Rastros 7

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Editorial: Alexandre Pandolfo, Carla Alimena, José Linck, Manuela Mattos, Marcelo Mayora, Mariana Garcia e Moysés Pinto Neto.

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Desterro, Julho/Agosto de 2013 | Editor: Alexandre Pandolfo

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n.-7

RASTROS - Ao encontro de tal fato caminhamos. Não se pode apagar esse equívoco, pois... (Isso, Isso e Aquilo). Não mudaria em nada o problema. - Ou talvez o problema seja o impulso do Isso pelo qual caminhamos. Não se pode apagar porque não mudaria o problema! - E, se mudássemos o problema? - A sua simples presença, a mera abertura de seus pulmões e a entrada de ar não pode deixar de provocar uma violação. - Um olho abre, enquanto o outro se adentra no obscuro, e ali, outra fotografia luminosa e fosforescente se projeta. - A presença dos olhos é uma violação. Eles contentam-se inicialmente em ver; olhar apoiado e presença muda. Depois as coisas se complicam, tornam-se tortuosas, labirínticas... - Toda presença viola a ausência que poderia ser. - Pense o que se quiser, aqui não falaremos mais. A não ser para observar que eles são aí evocados ( ) apenas em seus espectros, tais como assombram... - Tais como os rastros que trilhamos antes de segui-los...

Textos e fotos de Alexandre Pandolfo e Camila Alexandrini, sobre o trabalho que realizam juntos.


[ www.culturaebarbarie.org/rastros ]

Isso é o desejo, o de afetar. O afeto transmuta a dolorosa sensação de incompletude em fissura necessária ao ser, à matéria. Não coube mais em nós essa dor, trazê-la aos olhos foi a maneira que encontramos de lidar com ela. Mas, se tudo fosse tão simples, não estaríamos escrevendo – pelo menos não no agora. E s c r e v e r

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Entre margens, formas e letras, procuro a distância precisa entre o que parece ser e o que ainda não é. Num impulso, como em uma rebelião, o desejo alça os objetos mais cortantes que ele conhece, dos mais agressivos aos mais sutis. Ele tenta fazer daquilo que é uno, dois, três, mil pedaços disformes, linhas de fuga à sua imagem. Para isso, não sabe bem, não planeja, não pressupõe nada. As forças das mãos, o rastro deixado por essa força é o mesmo que teme o fim, teme os caminhos que levam às finalidades. Lidar com o imprevisto é tarefa da razão, aqui, ele escorre, assim como o desejo, faz parte disso que não tem nome. Não se quer lidar com nada, deseja-se antes que a indescidibilidade incomode o suficiente para continuar. Afetar é perfurar qualquer massa que retome o que antes foi. Sendo assim, é preciso profanar, é preciso interromper. Mudar os cursos e os recursos, essa sim, é tarefa dos que desejam. Devolver à vida a dolorosa sensação que nos diz: Talvez Quem sabe E se fosse possível dizer sim e não ao mesmo tempo, a uma só voz, como seria? A palavra que ocuparia esse espaço não nos deixa ser tão livres como desejamos. Seguir rastros para despistá-los, abrir rasgos para observar o outro que, em costura, não é – talvez seja o que conseguimos por enquanto. Somamos ao inteiro a dúvida e à palavra escrita o abismo. Não nos interessa dizer o que queremos, mas de expor a angústia, a qual só se sabe bem por meio do desejo. Ou nem se sabe, se sente como os restos que sobram e nem ao menos sabemos o que fazer com eles. É como se nós, nesse instante, portássemos uma arma e, mesmo diante do horror, não soubéssemos o que fazer com ela. Nós não sabemos o que fazer com ela.

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Dos dois

livros

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que eu levei,

optamos por começar pelo verde, de capa dura, que tem o título “Os homens que fizeram o Brasil”. Fizemos tudo conjuntamente. Eu iniciei cortando, já que também havia levado a serra, e ela iniciou fotografando. Queríamos captar imagens do processo, do gesto e também do resultado, de forma mais estática e cindida. A luz que encontramos estava boa.

Havia dois bancos, um de frente pro outro, no qual dispusemos os objetos. O ambiente estava agradável, tendo em vista o clima de inverno e o Sol morno. As primeiras incisões na lateral fechada do livro foram, creio, as mais difíceis. O que não quer dizer que ao longo do corte os papéis tenham oferecido menos resistência. Após um longo rasgo quase até a metade do livro, resolvemos parar para fotografar de forma um pouco mais estática. De várias formas posicionamos o livro e o fotografamos, agora cada

um com a sua própria máquina. Fotos tiradas sobre o mesmo objeto, praticamente ao mesmo tempo, com literalmente poucos segundos de diferença lapso-temporal, mas por ângulos diferentes. Com as luzes preservadas em cada

olhar.

a dor continue, até que o

do permaneça.

incômo-

Para evitar que não ficássemos estanques e inertes, pusemo-nos a, após o corte, fotografar. A imagem se torna, assim, um rastro do gesto impelido por essa insatisfação plena e sem nome. Registro seria se

quiséssemos deixar marcas, mas não, queremos antes provocar, através da imagem, o mesmo músculo daquele que lê, assim como daquele que corta. O acontecimento se repete através da imagem, embora seja outro, diferente, estranho. Escrevemos com esses utensílios de maneira grosseira, pois não possuíamos a habilidade daqueles que talham a madeira. Entretanto, não é a habilidade que nos interessa, é a potência – potência de

interferir.

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A própria luz variava ao bel prazer. Os minutos iam passando, nem todos os relógios iam andando. O giro ímpar da terra. A luz ia mudando, ora enfrentada por galhos ora por folhas; e ora era diretamente enfrentada pelo banco, e pelo o livro.

Continuaremos não sabendo até que


Partiram. Partiram o tempo e o espaço. A paisagem agora se mostra na dobra, nem lá, nem aqui. O caminho cindido é por onde caminham, ao mesmo tempo. Nem lá, nem aqui. Partir, estilhaçar. Uma montagem de constelações fragmentárias, de letras penduradas, de corpos desnudos sobre o ar que paira. Sobrevoar, tarefa de seres alados hábeis em sua trajetória, tão diferentes de nós. Nós, mesmo que determinados, seguimos a linha não tracejada, por onde a tesoura passa sem se ater ao percurso, à finalidade de partir. Partiram sem mapas, sem o plano cartográfico necessário aos velejadores solitários, mas, mesmo assim, desejavam se encontrar, diante do vazio. A lâmina desenha com uma delicadeza que se assemelha a do viver, ela possui exatamente a força mínima do gesto que se aproxima em um momento amoroso, deixa as cicatrizes para dizer quem é, para que está ali, porque é da forma que é. O pulso, o músculo e a lâmina compõem o tripé que sustenta esse movimento de partir, os três juntos eliminam, inclusive, as possibilidades de se sair ileso – pois, depois de partir, não há como voltar. O tempo amargo novamente começou a escoar e o corpo sentiu o próprio dilaceramento. Foi a fenda que o fez sair do inferno e o ajudou a compreender o buraco em que estava, no qual a memória tornou-se “prova acusatória”. Seu corpo-coisa agora é um lugar de articulação e de fratura. Escolhido para essa história devido ao seu fracasso, o anti-herói dessa história. Já não está cheio de excrementos e impregnado de sangue e fogo. Agora, talvez saiba que não

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se destrói de uma vez a primária articulação entre corpo e linguagem. Portador do horror, no caso concreto, “na prática”, como se diz, os livros foram, por exemplo, confiscados pelos homens que fizeram e pela lógica que faz até hoje o Brasil. – Considerado sob um ângulo apocalíptico, no qual infelizmente nos encontramos, “com mais de cento e vinte milhões de crianças se agitando no seio dessa tormenta”.

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