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Ausência pág
Em torno, este Sertão, Cavalo-macho! Que segredo me acena, do Riacho? Que as águas levam Sangue para o Mar?
”O Reino da Acauhan”
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Ausência
Ariano Suassuna contava nos dedos de uma mão as memórias visuais que havia guardado do pai: exatamente cinco, quase todas vividas na Fazenda Acauhan, alto Sertão paraibano, na época pertencente ao município de Souza (e hoje ao de Aparecida). A família se estabeleceu no local quando João Suassuna finalizou o seu mandato no comando do governo da Paraíba, em outubro de 1928.
Entre as cinco lembranças, a mais significativa foi vivida no Sertão da Acauhan. À beira de um riacho, enquanto o sol estava se pondo, pai e filho caminhavam pela fazenda que recebera o nome de um pássaro de cor clara, marca negra em volta dos olhos, como uma máscara, e fama de ser agoureiro. “Ali, num crepúsculo cheio de prenúncios, eu vira o único pôr-do-sol a que tive direito de ver ao lado de meu Pai, num dia em que, passeando com ele à beira desse rio, nós dois encontramos, na areia da margem de um riacho seu afluente, uma piranha morta, ainda reluzindo ao sol poente”, descreveu.
A importância daquela terra demarcada por afetos, permanências e ausências acompanharia o escritor por toda a sua existência. Já perto de sua partida, em 23 de abril de 2013, na última vez em que veria o patrimônio de sua infância, declarou:
Também profundamente marcada em sua criação literária está a Acauhan. Além do poema cujo trecho abre esta sessão biográfica, intitulado "O Reino da Acauhan", outro também transformado em iluminogravura, "A Acauhan - A Malhada da Onça", fala sobre a morte prematura de João Suassuna. Uma espécie de descrição da paisagem da fazenda secular surge ainda na História d’O Rei Degolado:
Além da importância afetiva para Ariano, há o significado histórico do conjunto arquitetônico da Acauhan, datado do século 18, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), composto pela Capela Nossa Senhora Imaculada, sobrado e casa-grande. No local também viveu um dos líderes da Confederação do Equador, o padre Luiz Correia de Sá. Serve ainda como retrato edificado de parte da história rural do Nordeste do Brasil, tendo servido à pecuária e ao plantio de algodão.
Paraibano de Catolé do Rocha, João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna nasceu em 19 de janeiro de 1886. Assim como o filho, estudou na Faculdade de Direito do Recife; trabalhou como juiz de direito em várias cidades da Paraíba e foi também procurador da Fazenda Nacional. No final de 1913, aos 27 anos, casou-se com Rita de Cássia Dantas Villar — ela tinha 17. Pouco tempo depois, o casal compraria a primeira terra, uma fazenda chamada de Malhada da Onça, em Desterro (município de Teixeira), terra de nascimento de dona Ritinha. De funcionário público, passou à vida política — foi eleito deputado federal, pela primeira vez, em 1921; entre 1924 e 1928, assumiria o comando do estado da Paraíba. Voltaria a ocupar o cargo de deputado federal em 1930.
Os livros de História do Brasil tratam dos conflitos que culminaram na revolução deflagrada em 1930. Na época, João Suassuna e João Pessoa, seu sucessor no comando da Paraíba, não se entendiam: a causa principal era a ligação do pai de Ariano e seus aliados políticos com o Coronel José Pereira, opositor de Pessoa e líder da revolta ocorrida na cidade de Princesa.
A Revolução de 30 tem um estopim: João Pessoa é assassinado por João Dantas, primo de Rita Suassuna, no Recife, em julho de 1930 — crime ocorrido em meio à turbulência política de dimensão nacional, mas motivado por questões pessoais. Por ordem de João Pessoa, o escritório de Dantas fora invadido pela polícia; correspondências íntimas entre ele e a professora Anayde Beiriz foram divulgadas pela imprensa oficial da Paraíba. Depois do assassinato, João Dantas foi preso na Casa de Detenção do Recife. Em 6 de outubro de 1930, foi encontrado morto, degolado em sua cela. A tese de suicídio, aventada pelas autoridades e fortemente contestada pela família, é hoje reconhecida como falsa. Para o crime nunca se achou culpados.
No mesmo período, no Rio de Janeiro, então capital da República, o deputado federal João Suassuna tentava provar a sua inocência e nenhum envolvimento na morte de João Pessoa. No dia 9 de outubro, uma quinta-feira, caminhava com um amigo pela Rua do Riachuelo, bairro da Lapa, quando foi atingido com um tiro pelas costas, disparado por Miguel Alves de Souza, um paraibano de Alagoa Grande. O autor — que seria, na verdade, apenas executor — confessou o crime. Foi julgado, chegou a ser preso, mas não demorou muito na cadeia.
Quando foi assassinado, aos 44 anos, João Suassuna trazia, no bolso do paletó, uma carta para Rita, sua mulher, em que dizia:
“Se me tirarem a vida os parentes do presidente J. Pessoa, saibam todos os nossos que foi clamorosa a injustiça — eu não sou responsável, de qualquer forma, pela sua morte, nem de pessoa alguma neste mundo. Não alimentem, apesar disso, ideia ou sentimento de vingança contra ninguém. Recorram para Deus, para Deus somente. Não se façam criminosos por minha causa!”
Rita Suassuna, viúva, 34 anos, nove filhos, nunca se apartou do luto; Ariano jamais se livrou da dor. De alguma forma, ela foi suporte e centelha de sua criação. Veio de luz a tatear os dias de escuridão que se seguiram, marca de sangue a riscar lajedos e castelos erguidos com a sua obra. A compensação buscada, dia a dia, pelo poeta “mutilado”, através de sua criação artística e literária.
A morte do pai foi, permanentemente, assunto incômodo e doloroso pela emoção profunda que nele despertava, mesmo na velhice, mais de 80 anos depois do ocorrido. Algumas vezes, foi questionado se era capaz de perdoar os assassinos de seu pai. Refletindo sobre o dilema, recorria a trecho do Pai Nosso: “assim como nós perdoamos a quem nos tenha ofendido”. E dizia que, se os assassinos estivessem no purgatório e a decisão final dependesse só dele, alcançariam o céu.
“Tenho para mim que transformar aquelas coisas ferozes, duras, terríveis em assunto de beleza é uma maneira de neutralizar o sofrimento”, afirmou. Assim seguiu.
Em trecho de seu discurso de posse da cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras, em 9 de agosto de 1990, declarou o que já vinha praticando desde que iniciou a construção de sua trajetória de arte:
“Como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino que, perdendo o Pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que escrevo, oferecendo-lhe esta precária compensação e, ao mesmo tempo, buscando recuperar sua imagem através da lembrança, dos depoimentos dos outros, das palavras que o Pai deixou.”