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Arte em veios pág

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À luz pág

À luz pág

Arte em veios

Adriana Victor

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Jornalista, roteirista e escritora

Desfiado o novelo que ajuda a tecer a linha do tempo, cronologia mais dura que constrói, passo a passo, tudo aquilo o que se dá entre nascimento e morte, conta-se a história de uma vida. No caso de Ariano Vilar Suassuna, ainda que a trajetória seja revelada pela duração dos dias em que esteve entre nós — somando-se 87 anos, um mês e sete dias —, nada é tão lógico ou rígido.

Fiel a alguém que, como ele, não se conformou com a realidade e precisou reinventá-la a cada dia, a partir das palavras, desenhos, ideias e sentimentos que serviram à sua literatura, a própria história de Ariano não serve se traçada por linhas retas.

Ele lembrava sempre o quão sinuosas eram as estradas do Sertão. Também na vida, o poeta, romancista, ensaísta, dramaturgo, professor e advogado (por algum tempo) deu cambalhotas e piruetas, como o palhaço-rapsodo que sempre sonhou ser: desfez e refez seus destinos, espanou a dor muitas vezes, redescobriu o quanto a graça do amor poderia lhe trazer festa e luz, revelou ao Brasil o país vigoroso que ele pode — ou poderia — vir a ser, se iluminado pela força criadora e pela arte pujante do seu povo.

Mais que tudo, Ariano edificou seus castelos imaginários, compostos por pedras sertanejas, literatura e sonhos — a seu modo e como lhe foi possível. Entrelaçando hemisférios de rei e palhaço, dando a um ou a outro mais potência, sempre que necessário, interpôs o trágico e o cômico, o profético e o poético. “No meu entender, o ser humano tem duas saídas para enfrentar o trágico da existência: o sonho e o riso”, repetia como alguém que sempre se dispôs a nos ensinar.

E, se não há linearidade na história do criador paraibano que passou a maior parte da vida em Pernambuco, é possível e preciso contá-la a partir da sua produção poética. “Sou mais conhecido como dramaturgo, menos como romancista

e completamente desconhecido como poeta. Contudo, a minha poesia é a matriz criadora de tudo que escrevi”, sentenciava. Também registrou em Dom Pantero no Palco dos Pecadores, seu último e definitivo romance: “É o Poeta que nos liberta da Morte e de todos os pesos.”

A arte que lapida e sopra, que impulsiona e talha, que não se acomoda e reconstrói a cada lufada de sonho: a pedra fundamental de Ariano Suassuna é a criação que se espraia em veios. E, fosse uma dança, caberia, naturalmente, à literatura o papel de guia e comando da força criadora do escritor. Mas que se afaste aqui a imagem de dança solo. A arte de Ariano se apresenta ao mundo em espetáculo com terreiro cheio, partilhado e colorido como uma Dança de São Gonçalo da qual tanto gostava.

E é justamente do passo compartilhado entre a poesia e as artes plásticas que trataremos aqui, mais especificamente de suas iluminogravuras: peças que unem gravuras a versos, compostas por um criador inquieto, admirador e profundo conhecedor das mais diversas expressões artísticas.

“A grandeza da Arte desperta no Homem algo de invicto e vivo; toda Poesia é enigma e oráculo; abeira perigos desconhecidos; é somente uma pulsação, mas serve para medir o Mundo”, escreveu para um coro que traz no Dom Pantero. Sob a luz do casamento entre palavras e desenhos, Ariano criou uma espécie de autobiografia poética e tratou de ilustrá-la. Foi além: ali registrou passagens de sua vida, mas também, como filósofo de potência e grandeza que era, imprimiu reflexões sobre o papel de homens e mulheres, ora no grande circo, ora no dorso de onça, elementos através dos quais enxergava o mundo.

O trabalho que aqui se apresenta é dividido em dois eixos principais. No primeiro, me dedico à parte da trajetória do escritor, contada com a ajuda de fragmentos de sua poesia: os primeiros anos de vida, a trágica morte do pai e as marcas perenes na sua criação, o exílio em terra estranha, longe das pedras sertanejas que são uma espécie de símbolo e marco da própria existência de Ariano, bem como de toda a sua obra. Nas palavras de Quaderna, narrador do Romance d’A Pedra do Reino:

“Minha história só será entendida integralmente por uma pessoa para quem a palavra ‘pedra’ representasse tudo o que significa para mim. Uma pessoa que, ao ouvir dizer ‘pedra´, entrasse imediatamente em um reino, pobre, mas reluzente. (...) Arcanjos de quartzo e de cristal-de-rocha, me revelariam o Sentido do Mundo!”

Para isso, além de pesquisas e leituras, me vali das conversas, histórias e memórias dos nossos 20 anos de convivência — algo que aprendi a nominar como dádiva. O fragmento biográfico aqui tratado encerra-se com a publicação do primeiro poema de Ariano, "Noturno", em 7 de outubro de 1945, quando ele tinha 18 anos.

Se as duas primeiras décadas de vida ainda não trazem a pujança do que viria a ser a criação do autor, delas saem os riscos que marcariam indelevelmente a sua obra. Ariano defendia que infância e adolescência, mesmo que não sejam fragmentos principais das nossas trajetórias, são recortes fundamentais para nossas definições diante da vida e do mundo. “Acredito que é o tempo em que a gente recebe a marca mais profunda da vida, e tem muita importância na formação da nossa individualidade.”

No segundo trecho, o poeta, ensaísta e professor Carlos Newton Júnior, principal estudioso e conhecedor da obra de Ariano Suassuna, de quem também era amigo e compadre, traz uma análise sobre as iluminogravuras e a sua importância na criação do escritor.

Deste projeto também participam o programador visual Ricardo Gouveia de Melo e o artista plástico Manuel Dantas Suassuna, filho de Ariano. Ricardo é hoje o responsável pela criação dos projetos gráficos e das capas de mais de 15 edições das obras escritas por Ariano. Entre os seis filhos, Manuel Dantas é o único que, como o pai, foi escolhido pela arte. Hoje, transformou-se numa espécie de guardião e defensor das ideias e sonhos, bem como das criações de Ariano. Somam-se ao grupo, os fotógrafos Gustavo Moura, Manuel Dantas Vilar (Dantinhas), Geyson Magno e Léo Caldas.

Alinhavadas memória, poesia e artes plásticas, esse relicário que agora se constrói de Ariano Suassuna serve como uma espécie de pedra angular imaginária do Museu Armorial dos Sertões, sediado na Fazenda Acauã/Acauhan, em Aparecida, Sertão paraibano, lugar dos primeiros passos de Ariano e de raras e preciosas lembranças com João Suassuna, o pai cuja ausência lhe serviu de guia para vida e criação.

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