@s nov@s adit@s: a implosão do gênero na feminização do mundo

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@s nov@s adit@s: a implosão do gênero na feminização do mundo



coleção

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@s nov@s adit@s: a implosão do gênero na feminização do mundo

Ernesto Sinatra

Cultura e Barbárie Desterro, 2013


Título original L@s nuev@s adict@s: la implosión del género en la feminización del mundo Tradução Flávia Cera Revisão, capa e diagramação Alexandre Nodari coleção anima Coordenação editorial: Alexandre Nodari e Flávia Cera Conselho Editorial da Cultura e Barbárie Alexandre Nodari, Diego Cervelin, Flávia Cera, Leonardo D’Ávila e Rodrigo Lopes de Barros. S615n Sinatra, Ernesto @s nov@s adit@s : a implosão do gênero na feminização do mundo / Ernesto Sinatra ; tradução Flávia Cera. Desterro [Florianópolis] : Cultura e Barbárie, 2013. 80p. – (Coleção Anima) Tradução de: L@s nuev@s adict@s: la implosión del gênero en la feminización del mundo 1. Psicanálise. 2. Relações de gênero. 3. Sexo (Psicologia). 4. Sexualidade. 5. Drogas e sexo. I. Cera, Flávia Letícia Biff. II. Título. III. Série. CDU: 159.964.2 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071

Editora Cultura e Barbárie www.culturaebarbarie.org | editora@culturaebarbarie.org Caixa Postal 5015 - 88040-970 - Florianópolis/SC


Sumário

Agradecimentos ......................................................................................

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Prólogo [Gloria Aksman] .......................................................................

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Introdução ................................................................................................ 13 I. A implosão do gênero .........................................................................

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15 O matrimônio igualitário responde à Igreja .................................... 16 Identidade de gênero vs. o real da sexuação .................................... 20 O empuxo ao gozo: das cócegas à labareda de gasolina ..................

II. A feminização do mundo ................................................................. 27 A extração da exceção ............................................................................ 27 A hipermodernidade é Não-Toda .......................................................

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As tribos urbanas: micrototalidades de gozo .................................... 43

50 A globalização e seus gozos .................................................................. 53 A estrutura RSI da feminização do mundo ......................................

III. @s nov@s adict@s ........................................................................... 57 Os tele-adictos ........................................................................................ 57 Os tóxicos do amor ................................................................................. 65 O amor pânico ......................................................................................... 66 O amor químico se cota no mercado .................................................. 69 O amor tóxico .......................................................................................... 74 Proibir as drogas ou despenalizar o consumo? ................................ 78



Agradecimentos

Este estudo é resultado de uma pesquisa realizada sobre o tema “Psicanálise e Gênero”, em um Ateneo* do Instituto Clínico de Buenos Aires (ICdeBA) que se estendeu entre os anos 2010 e 2012, e que continua atualmente como Seminário de Investigação 2013 da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL). Embora seja um trabalho individual que aqui se precipita, o mesmo não teria sido possível sem os frutíferos debates mantidos durante esses anos com meus amigos e colegas: Luis Salamone e Gloria Aksman – com quem compartilhei a responsabilidade de conduzir o Ateneo e hoje o Seminário –, além de Silvina Bragagnolo, Roxana Cozza, Mónica Lax, Viviana Mozzi e Inês Szpunt – que tiveram uma participação decisiva na coordenação das unidades de investigação (UDI). Devo incluir nestes agradecimentos cada um@ d@s integrantes destes dois âmbitos – o Instituto e a Escola – que problematizaram (e continuam a fazê-lo) os alcances desta investigação que, seguindo à letra as complexidades da estrutura feminina, mantém abertas suas vias de acesso e as de sua resolução.

* [Nota da tradutora: Ateneo são reuniões de apresentações de casos clínicos.]



Prólogo

“Só há diferentes maneiras de falhar. Entre elas, algumas satisfazem mais do que outras. Não se trata simplesmente de chiste, de Witz. É a condição para que se resista ante o discurso da civilização hipermoderna.” Jacques-Alain Miller 1

Encontramos nessas linhas uma rigorosa análise da nossa época, em que nos descobrimos frente a uma contingência que Ernesto Sinatra chamou de @s nov@s adit@s. Ávido leitor do momento em que lhe compete viver, intérprete da subjetividade da época, põe à prova os conceitos e não duvida em ir mais além quando o fundamento da lógica que os sustenta assim o requer. Neste sentido, vemos como extrai, do amplo leque dos gozos com os quais a hipermodernidade nos confronta, o traço que reúne o que – seguindo a precisão de Jacques-Alain Miller – chama de “micrototalidades”, novo significante com o qual Sinatra caracteriza as tribos urbanas em torno dos seus próprios modos de gozar. Nestas páginas, ele se dirige às particularidades das novas apresentações em que se manifesta a impossibilidade do encontro entre os sexos, modalidades de gozo que interpelam os sujeitos na época em que a oferta se destaca pelo lema “impossível is nothing!” O objetivo é adentrar na complexidade da subjetividade contemporânea, caracterizada pelos objetos de consumo e não mais pelos ideais com os quais se possa identificar. Sinatra explora os diferentes aspectos do problema pela perspectiva da sexuação. Percorrendo as hipóteses, nos conduz até a feminização do mundo como resposta, precisamente, à queda dos ideais. 1 Miller, Jacques-Alain. “Uma fantasia”. Opção Lacaniana, n. 42. São Paulo: Edições Eólia, fevereiro de 2005.


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Consequência disto: a implosão do gênero em todas as suas variações, localizada na série infinita dos gozos um e um e um... a série não se encerra. Como diz Miller: “o não-todo em todas as partes”.2 Situados pelo autor nos tempos da feminização do mundo, não deixa de ser – no meu modo de lê-lo – um tópico a ser posto na conta do supereu feminino, mandato de gozo que passou ao social, ou como diz Sinatra seguindo Miller: o “deves gozar” é a palavra de ordem da época. Acompanhamos a simplicidade, mas não menos o rigor de suas hipóteses: já não se trata então do Pai que proíbe o gozo, trata-se do mandato de gozo que provém do lado feminino; porém, é preciso sublinhar, com sua particularidade: a marca do “não-todo”. Por um lado, sem medida, característica do gozo feminino e, por outro – e de um modo paradoxal –, o modo em que A mulher se dirige ao “todo”, incrementando assim o gozo fálico da época. Ou como se lê no texto: “Mas o que comprovamos é que a estrutura do Não-Todo aparece mais do que nunca – diríamos: de um modo hipermoderno – condensando o gozo fálico, articulado agora com a proliferação de micrototalidades que tentam remendar a queda do Todo que o Deus-Pai havia assegurado por séculos” (p. 53). Encarar o problema da multiplicidade requer uma lógica, porque erramos ao buscar nos fenômenos aquilo que faz a diferença. Porque se trata de lógica, seja na abordagem do problema da sexuação ou das adições, e não das classificações ou descrições que não carecem de preconceitos em seus próprios fundamentos. Preconceitos dos quais não estamos isentos, tal como Sinatra nos recorda, advertindo, ao abordar a clínica atual, que continua se tratando da angústia e do remédio que o parlêtre quer encontrar para o fato de que não há relação sexual. Só que o perigo é que o discurso hipermoderno gera a ilusão de ser possível curar-se disso.

2 Miller, Jacques-Alain. O Ser e o Um. Curso da Orientação Lacaniana, 2011. Inédito. A citação encontra-se no texto de Ernesto Sinatra.


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Lemos a consequência disso nessa lúcida referência atribuída a Jean-Claude Milner: “o momento atual da civilização é a época do sujeito voltado contra si mesmo.”3 Creio não equivocar-me ao dizer que o passo que Sinatra dá – na verdade, que volta a dar – neste texto é o de localizar a lógica que sustenta nosso trabalho, o dos psicanalistas, ao tentar ir para além dos fenômenos imaginários – impactantes, por certo – para não perder nossa bússola: o objeto a, o mais de gozar, que os comanda. Porque na atualidade, elevado ao zênite, ou seja: “deves gozar!” – e sem limite –, deixa os sujeitos confrontados à iminência da passagem ao ato. Há então uma urgência frente a qual os psicanalistas devem responder. E este livro constitui, sem sombra de dúvidas, ao menos para alguns de nós, um despertar. Gloria Aksman

Laurent, Éric. El goce sin rostro. Psicoanálisis y política de las identidades. Buenos Aires: Tres Haches, 2010.

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Introdução

Nestas páginas tratamos de um dos mais recentes efeitos da globalização na subjetividade: a massificação do consumo e suas poli-adições – o que em outra ocasião denominamos “toxicomania generalizada”1 –, girando agora em torno das novas roupagens da sexuação2, confeccionadas com os panos das variadas formas de gozar. Que a denominação “feminização do mundo” designe este processo não é um fato fortuito nem uma mimese de uma formulação sócio-antropológica, mas sim nossa apropriação de uma interpretação lançada por Jacques-Alain Miller, com a qual lemos os fenômenos da globalização regidos pela lógica do Não-Todo.3 O declínio do Deus-pai – especialmente no Ocidente – indica a debilitação de sua dupla função: encarnar o ao-menos-Um da exceção que diz-não ao gozo para normatizá-lo, o que asseguraria a consistência do conjunto social (o Um-Todo). Percorremos nessas páginas uma hipótese que pretende demonstrar alguns alcances na civilização4 da sequência: (1) à queda do pai – se segue –, (2) o “declínio do viril” – ao que responde –, (3) a “feminização do mundo”. Tal modificação afeta a modalidade dos agrupamentos urbanos que respondem à eclosão do universal e que, a fim de voltar a constituir um todo, refugiam-se em micrototalidades: sistemas abertos que Sinatra, Ernesto. “La toxicomanía generalizada”. Em: ¿Todo sobre las drogas? Buenos Aires: Grama Ediciones, 2010. pp. 55-66. 2 Sexuação: neologismo criado por Jacques Lacan para enfatizar a escolha da sexualidade nos humanos, para além do natural. 3 Miller, Jacques-Alain. “El inconsciente es político”. Lacaniana, n.1. Buenos Aires: Ediciones EOL, agosto de 2003. p. 13. Aqui, como desenvolveremos mais adiante, Miller estabelece uma correspondência entre o estado de globalização e o lado feminino das fórmulas da “sexuação”. 4 Referimo-nos, a princípio, à civilização ocidental, embora também consideraremos alguns efeitos de sua possível extensão. 1


agrupam seus integrantes por identificações a um traço a partir da coalescência de saber e gozo. Assistimos hoje a uma verdadeira implosão do gênero: variações queer, transexuais, intersexuais... até os autodenominados assexuais se agregam à divisão tradicional. Lemos, a partir desta orientação, as variações produzidas nas classificações da teoria do gênero, as que irrompem em sua polivalência na tentativa de definir (e/ou questionar) uma identidade nas diferentes categorias, após assegurar uma diferença irredutível entre elas. Identidade que só ficaria assegurada pelas particulares formas de gozo compartilhadas entre cada integrante das diferentes micrototalidades. É a partir destas coordenadas que chegamos aos nov@s adit@s em sua polifonia: aditos às drogas – com substâncias cada vez mais sofisticadas –, mas não menos a uma variedade de consumo tão extensa quanto são as ações que denotam os mais diversos modos de gozar: work-alcoholics, cyber-aditos, tele-aditos, ludo-aditos, sexo-aditos, pessoas tóxicas... Aqui também a lista pareceria interminável. Abordaremos seu tratamento com o princípio de que toda ação humana propicia sempre uma forma específica de gozo, que cada indivíduo singulariza segundo sua própria modalidade de satisfação fantasmática.5 Tentaremos decifrar os códigos e interesses d@s nov@s adit@s, que denotamos com o signo arroba para cifrar as marcas da época: a webglobalização e a marca na linguagem das batalhas do gênero. Para empreender esse trajeto, é preciso que estejamos advertidos de que o atual estado da civilização requer de cada psicanalista o questionamento de seus próprios preconceitos, condição necessária para sustentar uma prática que continue sendo eficaz em tratar a angústia da época: uma experiência orientada aquém (porém não menos: além) da contínua transformação dos semblantes e dos renovados procedimentos das tecnociências, que procuram redesenhar – sempre de um modo que resulta sinthomático – o real da sexuação. Referimo-nos, deste modo, à ficção, ao conto que (mesmo sem sabê-lo) cada indivíduo se conta para regular, localizar o gozo no qual cada Um está fixado.

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I. A implosão do gênero

O empuxo ao gozo: das cócegas à labareda de gasolina “Não iremos falar de gozo assim. Já disse sobre ele o suficiente para que saibam que o gozo é o tonel das Danaides, e que uma vez que ali se entra não se sabe aonde isso vai dar. Começa com as cócegas e termina com a labareda de gasolina. Tudo isso é, sempre, o gozo.” Jacques Lacan6

Sigmund Freud interpretou a sua época: o mal-estar era o sintoma que mostrava que a renúncia pulsional – “deves deixar de gozar!”, como mandato paterno da civilização – não reinstalava a felicidade, mas, ao contrário, reforçava o circuito infernal do supereu, reintroduzindo a ferocidade do gozo por meio da proibição. Se considerarmos agora – seguindo a orientação de Jacques-Alain Miller7 – o mal-estar da civilização na época freudiana a partir das coordenadas da sexuação, veremos que ele obedecia à lógica que Jacques Lacan atribuiu à posição masculina: o conjunto sustentado no Todo, a partir da culpa e do castigo, dos pecados e de sua expiação: desse modo, o imperativo proscritivo da civilização reforçava o supereu. A Igreja florescia até então com seu negócio: “deves deixar de gozar!”, mas se hás pecado, podes expiar teus pecados; porém, então voltas a gozar, e então voltas à Igreja para tornar a expiar... etc. Contudo, fora dos inalteráveis interesses eclesiásticos repetidos perpetuamente pelos padres da Igreja – com o objetivo de manter seu poder terreno –, as coisas mudaram.

Lacan, Jacques. O Seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. pp. 75-76. 7 Miller, “Uma fantasia”, 2005. Seguiremos a partir daqui seus desdobramentos. 6


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O imperativo atual da civilização tornou-se “deves gozar!”, numa época em que se sabe demasiadamente da inexistência da relação sexual. O espectro hipermoderno do gozo renova seus deslocamentos “das cócegas à labareda de gasolina”. De um lado, as cócegas: o avanço midiático do gozo sexual – “tudo para ver” – recaptura a implosão do gênero em suas variações (gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, intersexuais...), transformando em comédia a luta desigual pelos direitos das minorias sexuais, ridicularizando suas demandas de reconhecimento social, a partir do panóptico fofoqueiro da sociedade do espetáculo. Por outro, a labareda: a criminalidade real exercida sobre os corpos degradados pela hipocrisia do Outro social, na ladeira que vai desde o desterro civil, o opróbrio das prisões, até o extermínio na denominada violência de gênero e as – cada vez mais frequentes – overdoses aditivas dos jovens (especialmente) produzidas pelas mais sofisticadas drogas sintéticas combinadas com álcool. Neste estado de coisas, o estado deve regular o campo do gozo, o que, até ontem, era considerado um direito “divino”, e não somente “natural”: o matrimônio advém igualitário e a identidade de gênero deixa de soldar corpo e sexo. Por isso, não deve surpreender-nos que as resistências sociopolíticas (que provêm, especialmente, da Igreja Católica, mas não menos das direitas amparadas na tradição) ameacem fazer retroceder as conquistas sociais alcançadas, de fato, e em primeiro lugar, pelas minorias sexuais. O matrimônio igualitário responde à Igreja Há mais de dois anos8, a Argentina promulgou a legalização do matrimônio igualitário, depois de um acalorado debate de quase quinze horas no Parlamento, transformando-se, deste modo, na primeira nação da América Latina que adotou essa normativa. 8

15 de julho de 2010.


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Além – e aquém – das birras ultramontanas dos representantes da família tradicional, a Igreja Católica se ergueu como a defensora da oposição, agitando os estandartes do direito Divino e Natural, invocando Sodoma (sic) e as hostes do demônio como suposto instigador do acontecimento (que, na verdade, não foi outra coisa senão a aprovação de uma lei). A esse respeito, é oportuno recordar que as iniciativas cidadãs só passam ao campo do Direito quando o peso do social já as transformou em hábito: o Jurídico sempre se atrasa em relação ao que é realizado no campo do laço social, no efetivamente vivido pelos cidadãos. Ou seja, o debate sobre os direitos dos homossexuais de fazerem uso das instituições como “qualquer filho do vizinho” (como se costuma dizer na Argentina) só pôde acontecer no Parlamento porque já havia “vizinhos” que conviviam (e continuam a fazê-lo) com outros vizinhos do mesmo sexo. Introduz-se, deste modo, o fator temporal no assunto, apresentando curiosidades. Por exemplo, para voltar à instituição eclesiástica, digamos que a Igreja sempre atrasa, já que, ao estar ancorada na tradição, deve transmitir o dogma de um modo sempre igual a si mesmo; e isso não é por um capricho, mas sim por uma razão estrutural, ergo não pode modificar, sem mais nem menos, seus princípios (não só seus rituais, sua liturgia) por mais desatualizados que estiverem frente ao avanço das transformações da subjetividade e do laço social. Assim, conservar essa lentidão resoluta é uma condição de sua durabilidade. Um passo a mais: a transcendência do corpus cristão – que consegue atravessar gerações ao respeitar o intocável das suas escrituras, tão necessariamente sagradas – oferece aos indivíduos (fiéis) uma sensação de segurança muito potente, de certo modo outorga algo assim como um calorzinho de imortalidade, uma sensação de comunhão eterna com o Outro sempiterno ao transferir a eles – mortais ao fim – o abrigo desses dogmas e escrituras, sacramentos sagrados e mandamentos. Passo seguinte: crença assegurada na ascensão celestial postmortem, se se cumpre com a obediência ao Outro aqui na terra. Porém, do outro lado do balcão, pequenos problemas terrenais (isto é: imanentes, não transcendentes) devem ser enfrentados pelas auto-


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ridades eclesiásticas hoje: desde dissimular de um modo cúmplice e inadmissível as práticas pedófilas de seus (não poucos) representantes com crianças e adolescentes; passando por negar aos sacerdotes em seu conjunto o sacramento do matrimônio (não entre homossexuais, mas em sua versão tradicional, heterossexual9); até rechaçar o uso de preservativos (inclusive nos tempos da AIDS, empurrando seus fiéis ao pior), para sustentar ao máximo a separação entre procriação e concupiscência (isto é, o prazer no encontro sexual): filhos sim, gozo entre os corpos, não. À luz do peso institucional da Igreja e da sua influência nas decisões do Estado, fica evidente, então, o peso que implica hoje o triunfo da comunidade gay com o matrimônio igualitário. Os homossexuais foram tradicionalmente o adversário decisivo da Igreja por colocar em evidência que não existe uma relação natural entre os sexos; a homossexualidade foi o próprio sintoma que se instalou na história da humanidade para fazer saber que “os meninos não são para as meninas, necessariamente”. As cruzadas para proscrever10 os homossexuais se encaminharam sempre para eliminá-los como minoria, para que não “contaminassem” o universal natural. As minorias – quaisquer que elas sejam – carregam sempre esta aura: a de descompletar um conjunto fechado, o universal, cujo poder hegemônico se veria ameaçado por suas presenças. Por isso, a existência dos homossexuais demonstrou, desde sempre, que a sexualidade natural não existe, que a sexualidade mesma foi subvertida na espécie humana pela sexuação: escolha do sexo que está determinada por condições precisas de satisfação infantil tanto quanto por identificações cuja orientação é impossível antecipar. Isto serve, ademais, para os que afirmam que não se deveria deixar os homossexuais adotarem filhos, já que estes resultariam homossexuais. É uma presunção dogmática que supõe poder predizer a orientação das identificações e que, além disso, se poderia saber a orientaO que seus colegas protestantes tiveram de aceitar. No melhor dos casos, pois a vertente da segregação deixou de proscrever para exterminar, em sua forma extrema.

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ção de gozo de cada sujeito. Trata-se aqui de uma falácia, já que não se sabe – nem se poderá saber, por maior que seja a determinação biológica da criança ou de seus pais – a escolha sexuada que cada ser falante realizará. A lei do matrimônio igualitário se colocou no centro dos debates sociais e políticos, e isso inclui as mães, já que elas são, antes de tudo, exatamente isso: mães e, como tais, respondem. Vale ressaltar o caso de uma delas que, confrontada com a confissão da homossexualidade de seu filho, reagiu muito compungida, mas transtornou seu sentimento em alegria transbordante quando – anos depois – legitimou-se o matrimônio gay. O que havia acontecido? Qual era a razão da transmutação subjetiva produzida nela? Era muito simples: com a nova lei, agora seu filho poderia casar-se... e ter filhos. Como se vê, o que afetava essa mãe não era a homossexualidade de seu filho, mas sim ele não poder casar-se nem ter filhos. Curiosamente, esta evidência contrariou muito precisamente a crença de seu filho, que se sentia rechaçado por ela pela sua condição gay, permitindo-lhe, não sem surpresa, isolar no divã analítico um fantasma de exclusão, que o atormentava desde criança, e com o qual se sustentava a partir da insatisfação do desejo. Outro homem, que não só não era homossexual mas que, além disso, pouco parecia importar-se com os direitos dos demais, surpreendeu seu analista saudando com alvoroço a nova lei. Ao ser perguntado sobre sua alegria, respondeu que tinha a convicção de que assim se aliviava o peso opressivo do Outro social, e que o passo seguinte seria o da despenalização do consumo de drogas. O cinismo desta posição seguia vigente, alheio a qualquer reivindicação dos direitos dos demais. O debate sobre a homossexualidade continua; além e aquém do campo do direito a pergunta acerca da identidade sexual segue viva. Verifiquemos a seguir até que ponto é assim.


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