriormente, as primeiras cidades propriamente ditas. O agricultor entrava em cena mas não se afastava de imediato o caçador: os dois coexistem pacificamente por centenas e centenas de anos. Mas o acampamento, este começava a virar casa. E não é por mera coinscidência se a Deusa da Lareira, na mitologia grega, é, também, a mais sedentária entre os imortais... A casa ganhara um aliado tão poderoso quanto inesperado: a semente. A História ensina que a morada do bicho-homem tem um pouco da morada dos dois, do bicho e do homem. O cupinzeiro lembra algumas construções tradicionais africanas, como a casa do joão-de-barro lembra a casa de barro do nosso João... Mas a construção não pode ser considerada uma cópia da natureza, por mais que ela se assemelhe ou dela se aproxime o homem. É que - e isso modifica tudo - a construção é uma criação humana. Com alguns milhares de anos, por sinal. Com a palavra um especialista, Robert Clark: “mais ou menos 15 mil anos, no Oriente Médio. Ela é feita de muros de barro misturado à palha, ou então de tijolos de barro secado simplesmente ao sol. Casas que são impressionantemente semelhantes, na realidade, àquelas que existem ainda hoje, não apenas na África como também em várias regiões da Europa”.

silex. Como existe um espaço bem diferenciado, junto à casa, para o cozimento dos alimentos, a cargo das mulheres. Tem-se a impressão de que o homem primitivo desenvolve grande parte de suas atividades em casa. Do trabalho ao repouso deste ao amor. Isto é, o homem cria como procria. Construir, criar para ele é algo inato e instintivo, faz parte de sua pele. O homem precisa de organizar o espaço à sua volta como necessita de alimento, descanso ou sexo. É tudo parte dele. Ao abrirmos um dicionário de português moderno não teremos mais dúvidas: o termo casamento vem de casa. Mais, até: a palavra casal designa, ao mesmo tempo, a união entre um homem e uma mulher e herdade. “Quem casa quer casa”, diz o ditado popular. A casa é o homem - e é também a mulher.

// CAPÍTULO 3

A cidade mineira de Ouro Preto é um exemplo do predomínio da taipa no Brasil durante o período colonial.

Com a casa de terra (ou a taipa) o homem se sentia seguro para deixar pela primeira vez o abrigo das cavernas. As pesquisas dos arqueólogos revelam que os primeiros lares pré-históricos já refletem a divisão do trabalho que começa a se operar na sociedade humana, a qual tem por base a separação entre os sexos masculino e feminino. Há, para citar um exemplo, um canto nas casas para os homens, onde é trabalhado o

Mas aquilo que começou como abrigo se transformou - como a história o indica - em instrumento de poder. Como foi isso? Responderemos de chofre, como se diz: graças à divisão da sociedade em classes sociais antagônicas. O processo histórico que conduz à formação das classes é sem dúvida extremamente complexo. Mas se fôssemos resumi-lo diríamos que a agricultura, ao viabilizar a existência de um surplus (ou excedente de produção), possibilitou, através do armazenamento ou estocagem dos produ-

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tos, que um setor minoritário da sociedade se apoderasse da riqueza gerada por todos. E esse setor minoritário era formado, quase sempre, por aquelas camadas que gozavam de algum prestígio social, como os guerreiros e os sacerdotes. Em termos de espaço arquitetônico: pelos futuros ocupantes dos palácios e dos templos. O poder temporal e o poder divino. De qualquer maneira, é importante ressaltar que a construção começava a deixar de ser abrigo, somente, para se transformar em arquitetura, em parte. Por se saber mortal, o homem buscava a imortalidade por meio d atividade artística, espalhando beleza pelo mundo. Os manuais de História Universal costumam fornecer dados interessantes sobre essa ligação entre o espaço e o poder. Em um deles podemos ler que primeiro grande palácio da História, o de Sargão, erguido na cidade de Babilônia, era construído em terra (como aliás a primeira cidade, Jericó) e possuía nada mais nada menos que 700 dependências. A maior parte das edificações do palácio - inclusive a célebre Torre de Babel - era de terra e tijolo cru. “O primeiro arranha-céu dos homens era de terra”, maravilhou-se de certa forma o arquiteto. Para se formar um juízo melhor da importância da terra nas construções do Egito, basta dizer que foi a decisão do Faraó de cortar o suprimento de palha aos hebreus (palha essa que, misturada ao barro, era utilizada na edificação das moradias) que provocou a rebelião hebraica na região. Mesmo as pirâmides, verdadeiros símbolos do poder dos faraós, eram construídas de pedra ou terra crua. E isso tanto na antiga civilização egípcia quanto no México e no Peru. O mais impressionante desses abrigos egípcios (abrigos de sepulturas, bem entendido), Queops, tinha exatos 145 metros de altura. Aos Deuses, as alturas. A arquitetura grega clássica (é preciso lembrar que a Grécia foi a região em que melhor se definiu, na antigüidade, essa questão da

divisão da sociedade em classes) como que consagrou o modelo já esboçado pelas civilizações anteriores: templos e palácios enfeitavam todas as honrarias, estando Fora do horizonte da arquitetura propriamente residencial qualquer idéia de luxo ou mesmo de uma durabilidade maior ou efetiva. Os nossos manuais garantem que as moradas gregas eram relativamente simples, sem grandes aparatos, em contraste aberto com as construções oficiais, como a Acrópole ou Templo de Afeia. Aparentemente, advertência de Heráclito, o homem da dialética, caíra no vazio - “a morada do homem é o extraordinário”, costumava dizer o sábio. Em todo casa, algumas construções importantes, como o palácio do Rei Minos, em Creta, eram de terra. Mas sem dúvida o homem ia perdendo a inocência. Doravante tudo é, literalmente, uma questão de classe. Mas a arquitetura ia ganhando uma nova importância. Aliás, o termo arquiteto (de “arkhi” - principal e “têkton - operário) tem origem na Antigüidade grega. Fora isso, outro exemplo interessante extraído da trajetória grega é fornecido pela pólis, que significa cidade, comunidade. Ora, política vem de pólis e significa, no fundo, dedicação a um grupo, a uma comunidade determinada. Os antigos gregos, por sinal, dividiam os indivíduos em dois tipos. De um lado, havia o idios - e daí o termo idiota - , que era aquele que se desligava ao grupo e aos seus problemas. Mais uma vez cidade e política, arquitetura e poder se confundiam. “Cuidai vós de construir Atenas, Péricles”, declarou certa vez Sócrates ao grande político, “que eu estou construindo o ateniense”. Em relação a Roma, os manuais compulsados beiram à crueldade: nenhuma outra área levara, até então, a arquitetura às fronteiras da propaganda política, tamanha a utilização das construções na afirmação do poder de conquistadores como César e Augusto. A rigor, todos os conquistadores romanos

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marcaram os seus feitos com obras monumentais. Nunca é demais destacar que veio à luz na antiga Roma um momento de exaltação guerreira que sobreviverá até os tempos modernos como um verdadeiro símbolo das conquistas: o Arco do Triunfo. Como se isso não bastasse, a relação entre arquitetura e ostentação de poder fica ainda mais evidenciada quando se sabe que o Monte Capitolino - sede do governo na Roma Antiga - deu origem à palavra capital. A qual passou, por seu turno, a designar o espaço ou o centro efetivo de exercício de poder em um determinado país ou região. Assim, a cidade que porventura sediasse o poder seria a cidade principal, a capital. Ocupar espaço, nesse sentido, eqüivale a ocupar poder. Se lançarmos mão de mais um manual, aprenderemos que a arquitetura cristã, na medida em que opera uma síntese entre as concepções de espaço dos gregos e romanos, torna-se herdeira e rica tradição ocidental. Mais: é uma arquitetura que veio para ficar. E isso se produz já no século IV de nossa era, quando o cristianismo se torna a religião oficial do Império Romano, cuja sede se transfere para Bizâncio logo em seguida. E é em Constantinopla , verdadeiro ponto de interesse entre o Ocidente e o Oriente, que o cristianismo se afirma, tanto do ponto de vista doutrinário quanto de sua expressão artística, simbólica. Assim, colocada em posição das mais privilegiadas, na fronteira entre dois mundos, a religião cristã se vê em condições de entabular uma revolução intelectual que empolgaria as massas, incorporando as mais diferentes contribuições ao seu ideário. Seus próprios templos traduzem essa diversidade, essa abertura para o outro e para o diálogo entre as culturas. Afinal, o mundo de Deus desconhece fronteiras humanas. E todos os homens, sem exceção, são feitos à sua imagem e semelhança. A arte cristã transforma-se em breve espaço de tempo numa espécie de décimo-terceiro

apóstolo ou propagandista da doutrina, integrando o combate pela conquista espiritual dos homens. Naturalmente, essa conformação contribuirá e muito - para moldar o universo imaginário do homem do medievo europeu. A Idade Média, uma fase da História marcada pela dominação do servo pelo senhor, terá, com efeito, nas igrejas cristãs, assim como nos palácios e castelos, os seus símbolos máximos. A arquitetura se firma, como já ocorrera em outras épocas, como a morada dos deuses e uma espécie de ícone do poderio terrestre de reis e aristocratas. Da morada do homem comum ao manuais mantêm um profundo e prolongado silêncio. Viria da Itália o primeiro grande questionamento a essa ordem de coisas. Partiria de Florença, mais exatamente, um movimento que tem por objetivo definir o papel do indivíduo nos novos tempos, entrando em choque com a mentalidade cristã de submissão do homem aos desígnios da Santa Madre Igreja, senão de Deus. A forte presença cristã na arquitetura e nas artes é, pela primeira vez desde a ascensão do cristianismo no Ocidente, contestada. É a época em que Dante Alighieri, exilado, desafia o idioma oficial da Igreja, o latim, redigindo em toscano a sua extraordinária Divina Comédia, dando origem ao idioma italiano, a “lingoa gentile”. Pouco a pouco, a visão do mundo da burguesia nascente e o seu acentuado sentido de individualidade vão se impondo na Europa. Ora, a história íntima do homem, a sua privacidade encontra na casa um espaço privilegiado para florescer. A geografia do lar vai se modificando, apontando para novas áreas de convívio e, mesmo, de distração e lazer. Assim, surge o quarto individual, o gabinete de leitura, o escritório - espaços privativos por excelência. A tomada de consciência de sua própria individualidade é uma das maiores conquistas históricas do homem. Descobrir-se a si mesmo, conscientizar-se de sua intimidade é uma aquisição moderna. Montaigne, de um ho-

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mem da segunda metade do século XVI, disse uma vez que perdera “dois ou três filhos em tenra idade” - ou seja, não se lembrava sequer do número exato de filhos, algo realmente impensável nos dias de hoje, tamanha foram as mudanças que se operaram na vida familiar dos homens na sua espera privada desde então. Tocqueville afirmava que o próprio termo individualidade surgira somente no século XVIII. De tal forma a privacidade se tornaria um bem no mundo moderno que a defesa dos direitos da pessoa humana viriam a se confundir com a inviolabilidade do domicílio. Não é à-toa que os regimes autoritários - entre os quais se inclui a ditadura militar que se abateu sobre nós por 21 anos - têm na violação do espaço da casa um dos grandes instrumentos de sua política terrorista Mais conhecida por Renascimento, essa autêntica revolução cultural da burguesia se espalha por toda Europa, como um rastilho de pólvora, fundindo-se, bem entendido, com tradições e especificidades culturais locais e regionais. Na Península Ibérica, para citar um exemplo, o estilo renascentista se mescla à arquitetura gótica e moçárabe. O clacissismo francês - cuja obra-prima seria o palácio de Versailles - e o barroco - com uma concepção em ruptura aberta com a rígida geometria até então predominante nos traçados arquitetônicos vêm completar o cenário da arquitetura européia no momento que nos interessa mais de perto: aquele das chamadas Descobertas. Assim como a Igreja do Papa Constantino uniu Oriente e Ocidente, mais de mil anos depois Portugal como que refazia a aventura espiritual dos primeiros tempos do cristianismo e anunciava ao Ocidente uma espécie de novo Oriente: a terra do Brasil. Foi impressionante para a época. Poder-se-ia dizer que o mundo se unificava pela primeira vez: em poucas décadas, o Brasil estaria produzindo açúcar - uma planta da Índia -, com técnicas da Ilha da Madeira e capitais europeus e força de trabalho escrava da África Negra. Produzia um solo americano uma planta asiática

com base no trabalho africano para consumo europeu - um polissíndeto colonial. Globalização é isso aí. A arquitetura e as artes acompanhariam, evidentemente, toda essa movimentação, essa inquietação que ia pelo mundo.

// CAPÍTULO 4

As ocas, como são chamadas as casas dos índios são um bom exemplo da vivência em comunidade.

A expressão Novo Mundo - tão em voga no início do século XVI na Europa - diz tudo: trata-se de um novo espaço. E de um novo espaço a ocupar. Os primeiros europeus que desembarcaram na costa brasileira em 1500 ficaram maravilhados com uma terra tão “graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nelas tudo, por bem das águas que têm...” Podemos ler ainda na célebre carta de Pero Vaz de Caminha, a respeito das construções indígenas: “Foram-se lá todos, a andarem entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais era tão compridas, cada uma, como esta nau capitania . Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo para se agüentarem, faziam os seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro. Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam...”

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Ora, essa descrição não difere muito de outra feita pelo Padre Fernão de Cardim, em 1584. Diz o Padre: “Moravam os índios antes de sua conversão em aldeias, em umas ocas ou casas muito compridas, de duzentos, trezentos ou quatrocentos palmos e cinqüenta de largura, pouco mais ou menos (...) Cada casa destas tem dois ou três buracos sem portas nem fecho. Dentro dela vivem logo cem ou duzentas pessoas, cada casal em seu rancho, sem repartimento algum, e moram, duma parte a outra, ficando grande largura no meio, e todos ficam como em comunidade, e entrando na casa se vê quantos nela estão, pois estão todos à vista, uns dos outros sem repartimentos nem divisão. Parece a casa um inferno ou labirinto, uns cantam, outros choram, outros comem, outros fazem farinha e vinhos, etc. (...) Porém é tanta a conformidade entre eles que em todo o ano não há uma peleja e, como não tem nada fechado, não há furtos”. O princípio da primeira frase de Cardim é sintomática: “Moravam os índios antes da sua conversão... “Com efeito, a presença européia iria transformar radicalmente não apenas o espaço doméstico como também todo o sentido de ocupação espacial dos índios do Brasil. A começar pelo fato de que os portugueses introduzem por aqui a noção de propriedade privada de solo, e isso desde 1535, por intermédio da instituição do sistema de sesmarias. Com essa decisão, a Coroa começava a organizar a vida econômica da nova colônia sob base propriamente produtivas e não meramente extrativas, como ocorrera com as feitorias de pau-brasil estabelecidas ao longo da costa durante as três primeiras décadas da ocupação. Era preciso preparar a terra para o açúcar. É o período em que o latifúndio reina soberano. Mais, até: a essa terra destarte privatizada, somar-se-iam dois outros fatores de produção igualmente fundamentais, quais sejam, a força de trabalho escrava e a edificação de engenhos de moer cana-de-açúcar. Esses os verdadeiros alicerces da sociedade.

O índio e a sua cultura só integrariam este novo projeto na medida em que se adequassem às necessidades ou demanda do comércio internacional. Fora daí não existe espaço para o índio. E isso se evidencia ainda mais no caso brasileiro, um país inteiramente forjado para atender às exigências do mercado externo (e para outra coisa não serve uma colônia). Primeiramente, a colônia exportou pau-brasil, uma matéria-prima cotada, por sinal, nas bolsas européias, como aquela da Antuérpia, desde pelo menos 1508. Dessa madeira se extraía um corante utilizado na indústria têxtil. A opção por colonizar advém, de um lado, do próprio esgotamento do pau-brasil, cuja cotação, já em 1516, se situa abaixo de especiarias como a pimenta, a canela e o gengibre. E, de outro, das ameaças representadas pelas numerosas incursões francesas por quase todo o nosso litoral. Era tempo em eu o Rei da França, Francisco I, dizia, a propósito da assinatura do tratado de Tordesilhas entra Portugal e Espanha, sob as bênçãos do Papa, “desconhecer as cláusulas do testamento de Adão que me excluem da divisão do mundo”. Na perspectiva portuguesa, não havia outra alternativa senão a criação, a partir do aniquilamento das estruturas igualitárias da sociedades indígenas, uma sociedade colonial de classes. E assim foi feito. Sob base do trabalho compulsório - inicialmente dos índios e depois dos negros, pelos lucros auferidos nos mercados africanos - tocava a vez do açúcar, produzido sobretudo no nordeste, terra rica em massapê. O resultado foi impressionante: em apenas meio-século, isto é, de 1548, quando se verifica a entrada das primeiras levas maciças de escravos africanos, a 1600, época em que praticamente se completa a montagem do complexo açucareiro, a colônia se torna a primeira zona mundial de açúcar. A plena realização do projeto colonial teve de recorrer também à estruturação de um embrião de aparelho de Estado - o que se dá em 1548, com a fundação de uma capital, Salvador, apenas 16 anos após a criação do

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sistema de capitanias hereditárias entre nós. Ao regimento Tomé de Souza, trazido pelo primeiro Governador-Geral da colônia, Tomé de Souza, justamente, incumbiria disciplinar os primeiros passados administrativos da nova terra, regulamentando as relações com os índios e, a grosso modo, com o novo espaço, largamente desconhecido ainda dos ocupantes portugueses.. A segurança era uma verdadeira obsessão para os redatores do Regimento e mais da metade dos seus artigos diziam respeito a ela. Em suma, era preciso domar os índios e o espaço físico em que estes se moviam. Curiosamente, naquele que é o primeiro conjunto de leis do Brasil - ou a nossa primeira Constituição, como querem alguns historiadores - há uma referência explícita ao uso da taipa nas fortificações de Salvador. Determina o Regimento de 1548: “Fazer outra cerca junto dela (isto é, de Salvador) de valos e madeira ou taipal, como pareça em eu a gente possa estar agasalhada e segura...” E já no seguinte, o jesuíta Manoel da Nóbrega, empenhadíssimo na catequese dos índios, clamava junto à Metrópole pelo envio imediato de “oficiais que façam taipa e carpinteiro”. Aqui uma observação. Casas de taipa existem em vários pontos do território português desde os tempos pré-históricos. Já os celtas - que ocupavam Portugal antes da chegada dos romanos - construíam em taipa, “assim como todos os povos que colonizaram Portugal e mais intensamente os de origem mediterrânea”, conforme sublinhou o arquiteto Fernando Pinto. Predominava aí o adobe, mas os diferentes povos que ocuparam a região da Península Ibérica se valeram também de outras técnicas de construção, como a taipa de pilão e o pau-a-pique. Durante o chamado Ciclo das Descobertas, entre os séculos XV e XVI, sobretudo, Portugal chegaria a exportar a taipa não só para o Brasil como para várias partes da África. A História registra que um

certo Rei da Gâmbia, no século XVI, pediu ao Rei de Portugal que encarecidamente lhe enviasse “dois homens que saibam construir casas e cercar a cidade de taipa...” Ao que tudo indica, os próprios portugueses aprenderam com o ocupante romano a erguer fortificações de taipa. É sempre bom lembrar que já no século I a.C. o engenheiro e arquiteto Marcus Pollio descrevia em detalhes nos seus “Dez livros de arquitetura” as técnicas de construção em taipa. Não há nada de novo sob o sol - ou sobre s terra... No Brasil, a taipa também se impõe, como em outras partes do mundo, apesar de sujeita, aqui e ali, a uma certa carga de preconceito. Assim, já por volta de 1570, o cronista português Pero de Magalhães Gandavo - que, assumidamente, escrevia um relato sobre a nova colônia americana ‘para que nestes Reinos (de Portugal) se divulgasse sua fertilidade e provoque a muitas pessoas pobres que se vão viver a esta província” - pôde afirmar. “quanto às casas em que vivem (os portugueses) cada vez se vão fazendo mais custosos e de melhores edifícios: porque em princípio não havia outras na terra senão a taipa e terra, cobertas somente com palma. E agora há muitos sobrados e de pedra e cal, talhadas e formadas como deste Reino...” E ainda garantia, quanto às casas dos índios por essa época: “As povoações desses índios são aldeias: cada uma delas tem sete, oito casas, as quais são muito compridas, feitas à maneira de comboarial ou terracenas fabricadas somente de madeira e cobertas de palha ou com outras ervas do mato semelhantes”. A essa altura, é preciso levar em conta que o Brasil, enquanto nação que se originava do choque entre as estruturas tribais aqui estabelecidas até o início do século XVI e a expansão colonial originada do desenvolvimento

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do modo de produção capitalista na Europa, tem uma cultura que, desde os seus primórdios (e de fato não poderia ser de outra forma) combina elementos de diversas culturas e, mesmo, fases distintas de arranque histórico. Gabriel Soares de Souza, um senhor de engenho radicado na Paraíba, escreveu em Notícias do Brasil - provavelmente o maior relato sobre o período quinhentista brasileiro - o que se segue a propósito das construções coloniais em 1587: “Tomada esta resolução se pôs em ordem este edifício, fazendo primeiro um cercado forte de pau-a-pique, para os trabalhadores e soldados poderem estar seguros do gentio; e como foi acabada, arrumou a cidade dela para dentro, arrumando-a por boa ordem com as casas cobertas de palma ao modo do gentio...” E o quadro se complica - ou melhor: se completa - ainda mais quando as contribuições culturais portuguesas e tupis vêm-se somar aquelas dos escravos negros, mormente bantos, transplantados à força para a colônia. Com efeito podemos ler em documento que dormitava nos arquivos portugueses até bem pouco tempo, relativo aos ex-escravos rebelados da região dos Palmares, que “aqui nos Palmares levantam umas barracas de lama...” E nem poderia ser de outra forma: submetidos a constantes ataques por parte das forças coloniais desde o final do século XVI, os habitantes dos Palmares - que organizam em seu refúgio na Serra da Barriga uma sociedade igualitária, sem a presença do latifúndio ou do trabalho escravo - eram obrigados a se deslocar com muita freqüência, a construção de taipa se revelando aí o tipo ideal de edificação pela própria presteza com que se podia erguer uma cabana ou um reduto. Além do mais, é preciso observar que, sobretudo na fase inicial do Quilombo, os palmarinos se mantinham muito próximos da sua cultura africana original. Os documentos informam, por exemplo, que as ruas dos quilombos eram traçadas à maneira africana, havendo

geralmente uma rua única por povoação, estendendo-se por 2 ou 3 quilômetros em linha reta. Em tempo: na cultura negro-africana existe um orixá - Naná - associado à lama, que zela pelo equilíbrio...

// CAPÍTULO 5 Não seria um exagero afirmar que a arte jogou um papel secundário na vida brasileira durante praticamente todo o período colonial, ficando a expressão artística como que relegada às igrejas e a um outro prédio público de melhor qualidade. Naturalmente, vicejavam, aqui e ali, talentos individuais indiscutíveis, como Aleijadinho e Ataíde, mestres do barroco mineiro. Contudo, em linhas gerais, a atenção dispensada às artes era das mais discretas. A rigor, a colônia exibia o modelo dominante no Ocidente em matéria de arquitetura: prédios públicos (como a casa da Câmara de Salvador, construído em 1551), igrejas (algumas delas belíssimas, como as da Bahia e, mais tarde, as da região das minas) e fortificações, muitas fortificações. Isto é, glória à Deus nas alturas e paz na terra para os novos senhores dela... E quanto ao povo? Bem, o povo, este, dava a casa à taipa. Núcleos residenciais isolados, assim como algumas capelas eram, com toda a certeza, edificadas em taipa. Cobertas de sapê, as primeiras igrejas coloniais lembravam estranhamente o ambiente do nascimento do Salvador na manjedoura. As crônicas coloniais registram que os bandeirantes - da mesma forma como o fizeram com a difusão da língua tupi - foram uma peça central na disseminação da taipa, sobretudo nas partes mais ao sul da colônia. Com exceção das construções religiosas e das fortificações militares quase nada de realmente “sólido” se constrói então. Os portugueses procuram imprimir um caráter temporário à maioria das edificações. Sequer havia material de construção à maneira européia no novo meio. Nesse contexto, a solução mais prática implicava o recurso à taipa, onde

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despontavam influências indígenas, notadamente a experiência adquirida com as ocas. A conclusão é da antropóloga Berta Ribeiro no seu livro O índio na cultura brasileira: “A técnica da taipa, também chamada pau-a-pique, barreada, de sebe (caniços engradados, calafetados com barro batido à mão) ou de pilão é de origem portuguesa. A cobertura, por outro lado, é a madeira e com material nativo. Com efeito, a cabana indígena construída totalmente com material vegetal evolui para o casebre de taipa, adobe, tijolo, pedra e cal. Mas conserva em inúmeras regiões do Brasil a cobertura de sapé ou de palmas entrançadas”. E para um autor conceituado como Augusto de Lima Júnior, a taipa predomina “em quase todos os arraiais antigos de Minas”. Resumindo: havia uma arte da construção mais ou menos erudita - aquela dos arquitetos - concebida para o poder e as classes dominantes e camadas mais abastadas da sociedade colonial, e havia outra mais tosca, digamos, de criação popular, espontânea. No período de ouro, na capitania de Minas Gerais, isso fica ainda mais evidenciado, o que a sensibilidade de um poeta como Manoel Bandeira não deixaria de captar, no seu comovente “minha gente, salvemos Ouro Preto”. Eis o poema: “As chuvas de verão ameaçaram derruir Ouro Preto Ouro Preto, a avizinha, vacila. Meus amigos, meus inimigos, Salvemos Ouro Preto. Bem sei que monumentos veneráveis Não correm perigo. Mas Ouro Preto não é só o Palácio dos Governadores A Casa dos Contos, A Casa da Câmara, Os templos, Os chafarizes, Os nobres sobrados da Rua Direita.

Ouro Preto são também os casebres de taipa de sopapo. Agüentando-se uns aos outros ladeira abaixo, casario do Vira-Saia, Que está vira não vira enxurro E é a isso que precisamos acudir urgentemente!” Houve um desabrochar da arquitetura civil com desenvolvimento da exploração aurífera (no total, a colônia enviaria, segundo alguns cálculos, cerca de 1000 toneladas de ouro em direção à Metrópole, no decorrer do século XVIII, riqueza extraída de Minas Gerais mas também de Goiás e Mato Grosso). E isso por uma razão simples: boa parte do ouro ficava mesmo na terra, contrariamente ao que se pensa e diz. Afinal, apenas um quinto ou 20% era absorvido pela Coroa, o restante permanecia em grande parte na própria região das minas, o que explica o florescimento de cidades como Vila Rica. Com mais de cem mil habitantes, a futura Ouro Preto era, provavelmente, o maior núcleo urbano das Américas no final do século XVIII. Ora, tanta riqueza gera, forçosamente, edificações e algumas delas admiráveis, como o Palácio dos Governadores e a Casa dos Contos, em Ouro Preto, e, sobretudo, a Casa da Câmara e Cadeia de Mariana. Várias construções mineiras dessa época (como a igreja matriz de São João d’el Rey, a de Sabará ou mesmo de Ouro Preto) eram de taipa. E uma simples folheada em alguns livros da chamada literatura de costumes do século XIX revela ao leitor de nossos dias a força da construção de taipa no cotidiano brasileiro daqueles tempos. Exemplo disso é A casa do mineiro, de Taunay, que contém passagens memoráveis sobre a taipa. Seja como for, o apogeu do ouro contribui para uma mudança de mentalidade, inaugurando uma tendência voltada para um melhor acabamento das construções públicas não só em Minas como em outras áreas da colônia. A influência do ouro fez sentir assim a arquitetura do Rio de Janeiro, através de

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obras como o Arco do Teles e o Aqueduto da Carioca. Em Salvador, Recife e Belém (nesta ;ultima cidade se radicara o importante arquiteto bolonhês Antônio Landi) também despontam, no decorrer do século XVIII, prédios de inegável beleza e solidez. Mas isso ainda não é tudo. Na segunda metade do século XVIII, os bandeirantes e outras forças a soldo do colonialismo ibérico põem um termo a uma das experiências sociais mais originais da História das Américas: a chamada República Comunista Cristã dos Guaranis, situada nos atuais territórios do Paraná e do Rio Grande do Sul, pelo lado brasileiro, Argentina e Paraguai. Fundamentalmente, a experiência jesuítica preservou duas características da sociedade guarani: a liberdade da pessoa humana e a posse coletiva da terra. Nem é preciso recordar o quanto a sociedade colonial, oficial, fazia tábua rasa disso: no restante das Américas imperava o regime escravista e as grandes concentrações fundiárias. Porém ainda que rechaçando, no plano das estruturas sociais, o trabalho compulsório e o latifúndio, os jesuítas, no plano de organização da vida quotidiana, da realidade mais imediata, teriam um procedimento bastante autoritário. Vale dizer, o mesmo comportamento avançado e tolerante manifestado em relação às formas de organização da vida econômica dos povoados guaranis não se reproduz quando o que está em jogo pertence ao domínio dos costumes, à esfera das mentalidades, do imaginário. E isso não só no tocante ao espaço religioso - o que seria mais compreensível - mas, ainda, no que diz respeito à própria arquitetura, à cultura e às artes em geral. É bem verdade que as “casas de taipa ou adobe” prevaleceram, segundo documentos da época, por muitos anos nas chamadas Missões. E que a alvenaria iria se impor para valer somente para o final da experiência guarani (mesmo assim, no dizer de alguns estudiosos, “a estrutura portanto continuava sendo de pilares robustos de madeira duras ”e havia ainda muito recurso a elemen-

tos ornamentais tipicamente indígenas). Mas o que está em jogo não é tanto a questão da imposição de uma técnica ou de um material determinado de construção. O que os jesuítas questionavam, de verdade, era toda uma concepção de espaço. Para eles, o espaço indígena era promíscuo, completamente fora dos padrões habituais da Europa. Passemos a palavra a um historiador moderno das Missões, o jesuíta Calude Lugon: “É preciso lembrar”, afirma Lugon, “que antes do estabelecimento das reduções, os guaranis viviam e galpões coletivos de uma só peça, sem separação, em grupos de famílias contando até duzentas pessoas. A promiscuidade era completa”. Mais adiante, complementa o autor: “As casas particulares dos guaranis tinha sido primeiro extremamente simples, de uma simplicidade que contrastava com a riqueza das igrejas. Essas primeiras cabanas, construídas de junco e revestidas de taipa, não possuíam “janelas, chaminés, lareiras ou camas”. Seja em espaço europeu ou não, o fato é que as casas de taipa das Missões eram tão resistentes que, apesar da destruição promovida pelos bandeirantes em meados do século XVIII e da própria ação do tempo, ainda hoje “é possível encontrar antigas casas missioneiras - transformadas - em uso”, segundo um relatório elaborado pela UNESCO, em 1987, San Cosme y Damián, em território paraguaio, é um exemplo disso. Mesmo se verificava a existência de uma ou outra brecha, como a experiência missioneira ou o desabrochar do barroco em Minas Gerais, o Brasil dos tempos coloniais seguia sendo, em grande medida, a terra dos gêneros tropicais de exportação, a terra do açúcar e da escravidão agrária. E a moradia não fica, nem pode ficar, à margem desse processo. Não por acaso, um dos clássicos da cultura brasileira, Casa Grande e Senzala, de Gilberto

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Freyre, inclusive, “não há assunto mais complexo do que a casa”. O sociólogo pernambucano diz de que lado se encontrava a taipa no período colonial: “Na zona agrária desenvolveu-se, com a monocultura absorvente, uma sociedade semi-feudal - uma minoria de brancos e brancarrões patriarcais, polígamos, do alto das casas-grandes de pedra e cal, não só os escravos criados ao magotes nas senzalas como os lavradores de partido, os agregados moradores das casas de taipa e de palha, vassalos das casas-grandes em todo o rigor da expressão”. Uma casa de taipa que Castro Alves, no poema A senzala, viu assim: “Hei-la a casinha... tão pequena e bela! Como é singela com seus brancos muros! Que liso teto sapé dourado! Que ar engraçado! Que perfumes puros! “

// CAPÍTULO 6 A independência política alcançada em 1822 liberta o Brasil do jugo português, mas não liberta a sua arquitetura. Não há nenhum paradoxo nisso: uma coisa é o país se libertar politicamente de Portugal, outra é a realidade da sua cultura, que continua sendo largamente colonial. Aliás, os próprios fundamentos da ordem colonial-escravista, tais como a economia exportadora de gêneros tropicais e o sistema latifundiário que lhe dá sustentação, se mantêm e, em certa medida, até se aprofundam. O endividamento externo, por exemplo, torna-se rapidamente colossal, comprometendo as finanças do Brasil até o alvorecer da República. Nessas condições, a independência cultural pertence ao domínio da utopia. Mesmo assim, ocorrem mudanças, inegavelmente. Um primeiro grande salto na arquitetura brasileira se produziria ainda na fase anterior à Independência, mais exatamente no bojo da corte portuguesa, com D. João VI à frente, para o Rio de Janeiro. Transcorria o

ano de 1808 e para que se possa fazer uma idéia do impacto dessa transferência sobre o tecido urbano do Rio, basta dizer que em pouquíssimos meses, cerca de 15 mil pessoas desembarcaram numa cidade de 50 mil habitantes! Para além de construir centenas e centenas de moradias particulares para alojar todas essas pessoas, seria necessário acomodar levas de funcionários, uma vez que a sede do governo português se transfere automaticamente para o Brasil. Surge, assim, pela primeira vez entre nós, um aparelho de Estado gozando de independência de ação; a Metrópole já não existe mais. Ora, tudo está por fazer aqui. Em função dessa nova realidade, os acontecimentos se precipitam a uma velocidade inusitada, da abertura dos portos em 1808 à elevação do Brasil de Reino Unido a Portugal, em 1815, e desta às lutas sucessivas pela independência, sete anos mais tarde. De perder o fôlego. Evidentemente, a cidade não poderia permanecer alheia a tudo isso e a sua expansão física torna-se inevitável. Uma Prioridade, até. Surgem, então, o Jardim Botânico, a Biblioteca Pública, novos arrabaldes se formam. Os relatos dos viajantes da época (Debret, Rugendas, Pohl e outros) retratam com fidelidade algumas dessas alterações. E foi visando conduzir, muito provavelmente, sobre os trilhos seguros, todo esse processo de mutações que D. João VI decide, já em 1816, promover a vinda de um seleto grupo de arquitetos, artesãos e pintores europeus para o Rio de Janeiro, onde inaugurariam a Academia Real da Ciências, alguns anos mais tarde. Nascia, assim, a chamada Missão Francesa, com destaque para o nome do arquiteto Grand Jean de Montigny, responsável por uma grande quantidade de obras na cidade. A essas transformações ocorridas no início do século XIX, se acrescentaria, mais para o seu final, o choque da Revolução Industrial, gerando, no campo mais específico da arquitetura, uma mudança profunda nos métodos

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e materiais de trabalho vigentes na área da construção. O ferro, por exemplo, passa a ser utilizado como material estrutural, combinado com o concreto, daí resultando o concreto armado. A própria transição do trabalho artesanal para o trabalho industrial, do trabalho escravo para o trabalho livre, materializada pela abolição, em 1888, influi na realidade da moradia popular, sobretudo da taipa. E isso porque a taipa simbolizava, naquela quadra histórica, a situação de passagem, de transitoriedade das massas rurais em via de se instalarem nas cidades, sem que tenham se estabelecido propriamente, enquanto massa camponesa no campo. A taipa revela a precariedade do modo de vida daqueles que estão confinados à economia de subsistência, implantado apenas para o próprio consumo. Erguida com extraordinária rapidez - até mesmo em dez dias -, sem apelar para outros materiais que não o próprio barro e a madeira encontrada na terra, a taipa é uma casa andante. E como disse certa vez um poeta, o verbo da vida é andar - o verbo brasileiro por excelência, acrescentaríamos. Transição para o trabalho livre, industrialização, manifestações culturais diversas, agitações sindicais e políticos - o século XX se iniciava e, com uma nova arquitetura, de olho no furacão. O Brasil começava então a sua caminhada em direção à urbanização. Com o deslocamento do eixo do desenvolvimento do campo para a cidade, a taipa tende a declinar, sobrevivendo em áreas agrícolas secundárias e passando a se implantar sobretudo na periferia miserável das grandes cidades. Em São Paulo, região tradicional da construção em taipa, já em 1939, ano da guerra, a indústria suplantava a agricultura na geração de riquezas e benefícios para a sociedade. Novos valores vão surgindo nesse processo. Até mesmo as relações humanas mais íntimas como é o caso das relações amorosas, vão sofrendo profundas mudanças, refletindo todo um conjunto

de novas necessidades em faixas consideráveis da população. A seguinte marchinha, datada de 1940 e de autoria de Roberto Audi e Mário Lago: “Se você fosse sincera O-O-O-O Aurora Veja só que bom eu era O-O-O-O Aurora Um lindo apartamento Com porteiro e elevador E ar condicionado Para os dias de calor Madame antes do nome Você teria agora O-O-O-O Aurora” O Brasil da marchinha acima é o Brasil dos abastados, dos incluídos, daqueles que lograram se urbanizar, digamos. Mas havia uma outra tendência se desenvolvendo no seio da sociedade brasileira, uma tendência perversa, que apontava para exclusão das massas, revelando o quão desigual era o seu desenvolvimento social. A música popular - sempre ela! - tampouco se furtou em retratar a dura realidade da marginalização. Nesse sentido, já em 1933, Noel Rosa e Kid Pepe, dois bambas do samba, como se dizia no passado, denunciavam em O orvalho vem caindo: “O orvalho vem caindo vai molhar o meu chapéu e também vão sumindo as estrelas lá no céu... Tenho passado tão mal! A minha cama é uma folha de jornal. Meu cortinado é o vasto céu de anil! E o meu despertador é o guarda civil (que o salário ainda não viu)”

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Em todo caso, se, na primeira metade do século XX, a arquitetura brasileira se caracteriza por uma extraordinária mistura de estilos, a ponto de o escritor Monteiro Lobato tê-la definido como uma “carnaval arquitetônico”), o mesmo não se poderia dizer do período que abrange, em linhas gerais, a inauguração de Brasília até os dias de hoje. É importante notar que o Brasil, bem ou mal, se preparou para Brasília. Como nada nasce por acaso, antecedentes é o que não faltam. E dos bons. Do contado travado com a modernidade por meio do Manifesto da Arquitetura Funcional, lançada no Rio de Janeiro, em 1928, pelo arquiteto de origem russa Gregori Warchavchik ao novo ritmo dado por Lúcio Costa à Escola de Belas Artes, passando por experiências inovadoras, como o prédio do Ministério da Educação e Saúde, também no Rio de Janeiro. Sem favor algum, entre 1930 - data do lançamento do movimento comandado por Getúlio Vargas - e 1956 - início dos anos JK, primeiro presidente eleito pelo voto popular após o suicídio de Getúlio - a arquitetura brasileira ia se preparando para a longa marcha até Brasília, quando então se alinharia entre as mais criativas do mundo. E à frente desse processo, se encontrava a figura de Oscar Niemeyer, herdeiro de Aleijadinho e de milhares de construtores anônimos pela história do Brasil a fora.

// CAPÍTULO 7 “Esta imensa concentração, esta aglomeração de dois milhões e meio de homens em um só ponto centuplicou a força desses dois milhões e meio; elevou Londres à condição de capital comercial do mundo, criou gigantescas docas e reuniu milhares de navios que recobrem permanentemente o Tâmisa (...). Mas é somente em seguida que se descobre quantos sacrifícios custou tudo isso. Após ter pisado por alguns dias o chão das ruas principais, após ter penetrado com grande dificuldade no formigueiro humano, entre as filas

intermináveis de tíburis e carroças, após ter visitado os “bairros feios” da metrópole, somente então se percebe que esses londrinos tiveram que sacrificar a parte melhor de sua humanidade para realizar todos aqueles milagres de civilização de que sua cidade está repleta, que centenas de forças latentes nelas permaneceram inativas e foram sufocadas para que só algumas pudessem desenvolver-se mais plenamente e multiplicar-se mediante a união com as de outros. Já, o tráfego das ruas possui algo de repugnante, algo contra qual a natureza humana se revolta. As centenas de milhares de indivíduos de todas as classes e de todas as categorias, que esbarrão entre si não são todos os homens com as mesmas qualidades e capacidades, e com o mesmo desejo de serem felizes? E não devem talvez todos, afinal, procurar a felicidade através dos mesmos caminhos e com os mesmos meios? No entanto eles passam um diante do outro apressados como se nada tivessem em comum, nada a ver um com o outro, e entre eles há só o tácito acordo de que cada um se mantém do lado direito da sarjeta, para que as duas correntes de massa, que se precipitam em direções opostas, não atrapalhem o caminho ema da outra; no entanto ninguém pensa dignar aos outros um só olhar. A bruta indiferença, o insensível isolamento de cada um em seu interesse pessoal emerge de modo tanto mais repugnante e ofensivo, quanto maior for o número destes indivíduos que são comprimidos num espaço restrito; e mesmo sabendo que este isolamento de cada um, este estreito egoísmo é em todo lugar o princípio fundamental de nossa atual sociedade, no entanto em nenhum lugar que ele se revela de modo tão manifesto e aberto, tão consciente como aqui na massa da grande cidade...” O longo trecho citado acima é de ninguém menos que Friendrich Engels, o velho companheiro de Karl Marx, com quem redigiu o Manifesto do Partido Comunista, em 1848. É que tanto Engels quanto Marx perceberam

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o quanto espaço, ao espelhar as contradições da vida moderna, contribui para alienar o ser humano dele mesmo e do convívio com os seus semelhantes e o próprio meio circundante. Na raiz dessa alienação se encontra o aniquilamento do trabalho humano, que deixou de ser um fim para ser um meio. Ora, quando o trabalho se transforma em meio de sobrevivência ao invés de ser um modo de afirmação da personalidade de cada um de nós, este trabalho perdeu o sentido; é alienado ao homem. Conforme destacou certa feita o filósofo francês Roger Garaudy, não encontrando prazer no mundo do trabalho, da produção, o homem se volta para fora desse mundo, buscando uma compensação através do consumo. Como fruto do seu trabalho não lhe pertence, resta ao homem contornar as suas frustrações pelo consumo. Por um consumo que, diga-se de passagem, muitas vezes não corresponde às reais necessidades de desenvolvimento de sua personalidade. Toda grande manifestação artística do século XX - de Rilke a Kafka, de Cartier Bresson a Pablo Neruda, de Kurusawa a Pablo Picasso - tem por eixo a crítica ao esmagamento do indivíduo e a sua luta para realizar seus desejos e potencialidades. Não é tanto a aquisição de bens, em si, que está em causa - mas o fato de o homem trabalhar apenas para adquirir bens que não contribuem para o seu enriquecimento espiritual e intelectual. Ou seja, bens que apenas despertam nela a evasão do mundo real, preparando-o para aceitar com mais resignação o novo embrutecimento pelo trabalho a que será submetido no dia seguinte... Manipulados pelos objetos de consumo, o homem é assim compelido a buscar uma finalidade para sua vida no papel de consumidor e não naquele de produtor (pois aí ele poderia questionar, inclusive, o controle dos meios de produção por uma minoria da sociedade). Há momentos em que é preciso escolher entre “ter” e “ser”, indicou o teórico jesuíta Theillard de Chardin. A questão do consumo (ou do consumismo, mais apropriadamente) no capitalismo

está diretamente relacionada com a duração dos objetos, isto é, com a sua reposição. É preciso inocular sempre o vírus do novo. O compromisso fundamental é com o lucro e não com a produção e muito menos com o cidadão (a pessoa, para o capitalista, é um consumidor, e a pátria, um mercado). Vender é fundamental e o sistema percebeu à tempos a importância da moradia como fonte de lucros. Aí está a indústria imobiliária que não nos deixa mentir. Construir em nossos dias neoliberais é mexer com o imaginário dos setores dominantes, a criação de falsas necessidades, a exploração do medo e da insegurança, a exibição de luxos para lá de inconcebíveis em países em desenvolvimento. Ocorre que a taipa, enquanto construção eminentemente popular, subverte essa escala de valores dominantes, em seus múltiplos desdobramentos (técnicos, culturais, políticos e econômicos). E é isso que vamos ser agora, ainda que esquematicamente: • Barro armado com madeira, conforme definição amplamente aceita, a taipa representa uma síntese cultural e desponta entre nós desde os primórdios da formação da nacionalidade. Conservando-se até aqui pela tradição oral, é talvez a primeira grande manifestação cultural mestiça do Brasil. É preciso dizer que, fruto da expansão da cultura universal, nem por isso a cultura brasileira precisa se relacionar de forma dependente com a chamada cultura de fora. É possível ter criatividade e preservar as tradições ainda que no interior da cultura universal, implementada ao longo do processo colonial. Nessa ótica, tanto o nacionalismo estreito quanto o entreguismo desenfreado nos parecem prejudiciais ao pleno desenvolvimento da cultura brasileira. Talvez o mais sensato seja apostar naquilo que alguém definiu um dia como “cultura internacional da democracia”. Ora, a taipa se preste a um papel desse tipo, já que a sua difusão tem um caráter universal e está perfeitamente assimilada pelas camadas populares.

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• A planta tradicional da taipa de pau-a-pique é retangular, “ocidental”. Mas a influência da cultura dos índios desse tipo de construção se faz sentir na divisão interna do espaço, que contraria o modelo europeu de compartimentos separados. Fora isso, há o recurso à cobertura de palha, outro elemento tradicional da cultura do índio. Por isso tudo, ela é uma síntese cultural. • Profundamente enraizada na tradição brasileira, a taipa tem, além da legitimidade, o poder de emocionar, como somente as noites do sertão emocionam. Há lirismo - e muito - nas casa de roça que viveu no interior do Brasil, sobretudo na sua região leste, sabe disso. A taipa satisfaz uma necessidade interna do homem. • Evidentemente, a taipa de pau-a-pique não abarca toda moradia brasileira. Será muita pretensão . Contudo, existe verdade também nos fragmentos e não somente nas totalidades. É fundamental, nesse contexto, garantir a taipa como técnica de construção entre nós. Retomar a taipa, para além de representar uma alternativa econômica imediata para os setores menos favorecidos das áreas rural e das periferias das grandes cidades, é lutar pela própria construção da autonomia cultural dos oprimidos. A vida ensina que quando o povo encara a nação as coisas tendem a melhorar. E o projeto de emancipação cultural é peça fundamental nesse tabuleiro, já que proposta social digna desse nome, efetivamente popular, se impõe menos pela dominação do que pela direção intelectual, pela força do exemplo. A taipa, enquanto projeto popular, tem de ser também nacional - e esse é o único caminho da hegemonia cultural. Procedendo assim, a taipa adquire contornos de uma cultura de resistência, a sua força advindo não só do seu próprio valor como testemunho de uma época como também de uma possibilidade de nova vida, desatrelada ao sistema financeiro de habitação, etc.

• A taipa encerra uma dimensão ecológica importantíssima para a preservação das fontes de vida, uma vez que o uso dessa forma de construção dispensa a utilização de materiais de origem industrial, altamente poluentes. Na taipa de pau-a-pique, a relação homem-natureza não sofre a intermediação da tecnologia (ou muito pouco). Esse é o segredo talvez do seu encanto: a longevidade, o fato de vir do fundo da história. Construção da fase pré-industrial, impressiona a maneira como a taipa sobreviveu aos tempos industriais e se prepara, agora para se adaptar à era pós-industrial. Tendo passado, também tem futuro. O desprezo pelo passado do homem, pela natureza que nos cerca, é um dos sintomas de que as classes dominantes estão perdendo o sentido da História e por isso destróem tudo. O historiador de arte italiano Argan, ao assumir há alguns anos a prefeitura de Roma, percebeu isso com clareza. A ordem parece se esgotar, pilhar. Basta dizer que desde o final da Segunda Guerra Mundial até hoje (1998) os danos causados ao meio ambiente foram maiores do que aqueles provocados pelo homem em toda sua história na terra. A cada hora desaparecem no mundo três espécies vegetais e nem é preciso recordar aqui que a preservação de uma espécie depende totalmente da conservação das outras, tamanha a interdependência existente entre os seres vivos. Ora, com o esgotamento dos recursos naturais, torna-se imperativo diminuir as demandas cada vez mais crescentes de energia. Daí a busca de alternativas mais “doces” de construção, como a taipa. Deter o efeito estufa, que resulta dos gases gerados pela combustão de petróleo, virou uma prioridade dos homens. Uma coisa é retirar o seu sustento da natureza. E outra, bem diversa, é desequilibrá-la. Em tempo: eco vem do grego “oikos”, que significa casa... • A arquitetura de taipa é marginalizada porque o próprio homem brasileiro é, em boa medida, marginalizado dentro de seu país.

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E isso reflete uma certa tensão; a taipa é tensa. Atrai e repele, muitas vezes. Pois ela nos remete ao Brasil das reformas inclusas. Sendo uma casa rural, tem no seu ocupante um homem do campo que no entanto não é uma camponês no sentido clássico, já que muitas vezes não é sequer o dono da terra em que trabalha. E quando ela se transforma afinal em casa urbana, pela expulsão do seu morador da terra em que labutava, o seu aspecto é o mais precário possível. Sem terra para trabalhar no campo, o camponês emigra para a cidade e ali se torna prisioneiro de parcelamento do solo que vigora nas áreas urbanas. Privatizadas a seu turno, as cidades procedem a novas exclusões. Daí o inchaço delas. O homem vivia no campo - mas não se ruralizava. Como agora vive na cidade, mas não se urbaniza. O drama da taipa e da moradia popular tem raiz na péssima divisão de renda brasileira, uma das mais cruéis em todo o mundo. O mesmo capitalismo que matou a taipa no campo, nos vilarejos, é também aquele que procura matá-la nas grandes cidades e seus arredores. Símbolo de uma resistência (afinal, é preciso morar e lutar contra expropriação não só das terras como também do próprio saber de que o camponês é portador) e símbolo de uma exclusão (o que não significa que a taipa, enquanto técnica de construção, tenha de estar ligada para sempre às condições precárias de existência das massas populares), a verdadeira solução para taipa virá, paradoxalmente, de fora da arquitetura - da luta pela edificação de uma sociedade voltada para atender às necessidades do homem e não do capital. • É preciso combater a idéia de que a taipa é uma construção pobre. O preconceito fechou um cerco contra a taipa e é fundamental rompê-lo. Dizendo, por exemplo, que nenhum material tem a maleabilidade da taipa, o seu potencial térmico e também a sua abundância (a própria terra). Isso para não aludir à sua durabilidade: há exemplos de ca-

sas de taipa na Alemanha com mais de 700 anos! Pobre, na verdade, é o ocupante da casa de taipa. Uma vez elevado o nível material de um, melhora na mesma proporção o nível do outro. No fundo a taipa incomoda por ser uma construção adequada ao meio ambiente e por se apresentar ao sistema de mutirão (de origem tupi, aptixiru), reforçando a cultura da solidariedade, em detrimento daquela do dinheiro, da dependência ao sistema econômico dominante.. • O homem cria a casa para viver nela. Ela não deveria ser um bem imobiliário, motivo de investimentos. A grande vantagem da taipa, reside na identificação que provoca entre o criador a sua criatura - o homem a constrói para viver nela e mais nada. E quantos de nós, brasileiros, sabemos hoje construir a nossa própria casa? Poucos provavelmente, muito poucos. Mas talvez ainda haja tempo de recuperar o tempo perdido, rever mais essa alienação do homem moderno, que sequer sabe construir o seu abrigo. Assim, a taipa é importante por permitir a cada um de nós fazer o seu teto, ajudando a romper com a divisão do trabalho entre trabalho manual e trabalho intelectual. Refugiado junto ao lago Walden, já no ano de 1845. Henry Thoreau denunciava que um dos maiores dramas do mundo moderno poderia se resumir no fato de que o homem perdera o saber da casa. Assar o seu pão, construir a sua casa, cultivar o seu jardim - quanto conhecimento o homem perdeu somente nas últimas décadas. Talvez por isso nos alimentamos tão mal e sequer conhecemos direito o aroma das flores. Paradoxalmente, conservar pode resultar numa atitude revolucionária. Há utopias no passado também, e com a taipa, temos a oportunidade de colocar o tradicional a serviço do novo. • O arquiteto tem lugar garantido nessa busca pelo fio da meada. Assim como Eliot e Pound diziam, o trabalho do escritor era o de

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manter a língua em bom estado, podemos dizer que a tarefa do arquiteto, por seu turno, é a de manter a casa em bom estado. A construção em taipa pode e deve contribuir para melhoria das condições de vida da população e muitos profissionais sabem disso. Vontade política, mobilização da população e conscientização dos próprios técnicos são, portanto atitudes imprescindíveis, cada vez mais. A crise em que o país mergulhou, com a falência do seu modelo de desenvolvimento, apontará, necessariamente, novas saídas. E aí a taipa saberá corresponder às demandas dos novos tempos possibilitando ao homem brasileiro resgatar a sua auto estima e a sua subjetividade, massacrada por anos de Ditadura e hoje massificada pelas falsas necessidades veiculadas pela mídia. “Arquitetura vegetal que, tal uma árvore, parece naturalmente erguida no chão” - assim definimos a taipa uma vez. Como toda árvore, para continuar a viver e crescer, é fundamental que a taipa seja adubada de vez em quando, podada quando isso se fizer necessário. Taipa não é arquitetura de museu, ela pode e deve ser redefinida e remodelada, desde que se mantenha a sua essência. E a sua essência, a nosso ver, está na frase que se segue: “O que é mais digno: suportar com altivez os desígnios do destino ou tentar traçar o seu próprio? “ O dilema pode ser? - mas a decisão pertence a cada um de nós.

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