Campo de Provas
Avital Ronell
Campo de Provas sobre Nietzsche e o test-drive
Cultura e Barbรกrie Desterro, 2010
Título Original Proving Grounds: On Nietzsche and the Test Drive Tradutor Rodrigo Lopes de Barros Revisão Micaela Kramer, Alexandre Nodari, Flávia Cera Conselho Editorial Alexandre Nodari, Diego Cervelin, Flávia Cera, Leonardo D’Ávila de Oliveira, Rodrigo Lopes de Barros R772c Ronell, Avital Campo de Provas : sobre Nietzsche e o test-drive / Avital Ronell; [tradutor Rodrigo Lopes de Barros]. – Desterro [Florianópolis] : Cultura e Barbárie, 2010. 41p. – (PARRHESIA, Coleção de Ensaios) Título original: Proving Grounds : On Nietzsche and the Test Drive Inclui bibliografia ISBN: 978-85-63003-02-7 1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Filosofia alemã. 3. Metodologia. 4. Teste. II. Título. CDU: 1(430) Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071
Editora Cultura e Barbárie R. José João Martendal, nº 145 / 304 Carvoeira - 88040-420 Florianopolis/SC editora@culturaebarbarie.org www.culturaebarbarie.org
.01: Na noite de 11 de setembro, W, depois de horas se escondendo, apareceu para dizer: “Isto foi um teste”.1, 2 Em uma entrevista que carrega o título de “Nietzsche e a Máquina”, Derrida aborda o procedimento hiperético da genealogia.3 Ligando singularidades que excedem 1 “Proving Grounds: On Nietzsche and the Test Drive” apareceu primeiramente na revista MLN, 118, 2003, p. 653–669. Posteriormente, o texto foi incluído em um trabalho mais amplo da autora: The Test Drive. Champaign: University of Illinois Press, 2005. O tradutor agradece a Avital Ronell, aos revisores – Micaela Kramer, Alexandre Nodari e Flávia Cera –, e a Diane Davis, pelas contribuições e críticas dadas a presente versão. (N.T.) 2 “W” faz referência ao presidente dos Estados Unidos à época dos atentados às torres gêmeas em 2001, George W. Bush. (N.T.) 3 Derrida, Jacques. Negotations: Interventions and Interviews 1971–2000. Elizabeth Rottenberg (org.). Stanford: Stanford University Press, 2002.
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a estrutura do Estado-nação, ele observa que, para Nietzsche, “a provação4 da democracia é também uma provação da... tecnicização”.5 Seguindo as cartografias de enunciados políticos elaboradas pelo último filósofo, Derrida, por sua vez, sugere que “o nome de Nietzsche poderia servir como um ‘índice’ para uma série de questões que se tornaram muito mais urgentes desde o fim da Guerra Fria”.6 Preocupado com os desafios de uma democracia por vir – também o título de um recente colóquio em Cerisy-la-Salle (2002) organizado ao redor do pensamento político de Jacques Derrida –, ele propõe: “Hoje, a aceleração da tecnicização afeta a fronteira do Estado-nação”.7 Esta questão precisa “ser completamente reconsiderada, não a fim de anunciar a morte da democracia, mas para repensar a democracia dentro destas 4 A autora, seguindo a tradução ao inglês da entrevista de Jacques Derrida, vai daqui em diante utilizar-se da palavra “trial”, aqui traduzida ora por “provação”, ora por “prova” (o que preserva a referência teológica). “Trial”, porém, ainda carrega o sentido jurídico mais comum de “julgamento”, e mesmo de processo - o título do romance de Franz Kafka, Der Process (O Processo) é, por exemplo, traduzido ao inglês como The Trial. Mais genericamente, “trial” indica o “ato ou processo de testar”, podendo ser vertido ao português como “teste”, “avaliação”, “verificação”, “experimento”, em suma, toda uma gama de significados os quais o texto de Ronell explora. (N.T.) 5 Ibidem, 245. 6 Ibidem, 253. 7 Ibidem, 251.
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condições”.8 Seu tom, se não é totalmente apocalíptico, permanece enfático sobre a tarefa à mão: “este repensar... não deve ser adiado, ele é imediato e urgente”.9 Quando o mestre diz imediato e urgente, eu atendo o chamado. Não menos iludida que o Abraão de Kafka, aqui estou como se o chamado fosse destinado a mim.10 Respondendo ao chamado, desejo ligar o que Derrida chama de provação da democracia ao nome de Nietzsche – outro nome para uma justiça indefinidamente nãosatisfeita – e ao momento da democracia pelo qual ele clama: “esta democracia por vir é marcada no movimento que sempre carrega o presente além de si, torna-o inadequado a si mesmo”.11 Para Nietzsche, ou para um ou dois dos signatários em Nietzsche, aquilo que carrega exemplarmente o presente além de si é a ciência. Em 8 Idem. 9 Idem. 10 A referência aqui é a parábola de Kafka, “Abraão”, sobre a qual escrevi em Stupidity (University of Illinois Press, 2002). Kafka multiplica Abraão em uma série de personagens hipotéticos, um dos quais é a mais tapada das crianças na sala de aula. Colado na última fileira – o corredor da morte acadêmico – ele pensa ouvir seu nome chamado no dia da formatura, quando o prêmio para o pupilo mais inteligente está para ser entregue. Escutando seu nome ser chamado, ele se levanta para receber o prêmio. Bem, se ele pensa que foi destinado a ele, talvez o seja. Kafka, derrubando assim o urpatriarca. 11 Ibidem, 252.
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suma, Nietzsche nos faz perguntar sobre a relação entre a ciência e as formações contemporâneas de poder – mais especificamente, sobre a parceria suspeita das ditas democracias avançadas com a alta tecnologia. O que faz estas forças se combinarem uma com a outra? O que permite que estas estruturas se sustentem mutuamente? Levemos nosso enfoque para um aspecto da ciência que Nietzsche mais ou menos descobriu, implementou, propôs, e o qual ele liga a uma democracia reivindicável. Estou me referindo à cultura experimental da qual seu trabalho parte. Assim, embora Nietzsche possa ser considerado um antidemocrata, uma dimensão amplamente inexplorada de seu pensamento fornece uma rigorosa rede de coordenadas para se avaliar exigências e formações políticas. O condutor para estabelecer uma ciência política progressista em Nietzsche forma um circuito através do seu entendimento das estruturas científicas e suas implicações materiais. Em Para além do bem e do mal, Nietzsche monta, um tanto explicitamente, um laboratório. Vários de seus outros trabalhos giram em volta da “disposição experimental” e tratam a si mesmos como esforços experimentais. O texto de Nietzsche incorpora a história da cultura de laboratório, a qual está ligada à inovação política. Desde que Conde de Cork usou sua renda em 1660 para construir o primeiro laboratório, uma ansiedade sobre as implicações democráticas de uma
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nova filosofia natural se fez sentir. Até mesmo mulheres foram convidadas a testar e repetir experimentos; os resultados desde então dependiam da repetibilidade de acontecimentos registrados sob quaisquer circunstâncias e por qualquer um. A ciência deixou o quarto do alquimista e Robert Boyle, o filho do Conde de Cork, produziu sua controversa ética da modéstia.12 De agora em diante, enunciados científicos seriam submetidos à prova; eles poderiam ser rescindidos a qualquer momento, por qualquer um. Este tipo de reforma científica traz à mente a leitura que Derrida faz de Hermann Cohen, que colocou o protesto de volta no Protestantismo por meio do imperativo hipotético.13 Eu quero colocar o teste de volta no Protestantismo. O processo de avaliação que a ciência chamou à cena teve diferentes formas de vida nas histórias variadas das exemplificações democráticas. Um escândalo análogo à abertura, pela qual Boyle foi responsável, foi provocado no século XVIII pela criação do periódico acadêmico Athenäum. De repente, absolutamente qualquer um poderia submeter artigos que seriam avaliados para publicação por um comitê, 12 Ver: Shapin, Steven; Schaffer, Simon. Leviathan and the Air-Pump: Hobbes, Boyle, and the Experimental Life. Princeton: Princeton University Press, 1985. 13 Derrida, Jacques. “Interpretations at War: Kant, the Jew the German”. Em: Anidjar, Gil (org.). Acts of Religion. Nova Iorque: Routledge, 2002.
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que incluía os irmãos Schlegel, Fichte, Caroline, e os demais. A inovação democrática daqueles que estavam praticando sua Lebensphilosophie deixou todos perplexos. O quê? Qualquer pessoa poderia submeter um artigo? Este seria julgado apenas por seus méritos? Ainda hoje, a chamada para trabalhos instituída pelo comitê editorial do Athenäum não alcançou seu potencial político. Mas vamos deixar esta questão de política acadêmica de lado por ora e simplesmente notar que ela pertence a uma lógica da avaliação em forma de teste, como Friedrich Schlegel explicitamente declarou. O Athenäum estava aberto à experimentação; ele era um local de testes. Quando Nietzsche começou a pensar sobre a ciência e a maneira que ela se apresentaria, ele iniciou um inventário que inclui a relação da ciência com a farmacêutica, com as tecnologias médicas e reprodutivas, bem como com a lei. Pode-se argumentar que Nietzsche abriu o dossiê que contém a impressionante análise feita por Rheinberger de Derrida e a síntese protéica – da gramatologia do tubo de ensaios14 – e o processo em avaliação judicial: o que constitui a estabilidade da evidência? Como o DNA reformula decisões legais? Quem é perito o suficiente para julgar? Quais são as cumplicidades ou subversões envolvidas na relação da lei com a tecnologia? Quando 14 Em inglês, o instrumento de laboratório denominado “tubo de ensaios” é conhecido como “test tube”. (N.T.)
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Nietzsche começou a roteirizar os testes como parte da cultura experimental (em Para além do bem e do mal, ele oferece um inventário de dez testes, uma alternativa aos dez mandamentos, incluindo o “teste mais duro”), ocorreu uma mutação no espaço em que nós pensamos e vivemos, em que nós marcamos adesões e dissociações políticas. Dado seus múltiplos resultados e as muitas valências que se acumulam ao redor das formações democráticas, a própria democracia torna-se um local de testes tremendamente volátil que poderia ser reivindicada por Nietzsche apenas na medida em que ela sustentasse seu caráter de local de testes – como uma hipótese permanente, sempre pronta para falhar, desmoronar, enfraquecer, vir abaixo.
.02: A promiscuidade do teste Pode-se argumentar que, atualmente, desde o advento decisivo de A Gaia Ciência, mas talvez não tão-somente por isto, não há nada que não seja testado ou sujeito ao teste. Nós existimos sob este domínio – tanto que se poderia afirmar que agora a tecnologia transformou o mundo em inúmeros locais de testes. Entre outras coisas, isto significa que tudo o que nós fazemos é governado por uma lógica que inclui como seu limite necessário o cálculo de probabilidade, a autodestruição