Nouvelles Impressions du Petit Maroc, de César Aira

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Nouvelles Impressions du Petit Maroc



César Aira

Nouvelles Impressions du Petit Maroc edição bilíngue [português/castelhano]

Cultura e Barbárie Desterro, 2011


Título Original Nouvelles Impressions du Petit Maroc Publicado originalmente em edição bilíngue (francês/castelhano, com tradução de Christophe Josse) pela editora Arcane 17 e Maison des Écrivains Étrangers et des Traducteurs (SaintNazaire, 1991), na qual, como residente, o autor escreveu o texto. Tradutor Joca Wolff Revisão Alexandre Nodari e Flávia Cera Conselho Editorial Alexandre Nodari, Diego Cervelin, Flávia Cera, Leonardo D’Ávila de Oliveira, Rodrigo Lopes de Barros A298n Aira, César Nouvelles impressions du Petit Maroc / César Aira ; tradutor Joca Wolff. – Desterro, Florianópolis : Cultura e Barbárie, 2011. 66 p. – (PARRHESIA, Coleção de Ensaios) Edição bilíngue: português/castelhano Inclui bibliografia ISBN: 978-85-63003-03-4 1. Literatura hispano-americana. 2. Ensaios. I. Wolff, Joca. II. Título. CDU: 860(7/8) Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071

Editora Cultura e Barbárie R. José João Martendal, nº 145 / 304 Carvoeira - 88040-420 Florianópolis/SC Tel:(48) 99605336 editora@culturaebarbarie.org www.culturaebarbarie.org


Índice Nouvelles Impressions du Petit Maroc (tradução ao português)

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Nouvelles Impressions du Petit Maroc (original em castelhano)

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Entrevista com César Aira (concedida a Bernard Bretonnière)

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Nouvelles Impressions du Petit Maroc Tradução do castelhano por Joca Wolff



Para ir ao Petit Maroc todas as manhãs, devo cruzar uma ponte mecânica que sobe e desce, não em meu benefício, é claro, mas no dos barcos que decidiram entrar num retângulo de água que se chama “bassin”; mas nem bem estou nesta espécie de ilha e encontro uma cadeia de cafés, um dos quais se chama A Ponte Levadiça, que poderia concluir a minúscula travessia iniciada ao cruzar a ponte, ou fechar o parêntese, com um uso da língua que finalmente pareceria adequado. Só que nunca entrei no Ponte Levadiça; vou além, ao Café de la Loire, que é o último da série, o mais próximo à margem externa da ilha, e me sento junto às janelas laterais de onde tenho uma vista do rio, do Loire, por onde passam grandes barcos lentos sem que nenhuma ponte suba ou desça. Lenta, rápida, a velocidade dos barcos é daquelas que resistem à qualificação. É certo que parecem lentos, como o transcurso de um astro, mas isso pode ser uma ilusão da distância; para começar, utilizam uma medida diferente e esotérica, os “nós”, para criar sua própria conta, relativa a nada; além disso, sabe-se que dentro deles se desenrola uma vida planetária, sujeita a sua própria gravidade, e seus habitantes bem os podem considerar, para qualquer efeito prático, imóveis; um barco tende a ser uma


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“cidade flutuante”, como uma ilha. Ao observador em terra firme nunca ocorreria detê-los, com um gesto do pensamento, porque se sabe que têm pressa, uma pressa lenta própria deles que se moralizou em fábula da eficácia: é que nunca fazem rodeios nem curvas, exceto as elípticas sobrenaturais mais breves que a reta, porque sempre vão a algum lugar, a um ponto de alguma costa que só eles sabem e ninguém mais poderia adivinhar. É como se pensassem. A coincidência de espaço e pensamento é uma espécie peculiar de tempo. Durante um instante a certa hora do dia, ocorre que todos os barcos do mundo estão quietos em seu lugar, cravados no mar. Se fôssemos testemunhas desse prodígio não teria por que nos parecer um acaso, porque é o resultado justo da emaranhada mecânica das causas náuticas, uma constelação razoável. Isto tem sua analogia: estou num café, na mesma hora que ontem, sentado na mesma mesa, e logo percebo que chegou alguém que estava ontem e se sentou na mesma mesa que ontem (e pediu o mesmo: um anis) e num canto está almoçando, na mesma hora absurda, a mesma senhora que estava ontem nesse lugar... e aí vêm os dois senhores que tomavam cerveja na minha frente e certamente o farão hoje também... Uma repetição começa a se construir, ou melhor dito, se construiu (o tempo está de cabeça pra baixo) inesperada e alheia às minhas intenções, a qualquer uma delas, incluída a intenção de esperar, que de qualquer modo não tenho. É justamente a intenção o que fica excluído aqui. Quando uma repetição exterior e inexplicável nos joga fora de toda intenção possível, caímos inevitavelmente na literatura. Isto é a literatura então: uma espécie de efeito feliz que não teve causa. Pois bem, disso me ocupo no Café de la Loire pelas manhãs: de fazer teorias sobre a coincidência final da literatura consigo mesma. Chego a ela com um exemplo qualquer e


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quando já não sei mais no que pensar volto atrás dizendo “isto é a literatura então”. O escritor é uma proliferação de teorias. De teorias falsas, da mesma forma que seu trabalho é inventar exemplos que também são falsos, já que a literatura é o método de fazer mitos das particularidades, criar a impossível repetição do único. Como só importa multiplicar sua qualidade de único, a repetição é falsa também. O estilo próprio à teoria é não esquecer o que foi dito: reter na memória as proposições avançadas e construir o discurso tendo-as sempre à vista. Todo o saber é combate contra o esquecimento, e não apenas interpessoal mas, antes, dentro do sujeito. A literatura, ao contrário, é feita toda de esquecimento, ou de simulacros de memória. Quando uma literatura se ocupa menos de fatos que de ideias, faz-se necessário aceitar uma certa irresponsabilidade do discurso. Aqui o falso não remete a uma moral do autêntico, mas antes à ficção, na qual convivem o verdadeiro e o falso, valem o mesmo ao mesmo tempo e se transformam um no outro. De fato, se se decide pela literatura é com este fim: sair de uma lógica de exclusão dos contrários que qualifica de falso a um só dos membros do par. Não para tornar falsos ou verdadeiros aos dois, mas para incluí-los numa teoria falsa que torna irrelevante a classificação. Por isso devemos fazer teorias. Claro que o fazemos para fazer literatura, o que não é necessário em absoluto. Por que começar então? Por nada. Por uma espécie de loucura benévola ao alcance de todos; para passar o tempo. Porque “enquanto isso” a gente está vivendo e deve se ocupar com algo. Esta é a parte de realismo, a única parte de realismo, que tem o nosso ofício: faz-se teorias com a vida (ou vice-versa) enquanto se faz literatura com o pensamento (ou vice-versa também).


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