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O CEMITÉRIO

DOS VIVOS


O CEMITÉRIO DOS VIVOS Autor: Lima Barreto Escola literária: Pré-Modernismo Ano de publicação: 1956 Gênero: Romance autobiográfico Divisão da Obra: 5 capítulos Temática: frustração, depressão, alcoolismo, a vida em manicômios

O AUTOR Lima Barreto (1881-1922) Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em Laranjeiras, Rio de Janeiro, no dia 13 de maio de 1881. Por ser afilhado do Visconde de Ouro Preto fez o curso secundário no Colégio Pedro II. Ingressou na Escola Politécnica do Rio de Janeiro onde iniciou o curso de Engenharia. Em 1903, quando cursava o terceiro ano, foi obrigado a abandonar o curso, pois seu pai havia enlouquecido e precisava sustentar os três irmãos. Iniciou suas atividades como jornalista, contribuindo com várias revistas de sua época, mas tinha como sustento principal seu emprego como escrevente na Secretaria de Guerra. Seu reconhecimento literário veio somente após sua morte. Até lá, viveu uma vida boêmia e solitária, entregando-se ao álcool, motivo pelo qual foi internado duas vezes na Colônia de Alienados, na Praia Vermelha – RJ, por causa das alucinações que sofria durante seu estado de embriaguez. Em suas obras, inseriu como temáticas suas experiências pessoais, denunciando questões como: preconceito, racismo, humilhações sofridas pelas classes desfavorecidas, etc. 44

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Lima Barreto atuou como romancista, cronista, contista e jornalista. Faleceu no dia 01 de novembro de 1922 de ataque cardíaco.

BIBLIOGRAFIA Principais obras: Romances: Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909); Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911); Numa e a Ninfa (1915); Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919); Clara dos Anjos (1948); Cemitério dos Vivos (póstumo e inacabado – 1956). Sátiras: Os Bruzundangas (1923); Sátiras e outras subversões: textos inéditos (organização de Felipe Botelho Corrêa – 2016); Sátiras de um homem morto (2017). Contos: Histórias e sonhos (1920). Memórias: Diário Íntimo (1953).

O PERÍODO LITERÁRIO Pré-Modernismo O Pré-Modernismo não é classificado como uma Escola Literária; ele é considerado uma fase de transição para o Modernismo. Esse termo foi usado para designar a produção literária de alguns escritores que já rompiam com a literatura tradicional. Essa ruptura se dava tanto em relação à forma (linguagem acadêmica dos parnasianos) como ao conteúdo, em que os escritores passaram a fazer uma literatura de denúncia, retratando problemas políticos, econômicos e sociais contemporâneos. O início do Pré-Modernismo se dá a partir da publicação de duas obras, em 1902: Os Sertões (Euclides da Cunha) e Canaã (Graça Aranha).

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Características • • • • •

Denúncia da realidade brasileira Ruptura com o academicismo Linguagem simples, coloquial Regionalismo e nacionalismo Apresentação de personagens marginalizados: o sertanejo, o caipira, o mulato

Principais autores Euclides da Cunha, Graça Aranha, Monteiro Lobato, Lima Barreto e Augusto dos Anjos.

PERSONAGENS Personagens principais: Vicente Mascarenhas – é o personagem-narrador da história; assim como o próprio Lima Barreto, ele é negro, torna-se funcionário público, passa por dificuldades financeiras, frustrações e desilusões; casa-se mesmo sem amar a esposa e sente-se culpado por não compreendê-la (somente o faz depois de morta), tem um filho pelo qual não demonstra amor e acaba sendo internado duas vezes por causa do alcoolismo. Efigênia – filha da dona da pensão; casa-se com Mascarenhas, tem um filho e morre aos 25 anos de idade. Efigênia não era feia, nem bonita. Pequena, mesmo miúda, com uma cabecinha minúscula de cabelos escassos, parecia uma gatinha, com os seus olhos estriados muito firmes de mirada, agachada na escrivaninha alta, donde dirigia o serviço do refeitório e aonde ficava melhor, com mais elegante figura, do que de pé. Dona Clementina – dona da pensão, mãe de Efigênia; fica louca no decorrer da narrativa. 46

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RESUMO DA OBRA O cemitério dos vivos está dividido em cinco capítulos, todos enumerados.

Capítulo I Este capítulo faz uma apresentação do personagem-narrador da história, Vicente Mascarenhas, sua timidez ao lidar com mulheres, o papel da literatura em sua vida, seus sonhos de ser um escritor reconhecido, seu casamento sem amor e seu filho. A história começa já nos últimos momentos de Efigênia, esposa de Mascarenhas: Quando minha mulher morreu, as últimas palavras que dela ouvi, foram estas, ditas em voz cava e sumida: — Vicente, você deve desenvolver aquela história da rapariga, num livro. Morreu dali a dois dias e deixava seu filho com quatro anos de idade. A partir da morte da esposa, Mascarenhas começa a pensar na própria vida e a narrá-la: Tinha na ocasião 20 anos. Como toda a gente, quis ser “doutor” em alguma coisa. Não tendo quem me custeasse os estudos, logo pelos dezessete anos, com uma falsa certidão de idade, fiz um concurso em uma repartição pública e obtive um pequeno lugar de funcionário. Minha família vivia fora do Rio de Janeiro; e eu, apresentado por outro colega, fui morar na pensão da viúva Dias. Como era muito tímido, não chegava nem perto de mulheres. Por isso, não gostou muito quando chegou à pensão e viu que a atendente era uma moça, Efigênia; quase desistiu de ficar ali. Dois meses depois, Efigênia puxou assunto e perguntou-lhe sobre os estudos. Aborrecia-me com isto, porque já começava a aborrecer-me com eles. Sentia-se satisfeito com o que sabia; dizia não ter muita esO cemitério dos vivos

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perança e não almejava grande coisa, pois sabia que só se conseguiria honrarias se fosse rico ou se tivesse algum apadrinhamento – nesse último caso, ainda ficaria devendo favores a alguém, e isso ele não tolerava. Dessa forma, não tinha preocupação em “formar-se”, estava estudando apenas porque era um desejo do pai. Ele se recorda também do pai que, enganado por um primo, passara um ano na cadeia – dera alguns tiros, mas errara todos. Acredito que dissesse isso, porque meu pai ainda tinha em muita evidência traços de raça negra; e o meu primo, o doutor belga, como todos os antropologistas nacionais, põe os defeitos e qualidades da raça nos traços e sinais que ficam à vista de todos. Mascarenhas conta que desde criança sentia-se curioso pela ciência; um dia, leu uma defesa de júri que o marcaria em toda a sua vida: “O réu, meus senhores, é um irresponsável. O peso da tara paterna dominou todos os seus atos, durante toda a sua vida, dos quais o crime de que é acusado, não é mais do que o resultado fatal. Seu pai era um alcoólico, rixento, mais de uma vez foi processado por ferimentos graves e leves. O povo diz: tal pai, tal filho; a ciência moderna também.” Então, se assim pensava a ciência, o menino Mascarenhas assuntava: se um simples bêbedo pode gerar um assassino; um quase-assassino (meu pai) bem é capaz de dar origem a um bandido (eu). Assustava-me e revoltava-me. Seria possível que a ciência tal dissesse? Pensava nisso e pensava também em abandonar os estudos. Não queria levar aquilo adiante e, por isso, irritava-se quando dona Efigênia lhe perguntava sobre eles. Com o tempo, verificou que a moça sempre dava um jeito de conversar com ele – e isso o deixava atormentado por causa de sua timidez. Não tendo mais o que conversar, um dia, ela resolveu pedir-lhe livros emprestados, o que o embaraçou de vez, tendo em vista que ele não possuía livros. Resolveu pedir emprestado de colegas, primeiro de Nepomuceno, um positivista simpático que ele conhecera na época em que frequentara o apostolado do positivismo, depois de Chagas, um cearense, vadio, mas muito inteligente. 48

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A partir daí, as relações dele para com a filha da dona da pensão começaram a melhorar, no entanto, ainda se mostrava alheio a muitos fatos, limitava-se a responder o que ela me perguntava e, sem força de consciência, fazia uma observação banal. Foram precisos muitos e dolorosos acontecimentos, erros e guinadas, na minha vida, para que eu os reunisse todos na imaginação e reconstituísse com eles a figura excepcional de minha mulher, que eu não soube ver quando viva. Arrependo-me, embora não me sinta em nada culposo para com ela; arrependo-me por não a ter bem visto e não a ter extremado da massa humana, onde só via indiferença e incapacidade para o amor e para a bondade. O interesse de Efigênia pelos livros fez também Mascarenhas voltar a ter interesse pela literatura, tanto que começou a escrever. Inclusive, por influência de um colega, começou a escrever para um “jornalzinho de estudante”. Dizia não ter muita familiaridade com a gramática, mas ainda assim as pessoas gostavam do que ele escrevia. A partir daí começou a colaborar com outros jornais e passou a frequentar rodas de literatos para debates. Abandonou de vez os estudos e passou a dedicar-se às “croniquetas”. Um dia, resolveu escrever um conto. Era a tal história da rapariga que Efigênia me falou na hora da morte... Efigênia descobriu e incentiva-o a escrever; ele não se demorava muito na descrição do amor da rapariga, pois dizia ter vergonha. Havia quase dois anos que eu comia na pensão da viúva Dias, quando ela caiu doente. Um ataque prostrou-a, e perdeu movimentos, e tudo levava a crer que morresse ou ficasse paralítica. Efigênia, como não conseguisse dar conta de tudo sozinha, resolveu fechar a pensão. Ela, a mãe e Ana, uma crioula de meia-idade, que chefiava a cozinha, foram morar nos subúrbios. Quatro meses depois, quando a lembrança de todos da pensão já lhe estava fraca na cabeça, Mascarenhas recebeu um bilhete de Efigênia, pedindo-lhe que fosse vê-las. De forma indiferente, ele foi; pensara até que elas queriam lhe pedir algum dinheiro, mas ele não o tinha. O cemitério dos vivos

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Lá chegando, conversaram; dona Clementina contou-lhe suas preocupações, dentre elas o fato de morrer e a filha ficar sozinha, desamparada. Ingênuo, ele não conseguia ligar os fatos até que a viúva mandou-os ir para a sala. Lá chegando, Efigênia revela-lhe: — Eu amo, seu Mascarenhas; o senhor quer casar comigo? O rapaz ficou tão surpreendido que não conseguiu dizer não, mesmo sabendo que o casamento seria “a negação da sua própria obra”. — Ele aceita, mamãe. Não a desmenti e fomos até a borda da cama de dona Clementina. A custo apertou-me a mão, eu a beijei depois, e ela me disse: — Abracem-se, meus filhos. Como estou satisfeita!

Capítulo II Neste capítulo, Mascarenhas narra sua internação no hospício no dia de Natal e todas as humilhações a que fora submetido. Tece muitas reflexões acerca do que é o hospício, uma mescla de prisão e inferno. Ressalta-se aqui que Mascarenhas (assim como Lima Barreto) não era louco; ele fora internado por causa do alcoolismo, hospital em que se tratava essa doença.. Entrei no hospício no dia de Natal. Passei as famosas festas, as tradicionais festas de ano, entre as quatro paredes de um manicômio. Estive no pavilhão pouco tempo, cerca de vinte e quatro horas. O pavilhão de observação é uma espécie de dependência do hospício a que vão ter os doentes enviados pela polícia, isto é, os tidos e havidos por miseráveis e indigentes, antes de serem definitivamente internados. E Mascarenhas fala dos abusos de autoridade e discriminações sofridas naquele lugar: A polícia, não sei como e porquê, adquiriu a mania das generalizações, e as mais infantis. Suspeita de todo o sujeito estrangeiro com nome arrevesado, assim os russos, polacos, romaicos são para ela forçosamente cáftens; todo o cidadão de cor há de ser por força um malandro; e todos os loucos hão de ser por força furiosos e só transpor50

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táveis em carros blindados. É indescritível o que se sofre ali, assentado naquela espécie de solitária, pouco mais larga que a largura de um homem, cercado de ferro por todos os lados, com uma vigia gradeada, por onde se enxergam as caras curiosas dos transeuntes a procurarem descobrir quem é o doido que vai ali. Tristes e dolorosas lembranças... Feria-me também o meu amor-próprio ir ter ali pela mão da polícia, doía-me; e, mais me doeu, quando, nesse dia de Natal, eu tomei café num pátio, sem ser mesa, e, sem ser em mesa, com prato sobre os joelhos, comi a refeição elementar que me deram, servida numa escudela de estanho e que eu levava à boca com uma colher de penitenciária. Jamais pensei que tal coisa me viesse acontecer um dia; hoje, porém, acho uma tal aventura útil, pois temperou o meu caráter e certifiquei-me capaz de resignação. Quando, pela primeira vez, me recolheram ao hospício, de fato a minha crise era profunda e exigia o meu afastamento do meio que me era habitual, para varrer do meu espírito as alucinações que o álcool e outros fatores lhe tinham trazido. Durou ela alguns dias seguintes; mas, ao chegar ao pavilhão, já estava quase eu mesmo e não apresentava e não me conturbava a mínima perturbação mental. Em lá chegando, tiraram-me a roupa que vestia, deram-me uma da “casa”, como lá se diz, formei em fileira ao lado de outros loucos, numa varanda, deram-me uma caneca de mate e grão e, depois de ter tomado essa refeição vesperal, meteram-me num quarto-forte. No hospício, ele conhece vários companheiros, de várias idades (desde meninos a homens idosos) e os horrores a que todos eram submetidos. Veio-me, repentinamente, um horror à sociedade e à vida; uma vontade de absoluto aniquilamento, mais do que aquele que a morte traz; um desejo de perecimento total da minha memória na terra; um desespero por ter sonhado e terem me acenado tanta grandeza, e ver agora, de uma hora para outra, sem ter perdido de fato a minha situação, cair tão, tão baixo, que quase me pus a chorar que nem uma criança. O cemitério dos vivos

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Senti muito a falta de minha mulher e toda a minha culpa, puramente moral e de consciência, subiu-me à mente... O curto encontro com esse rapazola criminoso [um garoto de 17 anos que disse estar ali porque cometera um crime], ali, naquele pátio, mergulhado entre malucos a delirar, a fazer esgares, uns; outros, semimortos, aniquilados, anulados, encheram-me de um grande pavor pela vida e de um sentimento profundo da nossa incapacidade para compreender a vida e o universo. Foi depois da morte de Efigênia que o meu pensamento fez-me viver uma vida desnorteada, que me levou duas vezes ao manicômio. O meu primeiro ano de casamento correu mansamente, da forma mansa e vulgar de todos os enlaces da espécie do meu. Não tinha por minha mulher grandes extremos de sentimento; dominava em mim, porém, a imagem das minhas responsabilidades de marido, e as cumpri como um dever sagrado. Estimava-a, prezava-a, mais como um companheiro, como um amigo, do que mesmo objeto de uma profunda solicitação da minha total natureza. Reprimia mesmo o mínimo movimento nesse sentido, porque sempre tive vexame, pudor de amar. Não lhe dizia as coisas mais secretas a mim mesmo. Dos meus planos de vida, dos meus projetos intelectuais, não lhe confidenciava palavra, nem dos meus desânimos, nem dos meus desalentos. Um dia, por intermédio do amigo Chagas, pouco depois do casamento, conseguiu emprego em uma revista de gênero humorístico chamada “Gatimanhas”, teria emprego e salário mensal – Efigênia ficou feliz. Ao entrar para a tal revista, ele começou a frequentar bares e a tomar chopes e a chegar tarde em casa – nessa época, o filho, Boaventura, estava com um ano de idade. Efigênia nunca lhe censurara. Minha mulher nunca teve para mim uma palavra azeda, uma palavra má; e, conquanto às vezes birrento, mudo, nunca a tratei senão com delicadeza e cordura. Se tenho algum arrependimento das minhas relações com ela, não é por nenhum dos meus atos externos; era pela minha reserva de alma e de pensamento, que sempre mantive em face dela; é da minha incompre52

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ensão dela, enquanto viveu, e da grande esperança e do grande desejo que eu realizasse o meu destino. Mascarenhas começou a escrever sua obra, mas sabia que não teria condições de publicá-la, seu orçamento não lhe permitia, e o cânone literário (a crítica) estava muito longe de aceitá-la. No ano seguinte, Efigênia cobra-lhe a obra – o marido havia muito não escrevia mais. Ele se admira de como a mulher o observava, enquanto ele próprio escondia tudo isso dela. Mascarenhas termina a obra, por insistência de Efigênia, pede um empréstimo e a publica; no entanto, a mulher não chega a lê-lo, pois morre antes. O meu consolo era o meu livro. A crítica assinada, a responsável, honrou-o muito, particulares insuspeitos gabaram-no à queima-roupa. Ele era cochichado, e eu pressentia no ar a emoção e a surpresa que tinha causado. Devia alegrar-me, mas a alegria que me podia causar era abafada pelas minhas dificuldades de dinheiro e pela doença de minha sogra. Mediante tanta tristeza e dificuldades financeiras, voltou a beber, e, desta vez, sem dinheiro, mal vestido, sentindo a catástrofe próxima da minha vida, fui levado às bebidas fortes e, aparentemente, baratas, as que embriagam mais depressa. Desci do whiskhy, à genebra, ao gin e, daí, até à cachaça. As lembranças de Mascarenhas voltam-se ao filho, Boaventura, que, aos cinco anos, começou a ter convulsões, chorar e ter espasmos nervosos. Aos sete anos descobriram que ele tinha problemas, não conseguia ler, juntar as letras. Tinha trinta e poucos anos, um filho fatalmente analfabeto, uma sogra louca, eu mesmo com uma fama de bêbedo, tolerado na repartição que me aborrecia, pobre, eu vi a vida fechada. A vida não me tinha mais sabor e parecia que me abandonava a esperança. Bebeu durante uma semana. Um dia, amanheceu gritando e cheio de terrores; o sobrinho André pediu à polícia que o levasse para o hospício (foi esta a primeira vez). O cemitério dos vivos

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Capítulo III O terceiro capítulo narra sobre o espetáculo da loucura: suas origens, causas e tentativas de explicações científicas. O espetáculo da loucura, não só no indivíduo isolado, mas, e sobretudo, numa população de manicômio, é dos mais dolorosos e tristes espetáculos que se pode oferecer a quem ligeiramente meditar sobre ele. Dizia Catão que os sábios tiram mais ensinamentos dos loucos que estes deles. Mascarenhas descreve um dos pavilhões do hospício, a Seção Pinel: na Seção Pinel é de abater, é de esmagar, a contemplação, o contato, o convívio com quase duas centenas de loucos. Entrei para a Pinel, para a seção dos pobres, do sem-ninguém, para aquela em que a imagem do que a Desgraça pode sobre a vida dos homens é mais formidável e mais cortante. Naquele dia, o médico o examinara, disse-lhe que estava bem, mas que, como viera por meio da polícia, teria de ficar ali por mais um tempo. Suas esperanças de ganhar alta se esvaíam. Relembra do sobrinho e do julgamento errôneo da sociedade acerca do papel do hospício: Recordei-me um pouco da casa do meu sobrinho, da sua infantil mania de supor que o hospício me curava e de supor que era o álcool e as companhias que me punham a delirar. O meu sofrimento era mais profundo, mais íntimo, mais meu. Eu me tinha esquecido de mim mesmo, tinha adquirido um grande desprezo pela opinião pública, que vê de soslaio, que vê como criminoso um sujeito que passa pelo hospício, eu não tinha mais ambições, nem esperanças de riqueza ou posição: o meu pensamento era para a humanidade toda, para a miséria, para o sofrimento, para os que sofrem, para os que todos amaldiçoam. Em suas memórias, Mascarenhas descreve, com tristeza, o pátio do hospício e sua condição humilhante: Esse pátio é a coisa mais horrível que se pode imaginar. Devido à pigmentação negra de uma grande parte dos doentes aí recolhidos, a imagem que se fica dele, é que tudo 54

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é negro. O negro é a cor mais cortante, mais impressionante; e contemplando uma porção de corpos negros nus, faz ela que as outras se ofusquem no nosso pensamento. É uma luz negra sobre as coisas, na suposição de que, sob essa luz, o nosso olhar pudesse ver alguma coisa. E assim, de vez em quando era trocado de quarto e, consequentemente, mudavam os companheiros que, em sua maioria, não lhe agradavam muito, mas cada qual com seus problemas. E Mascarenhas conhece vários internos e mesmo os próprios funcionários do hospício e verifica que há muitas pessoas boas ali dentro daquele universo tão discriminado pela sociedade, e isso o acalenta e traz esperanças: A minha sensação já não era de mágoa e de dor de estar ali; era de esperança da minha correção e da melhoria de todos os homens. A afeição, o amor, a simpatia e a piedade haviam de inspirar um dia alguém que curasse aqueles pobres homens... No domingo, fora passear pela chácara do hospício com um dos internos, Misael, um português que não era louco, nem alcoólatra. E Mascarenhas volta a descrever o hospício, ao passar por outros pavilhões; descreve o pavilhão de epiléticos e o de tuberculosos – nesse último, pela primeira vez, sente medo da moléstia ao rejeitar um cigarro ofertado por um dos doentes. Nesse passeio, veem vários doentes deitados embaixo das árvores; passam também pelo pavilhão dos doentes com morfeia (hanseníase) e com lepra: Fomos ver outra pior, a horrorosa morfeia, que, junta com a loucura, é para juntar o horror até ao mais alto grau. Uma deforma, degrada o pensamento; a outra, o corpo, o rosto sobretudo. Não quis olhar onde estavam alojados os lázaros dementes. Era numa barraca de campanha, erguida sobre espeques, e cujas bordas eram presas por pedregulhos respeitáveis. A sua moradia era provisória; a Morte não tardaria em levá-los... Voltaram para o quarto e, no caminho, encontramos bandos de crianças loucas, de menos de dez anos, que iam brincar, sob a vigilância de uma enfermeira estrangeira, alemã, parecia. Havia de todas as cores, e O cemitério dos vivos

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todas eram feias, algumas mesmo aleijadas. Fora dos muros do hospício, passavam automóveis buzinando, com pessoas alegres dentro, indo curtir aquele dia ensolarado de domingo em Copacabana; e nós estávamos diante da mais terrível associação de males que uma pessoa humana pode reunir.

Capítulo IV O capítulo IV trata particularmente das relações que ocorrem dentro do hospício (entre os internos e os funcionários do local). Percebe-se aqui a admiração do próprio Lima Barreto pelos funcionários do hospício. Na segunda-feira, vieram chamar Mascarenhas para se apresentar ao diretor. Ele foi, sem esboçar nenhuma reação e sem fazer nenhuma reivindicação. Tinha consciência de que estava ali por causa de suas próprias ações, e não era digno de pedir nada. As pequenas coisas que feriam o meu amor próprio e que me desgostavam intimamente, eram decorrentes do modo por que eu ia me conduzindo na vida, deixando cair, aniquilando-me. O diretor lhe dá um tratamento diferenciado; deixa-o escolher em qual pavilhão gostaria de ficar – escolheu o pavilhão superior, onde ficava a biblioteca – isso era um privilégio. A biblioteca do hospício era bem pobre, havia uns poucos livros de ficção citados por Mascarenhas e um artigo em especial, intitulado “Abelardo e Heloísa”1, no qual o autor (um inglês) censurava em Abelardo o que se podia censurar em todos os homens: um amor muito maior à sua obra, ou talvez aos seus projetos, do que às pessoas que o amam. Abelardo e Heloísa são personagens de uma real e trágica história de amor ocorrida em Paris, no século 12, entre o final da Idade Média e o início do Renascimento. Semelhante a histórias de ficção como Romeu e Julieta e Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa viveram uma história de amor proibida. Pierre Abelardo era filho de nobres e tornou-se um brilhante professor de teologia na Catedral Notre Dame de Paris. Heloísa era sobrinha de Canon Fulbert, um homem muito rico de Paris, que entregou a responsabilidade dos estudos da garota ao professor Abelardo.Ambos se apaixonaram, mas a igreja católica tinha como norma a proibição do envolvimento entre professores e alunos. Heloísa engravida, e os dois se refulgiam na Bretanha até o nascimento do bebê. Abelardo conta a história ao tio dela e decide oficializar a situação. O tio aceita e eles se casam na própria Catedral de Notre Dame. Após o casamento, a sociedade iniciou um ataque de difamações direcionados contra o tio. Enfurecido, Fulbert denunciou Abelardo à igreja católica e, em uma noite, contratou dois homens para realizar a castração em Abelardo. Após a mutilação, o casal foi separado para sempre. belardo se refugiou na Abadia de Saint Denis, onde tornou-se monge e dedicou sua vida aos estudos filosóficos. Heloísa foi para o mosteiro de Paraclet, onde se tornou abadessa do convento. (In: https://www.conexaoparis.com.br/2015/04/14/abelardo-e-heloisa-uma-historia-de-amor/)

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A partir dessa leitura, passou a compreender melhor sua mulher: O que me assoberbavam eram dificuldades de toda a ordem, especialmente de dinheiro, coisas caseiras e triviais; e eu, que nunca lhe tinha confiado meus projetos e escrevera coisas vulgares e pouco acima do médio, merecia que Efigênia nunca me atormentasse com as coisas triviais da casa. O que me roía, era o silêncio, era calar, esconder o que eu tinha de mais eu mesmo na minha vida. A leitura na biblioteca não era a coisa mais sossegada, de vez em quando ele era interrompido por um louco que puxava assunto ou que fazia algum barulho ou por um conhecido seu. O chefe da enfermaria, seu Carneiro, que o vira ali internado pela segunda vez, tratou de melhor acomodá-lo. Mascarenhas relata sua admiração pelo funcionário que, dos seus cerca de sessenta anos, quarenta deles “lidava com doidos”. Mais de uma vez estive no hospício; e quer me tratassem como doente vulgar e sem recomendação, quer me tratassem com recomendação, afora este ou aquele movimento de mau humor e impaciência, eu só posso dizer bem desses pobres homens, humildes camponeses portugueses, rudes decerto, às vezes mesmo xucros que eram eles, no seu penoso e árduo ofício. Imaginar que homens mal saídos da gleba do Minho e alguns nacionais de condição modesta pudessem ter certa delicadeza, resignação, paciência, para suportar os loucos e as suas manias! A narrativa prossegue contando histórias de alguns internos, um menino de 17 anos que lhe pedira cigarros, a relação deles no refeitório, o pedido de cigarros após o jantar: Para mim, eram as mais tristes horas que passei no hospital, aquelas que vão da refeição até à hora do sono. Vem então uma melancolia, que a luz da tarde faz mais sombria, mais física, mais dolorosa; e o nosso pensamento, quando para em alguma coisa, é para os tristes episódios da nossa vida. E, nisso, relembra-se dos amigos, das festas, das bebedeiras, de uma vez que bebera tanto e fora salvo por uma empregada, a mando de sua patroa, quando estava com um amigo. Voltara naquela rua, depois de O cemitério dos vivos

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sóbrio, para tentar encontrar sua benfeitora, mas nunca conseguira.

Capítulo V O quinto capítulo narra as relações de Mascarenhas com os médicos e volta novamente à questão da cura pela ciência e da arrogância de alguns médicos. O primeiro médico de que ele fala, é aquele pelo qual ele passou na Seção Pinel (descrito no capítulo 3), do qual ele relata “ter medo”, pois ele tinha o orgulho e a fé na sua atividade intelectual, e os pontos de dúvida que deviam tirar do seu espírito o sentimento de sua evidência, pareciam que antes reforçavam-no. Há um grande mal em querer os nossos estudiosos de hoje desprezar as observações dos leigos; muitas vezes é preciso estar livre de construções lógicas, erguidas a priori, para se chegar à verdade, e não há como levar em linha de conta aquelas. Ou seja, aqui existe uma grande crítica acerca da arrogância dos médicos e dessa distância entre eles e seus pacientes. Existe também uma reflexão acerca dos médicos aos quais são indicados aos pacientes, que não são médicos de confiança dos internos; são pessoas que estão ali a serviço do estado e, muitas vezes, não desejariam estar ali, com loucos trazidos e tutoreados pela polícia. Eu passei, desde a minha entrada no pavilhão, nas mãos de cinco médicos. Era essa a rotina, esse rodízio de pessoas que os acompanhavam, e essa falta de “pessoalidade” incomodava muito nosso personagem. Mascarenhas relata, ainda, sobre o atendimento de um outro médico, um rapaz mais novo, que não lhe inspirava confiança, atribuindo forte crítica ao sistema: Essa sua falta de método, junto a minha condição de desgraçado, davam-me o temor de que ele quisesse experimentar em mim um processo novo de curar alcoolismo em que se empregasse uma operação melindrosa e perigosa. Pela primeira vez, fundamentalmente, eu senti a desgraça e o desgraçado. Tinha perdido toda a proteção social, todo o direito sobre o meu próprio corpo, era assim como um cadáver de 58

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anfiteatro de anatomia. Ao ser transferido novamente, é atendido por outro médico, que lhe agradou: de outro feitio mental, cuja inteligência, solicitada e atraída para outros campos de atividade, dava-lhe mais dúvida, mais necessidade de reexame, no que propusessem os seus colegas, de modo a não se permitir liberdades com a vida dos outros. Este o examinara com cuidado. Recebeu-me prazenteiramente, falou-me, examinou-me com cuidado, viu bem os estragos que o álcool podia ter realizado no meu organismo e ficou admirado. Eram mínimos. Essas observações médicas fizeram com que Mascarenhas refletisse sobre sua vida e sobre o mal que a bebida lhe fazia: Foi aí que eu vi bem o mal da “bebida”. Ela não me matava, ela não me estragava de vez, não me arruinava. De quando em quando, provocava-me alucinações, eu incomodava os outros, metiam-me em casas de saúde ou no hospício, eu renascia, voltava, e assim levava uma vida insegura, desgostosa, e desgostando os outros, sem poder realizar plenamente o meu destino, que as coisas obscuras queriam dizer não ser o de um simples bêbedo. Era preciso reagir. Mascarenhas escreve sobre a administração geral do hospício e faz sugestões, pois o hospício recebe pessoas que ganham pensões do governo e isso poderia beneficiar a todos, principalmente aos internos: O Estado, recebendo-os como loucos, por mais mínima que fosse, o seu primeiro cuidado devia ser apoderar-se dessa pensão para o seu tratamento. Evitava que eles fossem tratados abaixo de sua condição, aumentava a renda do estabelecimento e dava enchanças para melhorar o tratamento dos verdadeiramente pobres. Ao ser transferido para a Seção Calmeil, enquanto aguardava o inspetor no corredor, um interno vem ao seu encontro. Disse reconhecê-lo por uma publicação em uma revista; apresentou-se, dizendo apenas os nomes dos irmãos, cada qual com um título acadêmico – o que foi satirizado pelo narrador – O hospício tem uma particular admiração pelos títulos doutorais, patentes, e um culto pelas nobiliarquias familiares. Era O cemitério dos vivos

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José Alves, um pernambucano que, empolgado em sua conversa, atraíra outro doente que veio conversar com eles. Os dois começaram a discutir, e a narrativa termina dessa maneira: Parecia-me que a coisa ia acabar em briga, em pugilato; mas tal não se deu. Repentinamente Alves se foi para um canto, e aquele a quem ele tratara de Azevedo se foi para outro. Fiquei eu só no vão da janela.

ANÁLISE DA OBRA O Cemitério dos vivos: uma temporada no inferno O Cemitério dos vivos é uma obra composta por duas partes: a primeira, intitulada “Diário do hospício”, composta por 10 capítulos, e a segunda, intitulada “Cemitério dos vivos”, composta por 5 capítulos. Infelizmente, devido à morte prematura de Lima Barreto, aos 42 anos de idade, a segunda parte da obra não foi terminada. Um estudioso de Lima Barreto, Francisco de Assis Barbosa, reuniu os manuscritos encontrados na casa onde o autor conviveu com a irmã e os publicou em 1956, pela Editora Brasiliense, sob o título de “O cemitério dos vivos”. Atualmente, os originais encontram-se na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Os escritos foram feitos à caneta de tinta preta em folhas pautadas e estavam com numeração confusa de ordem fato que, aliado à escrita “assumidamente ruim” de Lima Barreto, suscitou um grande desafio aos estudiosos. Lima Barreto produziu esta obra durante sua segunda internação no Hospício Nacional de Alienados (nome dado após a instauração da República ao antigo Hospício Pedro II, o primeiro hospital psiquiátrico do Brasil), do Rio de Janeiro, entre os anos 1919 e 1920 (hoje o espaço é um câmpus da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ). É importante compreender que Lima Barreto não era louco; na época, e 60

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isso é criticado pelo narrador ao longo da obra, como não havia hospital específico para tratar o alcoolismo, o manicômio era o lugar para onde se encaminhavam pessoas com essa doença. Lima Barreto teve alguns surtos durante o alcoolismo, e essa foi a razão pela qual foi internado. O fato de estar lúcido e presenciar todos os horrores de um manicômio torna ainda mais sofrida sua vida no hospício, uma vez que ele tem consciência de tudo e relata as condições humilhantes a que os internos são submetidos. De acordo com alguns estudos biográficos sobre o autor, os delírios de Lima Barreto eram derivados do tratamento à base de ópio – aqui podemos fazer uma relação com o próprio título da obra, quando, no capítulo III, ele compara a vida no hospício com o “cemitério de vivos” de uma cidade chinesa: “Parece tal espetáculo com os célebres cemitérios de vivos, que um diplomata brasileiro, numa narração de viagem, diz ter havido em Cantão, na China.”2 (cap. 3, p. 71)

O gênero literário O Cemitério dos vivos é considerado um “romance autobiográfico”, ou seja, existe uma ambivalência em torno da figura do protagonista: às vezes ele se identifica com o autor (e temos uma narrativa autobiográfica), às vezes se distancia (e a narrativa toma o rumo da ficção). O protagonista, Vicente de Mascarenhas, é uma espécie de Lima Barreto ficcional – no entanto, existem fatos da realidade de Mascarenhas que não condizem com a realidade de Lima Barreto. Um grande exemplo disso é a figura 2-

Cantão é uma importante cidade portuária da República Popular da China, fundada no século II a.C. Sua localização estratégica permitiu o comércio com diversos países durante

muitos anos. Esta cidade foi marcada por duas grandes guerras, denominadas “Guerras do ópio” - conflitos armados ocorridos entre a Grã-Bretanha, a França e a China nos anos de 1839 a 1842 e 1856 a 1860, nos quais, as forças europeias saíram vitoriosas e houve milhares de mortos. As duas guerras surgiram das tentativas da China de sufocar o comércio de ópio – que era, até então, usado estritamente para fins medicinais. Para britânicos e franceses, exportar ópio para a China era uma forma de compensar o prejuízo nas relações comerciais com os chineses, que vendiam aos ocidentais mercadorias muito mais valorizadas, como chá, porcelanas e sedas. O comércio, no entanto, cresceu drasticamente a partir de 1820. O problema é que dentro da China, a dependência da droga era generalizada e estava causando graves implicações sociais e econômicas. Outro ponto importante a considerar: Nas imediações de Cantão, na China, teria havido um lugar de domínio público reservado aos indigentes que se sentiam morrer. Recebiam comida, roupa e caixão fúnebre em que deviam se enterrar para esperar tranquilamente a morte. A lembrança da existência do cemitério dos vivos, na distante Cantão, toma de assalto Vicente Mascarenhas quando procura assimilar a experiência - da quase morte em vida – que era estar internado na seção Pinel, do Hospício Nacional de Alienados. (Fontes:NAVARRO, 2011; https://www.todamateria.com.br/; CAMARGO, 2006, p. 56)

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de uma esposa (Lima Barreto nunca se casou), Efigênia, que tem grande importância na vida do personagem-narrador e na própria obra em si, se formos pensar que a narrativa se estrutura em torno da amargura da morte da esposa em conflito com os seus pensamentos e sua estada no hospício. A título de curiosidade, nas observações realizadas pelo biógrafo Francisco de Assis Barbosa, ele indica que Lima Barreto, às vezes trocava o nome do personagem principal, Vicente Mascarenhas, frequentemente, por Juliano Tito César Flamínio, Tito Flamínio, Azevedo, Fortunato e, por fim, Vicente Mascarenhas (esses nomes também aparecem na primeira parte da obra, no “Diário do Hospício”. O tempo e o espaço A história se passa em grande parte nas dependências do Hospício Nacional de Alienados, no bairro da Urca – Rio de Janeiro. Quanto ao tempo, o romance não indica uma data, mas, nos dá uma pista no capítulo II, quando indica que “Entrei no hospício no dia de Natal.” (cap. 2, p. 53). A partir de estudos biográficos de Lima Barreto, sabemos que o autor foi internado duas vezes no manicômio: a primeira, em 1914 (que não interessa ao livro), e a segunda, em 25 de dezembro de 1919 (até 02 de fevereiro de 1920), quando ele passa a anotar suas experiências no lugar – portanto, como se trata de um romance autobiográfico, podemos deduzir que o período de tempo da narrativa está entre 1919 e 1920.

A narração A história é narrada em primeira pessoa, pelo personagem-narrador Vicente Mascarenhas, um homem frustrado tanto na vida pessoal como na profissional que, por causa disso, é levado à depressão, ao alcoolismo e, por fim, à internação em um manicômio. 62

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A linguagem Lima Barreto, como alguns escritores do Pré-Modernismo, preocupa-se muito mais com o conteúdo a ser dito do que com a forma; em razão disso, foi acusado pelos gramáticos de cometer incorreções em suas obras. No entanto, sabemos que essa linguagem gramaticalmente “irregular” se refletia na sua forma de ver o mundo – consciente de que a linguagem representava um instrumento de poder (ou seja, de um lado os eruditos e, de outro, o povo), ele sempre procurou atuar contra os preciosismos da língua e contra o preconceito linguístico, usando uma linguagem que representasse mais a população. Assim, temos em O Cemitério dos vivos uma obra cuja linguagem é de fácil entendimento, mesmo levando-se em conta que foi escrita no início do século XX.

A temática A temática da obra gira em torno das frustrações (pessoais e profissionais) do personagem Mascarenhas (em uma mescla da realidade de Lima Barreto) e as implicações que isso causará em sua vida: depressão, alcoolismo, loucura e consequente internação no hospício. A partir daí, podemos também destacar o aspecto crítico abordado pelo autor, na denúncia de costumes da sociedade burguesa e tradicional do Rio de Janeiro, em relação ao status dos doutores brancos, o culto ao bacharelado, à prática do “pistolão”, ou seja, só vence na vida aqueles que possuem uma espécie de protetor (ou o famoso “Q.I.” – que indica). Também não podemos nos esquecer de que reflexões sobre a loucura, suas causas, origens e tentativas de cura são constantemente expostas na obra; além disso, temos, ainda, relatos do dia a dia de uma instituição psiquiátrica, relação dos médicos e funcionários com os pacientes, a situação precária e miserável em que viviam alguns pacientes; situações de humilhação e marginalização dos internos. O cemitério dos vivos

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O casamento com Efigênia O casamento de Mascarenhas e Efigênia dá-se em virtude de um pedido realizado pela mãe da moça. Esse acontecimento deixa marcas profundas no personagem, que desabafa: “esse espetáculo doméstico, em geral de tão pouco alcance, trouxe para mim consequências desenvolvidamente dolorosas, um verdadeiro drama psicológico e moral, que todas as satisfações posteriores não puderam dar termo na minha consciência, nem tampouco o trabalho e o vício.” Da união do casal, um ano depois, nasce um menino que possui problemas mentais –tornou-se analfabeto, não conseguia aprender a juntar as letras. A sogra, que estava aos cuidados dele, também tinha problemas mentais, que aumentaram com o tempo; aliado a isso, possuía com sérias dificuldades financeiras e não gostava de seu trabalho. Todos esses problemas se agravaram após a morte de Efigênia, a esposa incompreendida pelo marido. Efigênia possui presença marcante na vida do personagem; ele não só inicia o livro anunciando sua morte, como dedica dois capítulos a ela – fora as menções que faz a sua pessoa durante toda a obra. “Quando minha mulher morreu, as últimas palavras que dela ouvi foram estas, ditas em voz cava e sumida: — Vicente, você deve desenvolver aquela história da rapariga, num livro.” (cap. 1, p. 37) Efigênia é descrita pelo narrador como uma moça simples, porém instruída, que gosta de ler autores nacionais e estrangeiros. Filha da dona da pensão, é ela quem se torna responsável pela mãe, quando esta cai doente (e sabe-se que os demais filhos a abandonaram). E é ela, também, quem toma a iniciativa de pedir Mascarenhas em casamento: “Ela acalmou-se, olhou-me com a sua firmeza habitual de olhar e perguntou-me naturalmente: — Eu amo, seu Mascarenhas; o senhor quer casar comigo?” (cap. 1, p. 52) 64

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Efigênia se resigna a seu papel de esposa, mãe e filha dedicada e acompanha silenciosamente a trajetória literária do marido, mesmo que ele não compartilhe nada com ela. Apesar disso, ela o incentiva em seus planos, chegando a sugerir que ele financiasse seu próprio livro, o que acontece após a morte dela. “— Você por que não publica isto? — Não há quem o queira imprimir. — Publique você mesmo. Custa caro? — Muito. Ela convenceu-me que devia pedir emprestado o dinheiro necessário sobre os meus vencimentos. Assim fiz, e o livro ia em meio da composição, quando ela adoeceu gravemente.” (cap. 2, p. 65) Depois da morte de Efigênia, Mascarenhas se entrega ao alcoolismo e é internado duas vezes no manicômio. Nunca foi capaz de compreendê-la, enquanto viva, e de amá-la; mas é depois de sua morte que ele reconhece a grandeza da esposa: “Foram precisos muitos e dolorosos acontecimentos, erros e guinadas, na minha vida, para que eu os reunisse todos na imaginação e reconstituísse com eles a figura excepcional de minha mulher, que eu não soube ver quando viva.” (cap. 1, p. 45) Mascarenhas é frequentemente atormentado por um “sofrimento mais profundo” e procura na escrita uma forma de compreender a esposa e a si mesmo. Nos livros, ele procura respostas, também, para suas dores, e é quando encontra na biblioteca do hospício um artigo sobre “Abelardo e Heloísa”, que passa a compreender Efigênia – sua esposa teria agido como Heloísa, a qual acreditava que a glória de Abelardo precisava de sua dedicação e do sacrifício de muitos para ser útil a todos. Ao final, percebemos que mesmo a compreensão da grandeza da esposa não diminui o seu remorso: “O que me roía, era o silêncio, era calar, esconder o que eu tinha de mais eu mesmo na minha vida.” (cap. 4, p. 79).

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Descrição dos internos Mascarenhas faz reflexões sobre os internos: Os loucos são de proveniências as mais diversas; originam-se, em geral, das camadas mais pobres da nossa gente pobre. São pobres imigrantes italianos, portugueses, espanhóis e outros mais exóticos; são negros roceiros, que levam a sua humildade, teimando em dormir pelos desvãos das janelas sobre uma esteira ensebada e uma manta sórdida; são copeiros, são cocheiros, cozinheiros, operários, trabalhadores braçais e proletários mais finos: tipógrafos, marceneiros, etc. (cap. 3, p. 68) Olham-se os quartos e todos aqueles homens, muitas vezes moços, sem moléstia comum, que não falam, que não se erguem da cama nem para exercer as mais tirânicas e baixas exigências da nossa natureza, que se urinam, que se rebolcariam no próprio excremento, se não fossem os cuidados dos guardas e enfermeiros, pensa-se profundamente, dolorosamente, angustiosamente sobre nós, sobre o que somos; pergunta-se a si mesmo se cada um de nós está reservado aquele destino de sermos nós mesmos, o nosso próprio pensamento, a nossa própria inteligência, que, por um desarranjo funcional qualquer, se há de encarregar de levar-nos àquela depressão de nossa própria pessoa, àquela depreciação da nossa natureza, que as religiões querem semelhante a Deus, àquela quase morte em vida. Parece tal espetáculo com os célebres cemitérios de vivos, que um diplomata brasileiro, numa narração de viagem, diz ter havido em Cantão, na China. (cap. 3, p. 71)

Sobre a definição de loucura e tentavia de cura pelos médicos: Mascarenhas reflete sobre o fato de muitos estudiosos tentarem definir as causas da loucura: A loucura se reveste de várias e infinitas formas; é possível que os 66

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estudiosos tenham podido reduzi-las em uma classificação, mas ao leigo ela se apresenta como às árvores, arbustos e lianas de uma floresta: é uma porção de coisas diferentes. Uma generalização sobre o seu fundo pecaria pela base. Choques morais, deficiência de inteligência, educação, instrução, vícios, todas essas causas determinam formas variadas e desencontradas de loucura; e, às vezes, nenhuma delas o é. Além disso, reflete sobre o fato de dizerem que a loucura é hereditária: Apela-se para a hereditariedade que tanto pode ser causa nestes como naqueles; e que, se ela fosse exercer tão despoticamente o seu poder, não haveria um só homem de juízo, na terra. Apela-se para a hereditariedade que tanto pode ser causa nestes como naqueles; e que, se ela fosse exercer tão despoticamente o seu poder, não haveria um só homem de juízo, na terra. É bastante pensar que nós somos como herdeiros de milhares de avós, em cada um de nós se vem encontrar o sangue, as taras deles; por força que, em tal multidão, há de haver detraqués, viciosos, etc., portanto a hereditariedade não há de pesar só sobre este e sobre aquele, cujos antecedentes são conhecidos, mas sobre todos nós homens. Por ser remota? Mas as forças da natureza não contam o tempo; e, às vezes mesmo, as mais poderosas só se fazem notar quando se exercem lentamente, durante séculos e séculos. A explicação por hereditariedade é cômoda, mas talvez seja pouco lógica. (cap. 3, p. 71-72) No capítulo V, Mascarenhas continua essa reflexão, após indicar que tem medo do médico que o atendera na Seção Pinel, por causa da arrogância do saber: Procuram os antecedentes, para determinar a origem do paciente que está ali, como herdeiro de taras ancestrais; mas não há homem que não as tenha, e se elas determinam loucura, a humanidade toda seria de loucos. Cada homem representa a herança de um número infinito de homens, resume uma população, e é de crer que nessa houvesse fatalmente, pelo menos, um degenerado, um alcoólico, etc. etc. De resto, os filhos de loucos são gerados por pais que estão loucos, O cemitério dos vivos

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mas tarde é que a sandice aparece; como é então que ele herdou? Tinha a loucura incubada, em gérmen, etc.? A explicação é acomodada, mas não é leal, antes traduz o desejo de não invalidar uma sentença. Há homens que, durante uma existência inteira, não demonstram o mínimo sinal de loucura e, ao fim da vida, perdem o juízo. As maravilhas que a ciência tem conseguido realizar, por intermédio das artes técnicas, no campo da mecânica e da indústria, têm dado aos homens uma crença de que é possível realizá-las iguais nos outros departamentos da atividade intelectual; daí, o orgulho médico, que, não contente de se exercer no âmbito da medicina propriamente, se estende a esse vago e nebuloso céu da loucura humana. (cap. 5, p. 87) Lima Barreto, por meio de Mascarenhas, tece, ainda, críticas às ciências médicas e seus experimentalismos, atribuindo-lhes o nome de “vício mental”: Pouco lógicos, por isso demasiadamente objetivo; impacientes, por isso aceitando em globo a “autoridade”, arriscam-se a de boa fé cometer os erros mais grosseiros e funestos no exercício de sua profissão. Falta-lhes crítica, não só a mais comum, mas também a necessária do grau de certeza da experiência e dos instrumentos em que as refazem. (cap. 5, p. 88)

Sobre a organização do hospício A administração do hospício é feita segundo seções e pavilhões, à testa das quais tem um alienista e mais médicos. Segundo depreendi, as seções principais do hospício propriamente são quatro: Pinel e Calmeil, para homens; e Morel e Esquirol, para mulheres. Além destas, há outras especiais, para epilépticos, para crianças retardadas, rígidas e epilépticas, para tuberculosos, etc., cada qual com um nome de sumidade nacional ou estrangeira. O pavilhão, por excelência, é o de observação, que tem uma organização sui generis, depende do hospício, da polícia e da Faculdade de Medicina, cuja lente de Psiquiatria é o seu diretor, sem nenhuma 68

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dependência ou subordinação ao do hospício, dependendo, entretanto, o resto do pessoal subalterno e fornecendo este estabelecimento tudo o mais. (cap. 5, p. 89)

A edificação do hospício, descrita por Mascarenhas O hospício é bem construído e seria adequado, se não tivesse quatro vezes o número de doentes para que foi planejado. É obra de iniciativa individual, e a sua construção, pode-se dizer, foi custeada pela caridade pública. Nas dádivas e doações, como sempre, nas obras, muito concorreram os portugueses que enriqueceram no comércio. Os chãos parecem que já eram da Santa Casa, mas o edifício propriamente é resultado de dádivas e doações. É grande de fachada, com fundo proporcional, acabamento e remates cuidadosos, um pouco sombrio no andar térreo, mais devido aos acréscimos, do que ao plano primitivo, que se adivinha. Acabado de construir em 1852, todo ele trai, no aspecto exterior, ao gosto do pseudoclássico da Revolução e do Império Napoleônico. O seu arquiteto, Domingos Monteiro, foi certamente discípulo da antiga Academia de Belas-Artes e certamente do arquiteto Grandjean de Montigny. É de aspecto frio, severo, solene, com pouco movimento nas massas arquiteturais. Custou naquela época cerca de mil e quinhentos contos, e por aí se pode avaliar a tenacidade de José Clemente, que o ideou e o ergueu, no espaço curto de dez anos. Dizem que há, no salão nobre, uma estátua dele, mandada fazer pelo segundo imperador, que também tem a sua, diante da daquele. Este José Clemente parece não ter sido estadista de grandes vistas políticas, mas pelas posições em que passou deixou traços do seu amor a obras de utilidade pública, sobretudo de assistência. Interiormente é dividido em salões e quartos, maiores e menores, com janelas todas para o exterior, e portas para os corredores, que olham para os pátios internos. O meu dormitório ficava no extremo da ala esquerda do edifício, como já O cemitério dos vivos

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disse, e as camas ficavam encostadas ao longo das quatro paredes. Tinha três janelas de sacada para a rua, mas eram inteiramente gradeadas. Via-se o jardim, a rua, os bondes, o mar e as montanhas de Niterói e Teresópolis. Com o ar azul da enseada de Botafogo, para quem olha, devia ser um alegre retiro, tivesse ele outro destino; mas a beleza do local pouco deve consolar, apreciada através das grades, da triste condição em que se está, torvo o ambiente moral em que ali se respira. A beleza da natureza faz mais triste a quem tem consciência do lugar em que está e, olhando-a com os olhos tristes, ao amanhecer, a impressão que se tem é que não se pode mais sonhar felicidade diante das belas paisagens e das belas coisas... (cap. 3, p. 72-73)

EXERCÍCIOS 1. Marque as alternativas verdadeiras em relação à obra O cemitério dos vivos. 01. O cemitério dos vivos é resultado dos apontamentos do diário escrito no manicômio e permaneceu inacabado, possuindo cinco capítulos. 02. As menções a Efigênia têm muito de piedade e de arrependimento por não ter reconhecido a tempo a sutileza com que ela se preocupava com a sua realização como escritor. 04. O romance pode ser considerado autobiográfico, tendo em vista que praticamente todos os episódios narrados assemelham-se à vida do autor. Dentre esses fatos, podemos considerar as duas internações no hospício, a descrição das angústias em relação à mulher e ao filho, que, assim como o pai, também tinha problema mental. 08. A polícia é retratada como um instrumento que serve de veículo para encaminhar um suposto demente a um lugar separado da sociedade; pelo fato de alguém ter um comportamento “anormal”, ele deve ser retirado da sociedade e encarcerado em uma espécie de depósito. 16. O primeiro capítulo desse romance inacabado chegou a ser publica70

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do na revista Souza Cruz em janeiro de 1921, quase dois anos antes da morte do autor (dezembro de 1922). 32. Efigênia era filha de Clementina Dias, dona da pensão onde Mascarenhas se hospedara. A narrativa salienta que os atributos físicos de Efigênia, eram poucos ou nulos, fazendo dela uma pessoa comum. 2. Acerca do autor de O cemitério dos vivos, marque a(s) proposição(ões) verdadeira(s). 01. O autor insere-se no chamado período Pré-modernista, que tem início em 1902, com a publicação de Os Sertões de Euclides da Cunha, e termina em 1922, com a Semana de Arte Moderna em São Paulo. 02. Em O cemitério dos Vivos, Lima Barreto, por meio de Vicente Mascarenhas, retrata a preocupação de a loucura ser hereditária; isso porque tanto na ficção como na vida real, o pai de Lima Barreto e Mascarenhas fora internado como louco. 04. Lima Barreto abordou em suas obras grandes injustiças sociais como o racismo e o preconceito, e também fez críticas ao regime político da República Velha. 08. O autor possuía um estilo literário fora dos padrões da época. Seu estilo era despojado, coloquial e fluente. 16. Neto de escravos e filho de pais livres, nascido no dia 13 de maio de 1881, na mesma data em que sete anos depois a lei áurea colocaria um fim na escravidão, Lima Barreto abordou o tema a partir de sua própria experiência. 3. Com base na leitura de O cemitério dos vivos, de Lima Barreto, assinale as opções corretas e faça o somatório: 01. Além do complicado painel doméstico, Vicente Mascarenhas ainda enfrenta seus dramas pessoais: o ideal de glória literária frustrado, a decadência pelo vício e a entrada no hospício. O cemitério dos vivos

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02. O convívio de Lima Barreto e de seu narrador-protagonista em meio aos lunáticos provoca em seus escritos uma série de sentimentos desencontrados: raiva, medo, pavor, piedade mas, acima de tudo, a solidariedade. 04. Na obra, pode-se perceber uma crítica do autor à construção de um saber psiquiátrico sobre o alcoolismo que, nas primeiras décadas do século XX, era classificado como fator de degeneração mental e de conduta imoral dos indivíduos, com implicações negativas na família e na comunidade local. 08. Percebe-se que Lima Barreto revelou o atrelamento da psiquiatria ao sistema penal, como ordenação social e política do período republicano, organizado ao redor da punição, que confinaria o louco e o alcoólatra sob a tutela do médico, esse como agenciador científico de controle social. 16. Mascarenhas acredita que foi a morte da mulher e o fato de não ter dado a ela o merecido valor, assim como a vida doméstica atribulada e os problemas de ordem financeira que o encaminharam para a vida desregrada e as internações no hospício.

Texto 1 Entrei no hospício no dia de Natal. Passei as famosas festas, as tradicionais festas de ano, entre as quatro paredes de um manicômio. Estive no pavilhão pouco tempo, cerca de vinte e quatro horas. O pavilhão de observação é uma espécie de dependência do hospício a que vão ter os doentes enviados pela polícia, isto é, os tidos e havidos por miseráveis e indigentes, antes de serem definitivamente internados. Em si, a providência é boa, porque entrega a liberdade de um indivíduo, não ao alvedrio de policiais de todos os matizes e títulos, gente sempre pouco disposta a contrariar os poderosos; mas à consciência de um professor vitalício, pois o diretor do pavilhão deve ser a lente de psiquiatria da faculdade, pessoa que deve ser perfeitamente inde72

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pendente, possuir uma cultura superior e um julgamento no caso acima de qualquer injunção subalterna. Entretanto, tal não se dá, porque as generalizações policiais e o horror dos homens da Relação às responsabilidades se juntam ao horror às responsabilidades dos homens do pavilhão, para anula rem o intuito do legislador. (...) Os super-agudos homens policiais deviam perceber bem que há tantas formas de loucura quanto há de temperamentos entre as pessoas mais ou menos sãs, e os furiosos são exceção; há até dementados que, talvez, fossem mais bem transportados num coche fúnebre e dentro de um caixão, que naquela antipática almanjarra de ferro e grades. (BARRETO, Lima. O cemitério dos vivos. São Paulo: Ed. Planeta do Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004, p. 151)

4. Com base no Texto 1 e na leitura integral da obra O cemitério dos vivos, no contexto sócio histórico e literário e, ainda, de acordo com a variedade padrão da língua escrita, é correto afirmar que: 01. Diagnosticado como alcoólatra e neurastênico, o que lhe rendeu o estigma social de louco e a perseguição da polícia, Lima Barreto escreveu sobre o universo do hospício e de seus sujeitos demonstrando forte lucidez – isso pode ser entendido como uma evidência da sua exceção em meio aos casos de distúrbios mentais graves. 02. O fragmento: “Em si, a providência é boa, porque entrega a liberdade de um indivíduo...” possui duas orações coordenadas, respectivamente, assindética e sindética explicativa. 04. A partir do fragmento, pode-se perceber que a fala do narrador/escritor evidencia as práticas de exclusão social e interroga as verdades absolutas do discurso científico. 08. A tristeza e a mágoa por ter sido levado ao hospício na Noite de O cemitério dos vivos

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Natal, pelas mãos da polícia, são evidenciadas na escrita ficcional. 16. Na obra, verifica-se que além da violência da estrutura médico-policial, o escritor não aceita as humilhações a que foi exposto no pavilhão dos gratuitos. 32. No fragmento do 2º parágrafo: “... pessoa que deve ser perfeitamente independente, possuir uma cultura superior e um julgamento no caso acima de qualquer injunção subalterna.” , o termo assinalado poderia ser substituído, sem alteração de sentido, pelo termo necessidade. 64. No 4º parágrafo, o termo “super-agudos” está corretamente grafado de acordo com a norma culta vigente da língua portuguesa.

5. (ENEM 2017 – 2ª aplicação)

Chamou-me o bragantino e levou-me pelos corredores e pátios até ao hospício propriamente. Aí é que percebi que ficava e onde, na seção, na de indigentes, aquela em que a imagem do que a Desgraça pode sobre a vida dos homens é mais formidável. O mobiliário, o vestuário das camas, as camas, tudo é de uma pobreza sem par. Sem fazer monopólio, os loucos são da proveniência mais diversa, originando-se em geral das camadas mais pobres da nossa gente pobre. São de imigrantes italianos, portugueses e outros mais exóticos, são os negros roceiros, que teimam em dormir pelos desvãos das janelas sobre uma esteira esmolambada e uma manta sórdida; são copeiros, cocheiros, moços de cavalariça, trabalhadores braçais. No meio disto, muitos com educação, mas que a falta de recursos e proteção atira naquela geena social. BARRETO, L. Diário do hospício e O cemitério dos vivos. São Paulo: Cosac& Naify, 2010.

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No relato de sua experiência no sanatório onde foi interno, Lima Barreto expõe uma realidade social e humana marcada pela exclusão. Em seu testemunho, essa reclusão demarca uma a) medida necessária de intervenção terapêutica. b) forma de punição indireta aos hábitos desregrados. c) compensação para as desgraças dos indivíduos. d) oportunidade de ressocialização em um novo ambiente. e) conveniência da invisibilidade a grupos vulneráveis e periféricos.

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CAPITÃES

DA AREIA


CAPITÃES DA AREIA Autor: Jorge Amado Escola literária: Modernismo – 2ª geração Ano de publicação: 1937 Gênero: Romance Divisão da Obra: 3 partes Local em que passa a história: Salvador - BA Temas: Crítica à sociedade (menor abandonado, violência, morte, roubo, amor, abandono)

O AUTOR Jorge Amado (1912-2001) Nasceu em Itabuna – BA, estudou em Ilhéus e em Salvador. Formou-se em Direito e exerceu o jornalismo. Entrou para o mundo literários aos 19 anos, quando publicou O país do Carnaval. O romance seguinte, Cacau, esgotou em quarenta dias, uma edição de dois mil exemplares, isso porque foi apreendido pela polícia, razão do sucesso de público. Foi preso entre 1936 e 1937, por opor-se ao Estado Novo. Exilou-se na Argentina e depois no Uruguai. Já no Brasil, foi eleito deputado federal em São Paulo, em 1945, mas seu mandato político foi cassado três anos depois. Sua obra é conhecida em todo o mundo; é um dos autores brasileiros mais traduzidos no exterior.

Bibliografia Principais obras: Romance: O país do carnaval (1931); Jubiabá (1935); Capitães da Areia (1937); Cacau (1933); Suor (1934); Terras do sem fim (1943); São Jorge dos Ilhéus (1944).

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Crônica de costumes: Mar morto (1936); Gabriela, cravo e canela (1958); Dona Flor e seus dois maridos (1966); Tenda dos milagres (1969); Tereza Batista cansada de guerra (1969); Tieta do agreste (1977); Tocaia grande: a face obscura (1984).

A ESCOLA LITERÁRIA MODERNISMO Período Histórico Transformações políticas internas e fatores externos marcam o cenário brasileiro de toda a década de 1930 e início da década seguinte. Dentre esses fatores, pode-se citar: a queda da bolsa de Nova Iorque (1929), que fez cair o preço do café; ascensão de Getúlio Vargas; a Revolução Constitucionalista de 1932; a aprovação da Lei de Segurança Nacional, que garantia ao governo a repressão de quaisquer atividades consideradas subversivas; a decretação do estado de sítio em 1935; a implantação do Estado Novo; a censura dos meios de comunicação (1939); o início da Segunda Guerra Mundial.

Segunda Geração Modernista (1930-1945) A segunda geração do Modernismo faz uma retomada de consciência da realidade brasileira, porém, de forma mais consciente e com uma participação política mais vigorosa.

Características: - Denúncia social - Reflexões existenciais: eu x mundo - Regionalismo

Capitães da Areia

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PERSONAGENS Pedro Bala – Garoto de 15 anos, loiro e com uma cicatriz no rosto. Era o chefe dos Capitães da Areia. Pedro era filho de um grevista que morrera em uma greve, lutando por seus direitos e pelos direitos de seus companheiros – sina de Pedro Bala. O garoto era muito inteligente, ágil e habilidoso. Apaixona-se por Dora e, ao final da história, sai e deixa de ser o líder dos Capitães para comandar e organizar os Índios Maloqueiros em Aracaju. Torna-se conhecido da polícia por organizar várias greves e como desordeiro da sociedade. Professor – Adolescente muito inteligente e com dons artísticos. Era o único do grupo que sabia ler e escrever, por isso, sempre lia histórias de aventuras e reportagens aos garotos. Era também um ladrão, mas normalmente só roubava livros. Era ele quem planejava os roubos dos Capitães da Areia. Por ter habilidade com desenhos e tintas, mudou-se para o Rio de Janeiro e transformou-se em pintor. Assim como Pedro Bala, foi apaixonado por Dora, mas a menina o via como a um irmão. Sem-Pernas – Garoto coxo de uma perna, muito pequeno e agressivo. Fingindo-se um pobre abandonado carente, penetrava nas casas de famílias, a fim de reconhecer os lugares em que ficavam as joias e objetos valiosos; depois, contava aos Capitães e assaltavam a casa. Morreu fugindo da polícia, após um assalto, ao se jogar do Elevador Lacerda – por ódio dos soldados, preferiu o suicídio a ser preso. Volta-Seca – Um mulato que veio do sertão para a cidade. Era fã de seu padrinho, Virgulino Ferreira, o Lampião – a mãe pertencia ao bando do cangaceiro. Gostava de imitar os pássaros e sempre estava à espera de notícias do padrinho. Aos 16 anos, junta-se ao bando de Lampião e torna-se um matador temido por todos. Foi condenado a 30 anos de prisão – seu fuzil tinha cerca de 60 marcas, as quais representavam 60 mortes. 80

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João Grande – Garoto negro de 13 anos, o mais forte e mais alto do grupo. Entrou para o Capitães da Areia aos nove anos e era temido por todos, não por sua inteligência, mas por sua força muscular. Era um dos chefes. Pedro Bala dizia que João Grande era uma pessoa muito boa, muito melhor que ele; Professor o chamava de Grande e o admirava muito. Gato – Era o malandrão da turma. Gato era elegante e vivia todo arrumado, pois era amigado com a prostituta Dalva que o sustentava. Não dormia no trapiche, porque ficava todas as noites na casa de Dalva. Ao amanhecer, voltava ao casarão dos Capitães da Areia para participar dos assaltos e aventuras com os outros garotos. Na época da alta do cacau, vai com Dalva a Ilhéus e dá grandes golpes em fazendeiros. É preso, livra-se da cadeia, separa-se de Dalva e, agora, vai a Aracaju dar golpes porque o açúcar estava dando muito dinheiro. Pirulito – Era o único garoto do grupo que possuía vocação religiosa. Tinha em seu canto do casarão dois quadros religiosos dados pelo padre José Pedro, perante os quais rezava sempre. Vivia entre a vida religiosa e a obrigação de roubar para comer. Quando parou de roubar, começou a vender jornais e depois foi indicado pelo padre a estudar (já era frade e estudaria para tornar-se padre). Ensinava o catecismo às criancinhas. Boa-Vida – Mulato muito feio e o mais malandro do bando. Quase não participava das atividades de roubo do grupo porque era preguiçoso. Como o nome já diz, gostava de uma boa vida, de violão, de festas, de não fazer nada. Mas vivia metido em confusão por causa de brigas. Compunha sambas e, quando adulto, separou-se do bando para se tornar mais um malandro na cidade de Salvador. Querido-de-Deus – Era um pescador que tinha a confiança dos Capitães da Areia. Ensinou-lhes capoeira e foi ele quem levou o corpo de Dora para o mar em seu saveiro. Capitães da Areia

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Dora – A primeira e única “Capitã da Areia”. Ao perder os pais, por causa da varíola , fugiu do morro em que morava junto com o irmão de quatro anos, tentou arrumar emprego, mas ninguém dava trabalho a “filha de bexiguentos”. Assim, foi para as ruas e encontrou Professor e João Grande que a protegeram, pois, no início, o grupo de Pedro Bala queria estuprar a menina, mas depois conscientizaram-se de que ela era apenas uma inocente garota de treze anos. Dora virou a mãe dos Capitães da Areia; ela costurava, cozia e era muito amiga de todos. Tornou-se uma forte combatente junto aos garotos – roubava e lutava como eles. Era loira e bonita; apaixonou-se por Pedro Bala, tornou-se sua noiva. Foi capturada em um assalto e levaram-na para um orfanato, onde ficou muito doente. Conseguiu fugir, mas a doença a dominou. Morreu de febres, mas não sem antes concretizar o amor com Pedro Bala. Dalva – Prostituta, amante de Gato. Mulher de uns trinta e cinco anos, muito sensual. Padre José Pedro – Um dos únicos que defendiam os Capitães da Areia; era amigo dos garotos e vivia buscando alternativa para dar uma vida decente aos garotos, mas frustrava-se cada vez que percebia que a sociedade os repudiava. Don’Aninha – Mãe de santo, que sempre socorria os garotos em casos de doenças ou necessidades. João-de-Adão – Estivador negro, forte e grevista. Foi ele quem contou a história dos pais de Pedro Bala ao garoto. Pedro o admirava e espelhou-se nele e no pai para fazer a transformação de sua vida.

CAPITÃES DA AREIA NA VERSÃO MANÉ... Jesuxxxx, negos! Que livrinho maix triste essi. Que rapázi maix triste. Uns demoninho, é vredade, mas, tadinhos deles. Tudo póbri, uns órfão, uns que 82

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fugiro de casa. Meu pai amado! Não. Meu Jorge Amado! Quanto mininu de rua que vévi abandonado por nós, né negos? Éééééé, por ti tombém, ô ixtepô! A genti nem imagina o que eles passo, tadinhos. Olha, quiridus, a historinha é a seguinte: tem um monti de criança qui vévi num casarão abandonado perto de um areial lá na cidade de Salvadô, na Bahia. Isso mêmo, naquela cidade que eles danço um monti, que paréci que são tudo feliz, carnaval o ano intêro... mas o povo vévi na perrenga. Então, aqueles mininu, por vivê lá, são chamado pelo povo de capitães das areia – isso memo, taí o nome do título, entendêssi? Eles são muito mal visto pela sociedade, porque eles róbam os ôtro, eles assalto e inté mato, uns ixtepô! Mas, se a genti vai olhá de perto cada um deles, a genti vê que são assim pru causa de muitos pobremas que eles têm; eles foro abandonado por todo mundo: pelos pai, familha, governo, etc. São sozinhos no mundo e, sem estrutura, têm que sobrevivê de alguma manêra, né!?! Assim, nós temo o Pedro Bala (o chefe dos capitães), o Professô, o Sem-pernas, o Volta Seca, o Pirulito, o João Grande, o Gato, o Boa Vida. Ah! E tem tombém uma minina, a Dora, uma quirida, que foi aceita no grupo dos mininu. No começo eles quirio istrupá ela, mas depôs ela passô a sê a mãezinha deles: custurava, fazia cafuné, essas côsa toda que mãe faz. Tem tombém uns adulto que gósto deles, mas são bem pôcos: o padre José Pedro e a Don’Aninha, que represento as órdi religiosa na historinha – na Bahia, um pôco é católico e ôtro pôco é da religião afro (umbanda e candomblé). Esses dôs ajudo bastante os mininu. Jorge Amado mostra bem o preconceito, o descaso das otoridade pública, a fome, a miséra, a violença, enfim, esse monti de disgraça por que passo esse pessoáli que vévi nas rua. Olha, negos, é um livrinhu muito legal de se lê. Tenho certeza que vais gostá muito, é muito emocionante. E inté vais valorizá essa vidinha mansa que tu levas aí, dentro da tua casa, o pai e a mãe pagando tudo, tua comidinha na hora certa... é, negos! De vez em quando é bom lê umas côsa assim pra gente valorizá o que tem. Então, dêxa de malandrági e vai lê a obra, ô ixtepô! Simbóra trabaiá que rapadura é doce mas não é mole, não. Capitães da Areia

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SÍNTESE DA OBRA CARTAS À REDAÇÃO O romance inicia com várias cartas enviadas ao “Jornal da Tarde”, jornal de grande circulação na Bahia: 1ª carta: CRIANÇAS LADRONAS AS AVENTURAS SINISTRAS DOS “CAPITÃES DA AREIA” - A CIDADE INFESTADA POR CRIANÇAS QUE VIVEM DO FURTO - URGE UMA PROVIDÊNCIA DO JUIZ DE MENORES E DO CHEFE DE POLÍCIA - ONTEM HOUVE MAIS UM ASSALTO Já por várias vezes o nosso jornal, que é sem dúvida o órgão das mais legítimas aspirações da população baiana, tem trazido notícias sobre a atividade criminosa dos “Capitães da Areia”, nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam a nossa urbe. Essas crianças que tão cedo se dedicaram à tenebrosa carreira do crime não têm moradia certa ou pelo menos a sua moradia ainda não foi localizada. Como também ainda não foi localizado o local onde escondem o produto dos seus assaltos, que se tornam diários, fazendo Jus a unia Imediata providência do Juiz de Menores e do dr. Chefe de Polícia. Esse bando que vive da rapina se compõe, pelo que se sabe, de um número superior a 100 crianças das mais diversas idades, indo desde os 8 aos 16 anos. Crianças que, naturalmente devido ao desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos, se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa. São chamados de “Capitães da Areia” porque o cais é o seu quartel-general.

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E têm por comandante um mascote dos seus 14 anos, que é o mais terrível de todos, não só ladrão, como já autor de um crime de ferimentos graves, praticado na tarde de ontem. Infelizmente a Identidade deste chefe é desconhecida. O que se faz necessário é uma urgente providência da polícia e do juizado de menores no sentido da extinção desse bando e para que recolham esses precoces criminosos, que já não deixam a cidade dormir em paz o seu sono tão merecido, aos Institutos de reforma de crianças ou às prisões.

2ª carta: CARTA DO SECRETÁRIO DO CHEFE DE POLÍCIA À REDAÇÃO DO “JORNAL DA TARDE” Sr. Diretor do ‘Jornal da Tarde’ Cordiais saudações. Tendo chegado ao conhecimento do dr. Chefe de Polícia a reportagem publicada ontem na segunda edição desse jornal sobre as atividades dos “Capitães da Areia”, bando de crianças delinquentes, e o assalto levado a efeito por este mesmo bando na residência do comendador José Ferreira, o dr. Chefe de Polícia se apressa a comunicar à direção deste jornal que a solução do problema compete antes ao juiz de Menores que à policia. [...] Pelo exposto fica claramente provado que a polícia não merece nenhuma crítica pela sua atitude em face desse problema. Não tem agido com maior eficiência porque não foi solicitada pelo juiz de menores. Cordiais saudações. Capitães da Areia

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Secretário do Chefe de Polícia. (Publicada em primeira página do Jornal da Tarde, com clichê do chefe de polícia e um vasto comentário elogioso.)

3ª carta: CARTA DO DOUTOR JUIZ DE MENORES À REDAÇÃO DO “JORNAL DA TARDE” “Exmo. Sr. Diretor do ‘Jornal da Tarde’. Cidade do Salvador Neste Estado. Meu caro patrício. Cordiais saudações. Sem querer absolutamente culpar a brilhante e infatigável Chefia de Polícia, sou obrigado, a bem da verdade (essa mesma verdade que tenho colocado como o farol que ilumina a estrada da minha vida com a sua luz puríssima), a declarar que a desculpa não procede. Não procede, sr. Diretor, porque ao juizado de menores não compete perseguir e prender os menores delinquentes e, sim, designar o local onde devem cumprir pena, nomear curador para acompanhar qualquer processo contra eles instaurado, etc. Não cabe ao juizado de menores capturar os pequenos delinquentes. Cabe velar pelo seu destino posterior. Ainda nestes últimos meses que decorreram mandei para o Reformatório de Menores vários menores delinquentes ou abandonados. Não tenho culpa, porém, de que fujam, que não se impressionem com o exemplo de trabalho que encontram naquele estabelecimento de educação e que, por meio da fuga, abandonem um ambiente onde se respiram paz e trabalho e onde são tratados com o maior carinho.

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Fogem e se tornam ainda mais perversos, como se o exemplo que houvessem recebido fosse mau e daninho. O que quero deixar claro e cristalino, sr. Diretor, é que o doutor Chefe de Polícia pode contar com a melhor ajuda deste juizado de menores para intensificar a campanha contra os menores delinquentes. De V. Exa., admirador e patrício grato, Juiz de Menores. (Publicada no “Jornal da Tarde” com o clichê do juiz de menores em uma coluna e um pequeno comentário elogioso).

4ª carta: CARTA DE UMA MÃE, COSTUREIRA, À REDAÇÃO DO “JORNAL DA TARDE” “Sr. Redator: Desculpe os erros e a letra, pois não sou costumeira nestas coisas de escrever e se hoje venho a vossa presença é para botar os pontos nos ii. Vi no jornal uma notícia sobre os furtos dos “Capitães da Areia” e logo depois veio a polícia e disse que ia perseguir eles e então o doutor dos menores veio com uma conversa dizendo que era uma pena que eles não se emendavam no reformatório para onde ele mandava os pobres. É pra falar no tal do reformatório que eu escrevo estas mal traçadas linhas. Eu queria que seu jornal mandasse uma pessoa ver o tal do reformatório para ver como são tratados os filhos dos pobres que têm a desgraça de cair nas mãos daqueles guardas sem alma. [...] O diretor de lá vive caindo de bêbedo e gosta de ver o chicote cantar nas costas dos filhos dos pobres. Eu vi isso muitas vezes porque eles não ligam pra gente e diziam que era para dar exemplo. Foi por isso

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que tirei meu filho de lá. Se o jornal do senhor mandar uma pessoa lá, secreta, há de ver que comida eles comem, o trabalho de escravo que têm, que nem um homem forte aguenta, e as surras que tomam. [...] E por essas e outras que existem os “Capitães da Areia”. Eu prefiro ver meu filho no meio deles que no tal reformatório. Maria Ricardina, costureira.” (publicada na quinta página do jornal da Tarde, entre anúncios, sem clichês e sem comentários)

5ª carta: CARTA DO PADRE JOSE PEDRO À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE “Sr. Redator do ‘Jornal da Tarde’ Saudações em Cristo. Tendo lido, no vosso conceituado jornal, a carta de Maria Ricardina que apelava para mim como pessoa que podia esclarecer o que é a vida das crianças recolhidas ao reformatório de menores, sou obrigado a sair da obscuridade em que vivo para vir vos dizer que infelizmente Maria Ricardina tem razão. As crianças no aludido reformatório são tratadas como feras, essa é a verdade. Esqueceram a lição do suave Mestre, sr. Redator, e em vez de conquistarem as crianças com bons tratos, fazemnas mais revoltadas ainda com espancamentos seguidos e castigos físicos verdadeiramente desumanos. Eu tenho ido lá levar às crianças o consolo da religião e as encontro pouco dispostas a aceitá-lo devido naturalmente ao ódio que estão acumulando naqueles jovens corações tão dignos de piedade. O que tenho visto, sr. Redator, daria um volume.

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Muito grato pela atenção. Servo em Cristo, Padre José Pedro” (Carta publicada na terceira página do Jornal da Tarde, sob o título Será Verdade? e sem comentários.)

6ª carta: CARTA DO DIRETOR DO REFORMATÓRIO À REDAÇÃO DO “JORNAL DA TARDE” “Exmo. Sr. Diretor do ‘Jornal da Tarde’ Saudações. [...] Quanto à carta de uma mulherzinha do povo, não me preocupei com ela, não merecia a minha resposta. Sem dúvida é uma das muitas que aqui vêm e querem impedir que o Reformatório cumpra a sua santa missão de educar os seus filhos. [...] O que me abismou, sr. Diretor, foi a carta do Padre José Pedro. Este sacerdote, esquecendo as funções do seu cargo, veio lançar contra o estabelecimento que dirijo graves acusações. [...] O tal padre é apenas um instigador do mau caráter geral dos menores sob a minha guarda. E por isso vou fechar-lhe as portas desta casa de educação.

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Porém, sr. Diretor, fazendo minhas as palavras da costureira que escreveu a este jornal, sou eu quem vem vos pedir que envieis um redator ao Reformatório. Disso faço questão. Assim podereis, e o público também, ter ciência exata e fé verdadeira sobre a maneira como são tratados os menores que se regeneram no Reformatório Baiano de Menores Delinquentes e Abandonados. Espero o vosso redator na segunda-feira. E se não digo que ele venha no dia que quiser é que estas visitas devem ser feitas nos dias permitidos pelo regulamento e é meu costume nunca me afastar do regulamento. Este é o motivo único por que convido o vosso redator para segunda-feira. Pelo que vos fico imensamente grato, como pela publicação desta. Assim ficará confundido o falso vigário de Cristo. Criado agradecido e admirador atento, Diretor do Reformatório Baiano de Menores Delinquentes e Abandonados.” (Publicada na 3ª página do “Jornal da Tarde” com um clichê do reformatório e uma notícia adiantando que na próxima segunda-feira irá um redator do Jornal da Tarde ao reformatório.) UM ESTABELECIMENTO MODELAR ONDE REINAM A PAZ E O TRATADO - UM DIRETOR QUE É UM AMIGO - ÓTIMA COMIDA - CRIANÇAS LADRONAS EM CAMINHO DA REGENERAÇÃO ACUSAÇÕES IMPROCEDENTES - SÓ UM INCORRIGÍVEL RECLAMA - O REFORMATÓRIO BAIANO É UMA GRANDE FAMÍLIA - ONDE DEVIAM ESTAR OS “CAPITÃES DA AREIA”. (Títulos da reportagem publicada na segunda edição de terça-feira do jornal da Tarde, ocupando toda a primeira página, sobre o Reformatório Baiano, com diversos clichês do prédio e um do diretor.)

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1ª PARTE SOB A LUA NUM VELHO TRAPICHE ABANDONADO O trapiche Capitães da Areia eram crianças abandonadas que viviam do furto. Nunca ninguém soube o número exato de meninos que assim viviam. Eram bem uns cem e destes mais de quarenta dormiam nas ruínas do velho trapiche. Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas. Viviam em um casarão abandonado, dormindo no trapiche, no cais do porto e lá depositavam os objetos que furtavam. Pedro Bala é o chefe do bando – vencera Raimundo (ex-chefe) em uma briga, era muito ativo e tornara-se o líder. Noite dos “Capitães da Areia” A noite dos capitães da areia não era nada tranquila. Das mais de cem crianças que formavam o grupo, apenas cinquenta dormiam no casarão abandonado. E aqui aparecem diversos personagens: João Grande, após a morte do pai, fugira de casa e ganhou a liberdade das ruas – entrara para o grupo aos 9 anos de idade, ganhou confiança e tornou-se um dos chefes. Querido-de-Deus era um capoeirista que ensinava capoeira a Pedro Bala, João Grande e Gato. João José, o Professor, desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da Barra, se tomara perito nestes furtos. Nunca, porém, vendia os livros, que ia empilhando num canto do trapiche, sob tijolos, para que os ratos não os roessem. Era o único da turma que Capitães da Areia

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lia com fluência. Após suas leituras, contava as histórias aos amigos, que, em momentos únicos, sonhavam com aventuras e coisas boas. Ninguém sabia, no entanto, que um dia, anos passados, seria ele quem haveria de contar em quadros, homens lutadores e sofredores. Pirulito era magro e muito alto, uma cara seca, meio amarelada, os olhos encovados e fundos, a boca rasgada e pouco risonha. Tinha pregado na parede em que ele dormia dois quadros: um Santo Antônio carregando um Menino Deus (Pirulito se chamava Antônio e tinha ouvido dizer que Santo Antônio era brasileiro) e uma Nossa Senhora das Sete Dores que tinha o peito cravado de setas: sob o seu quadro uma flor murcha. Era frequentemente ridicularizado por Sem-Pernas porque vivia rezando. Pedia que a Senhora o ajudasse a um dia poder entrar para aquele colégio que estava no Sodré, e de onde saíam os homens transformados em sacerdotes. O Sem-Pernas [ganhara esse apelido porque era coxo] falava alto, ria muito. Era o espião do grupo, aquele que sabia se meter na casa de uma família uma semana, passando por um bom menino perdido dos pais na imensidão agressiva da cidade. Era o mais malvado da turma, ria de todos e era muito brigão. Mas, na verdade, o que sentia era uma tristeza infinita. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava meu padrinho e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Na cadeia foi judiado pelos guardas que o faziam correr com toda a sua deficiência em volta de uma saleta. Quando parava por causa do cansaço, recebia cacetadas nas costas. Apanhou tanto que desmaiou. Tinha medo de dormir porque cada vez que fechava os olhos se lembrava da noite que passara na prisão. Gato é o elegante do grupo. Quando chegou, alvo e rosado, BoaVida tentou conquistá-lo. Chegou a brigar com Boa-Vida porque não era homossexual. Envolveu-se com uma garota de programa e todos os dias saía perto da meia-noite para dormir na casa da moça, por isso nunca dormia no trapiche junto aos amigos. Tinha 14 anos e ares de malandro, com o cabelo cheio de brilhantina barata e gravata no pescoço. 92

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Uma noite, Sem-Pernas viu Barandão se afastar do grupo sorrateiramente e o seguiu. Depois, viu-o encontrar-se com Almiro, um garoto de 12 anos, na areia da praia, flagrando-os em carícias. O Sem-Pernas recuou e a sua angústia cresceu. Todos procuravam um carinho, qualquer coisa fora daquela vida: o Professor naqueles livros que lia a noite toda, o Gato na cama de uma mulher da vida que lhe dava dinheiro, Pirulito na oração que o transfigurava, Barandão e Almiro no amor na areia do cais. Sentiu ainda mais revolta. Certa noite, Pedro Bala viu um dos meninos se aproximar de Pirulito, para mexer nos seus pertences. Flagrou-o e ameaçou-o de mandá-lo ao bando de Ezequiel, que roubavam uns aos outros. Ali não se admitia roubar os companheiros. O menino jurou que não queria roubar. Pirulito, que estava dormindo, defendeu-o. Ao ver que Pedro Bala se afastava, o garoto confessou a Pirulito que queria roubar sua medalhinha dada pelo Padre para dar de presente a uma namoradinha. Pediu desculpas, e Pirulito deu a medalha, escondido de Pedro Bala, ao rapaz, para que ele presenteasse a namorada. Em seguida, aparece outro garoto, Volta Seca, com um pedaço de jornal, pedindo para que o Professor lesse para ele. Era a notícia sobre o bando de Lampião, que andava pelo nordeste matando e roubando – Volta Seca acha o máximo. Ponto das Pitangueiras Pedro Bala, Querido-de-Deus, Gato e João Grande vão até o bar Porta do Mar para encontrar um desconhecido que iria propor-lhes um negócio. Um intermediário havia conversado com Querido-de-Deus e acertado o encontro. Enquanto esperavam, Gato puxou um baralho e começaram a jogar; como todas as cartas estavam marcadas, Gato levava vantagens (João Grande e Pedro Bala sentiram a malandragem e pararam de jogar; Querido-de-Deus perdera cinco mil). Capitães da Areia

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Nesse tempo, dois marinheiros que ali estavam no bar julgaram ganhar o garoto e apostaram alto. Ao final, Gato levou deles trinta e oito milréis, devolveu aos amigos o que ganhara deles, também, pois admitira trapaça. Passou-se o tempo, e o homem que eles estavam esperando não apareceu. Quando estavam indo embora, o intermediário chegou, avisando que o patrão não pudera vir e marcara um outro encontro para o Ponto das Pitangueiras a uma hora da manhã – era um negócio que daria muito dinheiro. À noite, encontraram-se com o homem, que lhes daria 150 mil-réis. O serviço era trocar um pacote que estava com um empregado de uma outra casa – era coisa de amantes: certamente o empregado iria mostrar ao patrão as provas do crime entre sua mulher e o tal homem. Os meninos fizeram todo o trabalho de forma que parecesse não ser um assalto, trocaram os pacotes, e o empregado nem notou. Ao final do trabalho, ganharam o dinheiro e riam-se da má sorte do empregado. E, já em outra rua, os três soltaram a larga, livre e ruidosa gargalhada dos Capitães da Areia, que era como um hino do povo da Bahia. As luzes do Carrossel O “GRANDE CARROSEL JAPONÊS” não era senão um pequeno carrossel nacional, que vinha de uma triste peregrinação pelas paradas cidades do interior naqueles meses de inverno. O dono chamava-se Nhozinho França, que outrora possuía um pequeno parque de diversões, mas que agora, em virtude de perder tudo por causa do vício em álcool, ficara somente com o carrossel. Como já não tinha mais freguesia, decidiu montar o carrossel nas cidades de Sergipe e Alagoas, até que chegou à Bahia, mais especificamente em Itapagipe, onde moravam os Capitães da Areia – escolhera esta cidade por ser pobre, pois seu carrossel já não encantaria tanto as crianças 94

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ricas, uma vez que estava há tempos sem manutenção. Mesmo que velho, o carrossel encantava muita gente com sua velha música e com suas luzes magníficas. Certa vez, na Bahia, quando Nhozinho estava em uma cidade do interior, o bando de Lampião atacou o lugar e iria matar muitas pessoas, saquear o local e estuprar as mulheres. Mas, quando os cangaceiros viram o carrossel funcionando, como as crianças, os grandes cangaceiros, homens que tinham vinte e trinta mortes, acharam belo o carrossel, acharam que mirar suas luzes rodando, ouvir a música velhíssima da sua pianola e montar naqueles estropiados cavalos de pau era a maior felicidade. E o carrossel de Nhozinho França salvou a pequena vila de ser saqueada, as moças de serem defloradas, os homens de serem mortos. Isso mesmo contou Nhozinho a Volta Seca [que dizia que Lampião era seu padrinho] e ao Sem-Pernas naquela tarde em que os encontrou na Porta do Mar e os convidou para que o ajudassem no serviço de carrossel durante os dias que estivesse armado na Bahia, em Itapagipe. Não podia marcar ordenado, mas talvez desse para tirar cada um uns cinco mil-réis por noite. Os meninos aceitaram trabalhar para ele. Enquanto tomavam cerveja, Nhozinho França declarou que Volta Seca ficaria na porta chamando o público, enquanto o Sem-Pernas o ajudaria com as máquinas e tomaria conta da pianola. Ele mesmo venderia as entradas enquanto o carrossel estivesse parado. Quando estivesse rodando, Volta Seca o faria. A alegria contagiou os meninos. Sem-Pernas lembrou-se de que certa vez fora expulso de um parque de diversões (mesmo tendo pago a entrada) porque suas roupas estavam em farrapos. De raiva, assaltou a bilheteria do parque. Dando-lhes essa oportunidade, Nhozinho França representava para eles um Deus, era alguém que depositava confiança nos garotos. Foi uma surpresa quase incrível quando naquela noite o Sem-Pernas chegou ao trapiche dizendo que ele e Volta Seca iam trabalhar uns dias num carrossel. Capitães da Areia

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Na outra noite foram todos com o Sem-Pernas e Volta Seca (que tinham passado o dia fora, ajudando Nhozinho a armar o carrossel) ver o carrossel armado. E estavam parados diante dele, extasiados de beleza, as bocas abertas de admiração. Eram quase cem crianças olhando o carrossel. Todos estavam silenciosos. Um operário que vinha pela rua, vendo a aglomeração de meninos na praça, veio para o lado deles. E ficou também parado, escutando a velha música. Então a luz da lua se estendeu sobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou de todo manso (talvez que Yemanjá tivesse vindo também ouvir a música) e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da Areia. Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e conforto da música. Volta Seca não pensava com certeza em Lampião neste momento. Pedro Bala não pensava em ser um dia o chefe de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas em se jogar no mar, onde os sonhos são todos belos. Porque a música saía do bojo do velho carrossel só para eles e para o operário que parara. Combinaram com Nhozinho que, durante a madrugada, os Capitães da Areia poderiam vir brincar no carrossel, mas, para não causar suspeitas, viriam em pequenos grupos de cada vez. Mas na tarde do domingo chegou o padre José Pedro, que era uma das raríssimas pessoas que sabiam onde ficava a pousada mais permanente dos Capitães da Areia. O padre José Pedro se fizera amigo deles há bastante tempo. A amizade veio por intermédio do Boa-Vida, que uma vez tentara roubar um objeto de ouro da igreja, mas o padre soube contornar a situação e conseguiu ganhar a confiança dos garotos para tentar ajudá-los sem espantá-los. O padre estava com dinheiro e, num gesto nobre, oferecera ingresso para todos os Capitães da Areia. Meio sem jeito, os garotos falaram que já eram convidados do dono do carrossel, mas que entendiam a 96

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generosidade do padre, que tirara o dinheiro da igreja para dar a eles. Convidaram o padre para ir até o carrossel com eles e, quando estavam em momento de alegria, apareceu uma beata e ameaçou o padre, por estar em tão más companhias e destratou completamente os garotos. Pedro-Bala e padre José Pedro riam, porque se não fosse pelo padre, a mulher teria sido assaltada ali mesmo, pois carregava joias valiosas consigo. À noite, voltaram ao carrossel para brincar. E eles esqueceram que não eram iguais às demais crianças, esqueceram que não tinham, nem pai, nem mãe, que viviam de furto como homens, que eram temidos na cidade como ladrões. Esqueceram as palavras da velha. Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças, cavalgando os ginetes do carrossel, girando com as luzes. Docas Pedro-Bala e Boa-Vida foram às Docas (no porto, na cidade baixa, onde ficam os estivadores) e encontraram João de Adão, um estivador negro e fortíssimo, antigo grevista, temido e amado em toda a estiva, estava sentado num caixão. Conversando com João de Adão e com uma negra que vendia quitutes, Pedro-Bala descobre que seu pai também era estivador e que fora morto pela polícia, em uma greve, defendendo seus direitos e os direitos de seus companheiros. Soube que o pai era muito inteligente, que era líder entre os estivadores e que falava muito bem. Também soube ali que a mãe morrera quando ele tinha seis meses de idade, que era uma moça rica e fora trazida para ali pelo pai (dele). Pelo fato de o pai ter sido esse herói para os estivadores, João de Adão não cansava de repetir que ali haveria sempre emprego a Pedro-Bala. O garoto olhou em redor e viu o sofrimento daqueles negros carregando aqueles sacos pesados nas costas. A história do pai o deixara feliz, pois até então nada sabia sobre sua família. Mais tarde, ajudaram o Querido-de-Deus a desembarcar a pescaria, que fora boa. Yemanjá o tinha ajudado. Um homem que tinha banca de Capitães da Areia

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peixe no mercado comprou toda a pescaria. Depois foram comer num restaurante próximo. Pirulito foi ver o padre José Pedro, que estava lhe ensinando a ler e a escrever. Pedro Bala, Boa-Vida e o Querido-de-Deus andaram para o candomblé do Gantois (o Querido era ogã), onde Omolu apareceu com suas vestimentas vermelhas e avisou a seus filhinhos pobres, no cântico mais lindo que pode haver, que em breve a miséria acabaria. E ele anunciava que o dia de vingança dos pobres chegaria. Pedro-Bala veio sozinho embora, pensando em tudo o que vira e ouvira naquele dia. Encaminhou-se ao areal e viu uma negrinha. Começou a segui-la; ela tentou escapar, mas ele foi mais rápido. A menina era virgem e havia seguido pelo areal para cortar caminho, estava vindo da casa da avó. Para que tinha vindo de noite, para que se arriscara na areia do cais? Não sabia que a Meia das docas é a cama de amor de todos os malandros, de todos os ladrões, de todos marítimos, de todos os Capitães da Areia, de todos os que não podem pagar mulher e têm sede de um corpo na cidade santa da Bahia? Ela não sabia disto, mal fizera quinze anos, havia muito pouco tempo que era mulher. Pedro Bala também só tinha quinze anos, mas há muito tempo conhecia não só o areal e os seus segredos, como os segredos do amor das mulheres. Pedro-Bala a agarrou, pensando que ela fosse uma daquelas mulheres que costumavam andar por ali. Quando a menina falou que era virgem, ele ficou com pena, mas seu desejo era maior. Então, combinou com ela que só faria sexo anal, desde que ela lhe prometesse que na noite seguinte voltaria ali para transar novamente. Sem outra alternativa, ela topou. Quando acabaram, ele e ela sentiram-se arrasados. Pedro-Bala maldisse o momento em que encontrara a garota, ela lhe rogou uma praga que ficou ecoando nos pensamentos do garoto: “- Peste, fome e guerra te acompanha, desgraçado. Deus te castiga, desgraçado. Filho de uma mãe, desgraçado, desgraçado.” Primeiro ele ficou parado, depois deitou a correr no areal ia como se os ventos o açoitassem, como se fugisse das pragas da negrinha. E tinha 98

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vontade de se jogar no mar para se lavar de toda aquela inquietação, a vontade de se vingar dos homens que tinham matado seu pai, o ódio que sentia contra a cidade rica que se estendia do outro lado do mar, na Barra, na Vitória, na Graça, o desespero da sua vida de criança abandonada e perseguida, a pena que sentia pela pobre negrinha, uma criança também. Aventura de Ogum Pedro Bala, Sem-Pernas e João Grande foram levar a mãe-de-Santo, Don’Aninha, até sua casa distante. Ela viera ao trapiche pela tarde, precisava de um favor deles, e enquanto explicava, a noite caiu espantosa e terrível. - Ogum está zangado... - explicou a mãe-de-Santo Don’Aninha. Don’Aninha havia ido pedir aos Capitães da Areia que recuperassem a imagem de Ogum que os policiais haviam detido em um terreiro de candomblé. Por isso, por estar Ogum numa sala de detidos na polícia, Xangô descarrega os raios nessa noite. Como apenas Don’Aninha e o Padre José Pedro mostravam preocupação com eles, sentiam-se na obrigação de ajudar a mãe-de-santo. Pedro-Bala prometeu a ela que traria a imagem de Ogum. O plano fora bolado por ele e pelo Professor. À noite, como estava chovendo, Pedro-Bala, conversou com um policial e fingiu ser filho de um pescador: o pai teria ido viajar, voltaria para buscá-lo, mas o mau tempo não permitiu que pai e filho se encontrassem, por isso, pedia abrigo ao guarda para dormir aquela noite na delegacia (Don’Aninha lhe dissera que a imagem de Ogum estava ali). O guarda não aceitou, e Pedro-Bala simulou um assalto ali próximo, deixando-se ser preso. Na delegacia, vê a imagem do santo, enrola-a no paletó roubado, conta a mesma história ao delegado, que confere os dados supostamente verdadeiros do nome do pai do garoto e libera-o.

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Deus sorri como um negrinho Pirulito estava feliz porque Padre José Pedro lhe prometera ajuda para entrar no seminário. Come um pouco de comida dado por uma empregada de uma família rica e agradece a Deus. E pensando em Deus pensou também nos Capitães da Areia. Eles furtavam, brigavam nas ruas, xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por vezes feriam com navalhas ou punhal homens e polícias. Mas, no entanto, eram bons, uns eram amigos dos outros. Se faziam tudo aquilo é que não tinham casa, nem pai, nem mãe, a vida deles era uma vida sem ter comida certa e dormindo num casarão quase sem teto. Se não fizessem tudo aquilo morreriam de fome, porque eram raras as casas que davam de comer a um, de vestir a outro. E nem toda a cidade poderia dar a todos. Relembra que quando o padre esteve no casarão e disse que a pederastia era pecado, todos riram dele e continuaram a fazê-la. Mas, depois de ganhar a confiança e de o padre dizer que era uma atitude indigna de um homem, Pedro-Bala expulsou os passivos do grupo, dando razão ao padre. Pirulito reflete sobre a questão do inferno, do pecado e de Deus. Ouvira um sermão de um beato alemão em que Deus aparecia como vingador, bem diferente daquele que o padre José pregava. Ficou confuso, afinal Deus era bom, mas não era muito justo com os Capitães da Areia, por exemplo. Padre José dizia que a culpa era da vida. Porém uma tarde em que estava o padre e estava o João de Adão, o doqueiro disse que a culpa era da sociedade mal organizada, era dos ricos... Que enquanto tudo não mudasse, os meninos não poderiam ser homens de bem. E disse que o padre José Pedro nunca poderia fazer nada por eles porque os ricos não deixariam. O padre ficara preocupado, porque João de Adão poderia ter razão. Pirulito, antes de conhecer Padre José Pedro era uma pessoa muito ruim e fria. No dia que o padre José Pedro começou a falar de Deus, 100

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do céu, de Cristo, da bondade e da piedade, Pirulito começou a mudar. Deus o chamava e ele sentia sua voz poderosa no trapiche. Via Deus nos seus sonhos e ouvia o chamado de Deus de que falava o padre José Pedro. E se voltou de todo para Deus, ouvia a voz de Deus, rezava ante os quadros que o padre lhe dera. E agora estava ali também olhando, em uma loja de artigos religiosos, uma imagem de uma Nossa Senhora que não carregava o filho no colo, antes parecia deixá-lo solto, como se estivesse oferecendo-o a Pirulito que o olhava. Enquanto os outros Meninos Jesus eram gordos e enleados em panos ricos, esse era pobre e magro – parecia Pirulito. Essa semelhança o atraiu, e ele queria roubar a imagem, mas havia prometido a Deus que não roubaria mais a não ser para matar a fome. Após muito exame de consciência, decidiu levar a imagem. Pirulito avança. Vê o inferno, o castigo de Deus, suas mãos e cabeça a arder uma vida que nunca acaba. Mas sacode o corpo como que jogando longe a visão, recebe o Menino que a Virgem lhe entrega, o encosta ao peito e desaparece na rua. Não olha o Menino. Mas sente que agora, encostado ao seu peito, o Menino sorri, não tem mais fome nem sede nem frio. Sorri o Menino como sorria o negrinho de poucos meses quando se encontrou no trapiche e viu que João Grande lhe dava leite às colheradas com suas mãos enormes, enquanto o Professor o sustinha encostado ao calor do seu peito. Assim sorri o Menino. Família Sem-Pernas finge ser um menino órfão e bonzinho. Vai até a casa de uma senhora rica, de nome Ester e faz-se de vítima (muitas vezes já fizera isso, fingia-se de vítima, ganhava a confiança dos donos da casa, examinava tudo e depois levava as informações aos Capitães da Areia, que realizavam o assalto). Capitães da Areia

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Mas dessa vez foi diferente; em vez de deixá-lo junto aos empregados, dona Ester se apiedou do garoto, pois perdera um filho da idade dele, e lhe dera todas as suas roupas, trouxera-o para dentro de casa e o tratava como a um filho (por coincidência, Sem-Pernas disse que se chamava Augusto, o mesmo nome do filho de dona Ester, que entendeu ser a volta do filho, anos depois). Sem-Pernas nunca fora tão bem tratado na vida, mas o pensamento na vida dura, na noite da cadeia o faziam odiar aquilo tudo, ao mesmo tempo que sentia remorsos por dona Ester. Raul, o marido dela, um advogado, também o reconhecera como um filho – estavam dispostos a dar um bom futuro ao garoto. Mas, Sem-Pernas pertencia ao Capitães da Areia e um dia, após Raul viajar, beijou dona Ester, como que lhe pedindo perdão, foi embora e nunca mais voltou. No dia seguinte, os Capitães da Areia assaltaram a casa de dona Ester. Professor leu no jornal que uma família procurava um menino tímido que provavelmente se perdera pelas ruas da Bahia – pensaram que quando se dessem conta do furto, não mais o chamariam de filho... Manhã como um quadro Pedro Bala e Professor estão andando pelas ruas da cidade. Professor era um excelente pintor e desenhista. Vivia desenhando retratos de pessoas que passavam nas ruas e assim ganhava algum dinheiro. Um dia, um homem reconheceu seu talento e mandou que Professor o procurasse para ver se ele poderia ajudá-lo. O garoto jogou o cartão no lixo. Pedro Bala o censurou. - Deixa de ser besta, Bala. Tu bem sabe que do meio da gente só pode sair ladrão... Quem é que quer saber da gente? Quem? Só ladrão, só ladrão... -- e sua voz se elevava, agora gritava com ódio. Pedro Bala fez que sim com a cabeça, sua mão soltou o cartão, que caiu na sarjeta. Agora não riam mais e estavam tristes na alegria da manhã cheia de sol. 102

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Alastrim Um surto de varíola atacou a cidade alta e a cidade baixa. O povo dizia que a doença havia sido trazida por Omolu, que estava descontente com os ricos: Omolu mandou a bexiga negra para a cidade. Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram, e Omolu era um deus das florestas da África, não sabia destas coisas de vacina. E a varíola desceu para a cidade dos pobres e botou gente doente, botou negro cheio de chaga em cima da cama. Então vinham os homens da Saúde Pública, metiam os doentes num saco, levavam para o lazareto distante. As mulheres ficavam chorando, porque sabiam que eles nunca mais voltariam. Mas como Omolu tinha pena dos seus filhinhos pobres, tirou a força da bexiga negra, virou em alastrim, que é uma bexiga branca e tola, quase um sarampo. Apesar disto, os homens da Saúde Pública vinham e levavam os doentes para o lazareto. Ali as famílias não podiam ir visitá-los, eles não tinham ninguém, só a visita do médico. Morriam sem ninguém saber e quando um conseguia voltar era mirado como um cadáver que houvesse ressuscitado. Os jornais falavam da epidemia de varíola e da necessidade da vacina. Os candomblés batiam noite e dia, em honra a Omolu, para aplacar a fúria de Omolu. Almiro foi o primeiro dos Capitães da Areia que caiu com alastrim. Uma noite, quando o negrinho Barandão o procurou no seu canto para fazer amor (aquele amor que Pedro Bala proibira no trapiche), Almiro lhe disse: - Tou com uma coceira danada. Mostrou os braços já cheios de bolhas a Barandão. Isso causou muito medo entre os garotos. Como nem Pedro Bala, nem o Professor estavam no trapiche, Sem-Pernas tomou as rédeas da situação e mandou Almiro embora. Alguns foram contra, mas tinham muito medo. Sem-Pernas usou da violência e quis expulsar Almiro a pontapés. Mas, Volta Seca pegou um revólver, ameaçou Sem-Pernas e disse que Capitães da Areia

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deveriam esperar Pedro Bala. Quando o líder chegou, decidiram levar Almiro para a casa da mãe dele, pois não queriam deixar levá-lo para o lazareto porque sabiam que de lá ninguém voltava. O Padre José Pedro os ajudou na missão de procurar um médico às escondidas para o garoto, pois havia uma lei que obrigava os cidadãos a denunciarem à Saúde Pública os casos de varíola que conhecessem, para o imediato recolhimento dos variolosos aos lazaretos. Mas o médico denunciou Almiro e também o Padre, que fora chamado pelo Cônego, quase fora expulso da paróquia e, ainda, por cima, foi chamado de comunista, um adjetivo muito ruim e pesado na época. O padre não se conformava com o destino daquelas crianças, será que um comunista agia assim? - pensava ele. Tempos depois, soube-se que Almiro morreu. Sem-Pernas ficou ainda mais recuado, sentindo-se culpado por sua morte. Boa Vida também foi afetado pela doença. Meteu a unha negra, rasgou a bolha. Depois espiou o braço: estava cheio. Por isso sentia tanto calor, um amolecimento no corpo. Era a febre da bexiga. O único a vê-lo nesse estado fora o Professor, a quem o garoto pedira para não falar nada aos amigos, somente a Pedro Bala. Boa Vida pegou suas coisas e partiu para o lazareto. Professor pediu-lhe que ficasse, que eles cuidariam dele, mas ele preferiu não se arriscar a passar a doença aos outros. Nos terreiros de candomblé, acreditavam que tudo que Omolu pôde fazer foi transformar a bexiga de negra em alastrim, bexiga branca e tola. Assim mesmo morrera negro, morrera pobre. Mas Omolu dizia que não fora o alastrim que matara. Fora o lazareto. Aos poucos, o surto foi ficando escasso na cidade e já rumava para o sertão de Juazeiro. Boa Vida voltou, parecendo um cadáver. Os amigos o receberam bem, mas ele veio traumatizado e triste com o que passara no lazareto. - É uma coisa por demais... Uma nojeira. A gente quando entra é igual um que entra no caixão... 104

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Destino Passado o surto da varíola, a vida começa a voltar ao normal. No Porta do Mar, os homens refletem sobre o destino dos pobres, dentre eles, João de Adão e os garotos Pedro Bala, Gato, João Grande e Professor. Pedro Bala, assim como o pai, acreditava que os homens poderiam mudar o destino.

2ª PARTE NOITE DA GRANDE PAZ, DA GRANDE PAZ DOS TEUS OLHOS Filha de bexiguento Aparecem aqui novos personagens: Dora e o irmão de seis anos, Zé Fuinha, agora órfãos, filhos de pais que morreram de varíola. Os vizinhos os ajudaram no dia da morte da mãe deles, mas Dora desceu o morro com o irmão, como se tivesse fugindo. Lembrara que uma freguesa da mãe havia lhe prometido emprego de copeira, apesar de pequena, poderia trabalhar. Mas, ao saber que os pais morreram com varíola, a mulher dispensou a menina. Dora já estava criando corpo de mocinha; os cabelos loiros e os seios já chamavam a atenção. À noite, encontrou João Grande e Professor brincando de bolinha de gude. Fizeram amizade, e os dois meninos levaram Dora e o irmão para o trapiche dos Capitães da Areia. Lá chegando, houve uma discussão grande, pois os outros garotos queriam estuprar Dora. João Grande e Professor a defendiam, dizendo tratar-se de uma menina, não estavam vendo? Armado com um punhal, Grande acerta Boa Vida e dá-lhe um talho no rosto. Quando Pedro Bala chega, a primeira ordem é que poderiam estuprar a garota, mas Grande e Professor o convencem de que ela era apenas uma menina. Pedro Bala a defende, e os meninos lhe obedecem. A ordem do chefe era a de que no dia seguinte ela iria embora, mas Capitães da Areia

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ela implora, dizendo que poderia trabalhar para eles, pois sabia cozinhar, coser, lavar roupa. Ao ver que a garota sentia-se segura a seu lado, Bala começou a olhá-la de outra forma, chamaram-lhe a atenção seus cabelos loiros. Dora, mãe Dora era vista por quase todos os garotos como uma mãezinha; ela costurava para os meninos, ouvia-os e refletia na sua bondade e nos seus atos a mãe deles. Assim foi para Gato, Volta Seca, João Grande, Pirulito, menos para Professor, que a via como uma noiva, mas nada falava à menina. Pedro Bala, ao pensar que a garota seria a tentação para todos, diz para Dora ir embora, mas eles a defendem e dizem que ela era como uma mãezinha. Tu pode ficar - disse Pedro Bala, e Dora sorriu para ele, era o seu herói, uma figura que ela nunca tinha imaginado, mas que um dia haveria de imaginar. Dora, irmã e noiva Como o vestido dificultava seus movimentos e como ela queria ser totalmente um dos Capitães da Areia, o trocou por umas calças que deram a Brandão numa casa da cidade alta. Dora estava decidida a ser igual aos meninos, lutar pelo seu ganha pão, roubar, andar nas ruas como todos eles. E mostra-se tão eficiente quanto os garotos; eles começam a admirá-la, porque ela era forte. Professor fica triste porque queria que Dora lançasse a ele olhares iguais aos que ela lançava a Pedro Bala, não um olhar de irmão, mas um olhar de noiva. Pedro Bala aparece todo machucado: Ezequiel (um garoto de outra turma) o provocara dizendo que eles tinham uma “putinha” no trapiche. Pedro Bala foi brigar com ele, mas vieram mais três e o surraram. 106

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De madrugada, os Capitães da Areia (e Dora foi junto) se vingaram do bando inimigo. Foram até o local em que dormiam Ezequiel e seus amigos e houve uma briga grande. Voltavam todo alegres, comentando a vitória. Falavam na coragem de Dora, que brigara igual a um menino. Igual a um homem, dizia João Grande. Era como uma irmã, exatamente igual a uma irmã... Igual a uma noiva, exatamente igual a uma noiva, pensava Pedro Bala, estendido na areia. Ela veio, deitou ao lado dele. E começaram a falar de coisas tolas. Igual a uma noiva. Não se beijaram, não se abraçaram, o sexo não os chamava naquele momento. - Vim pra rua com cinco anos. Menor que teu irmão... Riam inocentemente, felizes de estarem um ao lado do outro. Depois o sono veio. Estavam separados, Pedro tomou a mão dela, segurou. Dormiram como dois irmãos. Reformatório O “JORNAL DA TARDE” trouxe a notícia em grandes títulos. Uma manchete ia de lado a lado na primeira página: PRESO O CHEFE DOS “CAPITÃES DA AREIA” Depois vinham os títulos que estavam em cima de um clichê, onde se viam Pedro Bala, Dora, João Grande, Sem-Pernas e Gato cercados de guardas e investigadores: “Uma menina no grupo - a sua história recolhida a um orfanato - o chefe dos “capitães da areia” é filho de um grevista - os outros conseguem fugir - “o reformatório o endireitará”, nos afirma o diretor.” Pedro Bala estava preso, mas com um golpe de capoeira, conseguira fazer com que João Grande, Sem-Pernas e Gato fugissem. Pedro apanha muito, socos, pontapés, chicotadas, mas não delata os amigos e nem o local onde se escondem. Com raiva, o diretor do presídio o coloca na cafua, um pequeno quarto, por baixo da escada, onde não se podia Capitães da Areia

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estar em pé, porque não havia altura, nem tampouco estar deitado ao comprido, porque não havia comprimento. Ou ficava sentado, ou deitado com as pernas voltadas para o corpo numa posição mais que incômoda. Assim mesmo, Pedro Bala se deitou, sentia-se cansado e sem forças. Era totalmente cerrado o quarto, a escuridão era completa. O ar entrava pelas frestas finas e raras dos degraus da escada. Pedro Bala, deitado como estava, não podia fazer o menor movimento. Delirava e só pensava em Dora: estaria ela em uma cafua também? Teve pensamentos horríveis, via no rosto de Dora muita dor e tinha muita sede. Um garoto se aproximou dele e disse que os Capitães da Areia estavam por perto e o tirariam dali, mas primeiro tinha que sair da cafua. O garoto lhe deu um cigarro. Pedro ficou oito dias preso naquele lugar; estava muito magro, doente e fraco, pois raramente lhe davam água, e a comida era água salgada com uns caroços de feijão. No oitavo dia ele sai, e os bedéis o levam para um lugar aberto, próximo de uma plantação de cana. No meio do pátio o cabeleireiro raspa a sua cabeça a zero. Vê a cabeleira loira rolar no chão. Dão-lhe umas calças e paletó de mescla azul. Veste-se ali mesmo. O bedel leva-o a uma oficina de ferreiro: - Tem um facão? E uma foice? Entrega os objetos a Pedro Bala. Marcham para o canavial, onde outros meninos trabalham. Neste dia, de tão fraco, Pedro Bala mal sustém o facão. Por isso os bedéis o soqueiam. Ele nada diz. Castigos... Castigos... É a palavra que Pedro Bala mais ouve no reformatório. Por qualquer coisa são espancados, por um nada são castigados. O ódio se acumula dentro de todos eles. No extremo do canavial passa um bilhete a Sem-Pernas. No outro dia encontra a corda entre as moitas de cana. Com certeza a puseram durante a noite. É um rolo de corda fina e resistente. Está novinha. No meio dela o punhal que Pedro mete nas calças. A dificuldade é levar o rolo para o dormitório. Fugir durante o dia é impossível, com a vigilância dos bedéis. 108

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Duas noites depois, Pedro foge. Professor lê a manchete do “Jornal da Tarde”: “O CHEFE DOS ‘CAPITÃES DA AREIA’ CONSEGUE FUGIR DO REFORMATÓRIO” Trazia uma longa entrevista com o diretor furioso. Todo o trapiche ri. Até o padre José Pedro, que está com eles, ri em gargalhadas, como se fosse um dos Capitães da Areia. Orfanato Um mês de orfanato bastou para matar a alegria e a saúde de Dora. Nascera no morro, infância em correrias no morro. Tinha sempre febre, mas não dizia nada, porque odiava o silêncio da enfermaria, onde o sol não entrava e todas as horas pareciam a hora agonizante do crepúsculo. Um dia, passaram-lhe um bilhete que dizia que Pedro Bala iria buscála; ela deveria ir à enfermaria. Os garotos invadiram o local e levaram Dora. Noite de grande paz Os Capitães da Areia olham mãezinha Dora, a irmãzinha Dora, Dora noiva, Professor vê Dora, sua amada. Os Capitães da Areia olham em silêncio. A mãe-de-santo Don’Aninha reza oração forte para a febre que consome Dora desaparecer. Mal a recuperaram, a febre a derrubou. Onde está a alegria dela, por que ela não corre picula com seus filhinhos menores, não vai para a aventura das ruas com seus irmãos negros, brancos e mulatos? Nos olhos de Dora, uma grande sensação de paz. Pedro Bala fica de mãos dadas com ela.

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Dora, Esposa Dora está muito mal. Os amigos sempre perto dela. De repente, ela chama Pedro: - Tu sabe que já sou moça? A mão dele pousada nos seus seios, os corpos juntos. Uma grande paz nos olhos dela: - Foi no orfanato... Agora posso ser tua mulher. Ele a olha espantado: - Não, que tu tá doente... - Antes de eu morrer. Vem... - Tu não vai morrer. - Se tu vier, não. Se abraçam. O desejo é abrupto e terrível. Pedro não a quer magoar, mas ela não mostra sinais de dor. Uma grande paz em todo seu ser. - Tu é minha agora fala ele com voz agitada. Ela parecia não sentir a dor da posse. Seu rosto acendido pela febre se enche de alegria. Agora a paz é só da noite, com Dora está a alegria. Os corpos se desunem. - Agora vou dormir - diz. Na madrugada, Pedro põe a mão na testa de Dora. Fria. Não tem mais pulso, o coração não bate mais. O seu grito atravessa o trapiche, desperta os meninos. João Grande a olha de olhos abertos. Diz a Pedro Bala: - Tu não devia ter feito... - Foi ela que quis - explica e sai para não rebentar em soluços. Professor se chega, fica olhando. Não tem coragem de tocar no corpo dela. Mas sente que para ele a vida do trapiche acabou, não lhe resta mais nada que fazer ali. Como não poderia sair um velório do trapiche, se não os Capitães da Areia seriam descobertos, Dora foi enrolada em uma toalha de renda branca e Querido-de-Deus levou-a para ser depositada ao mar, junto de Yemanjá. 110

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Como uma estrela de loira cabeleira Pedro Bala se joga na água e nada atrás do saveiro que levara Dora. Vê sua amada estender os braços para ele. Que importa tampouco que os astrônomos afirmem que foi um cometa que passou sobre a Bahia naquela noite? O que Pedro Bala viu foi Dora feita estrela, indo para o céu. Fora mais valente que todas mulheres, mais valente que Rosa Palmeirão, que Maria Cabaçu. Tão valente que antes de morrer, mesmo sendo uma menina, se dera ao seu amor. Por isso virou uma estrela no céu. Uma estrela de longa cabeleira loira, uma estrela como nunca tivera nenhuma na noite de paz da Bahia. A felicidade ilumina o rosto de Pedro Bala. Para ele veio também a paz da noite. O saveiro do Querido-de-Deus o recolhe.

3ª PARTE CANÇÃO DA BAHIA, CANÇÃO DA LIBERDADE Vocações Não havia passado muito tempo sobre a morte de Dora, a imagem da sua presença tão rápida e, no entanto, tão marcante, da sua morte também, ainda enchia de visões as noites do trapiche. Alguns, quando entravam, todavia, olhavam para o canto onde ela costumava sentar ao lado do Professor e de João Grande. Ainda com a esperança de encontrá-la. Só Pedro Bala não a procurava no trapiche. Procurava ver, no céu de tanta estrela, uma que tivesse longa e loira cabeleira. Um dia Professor entrou no trapiche e não acendeu sua vela, não abriu um livro de histórias, não conversou. Para ele toda aquela vida tinha acabado desde que Dora fora levada pela febre.

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Uma noite, Professor decidiu que iria partir. Arrumou suas coisas (a maioria eram livros). - Vou estudar com um pintor do Rio. Dr. Dantas, aquele da piteira, escreveu a ele, mandou uns desenhos meus. Ele mandou dizer que me mandasse... Um dia vou mostrar como é a vida da gente... Faço o retrato de todo mundo... Tu falou uma vez, lembra? Pois faço... A voz de Pedro Bala o animou: - Tu também vai ajudar a mudar a vida da gente... Todos lamentaram muito a perda do amigo, foram se despedir do Professor, nunca um passageiro de terceira teve tanta gente na sua despedida. E no meio daqueles homens desconhecidos, sente que toda a sua coragem ficou com os Capitães da Areia. Mas dentro do seu peito vem uma marca de amor à liberdade. Marca que o faria abandonar o velho pintor que lhe ensina coisas acadêmicas para ir pintar por sua conta quadros que, antes de admirar, espantam todo o país. Agora Pirulito vendia jornais, fazia trabalhos de engraxate, carregava bagagens dos viajantes. Conseguira deixar de furtar para viver. Pedro Bala consentira que ele continuasse no trapiche, apesar de que ele não levava a mesma vida que os outros. Pedro Bala não entende o que vai dentro de Pirulito. Sabe que ele quer ser padre, que quer fugir daquela vida. Mas acha que aquilo não resolverá nada, não endireitará nada na vida de todos eles. Padre José Pedro é chamado pelo Cônego e este finalmente lhe dá uma paróquia. A paróquia nunca tivera cura porque o arcebispo nunca encontrara um padre que se dispusesse a ir para o meio dos cangaceiros, numa perdida vila do alto sertão. O Cônego, ainda, consentiu dar estudos a Pirulito, para que ele fosse frade e, futuramente, se tornasse padre, desde que Padre José Pedro se responsabilizasse pelo garoto. Os Capitães da Areia nem reconhecem Pirulito quando ele chega vestido com uma batina de frade, um longo cordão pendendo ao lado. Padre José Pedro diz: 112

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- Conhecem o irmão Francisco da Sagrada Família? Padre José Pedro se despede dos meninos e vai para sua paróquia. Boa-Vida pouco aparece no trapiche. Tem um violão, faz sambas, está enorme, mais um malandro nas ruas da Bahia. Ninguém tem uma vida igual à dos malandros. Passa o dia conversando nas docas, no mercado, vai às festas dos morros e da Cidade de Palha à noite, ou às macumbas. Toca seu violão, come e bebe do melhor, apaixona as cabrochas bonitas com sua voz e sua música. Arma fuzuê nas festas e quando a polícia o persegue vem se esconder no trapiche entre os Capitães da Areia. Um dia, Sem-Pernas e Pedro Bala vão até uma igreja, pois gostavam de ver os objetos de ouro, e de longe veem Pirulito ensinando o catecismo às criancinhas. Descrente, Sem-Pernas diz que a bondade não basta, só ódio. - Nem o ódio, nem a bondade. Só a luta. - diz Pedro. A voz bondosa de Pirulito atravessa a igreja. A voz de ódio do Sem-Pernas estava junto de Pedro Bala. Mas ele não ouvia nenhuma. Ouvia era a voz de João de Adão, o doqueiro, a voz de seu pai morrendo na luta. Canção de amor da vitalina Gato contou que a solteirona era cheia do dinheiro. Era a última de uma família rica, andava pelos quarenta e cinco anos, feia e nervosa. Corria a notícia de que tinha uma sala cheia de coisas de ouro, de brilhantes e joias acumuladas pela família através de gerações. Pedro Bala pensou que era uma coisa capaz de dar um bocado de dinheiro. Gonzales, o dono da casa de penhor O 14, dava dinheiro por aqueles objetos. Perguntou ao Sem-Pernas: - Tu é capaz de penetrar? - Se sou... - Depois a gente invade. Riram no trapiche. Gato saiu para ver Dalva. Sem-Pernas avisou: Capitães da Areia

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- Amanhã de manhã vou lá. E assim, Sem-Pernas vai até a casa da solteirona, seduz a moça, mas acaba se envolvendo, pois nenhuma garota havia se deitado com ele por prazer, normalmente só na obrigação. Mas, nunca transaram, ela o seduzia, o acariciava, mas “só em cima”, dizia. Isso aumentava o ódio de Sem-Pernas e a certeza de que deveria roubá-la. No entanto, sentia-se atraído pela situação. Pedro Bala reclamava de que já estava demorando o assalto. Uma noite, ele saiu da casa dela e não voltou. Está como uma esposa a quem o marido abandonasse. Chora e se lastima. Seu amor não vem, ela também precisa de amor. Mas o roubo a enfurece. Porque pensa que Sem-Pernas só amou nas noites longas de vícios para a furtar. A sua desgraça é mais completa porque durante uma semana foi plenamente feliz com as migalhas de amor. Rola no chão com um ataque. No trapiche, Sem-Pernas ri, relatando sua aventura. Mas no fundo sabe que a solteirona o fez ainda pior, aumentou com seus vícios o ódio que vivia latente no seu coração. Agora um desejo insatisfeito enche suas noites. Um desejo que impede seu sono, que lhe dá raiva. Na rabada de um trem Com a alta do cacau, os coronéis começam a desfilar seu poderio de ricos em bordeis da cidade de Ilhéus, onde quatro novos cabarés são abertos e, consequentemente, mulheres do país inteiro chegam à Bahia. Quando Dalva soube disso, decidiu mudar-se para Ilhéus e levar Gato junto com ela. Extremamente arrumado, de roupa nova, Gato foi ao trapiche se despedir dos meninos. Tinha agora quase 18 anos, e já estava com Dalva há quatro. Iria para Ilhéus enganar os fazendeiros e enricar. - Mano, vou para Ilhéus. A patroa vai cavar a vida. Eu vou com ela. Sou capaz de enricar. Quando tiver fazendeiro a gente vai fazer uma farra daquelas. 114

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Pedro pensava que era mais um que saía do trapiche. Eles iam crescendo e tomando rumos diferentes: Professor já fora, fazia quadros no Rio de Janeiro. Boa-Vida se desligara aos poucos do trapiche, toca violão nas festas, vai aos candomblés, arma fuzuê nas quermesses. É mais um malandro na cidade. Seu nome já é conhecido até nos jornais. Como os outros vagabundos, é conhecido pelos investigadores de polícia, que sempre estão de olho nos malandros. Pirulito é frade num convento, Deus o chamou, nunca mais saberão dele. Agora é o Gato que parte, vai arrancar dinheiro dos coronéis de Ilhéus. Não demorará que os outros partam. Só Pedro Bala não sabe o que fazer. Dentro em pouco será mais que um rapazola, será um homem e terá que deixar para outro a chefia dos Capitães da Areia. Para onde irá? Pedro sente o espetáculo dos homens, acha que aquela liberdade não é suficiente para a sede de liberdade que tem dentro de si. Tampouco sente o chamado de Deus, como Pirulito o sentiu. Só as palavras de João de Adão encontravam acolhida no seu coração. Mas João de Adão mesmo sabe muito pouco. O que tem é músculos potentes e voz autoritária, e no entanto amiga, para chefiar uma greve. Tampouco Pedro Bala quer ir como Gato enganar os coronéis de Ilhéus, arrancar o dinheiro deles. Quer qualquer coisa que não sabe ainda o que é, e por isso se demora entre os Capitães da Areia. Mas quem vai na rabada de um trem é Volta Seca. Uma tarde a polícia o pegou. Tinha dezesseis anos e apanhou muito; saiu oito dias depois com um ódio mortal de soldados. Decidiu pegar o trem e procurar Lampião e seu bando. E assim o fez. Em determinado lugar, o trem parou, e quando o bando de Lampião iria assaltá-lo, Volta Seca se apresentou ao “padrinho”, que logo o reconheceu como o filho de sua comadre. Volta Seca logo ganha um fuzil, ajuda no assalto ao trem e ainda mata dois soldados, por vingança de todos os policiais. O grupo de cangaceiros se perde na caatinga. O ar do sertão enche o peito de Volta Seca, que para e com o punhal faz dois traços na madeira do fuzil. Os dois primeiros... Capitães da Areia

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Como um trapezista de circo Pedro Bala, Barandão, Sem-Pernas e João Grande realizaram mais um audacioso assalto. A polícia estava atrás deles, mas todos os despistam, menos Sem-Pernas que, por ser coxo, seria mais fácil de pegar. Os guardas vêm nos seus calcanhares. Sem-Pernas sabe que eles gostarão de o pegar, que a captura de um dos Capitães da Areia é uma bela façanha para um guarda. Essa será a sua vingança. Não deixará que o peguem, não tocarão a mão no seu corpo. Sem-Pernas os odeia como odeia a todo mundo, porque nunca pôde ter um carinho. Não o levarão. Vêm em seus calcanhares, mas não o levarão. Pensam que ele vai parar junto ao grande elevador. Mas Sem-Pernas não para. Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm, ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço como se fosse um trapezista de circo. A praça toda fica em suspenso por um momento. Se jogou, diz uma mulher, e desmaia. Sem-Pernas se rebenta na montanha como um trapezista de circo que não tivesse alcançado o outro trapézio. O cachorro late entre as grades do muro. Notícias de jornal O “Jornal da Tarde” publica um telegrama do rio dando conta do sucesso da exposição de um jovem pintor até então desconhecido. Dias depois transcreve uma crítica de arte publicada também num jornal do Rio de Janeiro. “...um detalhe notaram todos que foram estranha exposição de cenas e retratos de meninos pobres. É que todos os sentimentos bons estão sempre representados na figura de uma menina magra de cabelos loiros e faces febris. E que todos os sentimentos maus estão representados por um homem de sobretudo negro e um ar de viajante. Que representará 116

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para um psicanalista a repetição quase inconsciente destas figuras em todos os quadros? Sabe-se que o pintor João José tem uma história...” Meses depois uma notícia informava aos leitores do “Jornal da Tarde”, sob o título de “Presente de grego: a Polícia de Belmonte devolve o vigarista gato” que a polícia de Belmonte, havia recebido da policia de Ilhéus um verdadeiro presente de grego. Um conhecido e jovem vigarista que atuava em Ilhéus com o nome de “Gato”, após ter abiscoitado bons cobres de muitos fazendeiros e comerciantes, fora remetido para Belmonte. Lá continuava a passar contos do vigário, em que era mestre. Conseguira vender uma imensidade de terras, ótimas para o cultivo do cacau, a muitos fazendeiros. Quando estes foram ver as terras, não eram mais que o leito sobre o qual corria o rio Cachoeira. A polícia de Belmonte tinha conseguido deitar mão no temível vigarista e o remetia de volta para Ilhéus. Entre fatos policiais sem importância o “Jornal da Tarde” noticiou um dia que um malandro conhecido pelo nome de Boa-Vida armara um fuzuê tremendo numa festa na Cidade de Palha, abrira a cabeça do dono da casa com uma garrafa de cerveja e estava sendo procurado pela polícia. Perto de um Natal o “Jornal da Tarde” apareceu com manchetes em tipos enormes. Uma notícia de tanta sensação como aquela que fizera conhecida a história da mulher que acompanhava o bando de Lampião: “UMA CRIANÇA DE 16 ANOS NO GRUPO DE LAMPIÃO”. “É um dos mais temíveis cangaceiros - trinta e cinco traços no seu fuzil - pertenceu aos “Capitães da Areia” - a morte de Machadão devida a Volta Seca.” A reportagem era extensa. Contava como as vilas saqueadas há algum tempo vinham notando entre o bando de Lampião uma criança de uns dezesseis anos, que levava o nome de Volta Seca. Apesar da sua idade, o jovem cangaceiro se fizera temido em todo o sertão como um dos mais cruéis do grupo. Constava que seu fuzil tinha trinta e cinco marcas. E cada marca num fuzil de cangaceiro representa um homem morto. Depois lembrava que entre os Capitães da Areia vivera um menino com o nome de Volta Seca e que era possível que fosse o mesmo. Capitães da Areia

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Meses depois a edição se esgotou novamente porque trazia a notícia da prisão de Volta Seca, enquanto dormia. O júri condenou Volta Seca a 30 anos de prisão por 15 mortes conhecidas e provadas. No entanto, seu fuzil tinha 60 marcas. E o jornal lembrava esse fato, repetindo que cada marca era um homem morto. O público ficou indignado porque Volta Seca não chorou durante o júri. Seu rosto sombrio estava cheio de estranha calma. Companheiros Naquele dia, a cidade amanheceu diferente. Não há descarga de navios neste dia. Porque os estivadores, com João de Adão à frente, foram prestar solidariedade aos condutores de bonde que estão em greve. Pedro Bala, Barandão e João Grande acompanham a movimentação. Vão para a porta do Sindicato, veem os homens dando vivas a João de Adão. Voltam para o trapiche, e Pedro Bala pensa no que viu durante o dia: a greve se soltou na cidade. É uma coisa bonita a greve, é a mais bela das aventuras. Pedro Bala tem vontade de entrar na greve, de gritar com toda a força do seu peito, de apartear os discursos. Seu pai fazia discursos numa greve, uma bala o derrubou. Ele tem sangue de grevista. Demais a vida da rua o ensinou a amar a liberdade. Mais tarde, João de Adão e um estudante de nome Alberto vão até o trapiche dos Capitães de Areia, a fim de pedir ajuda aos meninos. - Companheiro Pedro, a gente precisa de você e do seu grupo. A palavra “companheiro” soou para Pedro Bala como a palavra mais bonita do mundo. - A greve está indo muito em ordem. Nós queremos fazer coisas com muita ordem, porque assim venceremos e os operários conseguirão o aumento. Nós não queremos armar barulho, queremos mostrar que os operários são capazes de disciplina. (Uma pena, pensa Pedro Bala, que ama os barulhos.) Mas acontece que os diretores da Companhia andam 118

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contratando fura-greves para trabalhar amanhã. Se os operários dissolverem os grupos de furadores de greve, darão margem a que a polícia intervenha e está todo o trabalho perdido. Então o companheiro João de Adão lembrou de vocês... - Pra debandar os fura-greve? Tá certo - diz Bala alegríssimo. Explicou o plano: os furadores de greve viriam pela madrugada para os três grandes depósitos de bondes para tomar conta dos carros. Os Capitães da Areia deviam se dividir em três grupos, guardar as entradas dos três depósitos. E impedir, fosse como fosse, que os furadores de greve conseguissem botar os bondes em marcha. Pedro Bala assentia com a cabeça. Virou para João de Adão: - Se Sem-Pernas tivesse vivo e Gato tivesse aqui... Depois se lembra de Professor: - Professor inventava um plano bom num minuto... O estudante fazia planos sobre os Capitães da Areia. Agora Pedro Bala acordava todos e explicava o que tinham que fazer. O estudante estava entusiasmado com as palavras do moleque. Quando terminou de explicar, Bala resumiu tudo nestas palavras: - A greve é a festa dos pobres. Os pobres é tudo companheiro, companheiro da gente. - Você é um batuta disse o estudante. - Vai ver como a gente acaba com os traidor. Explicava a Alberto: - Eu vou com um grupo pro depósito maior. João Grande vai com outro. Barandão com o terceiro para o menor. Não entra ninguém. A gente sabe fazer. Tu vai ver... Os meninos foram para o local, como se fossem a uma festa. Os fura-greves vêm num grupo cerrado. Um americano o chefia com a cara fechada. Se dirigem todos para a entrada. Da sombra, dos becos, ninguém sabe de onde, como demônios fugidos do inferno, surgem meninos esfarrapados e de armas na mão. Punhais, navalhas, paus. Tomam a porta, o grupo dos fura-greves para. Logo os demônios se atiram, é um Capitães da Areia

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bolo só. São em número maior que o grupo de fura-greves. Estes rolam com os golpes de capoeira, recebem pauladas, alguns já fogem. Pedro Bala derruba o americano, com a ajuda de outro o soqueia. Os fura-greves pensam que são demônios fugidos do inferno. A gargalhada livre e grande dos Capitães da Areia ressoa na madrugada. A greve não é furada. Os atabaques ressoam como clarins de guerra Depois de terminada a greve o estudante continua a vir ao trapiche. Mantém longas conversas com Pedro Bala, transforma os Capitães da Areia numa brigada de choque. Uma tarde, Pedro Bala encontra Gato na rua Chile. Ele estava todo arrumado, deixara Dalva e estava com uma negrinha. Iriam para Aracaju, pois o açúcar estava em alta. Pedro Bala o vê ir embora todo elegante. Pensa que se ele tivesse demorado mais algum tempo no trapiche, talvez não fosse um ladrão. Aprenderia com Alberto, estudante, o que ninguém soubera lhe ensinar. Aquilo que Professor como que adivinhara. A revolução chama Pedro Bala como Deus chamava Pirulito nas noites do trapiche. É uma voz poderosa dentro dele, poderosa como a voz do mar, como a voz do vento, tão poderosa como uma voz sem comparação. Voz que chama Pedro Bala, que o leva para a luta. Voz que vem de todos os peitos esfomeados da cidade, de todos os peitos explorados da cidade. Voz que traz o bem maior do mundo, bem que é igual ao sol, mesmo maior que o sol: a liberdade. Pedro Bala foi aceito na organização no mesmo dia em que João Grande embarcou como marinheiro num navio cargueiro do Lóide. No cais dá adeus ao negro, que parte para a sua primeira viagem. Agora comanda uma brigada de choque formada pelos Capitães da Areia. O destino deles mudou, tudo agora é diverso. Intervêm em comícios, em greves, em lutas obreiras. 120

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O destino deles é outro. A luta mudou seus destinos. Ordens vieram para a organização dos mais altos dirigentes. Que Alberto ficasse com os Capitães da Areia e Pedro Bala fosse organizar os índios Maloqueiros de Aracaju em brigada de choque também. E que depois continuasse a mudar o destino das outras crianças abandonadas do país. Pedro Bala vai para o trapiche, reúne todos os companheiros e dá-lhes a notícia: - Gentes, agora eu vou embora, vou deixar vocês. Vou embora, Barandão agora fica o chefe. Alberto vem sempre ver vocês, vocês devem fazer o que ele diz. E todo mundo ouça: Barandão agora é o chefe. Barandão está na frente de todos. Ele agora é o chefe. Pedro Bala parece ver de Volta Seca, Sem-Pernas, Gato, Professor, Pirulito, Boa-Vida, João Grande e Dora, todos ao mesmo tempo entre eles. Agora o destino deles mudou. A voz do negro no mar canta o samba de Boa-Vida: Companheiros, vamos pra luta... De punhos levantados, as crianças saúdam Pedro Bala, que parte para mudar o destino de outras crianças. Barandão grita na frente de todos, ele agora é o novo chefe. De longe, Pedro Bala ainda vê os Capitães da Areia. Sob a lua, num velho trapiche abandonado, eles levantam os braços. Estão em pé, o destino mudou. Na noite misteriosa das macumbas os atabaques ressoam como clarins de guerra. Uma pátria e uma família Anos depois os jornais de classe, pequenos jornais, dos quais vários não tinham existência legal e se imprimiam em tipografias clandestinas, jornais que circulavam nas fábricas, passados de mão em mão, e que eram lidos à luz de fifós, publicavam sempre notícias sobre um militante proletário, o camarada Pedro Bala, que estava perseguido pela polícia de Capitães da Areia

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cinco estados como organizador de greves, como dirigente de partidos ilegais, como perigoso inimigo da ordem estabelecida. No ano em que todas as bocas foram impedidas de falar, no ano que foi todo ele uma noite de terror, esses jornais (únicas bocas que ainda falavam) clamavam pela liberdade de Pedro Bala, líder da sua classe, que se encontrava preso numa colônia. E, no dia em que ele fugiu, em inúmeros lares, na hora pobre do jantar, rostos se iluminaram ao saber da notícia. E, apesar de que lá fora era o terror, qualquer daqueles lares era um lar que se abriria para Pedro Bala, fugitivo da polícia. Porque a revolução é uma pátria e uma família. FIM O livro termina com uma nota de rodapé: Na casa mal-assombrada de Doninha Quaresma (existiam botijas enterradas e a alma de Doninha), hoje do Capitão, na paz de Estância. Sergipe, março de 937. A bordo do “Rakuyo Maru”, subindo a costa da América do pelo Pacífico, em caminho do México, junho de 937.

ANÁLISE DA OBRA Capitães da Areia, escrita na primeira fase de Jorge Amado, é uma obra que revela grandes preocupações sociais. Nela, o autor denuncia a diferença de classe e a violência contra os mais pobres. O ponto central do romance é o descaso social com meninos de rua. Desde o início do livro, o tema do abandono é abordado, seja por meio das reflexões dos garotos ou dos adultos, nas figuras de Padre José Pedro, da mãe-de-santo, Don’Aninha, ou do pescador Querido-de-Deus, ou, ainda, pelos comentários feitos pelo narrador. O que se percebe no romance é uma amostra não só de roubos, 122

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assassinatos e de atitudes violentas, como também as aspirações e os pensamentos ingênuos comuns a todas as crianças, inclusive com seus sonhos e seus heróis. O romance inicia com uma série de reportagens fictícias que procuram dar veracidade à história. Inicialmente, há um relato de quem são os “Capitães da Areia” - crianças abandonadas que vivem no areal de Salvador, morando em um casarão abandonado, no porto, e que vivem pelas ruas da Cidade Alta furtando objetos, fumando pontas de cigarro, são maltrapilhos, sujos e esfomeados. Depois, a reportagem narra um assalto à casa de José Ferreira, um rico comendador. Em seguida, aparece uma série de cartas de leitores do jornal opinando sobre o assunto: primeiro, a de um secretário do Chefe de Polícia (que afirma ser o Juiz de Menores o responsável pelos atos criminosos dos Capitães da Areia); depois, uma carta do Juiz de Menores, que se defende da acusação e diz que a tarefa de prender os garotos é do Chefe de Polícia; dando sequência, temos a carta de uma costureira, mãe de um garoto preso, que acusa o Diretor do Reformatório de maus tratos aos meninos que para lá vão após serem presos (ela preferia ver o filho com os Capitães da Areia que no Reformatório); a outra carta é do Padre José Pedro, que concorda com a costureira e denuncia o Diretor também. No entanto, é a última carta a que tem mais repercussão: a do Diretor do Reformatório, que nega tudo e diz ser o lugar em que trabalha o melhor do mundo, onde as crianças são bem tratadas. É a essa opinião que o jornal dá maior credibilidade – aqui vemos uma crítica do autor, em que a mídia, normalmente, é manipulada pelos poderosos do país.

Estrutura da Obra Após a exposição das cartas, o romance se divide em três partes, com capítulos curtos, todos com títulos, assim divididos: a) Primeira parte: - “Sob a lua, num velho trapiche abandonado” Capitães da Areia

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- 11 capítulos - Apresentação dos Capitães da Areia, como eles vivem, como são discriminados pela sociedade. O ponto alto também é o surto de varíola que acomete a cidade, principalmente os pobres, que não tinham acesso à vacina. b) Segunda parte: - “Noite da grande paz, da grande paz dos teus olhos” - 8 capítulos - Apresentação da única garota entre os Capitães, sua ingenuidade, seu amor e sua morte. c) Terceira parte: - “Canção da Bahia, canção da liberdade” - 8 capítulos - Mostra o destino dos Capitães da Areia. Narração A história é narrada em terceira pessoa, por um narrador onisciente, que não faz parte da história, mas que não se cansa de colocar sua opinião acerca dos Capitães, sempre favorável a eles, mostrando-os como as grandes vítimas da sociedade, como meninos que poderiam ter um destino diferente se fossem criados de forma decente com os pais. Meninos que têm a rua como educadora, a vida como mestre e a exclusão como metodologia de formação. E assim vão crescer e se tornar homens, nessa mesma linha. Tempo e espaço O tempo da narrativa é apresentado de duas maneiras: o cronológico, demarcado pelos dias, meses e anos, e o psicológico, a partir das lembranças e recordações dos meninos. 124

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O local em que se passa a maioria da história é a cidade de Salvador BA, mas cidades como Ilhéus, Aracaju e Rio de Janeiro são citadas no texto. Linguagem A linguagem trabalhada pelo narrador é a linguagem culta; mas nas falas dos personagens, a coloquialidade se destaca. E “desvios” gramaticais e palavras “chulas” aparecem, como, por exemplo: - “Tu é donzela mesmo?” - “Só boto atrás.” - “Tu quer fazer minha desgraça, filho da mãe?” - “... vocês fica sabendo que eu tou na polícia e não demoro a tá no Reformatório...” - “Tu por que não vai te enrabar com aquele velhote?” - “Lhe roubaram alguma coisa, senhor?” Personagens As personagens são, em sua maioria, meninos de rua, com apelidos relacionados à forma física ou a suas atitudes: Pedro Bala (era muito ágil e rápido); Sem-Pernas (aleijado de uma das pernas); Professor (o intelectual); Gato (esperto, ladrão rápido e sensual); Boa-Vida (preguiçoso que não queria fazer nada, tinha preguiça até de roubar); Volta-Seca (veio da seca do sertão); João Grande (alto e musculoso) e Pirulito (alto e magricela). A menina chamava-se “Dora”, referência à “dor” ou à “adora”, pois ela era muito adorada pelos garotos – era mãe, irmã e noiva. Dora Dora é a figura feminina de destaque na obra. Trabalhadora, mesmo com seus treze anos de idade, tenta arranjar emprego quando a mãe e Capitães da Areia

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o pai morrem, mas os outros lhe fecham a porta quando sabem que os pais morreram de varíola. No casarão, Dora representa a mãe para os garotos (é a imagem da figura feminina, a qual a única referência de pureza que os garotos tinham era a de mãe). O destino Ao chegar a determinada idade, cada um vai seguindo seu caminho, seu destino, sua liberdade: Professor vai para o Rio de Janeiro ser pintor; Gato vai para Ilhéus dar golpes em fazendeiros; Volta-Seca vai para o sertão acompanhar o bando de Virgulino Ferreira, o Lampião; Pirulito torna-se frade e ensina o catecismo às criancinhas; João Grande vira marinheiro; Sem-Pernas suicida-se; Pedro Bala deixa o trapiche, torna-se líder comunista; Padre José Pedro vai ao interior, a sua nova paróquia; Querido-de-Deus segue como capoeirista e Dalva fica em Ilhéus com um fazendeiro. A cultura e a religião Os Capitães da Areia, embora sendo “marginais” se integram na cultura e na religião locais, aceitando e reverenciando tanto o catolicismo, culto oficial, representado pela figura do padre José Pedro, quanto com o candomblé, rito alternativo e tradicional da Bahia, na relação com a mãe-de-santo, Don’Aninha. É com este último que os personagens mais se identificam (os terreiros, as danças), por ser mais próximo dos pobres.

EXERCÍCIOS 1. Assinale a(s) alternativa(s) correta(s) em relação ao romance Capitães da Areia e seu autor. 01. Jorge Amado faz parte do romance regional de 30, quando se aprofundaram as radicalizações políticas na realidade brasileira. 126

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02. Jorge Amado representa a Bahia, denunciando mazelas, violências e identificando grupos marginalizados e revolucionários em “Capitães da Areia”. 04. Dora, Pedro Bala e Professor são alguns dos personagens da narrativa, que aborda a dramática vida dos camponeses das fazendas de cacau no sul da Bahia. 08. O tom da narrativa aproxima-se do Naturalismo, alternando trechos de lirismo e crueza. O nível de linguagem é coloquial e popular. 16. “Capitães da Areia” pertence à primeira fase da produção de Jorge Amado, quando era notório seu engajamento com a política de esquerda. Daí o esquematismo psicológico: o mundo dividido em heróis (o povo) e bandidos (a burguesia). 32. Problemas políticos e sociais da época são retratados na obra; dentre eles, pode-se citar o surto de varíola (que acometeu Salvador, em 1919), a pobreza extrema, a alta do café e a consequente crise que afetou o país. 2. Sobre o romance Capitães da Areia e sua linguagem é correto afirmar que: 01. Há o predomínio do discurso indireto livre, observando-se a intenção do narrador de colocar em destaque o íntimo das personagens e o afloramento constante dos desejos femininos. 02. Ao enfatizar a naturalidade e a espontaneidade da fala cotidiana, o narrador incorpora ao texto a linguagem popular, registrando a fala das personagens tal como ela parece ser produzida. 04. O assunto da obra em questão são os marinheiros, e ela inaugura um verdadeiro ciclo marítimo na produção de Jorge Amado, projeto que se irá completar com outras obras, como: Mar morto, Jubiabá e Velhos marinheiros. 08. É uma obra regionalista, cuja preocupação é registrar costumes, crenças, tradições e linguagem típicas do litoral da Bahia. Capitães da Areia

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16. O livro é dividido em três partes. Antes delas, no entanto, por meio de uma sequência de pseudo-reportagens, explica-se que os Capitães da Areia são um grupo de menores abandonados e marginalizados, que aterrorizam a cidade de Salvador. 32. Na obra, dois tipos de religião são frequentes: a católica, por meio da figura do Padre José Pedro e de Pirulito; e o candomblé, que tem como mãe-de-santa Don’Aninha, a qual sempre ajudava os garotos. 64. Dora morre após ter sido vítima da varíola – havia pegado a doença dos pais e morrera tempos depois.

3. Assinale a(s) alternativa(s) correta(s) em relação aos personagens de Capitães da areia. ( 1 ) Pedro Bala ( 2 ) Professor ( 3 ) Sem-Pernas ( 4 ) Volta-Seca ( 5 ) Gato ( 6 ) Pirulito ( 7 ) Boa Vida ( 8 ) João Grande ( (

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) Era o malandrão da turma. Era elegante e vivia todo arrumado, pois era amigado com a prostituta Dalva que o sustentava. ) Garoto negro de 13 anos, o mais forte e mais alto do grupo. Entrou para o Capitães da Areia aos nove anos e era temido por todos, não por sua inteligência, mas por sua força muscular. ) Fingindo-se um pobre abandonado carente, penetrava nas casas de famílias, a fim de reconhecer os lugares em que ficavam as joias e objetos valiosos; depois, contava aos Capitães e assaltavam a casa. ) Garoto de 15 anos, loiro e com uma cicatriz no rosto. Era muito

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inteligente, ágil e habilidoso. Apaixona-se por Dora e, ao final da história, sai e deixa de ser o líder dos Capitães para comandar e organizar os Índios Maloqueiros em Aracaju. ) Um mulato que veio do sertão para a cidade. Gostava de imitar os pássaros e sempre estava à espera de notícias do padrinho. Aos 16 anos, junta-se ao bando de Lampião e torna-se um matador temido por todos. ) Mulato muito feio e o mais malandro do bando. Quase não participava das atividades de roubo do grupo porque era preguiçoso. Como o nome já diz, gostava de uma boa vida, de violão, de festas, de não fazer nada. ) Adolescente muito inteligente e com dons artísticos. Era o único do grupo que sabia ler e escrever, por isso, sempre lia histórias de aventuras e reportagens aos garotos. Era também um ladrão, mas normalmente só roubava livros. ) Era o único garoto do grupo que possuía vocação religiosa. Tinha em seu canto do casarão dois quadros religiosos dados pelo padre José Pedro, perante os quais rezava sempre. Vivia entre a vida religiosa e a obrigação de roubar para comer.

4. Marque a(s) assertiva(s) verdadeira(s) e faça o somatório. 01. O romance é narrado em terceira pessoa, por um narrador onisciente (que sabe tudo o que ocorre). Essa característica narrativa possibilita que seja cumprida uma tarefa facilmente notada pelo leitor: mostrar o outro lado dos Capitães da Areia. 02. A história se passa em Salvador, na Bahia, incluindo lugares como a cidade alta e a cidade baixa. 04. Todas as crianças possuem apelidos - algumas já nem sabem mais seu nome verdadeiro. Esses apelidos são comuns no grupo para realçar o caráter físico ou psicológico de cada garoto.

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08. Em Capitães da Areia, a oralidade e a linguagem popular conferem um ritmo dinâmico à obra, prejudicando, assim, o seu teor literário. 16. No capítulo intitulado “As Luzes do Carrossel”, o bando, conhecido pela periculosidade, esbalda-se ao brincar em um decadente carrossel. Desde o líder, Pedro Bala, passando pelos seus mais destacados membros, a grande maioria se diverte de forma pueril no velho brinquedo. 32. O capítulo “Como um trapezista de circo” narra a morte de SemPernas que, após um assalto, prefere se jogar do elevador Jorge Lacerda a se entregar para a polícia. 5. Leia o Texto I, fragmento extraído da obra Capitães da Areia, em seguida faça o somatório das questões verdadeiras. Texto I Foi Boa-Vida que contou a Pedro Bala que naquela casa da Graça tinha coisa de ouro de fazer medo. O dono da casa, pelo jeito, parecia colecionador, o Boa-Vida tinha ouvido um malandro dizer que na casa havia uma sala entupida de objetos de ouro e prata que no emprego haviam de dar uma fortuna. À tarde Pedro Bala foi com o Boa-Vida ver a casa. Era um prédio moderno e elegante, jardim na frente, garagem ao fundo, espaçosa residência de gente rica. O Boa-Vida cuspiu por entre os dentes, desenhando uma flor no passeio com o cuspe, e disse: - E dizer que nesse mundo só mora dois velhos, hein? [...] No outro dia, por volta de onze e meia da manhã, o Sem-Pernas apareceu em frente à casa. Quando ele tocou a campainha, a empregada com certeza ainda pensava na noite que passara com Pedro Bala no seu quarto no Garcia, porque não ouviu o tilintar. O menino tocou de novo e na janela de um quarto do primeiro andar assomou

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a cabeça grisalha de uma senhora, que mirou com os olhos apertados ao Sem-Pernas: No outro dia, por volta de onze e meia da manhã, o Sem-Pernas apareceu em frente à casa. Quando ele tocou a campainha, a empregada com certeza ainda pensava na noite que passara com Pedro Bala no seu quarto no Garcia, porque não ouviu o tilintar. O menino tocou de novo e na janela de um quarto do primeiro andar assomou a cabeça grisalha de uma senhora, que mirou com os olhos apertados ao Sem-Pernas: - Que é, meu filho? - Dona, eu sou um pobre órfão... A senhora fez com a mão sinal que ele esperasse e dentro de poucos minutos estava no portão sem ouvir sequer as desculpas da empregada por não ter atendido à porta: - Pode dizer, meu filho - olhava os farrapos do Sem-Pernas. - Dona, eu não tenho pai, faz só poucos dias que minha mãe foi chamada pro céu - mostrava um laço preto no braço, laço que tinha sido feito com a fita do chapéu novo do Gato, que se danara. – Não tenho ninguém no mundo, sou aleijado, não posso trabalhar muito, faz dois dias que não vejo de comer e não tenho onde dormir. AMADO, Jorge. Capitães da Areia, p. 103-105

01. Sem-Pernas, o menino manco tinha grande talento para a dissimulação, por isso se especializara na tarefa de espião do bando. Ele se infiltrava na casa de famílias ricas, apresentando-se como pobre órfão que pedia um lugar para morar. 02. Nesse capítulo, no entanto, Sem- Pernas é acolhido de forma sincera e amorosa pelos donos da casa, que o veem como o filho que havia morrido.

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04. Em: “...faz só poucos dias que minha mãe foi chamada pro céu.”, o autor utiliza uma figura de linguagem denominada hipérbole. 08. Sem-Pernas é o personagem mais revoltado do bando, o integrante que menos demonstra capacidade de amar e de receber amor do próximo. 16. Sem-Pernas vive um conflito interno. Tratado como um verdadeiro filho, o garoto fica dividido entre a lealdade ao bando que o acolheu e os novos “pais” que lhe davam o carinho e o amor que nunca havia conhecido. Opta pela lealdade ao grupo, que invade e saqueia a casa. 32. Em: “A senhora fez com a mão sinal que ele esperasse...”, o primeiro vocábulo sublinhado indica uma preposição, enquanto que o segundo, um artigo definido. 64. O período: “- Dona, eu não tenho pai, faz só poucos dias que minha mãe foi chamada pro céu...”, é composto por quatro orações, uma vez que é formado por quatro verbos: tenho, faz, foi e chamada. 6. Assinale as alternativas verdadeiras em relação à obra Capitães de Areia. 01. Na obra, percebe-se a presença de vários tipos de denúncias ao menor: violência, abandono pelo governo, abuso das autoridades policiais, manipulação da imprensa, maus tratos entre outros. 02. Na terceira parte do livro, os Capitães da Areia ajudam João de Adão e um estudante a lutar contra os “fura-greves”. Armados, os garotos partiram para a briga, mas não conseguiram vencer; nesse dia, Pedro Bala ficou muito ferido. 04. Ao final da obra, os Capitães da Areia passam a ter uma outra função: intervêm em comícios, em greves, em lutas obreiras. Tudo isso, graças a Pedro Bala que passara a comandar uma brigada de choque formada pelos Capitães da Areia. 08. Pedro Bala deixa de ser chefe dos Capitães da Areia por ordens da organização; ele deveria partir para Aracaju e continuar mudando o destino de outras crianças de rua, trazendo-as para a luta. 132

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16. Apesar do predomínio da linguagem coloquial, na obra existem várias passagens escritas em linguagem poética. É o caso do trecho seguinte, que se refere claramente à ditadura existente no Brasil da época: “No ano em que todas as bocas foram impedidas de falar, no ano que foi todo ele uma noite de terror, esses jornais (únicas bocas que ainda falavam) clamavam pela liberdade de Pedro Bala...” 32. No período: “Na noite misteriosa das macumbas os atabaques ressoam como clarins de guerra.”, o sujeito da oração é do tipo simples, “noite misteriosa”. 64. Em: “Os fura-greves pensam que são demônios fugidos do inferno.”, o vocábulo “que” exerce a função de pronome relativo. 7. (UFSC 2013 – adaptada) Texto 4 [...]. Depois Volta Seca chegou com um jornal que trazia notícias de Lampião. Professor leu a notícia para Volta Seca e ficou vendo as outras coisas que o jornal trazia. Então chamou: – Sem-Pernas! Sem-Pernas! [...] E leu uma notícia no jornal: Ontem desapareceu da casa número... da rua..., Graça, um filho dos donos da casa, chamado Augusto. Deve ter se perdido na cidade que pouco conhecia. É coxo de uma perna, tem treze anos de idade, é muito tímido, veste roupa de casimira cinza. A polícia o procura para o entregar aos seus pais aflitos, mas até agora não o encontrou. A família gratificará bem quem der notícias do pequeno Augusto e o conduzir a sua casa. O Sem-Pernas ficou calado. Mordia o lábio. Professor disse: – Ainda não descobriram o furto... Sem-Pernas fez que sim com a cabeça. Quando descobrissem o furto não o procurariam mais como a um filho desaparecido. Barandão fez uma cara de riso e gritou: Capitães da Areia

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– Tua família tá te procurando, Sem-Pernas. Tua mamãe tá te procurando pra dar de mamar a tu... Mas não disse mais nada, porque o Sem-Pernas já estava em cima dele e levantava o punhal. E esfaquearia sem dúvida o negrinho se João Grande e Volta Seca não o tirassem de cima dele. Barandão saiu amedrontado. O Sem-Pernas foi indo para o seu canto, um olhar de ódio para todos. Pedro Bala foi atrás dele, botou a mão em seu ombro: – São capazes de não descobrir nunca o roubo, Sem-Pernas. Nunca saber de você... Não se importe, não. – Quando doutor Raul chegar vão saber... E rebentou em soluços, que deixaram os Capitães da Areia estupefatos. AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 133-134.

Com base no texto 4, na leitura do romance Capitães da areia e no contexto do Modernismo brasileiro, assinale a(s) proposição(ões) CORRETA(S). 01. Capitães da areia inclui-se entre as obras do chamado Regionalismo de 30, cujas temáticas compreendem, entre outros aspectos, a denúncia das mazelas sociais do Brasil. 02. Augusto – apelidado pelos capitães da areia de Sem-Pernas, devido a uma deficiência física – abandona a casa dos pais após ter furtado objetos de valor e se une aos capitães da areia; a vergonha, mais que o temor do castigo, impede-o de voltar para casa. 04. A agressão de Sem-Pernas a Barandão representa um ponto de virada na história porque, a partir de então, Sem-Pernas, que sempre fora calmo e reservado, passa a agredir os colegas, até que Pedro Bala o expulsa do grupo e ele comete suicídio. 08. Na composição das personagens que habitam o trapiche, Jorge Amado adota um procedimento semelhante: nenhum dos meninos é mau por natureza, porém eles cometem más ações por força das circunstâncias sociais. 134

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16. No período “A família gratificará bem quem der notícias do pequeno Augusto e o conduzir a sua casa”, a expressão “a sua casa” poderia ser escrita como “à sua casa”, sem que isso implicasse desrespeito à norma padrão. (UDESC 2013-1 – adaptada) Leia o Texto 1 para responder às questões de 8 a 10 Texto 1 Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala à chefia, e foi dessa época que a cidade começou a ouvir a falar nos Capitães da Areia, crianças abandonadas que viviam do furto. Nunca ninguém soube o número exato de meninos que assim viviam. Eram bem uns cem, e desses mais de quarenta dormiam nas ruínas do velho trapiche. Amado, Jorge, Capitães da areia, 60ª ed. Rio de Janeiro, 1984 p.27

8. (UDESC 2013-1 – adaptada) Assinale a alternativa incorreta em relação ao Texto 1. a) Em relação “à chefia” se a expressão for substituída por a guarda, ainda assim o acento indicativo de crase permanece. b) Na oração “dormiam nas ruínas do velho trapiche” a expressão destacada, sintaticamente, é um adjunto adverbial de lugar. c) A palavra crianças, na morfologia, é classificada como substantivo uniforme, pois apresenta apenas uma forma para feminino/masculino. d) Na oração “Nunca ninguém soube o número exato de meninos” o sujeito é indeterminado. e) Da leitura do período “Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala à chefia” infere-se que a partir desse momento Pedro Bala assume a liderança do grupo.

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9. (UDESC 2013-1 – adaptada) Assinale a alternativa incorreta. a) Em “Eram bem uns cem” se a palavra destacada for substituída pela expressão mais ou menos, ainda assim mantém-se a coerência do texto. b) Da leitura do excerto e da obra infere-se que anteriormente à chefia de Pedro Bala o grupo Capitães da Areia não era tão conhecido na cidade (Salvador). c) Em “crianças abandonadas” se a palavras destacada for substituída por meninas, a concordância nominal é a mesma, permanece de acordo com as regras gramaticais de concordância. d) Do período “Nunca ninguém soube o número exato de meninos que assim viviam” as palavras destacadas, morfologicamente, são na sequência advérbio, pronome indefinido, artigo e adjetivo. e) Na oração “Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala” o verbo destacado, quanto à transitividade, classifica-se como bitransitivo ou transitivo direto e indireto, pois apresenta dois complementos verbais. 10. (UDESC 2013-1 – adaptada) Em relação ao texto, assinale a alternativa em que o sinônimo da palavra destacada está incorretamente indicado. a) foi dessa época - tempo b) crianças abandonadas que viviam do furto – desamparadas c) Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala - desconheceram d) Nunca ninguém soube o número exato - certo e) meninos que assim viviam – existiam (UDESC 2013-2 – adaptada) Leia o texto 4 e responda às questões de 11 a 13.

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Texto 4 DESTINO OCUPARAM A MESA DO CANTO. O GATO PUXOU o baralho. Mas nem Pedro Bala, nem João Grande, nem Professor, tampouco Boa-Vida se interessaram. Esperavam o Querido-de-Deus na Porta do Mar. As mesas estavam cheias. Muito tempo a Porta do Mar andara sem fregueses. A varíola não deixava. Agora que ela tinha ido embora, os homens comentavam as mortes. Alguém falou no lazareto. “É uma desgraça ser pobre”, disse um marítimo. Numa mesa pediram cachaça. Houve um movimento de copos no balcão. Um velho então disse: − Ninguém pode mudar o destino. É coisa feita lá em cima – apontava o céu. Mas João de Adão falou de outra mesa: − Um dia a gente muda o destino dos pobres... Pedro Bala levantou a cabeça, Professor ouviu sorridente. Mas João Grande e Boa-Vida pareciam apoiar as palavras do velho, que repetiu: − Ninguém pode mudar, não. Está escrito lá em cima. − Um dia a gente muda... – disse Pedro Bala, e todos olharam para o menino. − Que é que tu sabe, frangote? – perguntou o velho. − É filho do Loiro, fala a voz do pai – respondeu João de Adão olhando com respeito. – O pai morreu pra mudar o destino da gente. AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 163.

11. (UDESC 2013-2 – adaptada) Assinale a alternativa correta em relação à obra Capitães da areia, Jorge Amado, e ao Texto 4. a) Em “Alguém falou no lazareto” (linha 6) a palavra destacada remete ao lugar onde eram isoladas pessoas com doenças contagiosas. No caso do romance, pessoas com varíola/alastrim. Capitães da Areia

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b) João Grande, o mais alto e o mais forte do bando dos Capitães da Areia, não dorme no trapiche, pois passa as noites com Dalva, mulher de trinta e cinco anos. c) Em “Que é que tu sabe, frangote?” (linha 19) a palavra destacada, sintaticamente, é aposto. d) A leitura do texto leva o leitor a inferir que Pedro Bala, chefe dos Capitães da Areia, descobre que seu pai é João de Adão, estivador e grevista, por quem Bala nutria grande admiração. e) Porta do Mar, com várias referências na obra, é um motel onde os meninos do bando Capitães da Areia sorrateiramente adentravam, planejavam seus roubos e encontravam diversão. 12. (UDESC 2013-2 – adaptada) Analise as proposições em relação à obra Capitães da areia, Jorge Amado, e ao Texto 4. I. João José, o Professor, tornara-se perito em roubar livros, era o único que lia corretamente e contava aos outros meninos do bando várias histórias, transportando-os para mundos diversos. II. Substituindo-se os termos destacados em “comentavam as mortes (linha 5-6), pelo pronome adequado, tem-se comentavam-nas. III. Muitos meninos do bando Capitães da Areia eram chamados por apelidos que lembravam traços da personalidade ou do físico deles. Boa-Vida era assim conhecido porque não gostava de fazer nada, por ser o legítimo malandro, mas que no fim da história vai lutar no bando de Lampião, seu padrinho. IV. Os verbos “levantou” (linha 14), “ouviu” (linha 14) e “repetiu” (linha 15) quanto à transitividade são transitivos diretos. V. Em “Ninguém pode mudar, não” (linha 16) há sujeito indeterminado. Assinale a alternativa correta. a) Somente as afirmativas II, IV e V são verdadeiras. b) Somente as afirmativas I e II são verdadeiras. c) Somente as afirmativas II, III e IV são verdadeiras. 138

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d) Somente as afirmativas I, II e III são verdadeiras. e) Somente as afirmativas I e V são verdadeiras. 13. (UDESC 2013-2 – adaptada) Analise as proposições em relação à obra Capitães da areia, Jorge Amado, e ao Texto 4 e assinale (V) para verdadeira e (F) para falsa. ( ) Da passagem “Um dia a gente muda” infere-se que Pedro Bala acreditava que o homem poderia provocar mudanças sociais. ( ) Infere-se da leitura do texto que as pessoas temiam frequentar lugares públicos à época da varíola. ( ) Quanto à concordância verbal em “Mas João Grande e Boa-Vida pareciam apoiar as palavras”, o verbo pareciam pode ficar na 3ª pessoa do singular e flexionar-se o 2º verbo, resultando na locução verbal parecia apoiarem, mantendo-se a correção gramatical. ( ) Pedro Bala, no final da história, morre no Reformatório, lugar que tanto temia e que lhe causara grande tristeza. ( ) A passagem “Agora que ela tinha ido embora, os homens comentavam as mortes” refere-se à morte de Dora, a mãe, a irmã dos Capitães da Areia. Assinale a alternativa correta, de cima para baixo. a) V – V – F – F – F b) V – V – V – F – F c) F – V – F – V – F d) V – F – V – F – F e) V – V – V –V – F

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QUARTO DE

DESPEJO:

DIÁRIO DE UMA FAVELADA


QUARTO DE DESPEJO – DIÁRIO DE UMA FAVELADA Autora: Carolina Maria de Jesus Escola literária: Literatura Contemporânea Ano de publicação: 1960 Gênero: Diário – memórias Divisão da Obra: A obra mostra o relato de 4 anos (1955, 1958, 1959 e 1960), mas o tempo total (entre 1955 e 1960) é de 5 anos. Local em que passa a história: São Paulo – Favela do Canindé Temas: amor, morte, miséria, fome, questões raciais, questões de gênero, literatura, preconceito, drogas, violência, violação de direitos humanos, prostituição

A AUTORA CAROLINA MARIA DE JESUS (1914 – 1977) A autora nasceu em Sacramento – MG, em 1914. Tempos depois, muda com a família em busca de melhores condições de vida; chegam a Franca – SP, onde vai trabalhar como lavradora e depois como doméstica. Aos 23 anos, perde a mãe e vai morar na capital, onde trabalha como faxineira e depois como doméstica e,durante a noite, começa a catar lixo para aumentar um pouco a renda. Em 1948, muda-se para a favela do Canindé e, tempos depois, torna-se mãe de três filhos. Carolina sempre gostou muito de ler e escrever, apesar de ter estudado apenas dois anos em toda a sua vida. Durante esse tempo, escreveu diários sobre a vida na favela e, em 1958, conheceu o jornalista Audálio Dantas o qual se interessou por seus escritos e resolveu publicá-los. Em 1958, publicou uma parte deles no jornal Folha da Noite e, em 1959, na revista O Cruzeiro – todos com sucesso de crítica imenso. Mas a fama 142

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alcançou seu auge em 1960, quando seus diários foram publicados em forma de livro e intitulados de Quarto de despejo: a história de uma favelada. Com o sucesso de vendas, Carolina consegue sua casa própria, muda-se da favela para Santana, bairro de classe média, na zona norte de São Paulo, e finalmente para um sítio em Paralheiros. O sucesso não durou muito e logo Carolina é esquecida pelo mercado editorial e volta a trabalhar como catadora de papel. Carolina escreveu poemas, canções e romance. Morreu em 1977.

BIBLIOGRAFIA Quarto de Despejo – diário de uma favelada (1960); Casa de Alvenaria, o diário de uma ex-favelada (1961); Pedaços de Fome (romance – 1963); Provérbios (1963); Póstumos: Diário de Bitita (1982); Meu estranho diário (1996); Antologia pessoal (1996); Onde Estás Felicidade (2014).

A ESCOLA LITERÁRIA Literatura Contemporânea (A partir da década de 1960)

Contexto histórico Nas últimas décadas do século XX, o mundo viveu um acelerado avanço científico e tecnológico, graças, sobretudo, à criação de computadores de alta velocidade. Nunca antes a humanidade vivera tantas e tão rápidas mudanças: as possibilidades, as facilidades e a instantaneidade das comunicações, a obtenção e as trocas de informações pela Internet, o desenvolvimento aeroespacial, com o envio de sondas a distâncias até então inacreditáveis e o uso de satélites com diversas finalidades. A engenharia genética permitiu o desenvolvimento de organismos transgênicos animais e vegetais, as clonagens e novas formas de combate a doenças. A esses e outros benefícios somaram-se o fim da guerra fria, o esfacelamento do bloco soviético e a criação de mercados comuns. Quarto de despejo

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Entretanto, o alargamento do fosso entre ricos e pobres fez com que esses benefícios atendessem a uma pequena parcela da comunidade planetária, com maior agravamento nos países subdesenvolvidos ou em via de desenvolvimento. Nestes, ainda é restrito o acesso a computadores pessoais e às telecomunicações. Além disso, tivemos o ressurgimento de doenças relacionadas à pobreza e à falta de saneamento, como a tuberculose, a sífilis e a dengue. O avanço da aids entre as populações menos favorecidas foi mais um dos aspectos negativos do fim do milênio. A segunda metade do século XX foi marcada também por inúmeras guerras, pela xenofobia, pelo crescimento de grupos de extrema direita nos moldes nazistas e pelos extremismos religiosos que ainda geram conflitos com milhares de mortes. (In: Português Maia. Ática, p.462, 2005) É assim que vemos, nos anos 60 (cujo governo era JK), uma grande euforia política e econômica, com amplos reflexos culturais: Bossa Nova, Cinema Novo, teatro de Arena, as Vanguardas, e a Televisão. Com a crise após a renúncia de Jânio Quadros e o Golpe Militar que derrubou João Goulart, diminuiu muito essa empolgação, e um clima de censura é estabelecido no país (fechamento do Congresso; jornais censurados, revistas, filmes, músicas; perseguição e exílio de intelectuais, artistas e políticos). A cultura usou disfarces ou recuou. Na década de 1970, após a conquista do tricampeonato mundial de futebol, uma onda de nacionalismo ufanista toma conta do país, e as pessoas parecem ficar “adormecidas” por um bom tempo (lembremos do lema: “Brasil: ame-o ou deixe-o). Durante o governo de Figueiredo, em 1979, foi sancionada a lei da anistia. Assim, os exilados voltam ao Brasil. Na década de 1980, inicia-se uma mobilização popular pela volta das eleições diretas, que só veio a concretizar-se em 89, com a posse de Fernando Collor de Mello, cassado em 1991.

A literatura Caracterizar a literatura contemporânea não é tarefa fácil; primeiro porque ainda estamos vivendo o período e depois porque há uma gran144

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de mistura de estilos entre os autores. São as chamadas “tendências contemporâneas”, nas quais as variações temáticas são muito abrangentes, dentre elas podemos citar: homossexualismo, solidão do homem nas grandes cidades, guerra, futebol, imigração, regionalismo, política, história, economia, violência, drogas, cotidiano, etc. Nesse contexto, convém lembrarmos grandes nomes deste nosso momento literário no Brasil: Rubem Fonseca, Rubem Braga, Antônio Callado, João Ubaldo Ribeiro, Fernando Sabino, Moacyr Scliar, Dias Gomes, Ariano Suassuna, Nélson Rodrigues, Conceição Evaristo, Luis Fernando Veríssimo, Maria Valéria Rezende, entre tantos outros. Em Santa Catarina, a literatura contemporânea possui também grandes nomes no cenário nacional: Salim Miguel, Carlos Henrique Schroeder, Urda Alice Klueger, Maria de Lourdes Krieger, Almiro Caldeira, Flávio José Cardozo, Miro Morais, Lausimar Laus, Enéas Athanázio, Guido Wilmar Sassi, Holdemar de Menezes, Edla Van Steen, Harry Laus, Cristovão Tezza, Jair Francisco Hamms, dentre outros.

PERSONAGENS Principais: Carolina Maria de Jesus – narradora e protagonista da história. Carolina é mineira e vem tentar a vida em São Paulo, onde vai morar na Favela do Canindé. É uma mulher negra, pobre, favelada, desempregada, e que tem amor pela escrita e pela leitura. Tem três filhos de pais distintos e trabalha como catadora para sustentá-los. João José – filho mais velho de Carolina; nasceu em 1948, tinha 7 anos no início da narrativa José Carlos – filho do meio; nasceu em 1949, tinha 6 anos no início da narrativa Vera Eunice – filha mais nova; nasceu em 1953; tinha 2 anos no início da narrativa. Desde cedo, manifestava aversão à favela e gostava do Quarto de despejo

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luxo.

Secundários: Vários moradores da favela e seus arredores, Senhor Manoel e Raimundo, pretendentes de Carolina.

SÍNTESE DA OBRA Como se trata de um diário, elencamos aqui apenas algumas passagens dos relatos escritos por Carolina de Jesus. Na seção “Análise da obra”, você terá mais exemplos da escrita da autora. Ano de 1955 15 de julho de 1955 Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar. Eu não tinha um tostão para comprar pão. Passei o dia indisposta. Percebi que estava resfriada. Resolvi não sair a noite para catar papel. Ablui as crianças, aleitei-me e ablui-me e aleitei-me. Esperei até as 11 horas, um certo alguém. Ele não veio. Tomei um melhoral e deitei-me novamente. 16 de julho de 1955 Levantei. Obedeci a Vera Eunice. Fui buscar água. Fiz o café. Avisei as crianças que não tinha pão. Que tomassem café simples e comesse carne com farinha. Melhorou, saiu para catar papel. Cheguei em casa, fiz o almoço para os dois meninos. Saiu de novo para catar papel. À noite, quando eu vinha chegando no portão encontrei uma multidão. Crianças e mulheres, que vinha reclamar que o José 146

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Carlos havia apedrejado suas casas. Para eu repreendê-lo. 17 de julho Domingo. Deixei o leito as 6,30. Fui buscar água, fiz café. Tenho só um pedaço de pão e 3 cruzeiros. Hoje é a Nair Mathias quem começou impricar com os meus filhos. A Silvia e o esposo já iniciaram o espetaculo ao ar livre. Ele está lhe espancando. E eu estou revoltada com o que as crianças presenciam. Ouvem palavras de baixo calão. Oh! Se eu pudesse mudar daqui para um nucleo mais decente. À noite, saiu para trabalhar, encontrou umas conhecidas, e uma delas perguntou o que ela achava do Carlos Lacerda. - Muito inteligente. Mas não tem iducação. É um político de cortiço. Que gosta de intriga. Um agitador. Uma senhora disse que foi pena! A bala que pegou o major podia acertar no Carlos Lacerda. 18 de julho. Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer especie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barraco ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meu filhos dormimos sossegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas. 20 de julho Deixei o leito as 4 horas para escrever. Quando o astro-rei começou despontar eu fui buscar agua. Tive sorte! As mulheres não estavam na torneira. Enchi minha lata e zarpei (...) Fui no Arnaldo buscar o leite e o pão. Quando retornava encontrei o senhor Ismael com uma faca de 30 centimetros mais ou menos. Disse-me que estava a espera do Binidito e do Miguel para matá-los, que eles lhe expancaram quando ele estava embriagado.

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Ano de 1958 2 de maio de 1958 Eu não sou indolente. Há tempos que eu pretendia fazer o meu diario. Mas eu pensava que não tinha valor e achei que era perder tempo. ... Recebi intimação para comparecer as 8 horas da noite na Delegacia do 12. Começou a chover. Eu ia na Delegacia, ia levar o José Carlos. A intimação era para ele. O José Carlos está com 9 anos. 3 de maio Os meninos estão nervosos por não ter o que comer. 6 de maio ... O que eu aviso aos pretendentes a politica, é que o povo não tolera a fome. E preciso conhecer a fome para saber descrevê-la. 10 de maio Fui na delegacia e falei com o tenente. Que homem amavel! Se eu soubesse que ele era tão amável, eu teria ido na delegacia na primeira intimação. 11 de maio ... Ontem eu ganhei metade de uma cabeça de porco no Frigorifico. Comemos a carne e guardei os ossos. E hoje puis os ossos para ferver. Os meus filhos estão sempre com fome. Quando eles passam muita fome eles não são exigentes no paladar. 13 de maio É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. Nas prisões os negros eram os bodes expiatorios. Continua chovendo e eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. ... eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles vê as coisas de comer eles brada: - Viva a mamãe! 16 de maio Eu amanheci nervosa. Porque eu queria ficar em casa, mas eu não tinha nada para comer. 148

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17 de maio Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Nesse dia, um caminhão foi à favela e despejou latas de salsicha – estavam todas mofadas. 18 de maio Uma moradora morre. Chegou o carro para conduzir o corpo sem vida de Dona Maria José que vai para sua verdadeira casa propria que é a sepultura. 19 de maio ... Havia pessoas que nos visitava e dizia: - Credo, para viver num lugar assim só os porcos. Isto aqui é o chiqueiro de São Paulo. ... Eu estou começando a perder o interesse pela existência. Começo a revoltar. E a minha revolta é justa. Aqui na favela quase todos lutam com dificuldades para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só eu. E faço isso em prol dos outros. ... Deitei o João e a Vera e fui procurar o José Carlos. Telefonei para a Central. Fui falar com a Policia Feminina que me deu a noticia do José Carlos que estava lá na rua Asdrubal Nascimento. Foi lá, e o filho estava preso; várias mães chorando por seus filhos. Quando ele viu a mãe, ficou feliz. Olhou-me. E foi o olhar mais terno que eu já recebi até hoje. 21 de maio ... Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. 22 de maio Eu hoje estou triste. Estou nervosa. Não sei se choro ou se saio correndo sem parar até cair inconciente. É que hoje amanheceu chovendo. Eu não saí para arranjar dinheiro. Passei o dia escrevendo. ... o dinheiro não deu para comprar carne. A Vera é a única que reclama e pede mais. E pede: - Mamãe, vende eu para a Dona Julita, porque lá tem comida gostosa. Quarto de despejo

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27 de maio ... Percebi que no Frigorifico jogam creolina no lixo, para o favelado não catar a carne para comer. Não tomei café, ia andando meio tonta. A tontura da fome é pior do que a do alcool. A tontura do alcool nos impele a cantar. Mas a dor da fome nos faz tremer. 31 de maio ... Perguntei a uma senhora que vi pela primeira vez: - A senhora está morando aqui? - Estou. Mas faz de conta que não estou, porque eu tenho muito nojo daqui. Isto aqui é lugar para os porcos. Mas se puzessem os porcos aqui, haviam de protestar e fazer greve. 1 de junho Eu nada tenho que dizer da minha saudosa mãe. Queria que eu estudasse para professora. Foi as contigencias da vida que lhe impossibilitou concretizar o seu sonho. Mas ela formou o meu carater, ensinando-me a gostar dos humildes e dos fracos. 3 de junho ...Quando eu comecei escrever ouvi vozes alteradas. Era a Odete e o seu esposo que estão separados.. Brigavam porque ele trouxe outra mulher no carro que ele trabalha. Eu fui ver a briga. Agrediram a mulher que estava com o Alcino. Quatro mulheres e um menino avançaram na mulher com tanta violência e lhe jogaram no solo. A Marli saiu. Disse que ia buscar uma pedra para jogar na cabeça da mulher. Eu puis a mulher no carro e o Alcino e mandei eles ir-se embora. As mulheres da favela são horríveis numa briga. O que podem resolver com palavras elas transformam em conflito. Parecem corvos, numa disputa. 7 de junho Os meninos tomaram café e foram a aula. Eles estão alegres porque hoje teve café. Só quem passa fome é que dá valor a comida. 16 de junho ... Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de cir150

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cos. Eles respondia-me: - É pena você ser preta. O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém. 25 de junho Briga na favela. A Nair e a Meiry. A Nair é branca. A Meiry é preta. A Meiry é temida porque anda com gilete. E ela foi bater na Nair e apanhou. A Nair rasgou-lhe as roupas, deixando-lhe nua. Que gargalhada sonora. As crianças sorri e batem palmas como se estivessem aplaudindo. Atualmente as crianças não mais emocionam quando vê uma mulher nua. Já estão habituadas. As crianças acham que nas mulheres os corpos são iguais. A diferença é a cor. 30 de junho Mais uma briga entre marido e mulher na favela. Eu já estou na favela há 11 anos e tenho nojo de presenciar estas cenas. A Odete estava semi-nua com os seios a mostra. 1 de julho ... Eu percebo que se este Diário for publicado vai maguar muita gente. Tem pessoa que quando me vê passar saem da janela ou fecham as portas. Estes gestos não me ofendem. 8 de julho Foi um dia duro. Quando chegou a casa, uma senhora estava esperando-me. Disse-me que o João havia machucado a sua filha. Ela disse-me que o meu filho entou violentar a sua filha de 2 anos e que ela ia dar parte no juiz. Se ele fez isto quem há de interná-lo sou eu. Chorei. ... Deitei o José Carlos e saí com o João. Fui no juizado para saber se havia possibilidade de interná-lo. Preciso retira-lo da rua porque agora tudo que aparecer de mal vão dizer que foi ele. No Juizado o DR. Disse para eu voltar dia 10 que o dia 9 era feriado. Quarto de despejo

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9 de julho Dois meninos fugitivos “do Juiz” estavam na favela. Carolina deu-lhe roupas dos meninos dela. Queriam era tirar aquela camiseta amarela. Contaram-me os horrores do Juizado. Que passam fome, frio e que apanham ininterruptamente. Que se uma criança jogar fora o resto da comida do lixo, que eles obriga a criança catar e comer. Os meus filhos ficaram horrorisados com a narração dos fugitivos. Decidi não internar o João porque ele tem apetite. O que eu observei é que eles queriam livrar-se das roupas amarelas. 11 de julho Carolina está doente. A minha enfermidade é fisica e moral. 12 de julho Mas quem reside na favela não tem infância, juventude e maturidade. O meu filho, com 11 anos já quer mulher. Expliquei-lhe que ele precisa tirar o diploma de grupo. E estudar depois, que o curso primario é pouco. 15 de julho Hoje não vai ter almoço. Só jantar. 21 de julho Fui catar papel. Quando eu estava perto da banca de jornal tropecei e caí. Devido eu estar muito suja, um home gritou: - É fome! E me deram esmola. Mas eu caí porque estava com sono. 26 de julho Carolina leu no jornal que na favela havia infestação de “doença caramujo” (uma doença causada por caramujo que pode resultar em esquistossomose ou simplesmente barriga d’água e meningite. 2 de agosto Passei no Frigorifico, peguei uns ossos. As mulheres vasculham o lixo procurando carne para comer. E elas dizem que é para os cachorros. 152

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Até eu digo que é para os cachorros. 8 de agosto A Policia ainda não prendeu o Promessinha. Promessinha é da favela do Vila Prudente. Ele comprova o que eu digo: que as favelas não formam carater. A favela é o quarto de despejo. E as autoridades ignoram que tem o quarto de despejo. 11 de agosto Um menino de 9 anos, o Joãozinho, estava jogando pedra nas crianças. Carolina foi ver e verificou que ele estava bêbado. Um menino de 9 anos. O padrasto bebe, a mãe bebe e a avó bebe. E ele é quem vai comprar pinga. E vem bebendo pelo caminho. 2 de setembro Eu durmi. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vestido era amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E pegava as estrelas na mão para comtemplá-las. Quando eu despertei pensei: eu sou tão pobre. Não posso ir num espetaculo, por isso Deus envia-me estes sonhos, deslumbrantes para minh’alma dolorida. Ao Deus que me protege, envio os meus agradecimentos. 12 de outubro ... Houve briga aqui na favela porque o homem que está tomando conta da luz quer 30 cruzeiros por bico. A conta da água atinge só 1.100 e ele quer cobrar 25 de cada barracão. 28 de outubro A prostituição é a derrota moral de uma mulher. É como um edificio que desaba. 18 de dezembro – Dona Carolina, seu estou neste livro? Deixa eu ver! - Não. Quem vai ler isto é o senhor Audálio Dantas, que vai publicá-lo. 25 de dezembro O João entrou dizendo que estava com dor de barriga. Percebi que foi por ele ter comido melancia perto do rio. Quarto de despejo

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Não sei porque é que esses comerciantes inconscientes vem jogar seus produtos deteriorados aqui perto da favela, para as crianças ver e comer. Ano de 1959 1 de janeiro de 1959 Não fiz almoço. Não tem arroz. A tarde vou fazer feijão com macarrão. Os filhos não comeram nada. Hoje eu estou triste. 11 de janeiro Não estou gostando do meu estado espiritual. Não gosto da minha mente inquieta. O cigano está perturbando-me. Mas eu vou dominar esta simpatia. Já percebi que ele quando me vê fica alegre. E eu tambem. Eu tenho a impressão que eu sou um pé de sapato e que só agora é que encontrei o outro pé. O nome do cigano é Raimundo. Nasceu na capital da Bahia. Mas não usa peixeira. Ele parece o Castro Alves. Suas sobrancelhas unem-se. 3 de fevereiro Depois de 13 dias sem escrever por estar doente, Carolina volta a seu diário. Durante os dias que eu estive doente o senhor Manoel não me deixou sem dinheiro. ... O senhor Manoel disse-me que o cigano faz muito bem em seduzir as mocinhas de 14 anos. Elas dá confiança. Estes dias eu fiz umas poesias: “Não pensas que vais conseguir O meu afeto novamente O meu odio vai evoluir Criar raízes e dar semente.” 4 de maio Deixei o leito as 6 horas, porque o senhor Manoel quando dorme aqui não deixa eu levantar cedo. 4 de junho ... o senhor Manoel chegou. Agora eu estou lhe tratando bem, porque percebi que gosto dele. Passei vários dias sem vê-lo e senti 154

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saudades. A saudade é amostra do afeto. 8 de junho ... Quando cheguei e abri a porta, vi um bilhete. Conheci a letra do reporter (...) o bilhete dizia que a reportagem vai sair no dia 10 [de julho], no “Cruzeiro”. 10 de junho Carolina mandou que o filho fosse ver se, de fato, havia saído a reportagem. Saíra, com o título: “Retrato da favela no Diário da Carolina”. 11 de junho Quando circulava pelas ruas o povo abordava-me para dizer que havia me visto no O Cruzeiro. À noite, uma repórter foi até a casa de Carolina, disse-lhe que havia lido a reportagem de O Cruzeiro e queria levá-la ao “Diário” para conseguir auxílio a ela. Foram lá; ela fez fotografias. Prometeram-me que eu vou sair no Diário da Noite amanhã. 25 de junho ... Voltei para o meu barraco imundo. Olhava o meu barraco envelhecido. As tabuas negras e podres. Pensei: está igual a minha vida! Nesse dia, a luz do barraco de Carolina foi cortada, porque ela não pagou o tal Orlando Lopes, que explorava o povo da favela. 15 de julho Dia do aniversário de Vera Eunice. Ela pediu um bolo à mãe, mas Carolina não tinha dinheiro. 6 de agosto Hoje é o aniversário do José Carlos. 9 anos. Ele é de 1950. Mas ele quer ter 10 anos, porque quer namorar a Clarinda. Nesse dia, dona Terezinha Becker, uma senhora abastada, visitou Carolina e deu-lhe 500 cruzeiros. Ela disse que iria comprar um sapato para o José Carlos, porque o dele estava furado. Dona Terezinha é a minha mãe branca. 12 de agosto ... Troquei-me e fui receber o dinheiro da Vera. Quando cheguei no Juizado, o senhor J.A.M.V., o pai da Vera, não levou o dinheiro. Quarto de despejo

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O pai da Vera sempre pede para eu não por o nome dele no jornal. Que ele tem varios empregados e não quer ver o nome propalado. Ele está bem de vida e dá só 250 cruzeiros para a Vera. Ele só aparece quando eu saio nos jornais. Vem saber quanto eu ganhei. 26 de agosto Única inscrição: A pior coisa do mundo é a fome! 31 de dezembro Espero que 1960 seja melhor do que 1959. Sofremos tanto no 1959, que dá para a gente dizer: “Vai, vai mesmo!/ Eu não quero você mais./ Nunca mais.” Ano de 1960 1 de janeiro de 1960 Única inscrição: Levantei as 5 horas e fui carregar agua.

ANÁLISE DA OBRA A estrutura da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada é um livro em forma de diário, escrito por Carolina Maria de Jesus. A obra é uma compilação de diários escritos durante cinco anos da vida de Carolina, entre 1955 e 1960, e editados pelo jornalista Audálio Dantas, que fez uma seleção dentre as quase mil páginas escritas pela autora. Nessa seleção, escolheu os relatos dos anos 1955, 1958, 1959 e o primeiro dia de 1960. Os diários foram escritos em cadernos velhos encontrados nos lixos da cidade de São Paulo e, diferentemente dos diários confidenciais, esses registram e denunciam o cotidiano de miséria, fome e violência da protagonista, bem como o dos moradores da antiga favela do Canindé. São relatos que mostram a negligência do poder público para com a população menos favorecida socioeconomicamente; os conflitos entre 156

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os moradores da favela; a luta diária pela sobrevivência, pelo pão de cada dia; além de questões ligadas ao momento político da época.

A narração Como foi escrito em forma de diário, o livro é escrito em primeira pessoa.

Os limites entre a personagem e a escritora ou a vida imita a arte Inicialmente, vestibuland@, é importante que você faça uma distinção entre a autora e a personagem. Mas não é a mesma coisa? Não. Em toda obra literária, por mais que ela relate a sua realidade dos fatos, como é o caso da obra em estudo, existe o autor e a personagem (e às vezes um narrador), que podem ser pessoas diferentes ou a mesma pessoa, mas que ocupam papeis diferentes na narrativa – para ficar mais fácil de entender, imagine se a autora, Carolina de Jesus, estivesse escrevendo um diário de outra pessoa – no livro, Carolina cria uma personagem para falar de si. Ficou mais fácil agora? Então vamos lá. Por se tratar de um diário autobiográfico, temos de conhecer bem quem foi a autora para compreender sua personagem – as duas se fundem obviamente, não há como desvincular a autora da narradora do diário, mas é preciso entender que o foco narrativo é uma criação literária. Carolina Maria de Jesus, como vimos no início deste estudo, é mineira, estudou apenas dois anos na escola, onde aprendeu a ler e a escrever e veio tentar a vida em São Paulo com um pouco mais de trinta anos. Trabalhava como doméstica e morava na extinta favela do Canindé, a maior favela paulista. Nunca se casou, por opção; a vida fê-la descrer em um relacionamento homem-mulher, mas tinha três filhos pequenos, um de cada pai: João José, José Carlos (cujos pais não conhecemos) e Vera Eunice (filha de um empresário o qual ela não revela o nome em seu diário a pedido dele, pois era casado e constituía família). Quarto de despejo

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A luta constante de Carolina era pela sobrevivência dela e dos filhos; tornara-se catadora de papel, metal e de qualquer outro material que pudesse vender em depósitos de reciclagem. Como nem sempre conseguia dinheiro para comer – por várias vezes manifesta que sua felicidade estava em ver os filhos alimentados, mas isso nem sempre era possível –, em algumas ocasiões, catava comida nos lixos e levava para casa, e sempre ia no frigorífico catar ossos para cozinhar, fazer sopa, enfim, para dar um gosto à comida. “O custo de vida nos obriga a não ter nojo de nada. Temos que imitar os animais.” (p. 100); Era no lixo que Carolina achava também os cadernos que escrevia seus relatos, poemas e canções.

O barraco Carolina e os filhos moravam em um barraco muito precário e pequeno, cujo telhado era feito de papelões que apodreciam e, consequentemente, deixavam a água da chuva passar. Não havia a menor infraestrutura, como água encanada, saneamento, esgoto e estava cheio de pulgas. Sobre a energia elétrica, havia um homem que explorava todos os moradores das favelas, cobrando pelos “gatos” e quem não pagasse as taxas que ele estipulava, tinha sua luz cortada – foi o caso de Carolina. Água somente do poço. No diário, temos o registro de que todas as manhãs ela se acordava entre quatro e cinco horas para ir pegar água do poço – ia nesse horário para não encontrar as moradoras: “Deixei o leito as 5 e meia para pegar agua. Não gosto de estar entre as mulheres porque é na torneira que elas falam de todos e de tudo” (p. 80)

Morar na favela Sobre morar na favela, eis seu inferno: odiava aquele lugar, não se via pertencente àquele mundo, apesar de toda a sua pobreza. Queria uma casa para morar, longe dali. 158

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Não gostava das pessoas e nem as pessoas dela: “Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens. (...) Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.” (p. 22) Além disso, em suas discussões, ela ameaçava sempre os vizinhos de que iria colocá-los em seu livro: “Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradaveis me fornece os argumentos.” (p. 20) Sendo hostilizada pelos moradores da favela, a narradora conta que, muitas vezes, seus filhos eram maltratados e perseguidos por eles – um deles, o João, chegou a ser acusado de tentar violentar uma menina. Carolina descreve, por fim, que muitas vezes se metia nas brigas dos moradores, como uma forma de tentar corrigir injustiças que ela via, mas era chamada de “fedida” pelos outros.

A rotina A rotina de Carolina, narrada no diário, não modifica muito: acordar cedo para ir pegar água no poço, catar papel, fazer comida, ler, escrever e dormir (e quase sempre acordar de madrugada com barulho de vizinhos).

O ato de ler e escrever Mesmo tendo praticamente dois anos de estudo, Carolina se apropriou da escrita e utilizou-se dela como uma forma de resistência à ignorância e, depois, como ascensão social: “Mesmo elas me aborrecendo, eu escrevo. Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu caráter. A única coisa que não existe na favela é solidariedade.” (p. 17) A escrita e a leitura eram, para ela, uma forma de fugir da realidade: “Deixei o leito as 3 da manhã (...) para escrever. Enquanto escrevo, vou Quarto de despejo

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pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes (...) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela.” (p. 58) Além do escapismo, ler e escrever eram um vício: “Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.” (p. 24)

A intertextualidade Por ser uma pessoa de muitas leituras, percebe-se a intertextualidade literária no diário de Carolina – aqui é interessante verificar a oposição entre a escrita coloquial, popular e a erudita, pertencentes à mesma personagem: “Parece que este cigano quer hospedar-se no meu coração (...). Ele parece o Castro Alves. Suas sobrancelhas unem-se.” (p.134). Em outra ocasião, ela observa sua filha Vera Eunice: “E eu pensei no Casimiro de Abreu que disse: ‘A vida é bela. Ri, criança’. Só se a vida era boa naquele tempo. Porque agora a época está apropriada para dizer: Chora criança. A vida é amarga.” (p.32).

Do anonimato ao reconhecimento Em seus relatos, Carolina indica que conheceu um jornalista, Audálio Dantas, em 1958, que iria fazer uma reportagem na favela, mas que ficou muito interessado em seus escritos. Ele percebeu que a literatura da moça da favela era em tom de denúncia, algo inédito: a visão da favela de dentro da favela. Assim, alguns trechos de seus diários foram publicados no jornal Folha da Noite (em 1958) e na revista O Cruzeiro (1959). Mais tarde, os relatos foram reunidos em um livro, Quarto de despejo, o diário de uma favelada, lançado pela Editora Francisco Alves em 1960 (Prefácio – Quarto de despejo) 160

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A reação de Carolina também está registrada no diário. “Quando cheguei e abri a porta, vi um bilhete. Conheci a letra do reporter (...) o bilhete dizia que a reportagem vai sair no dia 10 [de julho], no “Cruzeiro”. Que o livro vai ser editado. Fiquei emocionada.” (p. 170) “O João quando retornou disse que a reportagem havia saido.” (p. 171) Ela pediu dinheiro emprestado e mandou que o filho fosse comprar a revista. “O meu coração ficou oscilando igual as molas de um relógio. O que será que eles escreveram a meu respeito? Quando o João voltou com a revista, li – “Retrato da favela no Diário da Carolina”. Li o artigo e sorri.” (p. 171) Depois, ela recebeu a visita de outra jornalista que queria levá-la ao jornal Diário da noite: “Na redação, eu fiquei emocionada (...) a realidade é muito mais bonita que o sonho. Depois fomos na redação e fotografaram-me (...) Prometeram-me que eu vou sair no Diário da Noite. Eu estou tão alegre! Parece que a minha vida estava suja e agora estão lavando.” (p. 173) – se você reparar nas datas, existe algum equívoco, pois o jornalista indica datas diferentes das que Carolina escreveu em seu diário para a publicação na revista e no jornal – ela escreve que no dia 10 de junho de 1959 saiu a reportagem na revista O Cruzeiro e, mais tarde, no Diário da Noite. Já o jornalista dá a indicação de outro jornal: Folha da Noite e a data de 1958 – pesquisei, mas não consegui chegar a um veredito, pois não tive acesso aos jornais e os dois nomes eram jornais da época: Folha da Noite e Diário da Noite. Isso não vai comprometer a prova da UFSC, certamente; o mais provável é que as datas e nome do jornal dados pelo jornalista é que estejam corretos. O livro alcançou um número de vendas extraordinário, cerca de 100 mil exemplares, e foi traduzido em treze idiomas e vendido em mais de quarenta países. Renomados escritores, como Rachel de Queiroz, Sérgio Milliet e Manuel Bandeira, também se posicionaram sobre os escritos da autora. “Os jornais, as revistas, o rádio e a televisão, primeiro aqui e depois no mundo inteiro, abriram espaço para o livro e para a história de sua Quarto de despejo

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autora (...) transformada de um dia para outro numa patética Cinderela, saída do borralho do lixo para brilhar intensamente sob as luzes da cidade.” (Prefácio – Quarto de Despejo)

A mulher Carolina Carolina não era uma mulher vaidosa, ao contrário, vivia suja, quase não tomava banho (Já habituei-me a andar suja. Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela. – 1955), às vezes andava descalço, era chamada de “negra fidida” pelos moradores da favela, enfim, a rotina de catadora de lixo não lhe permitia esses “luxos”; chegou ao ponto de que não mais existia, mas resistia. Era mulher, negra, favelada, mãe solteira e desempregada. Apesar de todo o preconceito a que era submetida, orgulhava-se de sua cor e de seu cabelo: “Esquecendo eles que eu adoro a minha pela negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça e ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reencarnação, eu quero voltar sempre preta.” (p. 58). Carolina tinha seus atrativos: era uma mulher boa e inteligente; não se casara por opção; e dizia não sentir nem um pouco de inveja das mulheres que tinham marido, pois elas, em sua maioria, na favela, sofriam violência doméstica: “Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas.” (p. 17) “- Eu tenho muito serviço. Não posso preocupar com homens. Meu ideal é comprar uma casa decente para os meus filhos. Eu, nunca tive sorte com homens. Por isso não amei ninguem. Os homens que passaram na minha vida só arranjaram complicações para mim. Filhos para eu criá-los.” (p. 189) Em seus relatos, a narradora menciona dois homens nesses últimos tempos que fizeram parte de sua vida e que queriam casar com ela: 162

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um, trabalhador, o senhor Manoel, e outro, um cigano muito bonito e charmoso, mas que era de índole duvidosa – a respeito desse último, ela chega a se deixar apaixonar, mas depois vê que ele não era de confiança. No entanto, o que fica bem evidente é que ela prefere seus livros ao casamento e que, subversiva que era, jamais irá deixar de cultivar o hábito de ler e escrever por causa de homem: “O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal.” (p. 44) Sobre seu aspecto físico, ela nota seu declínio: “Hoje fui me olhar no espelho. Fiquei horrorizada. O meu rosto é quase igual ao de minha saudosa mãe. Eu estou sem dente. Magra. Pudera! O medo de morrer de fome.” (p. 175) “Já emagreci 8 quilos. Eu não tenho carne, e o pouco que tenho desaparece. Peguei os papeis e saí. Quando passei diante de uma vitrine vi o meu reflexo: Desviei o olhar, porque tinha a impressão de estar vendo um fantasma.” (p. 182) “O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa casa confortável, mas não é possível. Eu estou descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir na favela.” (p. 19)

A violência na favela A violência, na obra, aparece em todos os sentidos: física, moral, psicológica, violência doméstica, violência de gênero, violência racial. Para cada uma delas, apresenta-se uma situação rotineira dos moradores da favela. O problema do alcoolismo é bem ressaltado na favela; por causa dele, dão-se brigas entre amigos, brigas familiares e conjugais. Quarto de despejo

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“O barulho noturno que ouvi: as mulheres estavam comentando que os homens beberam 14 litros de pinga. E a Leila insultou um jovem e ele espancou-a. Lhe jogou no solo e deu um ponta-pé no rosto. O ato é selvagem, mas a Leila quando bebe irrita as pessoas. Ela já apanhou até do Chiclé um preto bom que reside aqui na favela. Ele não queria espancá-la, mas ela desclassificou-lhe demais. Ele deu-lhe tanto que até arrancou-lhe dois dentes.” (p. 86) As brigas conjugais e espancamentos são rotineiros. As mulheres saem nuas de seus barracos pedindo socorro, pois seus maridos querem matá-las- e tudo isso sendo testemunhado pelas crianças, que aprendem sobre o corpo humano: “Atualmente as crianças não mais emocionam quando vê uma mulher nua. Já estão habituadas. As crianças acham que nas mulheres os corpos são iguais. A diferença é a cor.” (p. 72) Carolina também era frequentemente vítima de brigas. “Um dia eu discutia com a Leila. Ela e o Arnaldo puzeram fogo no meu barracão. Os vizinhos apagaram.” (p. 52) A violência moral é muito frequente; e uma das cenas que mais choca no livro é a morte de um “pretinho bonitinho” que Carolina encontra em um lixão. Ele estava catando carne podre; ela tenta convencê-lo a não comer aquilo; em sua bondade, ele reparte com ela, que aceita a oferta apenas para não “maguá-lo”. Ela vê a cena com uma dor na alma indescritível. “No outro dia encontraram o pretinho morto. Os dedos do seu pé abriram. O espaço era de vinte centímetros. Ele aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé parecia leque. Não trazia documentos. Foi sepultado como um qualquer. Ninguem procurou saber seu nome. Marginal não tem nome”. Também a maldade humana a partir do descaso com o outro é relatado por Carolina: uma das moças da favela foi pedir esmolas em uma casa; a dona prontamente deu-lhe um pacote fechado. Já em casa, quando ela foi abrir, havia vários ratos mortos. Outra vez foi com os filhos de Carolina, “ganharam uns pães duro, mas estava recheado com pernas de barata.” (p. 99) E assim a maldade humana perpetua... 164

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Outro relato por conta da violência que não distingue crianças de adultos foi o ocorrido com o filho José Carlos. Uma costureira, moradora da favela, a quem Carolina ajudava sempre que podia, certa vez jogou água fria no menino. Quando Carolina a encontrou, perguntou-lhe por que fizera aquela maldade e obteve a seguinte resposta: “ – Eu joguei fria. Mas se ele me aborrecer outra vez eu quero jogar é água quente com soda para ele não enchergar mais e não aborrecer mais ninguém.” (p. 79) A narradora relata, por fim, alguns furtos e roubos dentro da favela, acerto de dívidas, brigas por causa de mulheres, linchamentos, mortes de crianças por causa da fome ou desleixo dos próprios pais, enfim, problemas de quem é totalmente desamparado pelo Estado. “As mulheres da favela são horríveis numa briga. O que podem resolver com palavras elas transformam em conflito. Parecem corvos, numa disputa.” (p. 50)

O suicídio, produto do desânimo A morte e o suicídio são constantes nos relatos de Carolina. Durante a narrativa, muitas vezes o desânimo toma conta da personagem, por viver constantemente na luta e não ter o que dar de comer aos filhos, que ela pensa frequentemente em cometer suicídio. “Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó.” (p. 174) “Eu estou começando a perder o interesse pela existência. Começo a revoltar. E a minha revolta é justa.” (p. 35) “Como é horrível levantar de manhã e não ter nada para comer. Pensei até em suicidar. Eu suicidando-me é por deficiência de alimentação no estomago. E por infelicidade eu amanheci com fome.” (p. 99) Mas, a esperança sempre teima em aparecer, e é ela quem posterga a morte: “Eu sou muito alegre. Todas as manhãs eu canto. Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer. De manhã eu estou sempre alegre.” (p. 25) Quarto de despejo

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A fome A fome é uma temática muito recorrente nos relatos de Carolina, a qual a classificou de “amarela”. A fome é amarela e está presente todos os dias na vida da narradora. Aliás, palavras como pão, água, café, gordura aparecem quase todos os dias e sempre acompanhadas pela palavra “fome”. “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!” (p. 32) Muitas vezes, Carolina se sente doente e fraca por falta de comida: “Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou aos meus olhos. A comida no estômago é como combustível nas máquinas. Passei a trabalhar mais depressa. Meu corpo deixou de pesar. […] Eu tinha a impressão que eu deslizava no espaço. Comecei a sorrir como se eu estivesse presenciando um lindo espetáculo. E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer? Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida.” (p. 36) Mas, na maioria das vezes, a angústia de Carolina é maior por não conseguir alimentar os filhos e quando consegue, emociona-se ao ver a felicidade estampada nos rostos dos filhos. “É quatro horas. Eu já fiz almoço- hoje foi almoço. Tinha arroz, feijão e reponho e linguiça. Quando eu faço quatro pratos penso que sou alguém. Quando vejo meus filhos comendo arroz e feijão, o alimento que não está no alcance do favelado, fico sorrindo atôa. Como se eu estivesse assistindo um espetáculo deslumbrante. “ (p. 44).

O espaço da narrativa: a favela O espaço da narrativa é a extinta Favela do Canindé, localizada às margens do Rio Tietê, em São Paulo. “O cenário em que foi escrito o diário já não é o mesmo. Parte dele deu lugar ao asfalto de uma nova avenida, 166

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por coincidência chamada Marginal. A Marginal do Tietê, que passa por ali onde até meados dos anos 1960 se erguia o caos semiurbano e subumano da favela do Canindé.” (Prólogo – Quarto de despejo) Como a narrativa segue até o primeiro dia de 1960 (ano em que foi destruída), o diário relata rumores entre os moradores de que iriam acabar com a favela e, consequentemente, o medo de não terem para onde ir. ” – Fui ver a filmagem do documentário do Promessinha [um bandido de outro favela, mas que fizeram as filmagens ali]. Pedi os nomes dos diretores do filme para por no meu diário (...) As mulheres da favela perguntavam-me: – Carolina, é verdade que vão acabar a favela? –Não. Eles estão fazendo uma fita de cinema.” (p. 189) A favela é apresentada pela narradora como uma analogia ao quarto de despejo: “A favela é o quarto de despejo. E as autoridades ignoram que tem o quarto de despejo.” (p. 107) Quando chegou a São Paulo, a favela foi o único lugar em que ela conseguiu se abrigar. Morava na rua A, barraco nº 9; sua casa foi construída com os restos de tábua e materiais de uma construção que havia ali próximo. Mas ela odiava aquele lugar. “Credo, para viver num lugar assim só os porcos. Isto aqui é o chiqueiro de São Paulo.” (p. 35) E diversos são os relatos do submundo anunciado por Carolina: “Cheguei ao inferno. Devo incluir-me, porque eu também sou da favela. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quart de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo.” (p. 33) “As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos: que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. (p. 37) “... Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos”. (p. 28) Quarto de despejo

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“Quando vou a cidade tenho a impressão que estou no paraizo. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da America do Sul está enferma. Com ulceras. As favelas. Aqui nesta favela a gente vê coisa de arrepiar os cabelos. A favela é uma cidade esquisita e o prefeito daqui é o Diabo [...] Percebo que todas as pessoas que residem na favela, não aprecia o lugar.” (p. 85-91). Carolina, como forma de consolo, acredita na justiça divina, tem esperança de uma vida melhor. Na verdade, ela não se sentia uma favelada, ela “estava” favelada, e isso fazia com que ela conseguisse ver de fora a situação: “... Cheguei na favela: eu não acho jeito de dizer cheguei em casa. Casa é casa. Barracão é barracão (p. 48). Estou residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. Espero que os políticos estingue as favela (p. 21). Se pudesse mudar desta favela! Tenho a impressão que estou no inferno.” (p.28) Em outro contexto, ao lembrar da mãe, que lhe ensinou a gostar dos humildes, ela diz: “é por isso que eu tenho dó dos favelados” (p. 49), ou seja, a favela não era o espaço dela. E são muitos os estranhamentos entre Carolina e os demais moradores da favelas, porém, o maior deles é, sem dúvida, o livro, elemento que não só lhe dava a possibilidade de ascensão social e econômica, mas que também representava sua luta contra o rebaixamento a que aquele povo era submetido, mesmo com toda a economia favorável ao Estado. Com Carolina, essa possibilidade do “ver de fora da cena” acontecia não só com o espaço da favela, mas também em relação aos seus moradores e, muitas vezes, ela se incluía: “Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado marginais. Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos.” (p. 54) 168

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“Os favelados comem quando arranjam o que comer.” (p. 35) “Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado.” (p. 42) “Aqui na favela quase todos lutam com dificuldades para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só eu. E faço isso em prol dos outros [...] Antigamente, isto é de 1950 até 1956, os favelados cantavam. Faziam batucadas. 1957, 1958, a vida foi ficando causticante. Já não sobra dinheiro para eles comprar pinga. As batucadas foram cortando até extinguir-se.” (p. 37) Interessante, porém, observar que a favela nunca saiu de Carolina, pois quando ela lançou seu livro e se mudou dali, a imprensa e a população em geral a reconhecia como “a escritora da favela”. A partir do momento em que ela se mudou do barro para o asfalto (que conseguiu comprar sua casa própria), Carolina foi abandonada, ou seja, o que interessava para a mídia era a favela. E até os dias atuais, o assunto chama a atenção, mas está muito longe de ser amenizado.

O tempo da narrativa: o momento histórico e político A narrativa tem início em 15 de julho de 1965 e término em 01 de janeiro de 1960. No diário de Carolina, percebem-se várias menções a momentos sociais e políticos em que vivia o Brasil à época. A década de 1950 foi marcada historicamente pelo lema “50 anos em 5”, do então presidente da República, Juscelino Kubistchek, que visava à modernização das cidades, à construção de Brasília (que foi concluída em 1960) e à esperança de uma política “mais justa e igualitária”. E é exatamente o contrário disso tudo que Carolina mostra em seu diário. Enquanto São Paulo se modernizava, preocupava-se com a industrialização que objetivava o progresso, uma parcela da população continuava vivendo na mais pura miséria; a urbanização acabou trazendo muitos problemas sociais que o Estado foi incapaz de resolver. E Carolina relatou muito bem essa questão: Quarto de despejo

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“Mas eu já observei os nossos políticos. Para observá-los fui na Assembleia. A sucursal do Purgatorio, porque a matriz é a sede do Serviço Social, no palácio do Governo. Foi lá que eu vi ranger os dentes. Vi os pobres sair chorando. E as lágrimas dos pobres comove os poetas (...) os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as trajedias que os politicos representam em relação ao povo.” (p. 53) Alguns políticos também são citados no diário: o próprio Kubistchek, Jânio Quadros, Carlos Lacerda, Adhemar Pereira de Barros (prefeito da cidade de S. Paulo entre 1957 e 1961 e duas vezes governador, entre 1947 e 1951 e de 1963 a 1966) e demais políticos tratados de uma maneira geral, sem nomes. “Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos.” (p. 33) “O que o senhor Juscelino tem de aproveitável é a voz. Parece um sabiá e sua voz é agradável aos ouvidos. E agora, o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catête. Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola de ouro que é o Catête. Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Tem fome.” (p. 35) “Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria?” (p. 39) “De quatro em quatro anos muda-se os politicos e não soluciona a fome, que tem a sua matriz nas favelas e as sucursais nos lares dos operarios.” (p. 40) As modificações urbanas junto à expectativa de uma vida melhor provocaram também o inchamento das cidades. O êxodo rural acaba ocasionando a favelização das grandes cidades. Carolina faz diversas menções aos “baianos”, forma como ela se referia aos nordestinos em 170

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geral que habitam a favela (e que não eram poucos): “Hoje brigaram aqui na favela. Brigaram por causa de um cachorro. A briga foi com uns baianos que só falavam em peixeiras.” (p. 53) A descrença (a mesma que sentimos hoje) nos políticos, aos olhares de Carolina vem em um desabafo: “- Não, meu filho. A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os politicos fraquissimos. E tudo que está fraco, morre um dia.” (p. 39)

A linguagem A linguagem utilizada em todo o diário é simples e coloquial (não podia ser diferente, tendo em vista que sua escritora estudou apenas durante dois anos de sua vida), e foge à norma padrão da língua portuguesa. Mas isso não desmerece a obra, muito pelo contrário, a escrita de Carolina demonstra a realidade e, muitas vezes, de forma poética (Clarice Lispector, a respeito da obra de Carolina de Jesus, disse certa vez que ela escrevia a verdade ou escrevia de verdade). Temos aí, o relato de uma semianalfabeta, autodidata que mostra uma visão acurada de mundo, e que tinha na leitura um prazer – “o livro é o melhor amigo do homem” (e tem gente aí que tem bastante estudo, tem uma situação financeira razoável, não trabalha, tem preguiça de ler e escreve mal pra caramba... não tô falando de ti, não quirid@, não fica vremelho, não, ô ixtepô).

O título e as metáforas Apesar de trabalhar uma linguagem oral e coloquial que indica a origem social da escritora, há muitas passagens em que se pode verificar traços de uma leitora assídua e muito bem informada. A presença de figuras de linguagem é constante na obra, em especial, da metáfora, que já inicia a partir de seu título: “Quarto de despejo”, Quarto de despejo

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referindo-se à favela. Mas o que é um quarto de despejo? É aquele quartinho que existe lá no fundo da casa, às vezes até fora da própria casa, que a gente tem vergonha de mostrar para as visitas, pois tudo é uma bagunça, às vezes sujo, com objetos quebrados, velhos, sem utilidade (ou seja, é o atualíssimo “quarto de jogos” – aquele em que jogamos tudo o que não é tão importante assim, ou que não pode ficar à mostra, na sala de visitas). Exatamente assim são descritos a favela e seus moradores, por Carolina. “... Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.” E assim, também, a favela e seus moradores são vistos pelos políticos, que só vão lá quando possuem interesse – em momento eleitoral – fora isso, eles devem ser escondidos, jogados à margem, tirados das vistas do resto do país e dos turistas – “Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela/ só vejo paisagem muito linda e muito bela...” diz a letra da música “Eu só quero é ser feliz”, de autoria de Cidinho e Doca, não da época, mas que condiz com a realidade de Quarto de despejo. Outras metáforas e figuras de linguagens aparecem também na obra, veja algumas: “Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado.” (p. 41) “Quando puis a comida o João sorriu. Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia.” (p. 43) “Todas as lambanças que pratica os favelados, estes projetos de gente humana. “ (p. 23) “Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer.” (p. 25) 172

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“O céu está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido.” (p. 32) “Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê seu povo oprimido.” (p. 39) “A comida no estomago é como o combustivel nas maquinas.” (p. 44) “O pão atual fez uma dupla com o coração dos políticos. Duro, diante do clamor público.” (p. 53) “A cidade é um morcego que chupa o nosso sangue.” (p. 182)

O quarto é aberto à cultura Após a publicação em forma de livro, Quarto de despejo originou outras manifestações artísticas, a saber: “Quarto de Despejo”, um samba composto por B. Lobo; “Eu te arrespondo Carolina”, livro de Herculano Neves; adaptação para o teatro em peça de Edy Lima; “Despertar de um sonho”, filme da televisão alemã tendo a própria Carolina como protagonista (ainda inédito no Brasil); episódio da série “Caso Verdade”, exibida pela Rede Globo de Televisão, no ano de 1983; “Carolina, uma biografia” (2018), de Tom Farias, pela Editora Malê. Também na internet, você tem acesso a vários vídeos de estudos sobre Carolina de Jesus e sua obra – pesquise no youtube.

EXERCÍCIOS 1. Assinale a(s) opção(ões) correta(s) em relação a obra Quarto de despejo: diário de uma favelada e o estilo de sua autora. Quarto de despejo

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01. O diário escrito por Carolina representa a voz dos excluídos e marginalizados por questões sociais e étnicas. 02. Ambiente marcado pela extrema pobreza, o Canindé crescia às margens do Tietê com a chegada de nordestinos, sem-tetos, e toda a sorte de pessoas que aumentavam o número de barracões e as fileiras de desvalidos vivendo em condições subumanas na capital paulista. Entre eles vivia a mineira Carolina com seus três filhos pequenos. 04. No Canindé, Carolina era odiada e temida pelas pessoas da favela, pois em suas discussões com os vizinhos sempre ameaçava de colocá-los no livro que escrevia. 08. Carolina sempre se refere à cor preta para indicar a fome, a miséria. Em várias passagens, diz que o preto representava esse problema e os compara a sua cor. Um episódio bem interessante é quando ela se refere à cor preta da camiseta dos meninos que fugiram do Juizado de Menores. 16. Quarto de Despejo é a compilação dos diários de 1955, 1958, 1959 e um dia de 1960, quase sem nenhuma alteração do texto original. Por isso, esse é um livro carregado pela oralidade de Carolina, com erros ortográficos e de concordância que preservaram a forma estética original do seu discurso. 2. Verifique as proposições corretas e faça o somatório a respeito da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada. 01. Ao final da história, Carolina acaba morando com Raimundo, o Cigano, que era um homem sério e trabalhador. 02. O livro conta também como, pelo seu jeito de ser e agir, Carolina era hostilizada pelas mulheres que ela criticava; fala sobre as implicâncias e perseguições sofridas por seus filhos que, muitas vezes, eram vítimas de maus-tratos por parte dos moradores e até mesmo de como um de seus meninos chegou a ser acusado de assediar uma garota menor do que ele. 04. Quarto de Despejo ilustra muito bem a realidade que fez Carolina 174

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denominar a favela com esse termo (quarto de despejo) ao demonstrar na narração do cotidiano a atitude dos políticos em relação à comunidade, a opinião dos moradores dos bairros mais próximos da favela que consideravam os favelados como indesejados, e, sobretudo, na precariedade da vida daquelas pessoas. 08. A narrativa do diário não se restringe à favela e descreve igualmente as dificuldades de Carolina para alimentar sua família como mãe solteira e da sua convicção em não depender de homem algum. 16. Pode-se afirmar que Carolina exerce dois papeis em Quarto de Despejo: o de autora e o de personagem. No entanto, na obra, a personagem difere da vida real, pois na obra ela acaba morrendo na favela e, na vida real, ela morre em um pequeno sítio que comprara com a venda de seu livro Quarto de Despejo. 3. Faça o somatório das questões verdadeiras. 01. Para Carolina de Jesus, a favela não é parte da cidade, mas sim uma úlcera na mesma. Por mais que o cenário e as perspectivas com relação às favelas mudem, elas ainda seguem em sua condição de degradação do sujeito. 02. Há uma efetiva imposição social aos negros para que não tentem mudanças nas suas condições de vida, como se pode ver em várias frases do diário de Carolina. Em uma delas, a mais grave e explícita, a escritora relata ter sido chamada na rua de “negra fidida”, demonstrando as duas faces da discriminação encontrada na sociedade brasileira, a subentendida e a escancarada e agressiva. 04. Dos vinte cadernos de Carolina, o jornalista Audálio Dantas selecionou os trechos mais significativos, e publicou, em 1960, o que seria o Quarto de Despejo. Segundo ele, foi mantida a fidelidade linguística do texto de Carolina, que muitas vezes contraria a gramática, mas que por isso mesmo traduz com realismo a linguagem da autora. 08. Carolina de Jesus apresenta uma linguagem híbrida que recorre à tradição literária e ao código escrito culto, utilizando-se em parte, Quarto de despejo

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de suas formas e gêneros, e simultaneamente, faz migrar formas de expressão e de vida populares e proletárias para o interior de suas narrativas. 16. Quarto de Despejo ilustra muito bem a realidade que fez Carolina denominar a favela com esse termo ao demonstrar na narração do cotidiano a atitude dos políticos em relação a comunidade, a opinião dos moradores dos bairros mais próximos da favela que consideravam os favelados como indesejados, e, sobretudo, na precariedade da vida daquelas pessoas. 4. Indique a(s) opção(ões) correta(s) sobre a obra Quarto de despejo: diário de uma favelada. 01. Carolina, para matar a fome dos filhos e dela própria, trabalha catando o lixo da cidade, como latas, papéis, papelões, ferros velhos, sucatas, enfim, materiais que podiam ser trocados por comida ou dinheiro (para comprar comida). Muitas vezes, até mesmo comida do lixo a personagem era obrigada a pegar para comer com os filhos. 02. No fragmento: “Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer.”, temos uma metáfora no trecho assinalado. 04. O problema do alcoolismo na comunidade também tem importante espaço no relato de Carolina. O álcool ligado muitas vezes às brigas conjugais, familiares e entre moradores, é normalmente combustível para violência física ou verbal na comunidade, ensejando em contextos de crimes e problemas graves de saúde. 08. Em: “Está chovendo. Fiquei quase louca com as goteiras nas camas...” o trecho assinalado indica uma hipérbole. 16. O título, Quarto de Despejo, é uma alusão à metáfora que a autora utiliza em algumas oportunidades para expressar a posição da favela e de seus moradores em relação à cidade. 5. Tendo como base a obra Quarto de despejo: diário de uma favelada e o fragmento contido no Texto I, faça o somatório das 176

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questões verdadeiras. Texto I 19 de julho de 1955 ... Nas favelas, as jovens de 15 anos permanecem até a hora que elas querem. Mescla-se com as meretrizes, contam suas aventuras (...) Há os que trabalham. E há os que levam a vida a torto e a direita. As pessoas de mais idade trabalham, os jovens é que renegam o trabalho. Tem as mães, que catam frutas e legumes nas feiras. Tem as igrejas que dá pão. Tem o São Francisco que todos os meses dá mantimentos, café, sabão, etc. ... Elas vai na feira, cata cabeça de peixe, tudo que pode aproveitar. Come qualquer coisa. Tem estomago de cimento armado. ... Estou na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. Espero que os políticos extingue as favelas. Há os que prevalecem do meio em que vive, demonstram valentia para intimidar os fracos. Há casa que tem cinco filhos e a velha é quem anda o dia inteiro pedindo esmola. Há as mulheres que os esposos adoece e elas no penado da enfermidade mantem o lar. Os esposos quando vê as esposas manter o lar, não saram nunca mais. (...) O dia de hoje me foi benefico. As rascoas da favela estão vendo eu escrever e sabe que é contra elas. As intrigas delas é igual a de Carlos Lacerda que irrita os nervos. Mas eu sou forte! Não deixo nada imprecionar-me profundamente. Não me abato. (JESUS, Carolina de Quarto de despejo: diário de uma favelada, 1960, p. 19-21)

01. No fragmento “Tem estomago de cimento armado.”, a autora se utiliza de linguagem figurada para indicar que o estômago dos favelados é forte e que suporta qualquer tipo de comida às vezes, até Quarto de despejo

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mesmo a comida vencida que os caminhões jogam à beira do rio Tietê. 02. No fragmento, a narradora indica os vários tipos de moradores que existem na favela, dentre eles “os que prevalecem do meio em que vive, demonstram valentia para intimidar os fracos”. No contexto, esse tipo de morador é aquele que se aproveita do ambiente da favela para disseminar a violência. 04. No trecho “Espero que os políticos extingue as favelas.”, a narradora expressa o desejo de que os políticos ajudem as pessoas; extinguir a favela aparece no sentido de que deveria ser destinadas moradias decentes ao povo. Isso ocorre bem no final do livro, quando há rumores de que a favela será extinta, mas que todos os moradores serão indenizados. 08. A escrita de Carolina de Jesus está associada ao coloquialismo e à oralidade; o jornalista que editou a obra da autora manteve essa linguagem, a fim de dar mais realismo à obra. Assim, o fragmento assinalado no trecho: “Há as mulheres que os esposos adoece e elas no penado da enfermidade mantem o lar.” , se grafado em linguagem culta, deve ser escrito: “Há as mulheres cujos os esposos adoecem”. 16. Os vocábulos “benefico”, “estomago” e “rascoas”, segundo a norma culta da gramática, deveriam ser acentuados por se tratarem de palavras proparoxítonas. 32. Na favela, o aparato repressor do Estado, através da rádio patrulha, intervém nos conflitos de maneira quase sempre neutralizadora, ou seja, encaminhando pessoas para a prisão ou detenção nas delegacias. 6. (UFRGS 2018) Sobre o livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, assinale com V (verdadeiro) ou F (falso) as seguintes afirmações. (( ) A história, estruturada em forma de diário, abarca cinco anos da vida de Carolina, que, segundo a narradora, suporta sua rotina de fome 178

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e violência através da escrita. (( ) A autora produz uma narrativa de grande potência, apesar dos desvios gramaticais presentes no texto. (( ) A narradora reflete sobre desigualdade social e racismo. A força do texto está no depoimento de quem sente essas mazelas no corpo e ainda assim se apresenta como voz vigorosa e propositiva. (( ) O livro, relato atípico na tradição literária brasileira, nunca obteve sucesso editorial, permanecendo esquecido até os dias de hoje. A sequência correta de preenchimento dos parênteses, de cima para baixo, é a) F – V – F – F b) V – F – V – V c) V – F – F – V d) V – V – V – F e) F – V – V – V.

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OS MILAGRES DO CÃO

JERÔNIMO


OS MILAGRES DO CÃO JERÔNIMO Autor: Péricles Prade Escola literária: Literatura Pós-Moderna – SC Ano de publicação: 1971 Gênero: Contos fantásticos Divisão da Obra: 15 contos Temática: Realismo fantástico – ocultismo, mistério, segredo, magia, elementos sagrados, temática do absurdo

O AUTOR Péricles Prade (1942) Péricles Prade nasceu em Rio dos Cedros (SC). É advogado, jornalista, escritor (poeta, contista, historiador, crítico literário e de artes plásticas) e professor universitário. É considerado um dos grandes autores de literatura fantástica do Brasil. Ocupa a cadeira nº 28 da Academia Catarinense de Letras, presidiu a União Brasileira de Escritores (1980 a 1982) e foi vice-prefeito de Florianópolis. É autor de mais de 70 obras, contemplando ficção, ensaio, poesia, filosofia, direito e artes plásticas, algumas delas traduzidas para o francês, o italiano e o inglês.

BIBLIOGRAFIA Principais obras: Poesia: Este interior de serpentes alegres (1963), A lâmina (1963), Sereia e Castiçal (1964), Nos limites do foro (1976, 2ª ed.), Os faróis invisíveis (1980), Guardião dos 7 sons (1987), Jaula amorosa (1995), Pequeno tratado poético das asas (1999), Ciranda Andaluz (2003), Além dos Símbolos (2003), Em forma de Chama (2005), Pantera em Movimento (2006), Tríplice Viagem ao Interior da Bota (2007), Labirintos (2009), Os 182

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melhores poemas de Lindolf Bell (2009), Sob a Faca Giratória (2010). Prosa: Os milagres do Cão Jerônimo (1971), Alçapão para gigantes (1980), Ao Som do Realejo (2008) e Relatos de um Corvo Sedutor (2008).

A ESCOLA LITERÁRIA Pós-modernismo (ou Literatura Contemporânea) A Literatura Contemporânea brasileira (ou Pós-Moderna, como assim denominam alguns estudiosos) engloba as produções realizadas a partir dos anos 1960 até a atualidade, sendo marcada por uma multiplicidade de tendências. Como o nome indica, o Pós-Modernismo foi o movimento que surgiu após o Modernismo (após a 3ª geração); nesse contexto, pode-se perceber que alguns traços do Modernismo continuaram, mas outros se modificaram, por isso, não se pode dizer que houve uma “ruptura” de uma tendência para outra. As manifestações literárias desse período desenvolvem-se a partir de duas linhas mestras: a) De um lado, a permanência de alguns autores já consagrados, como João Cabral e Carlos Drummond de Andrade, acompanhada do surgimento de novos artistas, como Lygia Fagundes Telles e Dalton Trevisan, ligados às linhas tradicionais da literatura brasileira: regionalismo, intimismo, urbanismo, introspecção psicológica. b) De outro lado, a ruptura com valores tradicionais que se dispersam através de propostas alternativas ou experimentais, buscando novos caminhos ou exprimindo de maneiras pouco convencionais as tensões de um país sufocado pelas forças da repressão.

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Características As principais características da literatura contemporânea (ou pós-moderna) são: • • • • • • • • • •

Mistura de tendências estéticas (ecletismo) União da arte erudita e da arte popular Prosa histórica, social e urbana Poesia intimista, visual e marginal Temas cotidianos e regionalistas Engajamento social e literatura marginal Experimentalismo formal Técnicas inovadoras (recursos gráficos, montagens, colagens, etc.). Formas reduzidas (minicontos, minicrônicas, etc.) Intertextualidade e metalinguagem. (Mais detalhes da Literatura Contemporânea você poderá conferir na análise da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada)

SÍNTESE DA OBRA A filha do Rei Anjahamara Anjahamara era um Rei que habitava uma vasta região de florestas. Tinha cruel vocação pela caça de abelhas ferozes e, quando a ela se dedicava, permanecia muitos dias sem comer. O Rei tinha tanta habilidade que, durante a caça que fazia com seus escravos, chegava a matar mais de duas mil abelhas. O rei tinha um segredo que só ele, a mulher e o narrador da história sabiam: ele tinha uma filha de dois anos, que possuía os olhos iguais aos de abelhas ferozes e com um simples olhar suspendia qualquer objeto por mais pesado que fosse. A menina vivia trancada no quarto e fazia dessa “magia” seu divertimento. 184

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Um dia, o narrador falou ao rei que havia somente uma forma de salvá-la: matar a rainha das abelhas, retirar seus belos olhos negros e conservá-los numa antiquíssima redoma de prata durante sete anos, até se transformarem no luminoso líquido chamado puderama. O líquido deveria ser injetado com uma agulha na medula da espinha dorsal. A fim de salvar a filha, o rei fez o indicado pelo narrador (que deixa claro que a receita não era dele, era de um sábio chamado Rhemos, da Ilha das Águias), após os sete anos de espera. Ocorre, meus príncipes, que na espinha nasceu uma erva estranha, cujo odor envenenou todos os habitantes do reino. O conto termina com o narrador dizendo que soubera da triste notícia quando discutia com Cagliostro1 o aumento dos diamantes pela arte hermética. Ele indica por fim que, mesmo tendo ocorrido tal fato, as pessoas ainda continuam procurando seus serviços, em especial as mais simples.

No hipódromo O narrador conta que uma mulher o fita “com os demônios nos olhos”. Ele começa a correr pelas arquibancadas, irrita-se com um vendedor de agulhas que lê um poema imoral. De repente, ele esbarra em uma senhora que, perto do poço localizado à entrada do túnel, com o fino chicote bate nas costas de um belo animal. O sangue colore os azulejos e eu me sinto feliz. Na décima quinta volta o cavalo de crinas verdes levanta voo, planando alegre e descrevendo nos céus complicada lição de alquimia. O narrador diz que havia um homem sentado, que retira de sua pasta 1- Alessandro Cagliostro (o Conde Cagliostro) foi um dos maiores místicos do século 18. Dizia ter poderes sobrenaturais e, por isso, foi também incompreendido e perseguido até a

morte. Nascido no início da década de 1740, Cagliostro havia trabalhado longamente pelo ideal humanista quando foi preso pela Inquisição do Vaticano na Itália, em dezembro de 1789. Naquele momento a revolução francesa estava começando. Feito prisioneiro, ele foi levado de uma prisão para outra. Cagliostro foi torturado, longa mas inutilmente, pelos carrascos católicos. O objetivo dos verdugos do Vaticano era forçá-lo a confessar crimes que não havia cometido. Em 7 de abril de 1791, Cagliostro foi condenado à morte. Seus livros e alguns dos seus objetos maçônicos foram queimados diante de uma multidão, na Piazza della Minerva, em Roma. Um grande mistério gira em torno de sua morte: alguns dizem que ele morreu na própria torre em que fora encarcerado e, de acordo com outra versão, ele saiu de maneira sobrenatural da torre. (Fonte: www.filosofiaesoterica.com)

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negra um papiro, anotando as fórmulas que diz: “ – Não autorizei a exibição. Hoje haverá morte no meu exército de cavalos alados.”

As nove cantoras paralíticas Um homem velho conta uma história para seu animal de estimação, enquanto suas filhas colocam panos em um enorme vaso. Havia nove meninas que eram conhecidas por serem as cantoras da aldeia. Elas eram paralíticas e tinham um talento incomum: podiam cantar meses a fio sem cansaço e sua melodia hipnotizava a todos – deixava-os em absoluto silêncio durante o longo tempo das canções. O viajante Marcola, que fora ao vilarejo para realizar um negócio rendoso com Arfan, o comprador de seda, observou que, além do talento para a música, as nove cantoras não envelheciam, tinham sempre a mesma voz e a mesma beleza. Marcola começou a investigar e soube que uma senhora, de nome Falma, era a única que lhe poderia revelar o segredo. Procurou-a, mas não conseguiu sequer iniciar o assunto com ela. Sete dias depois, soube que a tal senhora fora encontrada morta no corredor de sua casa, sangrando, com os olhos vazados e a língua cortada. Marcola compra um ingresso para o concerto. Fica ansioso pelo espetáculo. Sente-se feliz, não apenas por ter descoberto tudo, mas pela oportunidade de sentar na primeira fila do espetáculo. Não é sem temor que, no dia marcado, de repente toma consciência de encontrar-se no palco, paralítico também, cantando uma música da infância.

O sábio Com o sol doendo nos olhos, sorri. Sereno e profundo levanta os braços, lentamente, caminhando entre as folhas selvagens. Tosse, tingido a túnica com um vermelho-violeta. De forma ritual, tira as roupas, vira seu 186

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corpo para o sol e banha-se em um lago. Bebe a água pura, retira-se, insulta os deuses e chora. Cansado, põe as longas vestes e, à noite, bate na porta da Igreja de São Sebastião dos Humildes. Ao abrirem faz o sinal da cruz. - A que horas começará a missa? pergunta a uma jovem sentada ao lado. Por ser peregrina e se chamar Alma, não podia informar. Então, ele lhe mostra a língua e insiste para que ela a pegue. Ela não queria, mas de tanto que ele insistiu, ela assim o fez, com violência. Ele dá gritos, histéricos, chamando-a de sádica, criatura má, desumana! Os fieis ficam contra a garota, exigem que seja expulsa. Então, ele começa o seu teatro: começa a rezar em voz alta – tinha uma bela voz –, cantando maravilhosos salmos e influenciando os presentes. Pede licença e sobe no soberano altar. Reza ainda mais, com entonação solene. Tosse, e os fieis veem boquiabertos o sábio despir-se da vestimenta brilhante.

O herói salva a cidade dentro de um sapato2 O sapato ainda está cheio d’água. Os habitantes, submersos após a inundação, constatam a presença indesejável do perigo. O pânico é geral, homens e mulheres comunicando-se aos gritos. A esperança daquele povo estava na figura de um herói, que fora premiado três vezes no século anterior, por ter salvado a vida de quatro trapezistas, no circo dos irmãos Lorenzi. Após insistente procura, ele é encontrado e decide ajudar. Voa com agilidade em direção ao Palácio de Marphis, retirando de conhecido oratório de ouro a arma predileta. O herói convoca o povo e distribui escafandros verdes fabricados numa empresa que há muito tempo fundara, prevendo este estado de emergência. Forma pelotões, dá ordens e, perto da praça principal, abre os 2 - Esse conto foi transformado em animação. Você poderá conferi-lo em: https://vimeo.com/159402673

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braços em uma expressão de convencimento. O povo aprova a decisão. Visto de fora, o sapato é um belo aquário em movimento. O herói, girando como um pião, projeta-se com violência contra o couro, rasgando-o. A água desaparece, pouco a pouco, voltando a cidade ao estado natural. O herói, com o pescoço partido e preso na abertura, é um corpo balançando no espaço.

A dentadura Conta a história de uma dentadura que decidiu ter vida própria. Cansada de ficar na boca de seu dono, o Senhor Pirandello, saía todas as noites do vaso em que ficava mergulhada e andava pela casa – conseguira isso adotando a seguinte tática: comprimir as gengivas do velho de forma tal que ele teria de retirá-la todas as noites. Naquela noite, foi até a geladeira e comeu todo o bolo. Depois disso, teve uma ideia: sairia de casa pela primeira vez. Na rua, passeou alegremente, foi até o cais, escondeu-se de algumas pessoas que encontrou pelo caminho até que, ao voltar viu uma cena que a deixou indignada: vira um negro atacar uma bela menina de tranças marrons. Correu ao seu encontro e mordeu com violência o calcanhar do musculoso agressor. Coitada! Mal teve tempo para morder, pois foi esmagada pelo peso de um sapato de fortes solas de couro grosso. No dia seguinte o Senhor Pirandello, ao procurar a dentadura na seção de furtos e roubos, ficou perturbado com a voz de prisão.

O pecado original O olho transborda a cavidade e cobre o próprio corpo, engolindo-o como a Jonas em obscena atitude. O homem (olho) vive em profunda solidão no fundo de uma imperturbável caverna. Não resiste à transformação, castigo dos deuses que o viram, quando 188

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baleia, masturbando-se à margem de um úmido litoral, perto dos homens, habitantes de terras desconhecidas. Fura-se ao apanhar de surpresa a espada do peixe, pretende ilógico suicídio. Continua a viver, em maldita escuridão, como o temido olho cego do Pacífico.

O monge Astheros Certo dia, os moradores ouviram os gritos de um palhaço, vindos de um carro, que anunciava o nome de uma peça cuja encenação no pitoresco circo da aldeia sugeria algo original e cativante. O povo espiava pelas janelas, as crianças olhavam curiosas, como se previssem alguma coisa ruim. O palhaço gritara tanto que já falava bem baixinho o nome da peça e de seu criador: o monge Astheros. A presença deste homem poderoso modificou a cidade: o clima, a paisagem, tudo se modificara; as mães ficaram receosas. Na primeira apresentação, no sábado, uma surpresa: ninguém foi. No entanto, dizem que Astheros fez sua apresentação impecável, mesmo assim. Suas palavras causaram impactos nos que rodeavam o circo. Não eram palavras simples, elas permaneceram no espaço, pairando como sutil veneno, andando de boca em boca, dando ainda mais prestígio ao monge. A verdade é que quanto mais o povo o repelia, mais ele o atraía para si: tornou-se uma espécie de conselheiro. Passaram-se anos, e o monge nunca mais apresentara seu espetáculo. O povo estava curioso, queria assistir sua peça novamente. O monge negava-se e apenas administrava as outras atrações do circo. Um dia, quando não mais pôde deixar de atender aos pedidos do povo, resolveu apresentar seu espetáculo, mas antes fez um sermão por ele considerado superior ao de Cristo na Montanha. Uma das frases ditas pelo monge e lembrada pelo narrador foi: “Insistir é um pecado também próprio dos deuses”. Os milagres do cão Jerônimo

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Astheros falou por três horas e, durante seu discurso, hipnotizou a todos. Uma longa fila se formou, e ele os guiou até o circo. Ao chegarem lá dentro, ouviram um barulho, como se uma portão houvesse sido fechado e todos estivessem trancados. Doze relógios, alguns no chão e outros pendurados no palco, batiam de forma ensurdecedora. Nesse instante, a lona levantou-se, arrancada por força estranha. O povo sentiu pavor. Estavam dentro de uma jaula. Astheros tentou acalmá-los e disse a todos: - Antes da peça rezarei a missa do Juízo Final, mas necessito com urgência de sete coroinhas de sete anos. Imediatamente, mães e pais enviaram seus filhos. O monge, ritualmente, os vestiu e ordenou que o povo tirasse a roupa. - Agora vamos comungar a emoção do suicídio pelo punhal. Mandou que as crianças pegassem as centenas de adagas que havia em uma caixa e as distribuísse aos presentes. Depois, ordenou que todos as colocassem em frente ao coração e, na terceira balada do gongo, enfiassem-nas em seu próprio corpo os instrumentos divinos do seu poder. O suicídio coletivo é a única redenção para uma aldeia que teve a honra de conhecer Astheros. Assim que ele deu a terceira batida no gongo, todos lhe obedeceram. Conta o narrador, que ele foi o único que não havia se deixado hipnotizar; conhecia o segredo do monge, mas não falou nada, deixou amigos e familiares se levarem pelo monge. Para não ser flagrado, porém, imitou os gestos de todos e ficou estirado junto aos demais corpos. Pôde ver, de relance, sobre o altar, as sete crianças serem acariciadas. Para o monge, “O suicídio coletivo é a única redenção para uma aldeia que teve a honra de conhecer Astheros”.

Alexandria O animal rompe a porta, violentamente, caindo entre os livros. Levanta e conduz o corpo com dificuldade; cheira os livros, certo de reconhecer 190

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o conteúdo pelo olfato raro e milenar. Percorre os corredores, dois seres solitários, ele e a biblioteca, naquele ambiente de pura comunicação e tensão. O odor quase enlouquece o animal. Salta em direção à mesa de mármore e choca-se contra um vaso de porcelana que quebra. Ferido na cabeça, dor intensa, tenta achar, desesperado, a saída. A força se esgota, o líquido se esvai, cruza os olhos azuis, escorrendo pelo ventre em movimento. O animal estremece, colorindo a paisagem no livro aberto.

A simples morte pelo punhal O personagem manifesta sua possessão em matar o escritor Rainer Maria Rilke3. Isso porque sentia que morria um pouco cada vez que o lia. Cada palavra, cada frase, todas as interrogações são longos alfinetes rompendo sua inspiração. E a vontade de matar cada vez crescia. Sentia-se fracassado, apesar de ter um bom ordenado e filhos que o amavam. Sente-se um “pálido escritor”. Naquela noite, abriu o cofre e retirou um arquivo pesado e antigo. Encontrou uma fotografia que procurava. Explode num riso nervoso, enfiando o punhal no exato lugar onde na foto um coração aceso deveria existir. Viu sangue em sua agonia e, alucinado, atravessa a lâmina em suas têmporas, no momento em que os últimos versos das “Ele gias de Duíno”4 são murmurados em todos os cantos, como se Rilke 3- Rainer Maria Rilke (1875-1926), poeta nascido em Praga, é considerado como um dos mais importantes poetas modernos da literatura e língua alemã, por sua obra inovadora

e seu incomparável estilo lírico. Durante largo período, a faceta metafísica da poesia de Rilke determinou uma verdadeira cisão entre poetas. De um lado, postava-se uma enorme legião de influenciados pelos versos rilkeanos — nomeadamente, no Brasil, os poetas da chamada Geração de 45. De outro, os poetas de esquerda, que consideravam aquilo uma completa alienação. 4- As Elegias de Duíno

No dia 13 de fevereiro de 1923, foram publicadas as Elegias de Duíno. Trata-se de uma poesia hermética, em que o poeta exprime um espiritualismo fantástico. Em oposição ao cristianismo, Rilke inventou anjos como criaturas ideais ou homens que, com a morte, se convertem em seres majestosos. Frutos da morte, esses seres transfigurados logram uma existência perfeita, uma plenitude sobre-humana. Segundo o próprio Rilke, nas Elegias a afirmação da vida e da morte se revela como uma só coisa. Nós, seres do aqui e agora, em nenhum instante nos sentimos satisfeitos com o mundo temporal. O ser humano suspeita, vislumbra, imagina origens e futuros. (Fonte: www.dw.com)

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oferecesse a brevidade de uma vingança.

O tapete indiano Todos os dias a prostituta batia no tapete indiano. Esmurrava-o com uma fúria incontrolável. Diziam as vizinhas que ela o espancava de forma cruel. Como vingar-se? O tapete esperava por uma oportunidade, mas não surgiam as condições. Sentia-se desprestigiado por ter ido parar em uma zona de prostituição. O tempo passou, e a decadência tornou-se ainda maior. Estavam no inverno, o frio era intenso. A prostituta, agora, andava pelas ruas, com o tapete sob o braço esquerdo, amparando-se nos muros, caída agora, pálida-cansada. Que estranho olhar do tapete indiano! Bastou Madalena encolher as pálpebras, para envolver-se, rápido, no pescoço. Apertou aos poucos, esbugalhados os olhos, enigmático o sorriso dentro da noite. Enrolou-se e fugiu, aproveitando a escuridão para enfiar-se no mais próximo esgoto, à beira da calçada.

A maravilhosa história de um tatu Havia uma família muito excêntrica que possuía um tatuzinho loiro. O pai da família, Mr. Jones, dizia que a “loirice” do tatu era o de menos; o pior era uma catarata cor de abóbora que havia crescido no olho do bicho. A família se reunia sempre para tentar solucionar o problema; compraram livros, mas nenhum deles falava sobre catarata em tatu. Pensaram em matá-lo. A esposa deu a ideia de mandar o tatu fazer uma toca e, quando ele estivesse lá dentro, empurrariam-no e fechariam o buraco. Ninguém, a não ser a família, ficaria sabendo. O problema era que o tatu nunca havia cavado um buraco, menos ainda agora, com a catarata 192

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cobrindo-lhe os olhos. Pensando na cegueira do animal, a família ficou desesperada. Contrataram um médico especialista; pagaram uma fortuna pelos serviços do doutor Zatrapah. Acontece que o médico ficou tão emocionado com a experiência, que teve um enfarte no miocárdio. A própria razão desconhece o coração dos tatus. Preocupado com o médico, que lhe fora tão gentil, o tatu salta da mesa de operação e cava um buraco no lugar onde pulsava o órgão, fazendo uma massagem considerada depois, pelos entendidos, como eminentemente técnica. Reviveu o médico. Mas o tatu, também emocionado, desfaleceu e até hoje não voltou ao normal. Alguns dizem que ele atingiu esse estado por ser um dos maiores praticantes de ioga do mundo. O que importa é que a família está satisfeita. Que importa a catarata, pensam os iniciados, se o tatu permanece frio, imóvel para a eternidade?

A perna O homem setiu uma dor no joelho direito. Há oito anos sentia a mesma dor, mas agora era mais aguda. Puxou a calça e viu uma espécie de um olho minúsculo, azulado. Nota que um pequeno fio escorre pela perna, acompanhando as veias. Pega uma lupa, e sente prazer e temor ao mesmo tempo. No dia seguinte, o joelho é uma bola azul rutilante. Mostra a várias pessoas e começa a falar num tom diverso do habitual. Corta a calça em forma oval, para mostrar o joelho, em atitudes de nobreza. Durante a semana, descobre que toda a sua perna se transformara em um bloco azul de mármore. Achou aquilo o máximo, não cabia em si de tanto contentamento. Rasgou a calça e foi para a praça pública. Lá, retirou a estátua do Marquês orando do pedestal, sentou-se e, com orgulho, estira a perna azul, segurando-a com dificuldade. Após, curva-se, com indizível felicidade, e assobia para o primeiro passante que vê ao longe. Os milagres do cão Jerônimo

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No museu Eu ia todos os dias, após o almoço, ao museu, convesar com o seu quadro predileto, intitulado “Café à noite”, de Van Gogh. Lá, é recebido por Lipont, um militar que cuida das obras. O narrador indica que há dez anos, o pintor conversa com o personagem do quadro, um homem vestido de branco e com cabelos verdes, que está próximo a uma mesa de sinuca. Mas, o que ninguém vê é que a pintura está mudando. Isso porque o pintor de faces roxas fez um pacto com o homem vestido de branco e de cabelos verdes: iria libertá-lo do quadro se ele modificasse todo o ambiente, pois ele odiava o gênio Van Gogh. Assim, o homem de branco, em troca de sua liberdade, ajudou o pintor de faces roxas e começou a modificar todo o ambiente do quadro: o relógio, que no quadro original marcava doze horas e quatorze minutos, começou a marcar quinze para as oito; sobre a mesa, sete bolas coloridas, ao invés de três; o taco sumiu de cima da mesa; dos três lampiões acesos, restava apenas um agora; colocou manchas de sangue no chão, indicando que houvera uma luta ali; pôs uma rachadura em forma de V na parede vermelha e a cabeça de todos os fregueses ficaram pendidas sobre as cadeiras. Mudado todo o quadro, o pintor fez menção de sair, então o homem de branco perguntou-lhe se ele não iria libertá-lo. O outro, respondeu-lhe, zombando: - Ora, a libertação está em ti. Sai, mas não consegue passar da porta. Lipont retira das costas do pintor um antigo punhal. A polícia ainda o está examinando e os depoimentos de Lipond, por incrível que pareça, são considerados contraditórios.

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Os milagres do cão Jerônimo Jerônimo era um cachorro branco, grande, digno e nobre que vivia há muito tempo em uma aldeia. Em volta dele um grande mistério: nunca alguém o havia ouvido latir; aliás, ninguém nunca o vira abrir a boca, nem para comer. Todos o temiam e respeitavam-no. O narrador diz que seu avô lhe contara várias histórias fantásticas sobre Jerônimo, mas que gostava muito de quatro delas. A primeira conta que Jerônimo, quando conduzia os tropeiros de Arecuza para ultrapassarem o rio Venda, lutou durante horas com um cardume de milhares de piranhas, vencendo-as com o luminoso olhar sob as águas. A segunda revela que, após violenta tempestade de pedras, o cão transportou sobre o lombo uma criança, retirada do fundo de uma mina de ouro, protegendo-a com um leque de retorcidos arames. A terceira demonstra uma vocação irresistível: no ano de 1812 não faltou ao enterro dos suicidas, permanecendo sobre as covas até que nelas nascesse um belo trevo venenoso. A quarta equivale a uma predestinação. Sempre que desse três voltas ao redor da Igreja de São Egídio, o próximo afogado seria reconhecido pela tatuagem imprevista no rosto. O povo sabia de todas essas histórias, mas a que mais lhes impressionava era o fato de ele nunca abrir a boca. Um dia, Sandor, um violento jesuíta, disse na missa que a mudez de Jerônimo era conduzida pelo demônio, que era preciso matá-lo. No dia marcado, Jerônimo entra silencioso na missa, e o jesuíta começa a exorcizá-lo. O cão, tentou livrar-se dele, mas ele gritou para que a mutidão o ajudasse. Todos partiram para cima do cachorro. Com muito custo, seguraram-no, e o padre forçou a abertura da boca do animal. Asssim que abriu a boca do cão, uma enorme língua de fogo, serpente de infinitas chamas, enleou-se pelas vestes dos crentes, iniciando o mais terrível incêndio de que a humanidade tem notícia. Os milagres do cão Jerônimo

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ANÁLISE DA OBRA O livro Os milagres do cão Jerônimo, de Péricles Prade, é composto por quinze contos curtos, de estrutura simples, porém de complexo entendimento em muitos casos, pois ele trabalha a lógica do absurdo. E não adianta querer ler a obra pensando de forma racional, procurando a coerência nas histórias ou sentido nas mesmas, pois elas são interligadas por questões “alucinadas”. As narrativas de Os milagres do cão Jerônimo são marcadas pelo fantástico, pelo inexplicável, pelo mundo dos sonhos, enfim, por tudo aquilo que foge da “normalidade” de um texto comum, o chamado nonsense. E, por não serem contos comuns, fica-nos difícil enquadrar o tempo e o espaço na maioria deles, pois seres fantásticos habitam o universo das narrativas: são magos, sábios, entidades demoníacas, animais humanizados e heróis que poderiam viver em épocas muito distantes e em lugares inimagináveis. Mas a inserção de todo esse mundo fantástico não significa dizer que a obra é ruim, difícil, muito pelo contrário, ela nos atrai a partir do momento em que começamos a entendê-la, a desvendar seus mistérios contidos em cada conto. Esse é o fantástico da obra. Outra questão interessante a ser abordada é o fato de que, apesar de algumas narrativas parecerem fábulas, elas não são moralísticas, pelo menos, não no sentido tradicional; percebe-se que não há uma preocupação do autor nesse sentido. Péricles Prade permeia seus textos de algo que nós acabamos perdendo: a capacidade de imaginação, o privilégio de conviver com seres mágicos, reis, heróis e divindades, pois hoje primamos muito pelo racional, por isso, a obra, muitas vezes, passa por incompreendida.

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O estilo de escrita de Péricles Prade A escrita de Péricles Prade torna-se um pouco difícil de ser identificada. Mas, em entrevista concedida ao professor Viegas Fernandes da Costa ao “Sarau Eletrônico”, da FURB, o autor, dentre seus vários estilos, caracteriza sua obra como pós-modernista. O pós-modernismo é uma espécie de continuação das vanguardas europeias (Cubismo, Expressionismo, Dadaísmo, Futurismo, Impressionismo) e foi introduzido a partir da década de 1960, combinando várias tendências. Constituem característica desse movimento a ausência de regras, a mistura entre o real e o fantástico, a imprecisão, a liberdade de expressão, o texto sem começo, meio e tradicional, sem coerência; aqui nada mais é certo, tudo é relativo e impreciso. A obra de Péricles Prade situa-se exatamente aí, quando ele opta pelo insólito, pelo nonsense, isto é, pelo absurdo, pelo fantástico.

A intertextualidade

A intertextualidade, ou seja, a relação que se estabelece entre dois textos, quando um deles faz referência a elementos existentes no outro, é uma característica bem marcante na obra de Péricles Prade. Em vários contos, percebemos que o escritor se utiliza desse artifício para inserir neles obras de outros cânones da literatura nos quais ele se inspira para fazer sua obra. Exemplos de intertextualidade estão nos contos “A filha do rei Anjahamara”, no trecho: “Eu soube da trágica notícia quando discutia com Cagliostro o aumento dos diamantes pela arte hermética.” – aqui, os termos “Cagliostro”, “diamantes” e “arte hermética” dialogam com a história do enigmático conde Cagliostro, um dos grandes alquimistas da história, que transmutava chumbo em ouro e fabricava diamantes da melhor qualidade. A palavra “diamantes”, também, sempre que associada a Cagliostro remete-se ao famoso episódio do “Caso Os milagres do cão Jerônimo

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do colar da Rainha Maria Antonieta”, um dos principais motivos pelos quais se deu a Revolução Francesa, em 1789. O envolvimento de Cagiostro nesse escândalo, mesmo depois de ter sido absolvido, levou-o a ficar seis meses encarcerado na Bastilha e depois foi expulso da França. Outro exemplo de intertextualidade na obra está no conto “A maravilhosa história de um tatu”, no trecho: “A própria razão desconhece o coração dos tatus.” (p. 76) que dialoga com a famosa frase de Pascal: “O coração tem razões que a própria razão desconhece.” Também em “O pecado original”, a história nos remete à passagem bíblica, “Jonas e a baleia” e também ao “Mito da Caverna” – metáfora criada por Platão para tentar explicar a condição de ignorância em que vive o ser humano e o que deveria ser necessário para atingir o “mundo real”, tendo como base a razão. No conto “O Monge Astheros”, nova intertextualidade com a Bíblia quando o monge “fez um sermão por ele considerado superior ao de Cristo na Montanha.” (p. 54) Em “Alexandria”, um animal rompe a porta e cai em uma biblioteca – aqui o diálogo se dá diretamente com a famosa e lendária Biblioteca de Alexandria, do antigo Egito. Em: “A simples morte pelo punhal”, a intertextualidade ocorre a partir da referência ao escritor Rainer Maria Rilke (1875-1926). Outro tipo de intertextualidade é muito marcante nas obras de Péricles Prade: o diálogo intertextual que ele tece entre diferentes tipos de linguagens, tais como, a verbal e a não-verbal. Em Os milagres do cão Jerônimo, vemos esse tipo de intertextualidade (chamado, na linguagem técnica, de ekphrasis) nitidamente no conto “No museu”, em que são mencionados comentários da imagem da tela do pintor holandês Vincent van Gogh.

Análise dos contos

A seguir, será realizada uma análise sobre cada um dos contos para que se possa entender um pouco melhor as narrativas. Mas, é preciso 198

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alertar que uma obra literária é uma obra “aberta” a várias interpretações. Essas aqui são as minhas, caro vestibulando. Bora viajar na obra de Péricles Prade!

1. A filha do Rei Anjahamara5 Narração: 1ª pessoa Personagens: Rei, sua filha, sua mulher e o narrador (uma espécie de sábio) Tempo: não definido Espaço: uma vasta região de florestas Temática: mistério, segredo, magia, ocultismo, número sete Elementos: segredo, floresta, animal Neste primeiro conto, temos como referência a palavra “segredo”; nele, a filha do Rei, “de apenas dois anos”, tem os “olhos iguais aos de abelhas ferozes” e mais: ela possui o poder de suspender as coisas com um simples olhar. O Rei vivia na floresta, procurando abelhas, em constante busca pela salvação da filha, que viria da receita dos remédios e conselhos dados pelo narrador da história: ele deveria “matar a rainha das abelhas, retirar seus belos olhos negros e conservá-los numa antiquíssima redoma de prata durante sete anos”, até que se transformasse em um líquido chamado “puderama”. Observa-se aqui a menção ao número “sete”, número constante em alguns contos dessa obra, por ser um número místico, considerado o símbolo da totalidade do Universo em transformação. Os elementos místicos ainda vão além, o narrador indica que essa receita foi usada uma única vez na vida por um sábio, de nome Rhemos, em um lugar imaginário: a Ilha das Águias. O Rei espera os sete anos, segue corretamente os ensinamentos do narrador, mas algo dá errado: na espinha da menina “nasceu uma erva cujo odor envenenou todos os habitantes do reino.” Ou seja, todos morreram. O conto termina com o narrador dizendo que soube da notícia no momen5- Anjahamara é uma cidade da Ilha de Madagascar, na África. No conto não existe uma relação direta entre o local e o nome do Rei. A informação vai apenas a título de

curiosidade.

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to em que discutia com Cagliostro6 (um dos maiores místicos do século XVIII) “o aumento dos diamantes pela arte hermética” (hermetismo é o estudo da filosofia oculta e da magia – o nome advém de essa filosofia ser associada a Hermes Trismegisto).

2. No hipódromo Narração: 1ª pessoa Personagens: narrador e algumas pessoas que ele encontra no hipódromo Tempo: não definido Espaço: um hipódromo Temática: conto fantástico – misticismo, magia, ocultismo Elemento: animal História surreal em que o narrador se vê correndo por entre as arquibancadas de um hipódromo e encontra personagens sem nomes e desconhecidos: uma magra mulher que lhe lança “um olhar guerreiro”, um vendedor de agulhas que lê “um poema imoral”, uma “velha senhora” com um chicote que bate nas costas de um belo animal e um senhor baixo, com uma pasta preta. Ao contar sobre a corrida de cavalos, o narrador diz que “o cavalo de crinas verdes levanta voo” e começa a descrever no céu “complicada lição de alquimia” – aqui, além do fantástico, os cavalos alados, temos também a menção ao elemento místico: “alquimia”, uma ciência mística, conhecida como “Química da Antiguidade”, cujo objetivo era transformar um elemento em outro (em especial, objetos em ouro). Ao final da história, o homem da pasta preta, que estava anotando fórmulas em um pergaminho, diz que haveria mor6 - Alessandro, Conde Cagliostro, viajante, ocultista, alquimista, curandeiro, hipnotizador e maçom do século 18, morre em Roma em 28 de agosto de 1795, aos 52 anos. Obrigado

a apresentar-se com roupas de penitente ante a igreja de Santa Maria e abjurar todos os seus erros, não foi perdoado. Encerrado na fortaleza de São Leão em Urbino, acabou sendo estrangulado em sua cela. O aventureiro Cagliostro esteve implicado no Caso do Colar da Rainha Maria Antonieta – em 25 de janeiro de 1785, dois joalheiros parisienses enviam um suntuoso colar de diamantes ao príncipe-cardeal de Rohan, o que motivou sua reclusão na Bastilha e posterior expulsão da França. Era o começo de um inacreditável assunto que iria respingar na família real. Condenado pela Inquisição como herético e mágico, morreu na prisão. (Hoje na História: 1795 – Morre o viajante, curandeiro e hipnotizador Cagliostro. Revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Fundação Oswaldo Cruz, ago. 2014. Disponível em: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/hoje-na-historia-1795-morre-o-viajante-curandeiro-e-hipnotizador-cagliostro/)

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te naquele dia, pois não tinha autorizado a exibição de cavalos alados.

3. As nove cantoras paralíticas Narração: 1ª pessoa – Marcola Personagens: Marcola, as nove cantoras, a costureira Tempo: não definido Espaço: uma aldeia Temática: conto fantástico – mistério, magia, ocultismo, número sete, castigo, segredo Elementos: terra, sagrado Este conto também tem a palavra “segredo” como referência. Trata da história de nove meninas, as quais são paralíticas e cantoras de uma aldeia, mas que possuem uma característica incomum: “podem cantar meses a fio sem cansaço, tendo a melodia a força de manter os habitantes em absoluto silêncio durante o longo período das canções”; além disso, elas nunca envelheciam e possuíam sempre a mesma voz bela. Marcola é um viajante que tenta descobrir esse segredo e, por tentar penetrar em território sagrado, acaba sendo castigado: fica paralítico como as cantoras. Antes disso, porém, ele procura a única mulher que conhecia o segredo das meninas, a costureira Falma, mas não obtém êxito. Sete dias depois, sabe que a costureira fora encontrada morta na casa dela, “com os olhos vazados e a língua cortada”, ou seja, alguém castigara a mulher, impedindo-a de ver e de falar antes da morte. Ao final da narrativa, temos a informação de que “Marcola não desiste” e que ele está feliz “não apenas por ter descoberto tudo, mas pela oportunidade de sentar na primeira fila do espetáculo” – haveria um concerto na cidade. No dia do espetáculo, ele se vê, paralítico, no palco, “cantando uma música de sua infância”. Percebemos aqui que Marcola, além de descobrir o segredo sagrado, também quis se inserir no espaço sagrado, por isso, o castigo: tornou-se paralítico.

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4. O sábio Narração: 3ª pessoa Personagens: o sábio Tempo: não definido Espaço: um lugarejo não definido Temática: mistério, magia, ocultismo, religiosidade, hipnose Elementos: água, sábio Neste conto, a palavra “água” é o elemento sagrado. O sábio banha-se na água de um lago e bebe-a; enquanto sai, insulta os deuses e chora. Caminha e encontra uma igreja, fechada. Abrem-lhe a porta. Ele pergunta o horário da missa, mas uma peregrina, de nome Alma, que ali está não lhe pode informar. Aqui acontece uma reviravolta: ele assusta a moça e mostra-lhe a língua, fazendo gestos para que ela pegue. Mediante a insistência do sábio, ela “estende a mão segurando-a com violência”, ele começa a gritar, xingando-a. Diante de tal agressividade, o povo exige a expulsão da peregrina da igreja, mas ela diz que não irá, pois viera de muito longe “em nome do Senhor”. O sábio começa a rezar e parece hipnotizar as pessoas que ali estão. Por fim, sobre no altar, tosse e tira sua vestimenta brilhante.

5. O herói salva a cidade dentro de um sapato Narração: 3ª pessoa Personagens: herói Tempo: não definido Espaço: uma cidade que fica em um sapato Temática: conto fantástico – figura do herói como salvador Elementos: água Esta história tem como cenário uma cidade, que ficava dentro de um sapato. De repente, essa cidade começa a inundar – aqui temos novamente a presença da “água” como referência, agora uma água que 202

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traz desespero aos seus habitantes, mas que também traz a figura de um “herói”, único ser que poderia salvar aquele lugar – interessante observar que, para os gregos antigos, o herói estava em uma situação intermediária entre um Deus e um homem, portanto, era um elemento praticamente divino. O herói era respeitado por todos, havia sido “três vezes premiado no século passado” porque salvara “quatro trapezistas grávidas” – e aqui a estranheza: mulheres grávidas em trapézio de circo? Para começar seu intento, o herói distribui à população “escafandros verdes”, vai para o “adro de prata” (pátio), abre os braços, e o povo assente com a cabeça, concordando com o que ele vai fazer. O herói projeta-se contra a parede do sapato, fura-a, a água desaparece, mas ele fica pendurado, “com o pescoço partido e preso na abertura”.

6. A dentadura Narração: 3ª pessoa Personagens: dentadura e Senhor Pirandello Tempo: não definido Espaço: não definido Temática: conto fantástico Elemento: água Conta a história de uma dentadura que saía para passear durante a noite, enquanto seu dono lhe deixava “descansando” em um vaso com “água azul”. Uma noite, a dentadura resolveu sair de casa, presenciou um ataque de um negro a “uma menina de tranças marrons” e mordeu “com violência o calcanhar do agressor”. Acabou sendo esmagada pelo peso dos sapatos do rapaz. Preocupado com o sumiço de sua dentadura, o Senhor Pirandello foi procurá-la na seção de furtos e roubos e acabou sendo detido como suspeito da agressão realizada à moça. Este conto fantástico nos remete ao ditado popular: “o peixe morre pela boca”, pois o Senhor Pirandello foi preso ao reclamar a dentadura. É válido lembrar também que a simbologia da dentadura nos remete ao mundo onírico, que Os milagres do cão Jerônimo

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pode indicar a falta de integridade do personagem, por isso ele fora preso.

7. O pecado original Narração: 3ª pessoa Personagem: um homem que é tomado pelo olho, por castigo Tempo: não definido Espaço: uma caverna Temática: conto fantástico – solidão, medo, abandono, castigo Elementos: água, religiosidade, caverna Este conto narra a história de um sujeito que, por castigo, é tomado pelo olho que cresce de maneira tal que toma todo o seu corpo. Essa situação é comparada com a de Jonas (história bíblica que indica ter sido ele desobediente a Deus e que, por isso, fora engolido por uma baleia). Seu pecado foi, quando era baleia, masturbar-se “à margem de um úmido litoral, perto dos homens”, por isso, fora pego em “obscena atitude”. O sujeito olho mora sozinho no fundo de uma caverna e sente profunda solidão; furou-se ao “apanhar de surpresa a espada do peixe” – ou seja, ficou cego. Pretende “ilógico suicídio”, mas não consegue. Como castigo, foi condenado a viver só, “em maldita escuridão, como o temido olho cego do Pacífico”. Aqui temos também a água como elemento referência do conto, a água do mar, do Pacífico. A caverna, citada no conto também pode ser uma alusão ao “Mito da Caverna”, de Platão, uma metáfora que procura explicar a condição de ignorância em que vivem os homens e o que deveria ser feito para que eles atingissem o “mundo real”, usando a razão. O olho estaria em constante luta entre o Bem e o Mal, a Vida e a Morte.Também não podemos deixar de perceber a intertextualidade com a Bíblia no próprio título do conto – o “pecado original” remete à história de Adão e Eva, quando esses comeram o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, em desobediência a Deus. O pecado original, inclusive, na religião cristã, é considerado uma doutrina que procura explicar o porquê do sofrimento humano, de sua 204

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imperfeição, de sua propensão para o mal e, portanto, para o pecado.

8. O monge Astheros Narração: 1ª pessoa Personagens: o narrador, o palhaço e o monge Tempo: não definido Espaço: lugarejo indefinido Temática: mistério, segredo, magia, ocultismo, religiosidade, pedofilia, suicídio coletivo Elementos: número sete, castigo Este é o conto mais longo do livro. A história se inicia com um palhaço (figura carnavalesca, portanto, profana) que, de forma pouco empolgada, anuncia a apresentação de uma peça “no pitoresco circo da aldeia” de autoria do monge Astheros. As pessoas ficam desconfiadas, mas são as crianças, seres com maior sensibilidade, que preveem “a ocorrência de fatos terríveis”. A presença do monge modifica tudo na cidade: o clima, a natureza e as pessoas. As mães também estavam com um pressentimento ruim. Como a desconfiança era geral, ninguém foi ao espetáculo, que havia sido marcado para o sábado. Com o tempo, a figura curiosa do monge começa a ganhar a confiança dos habitantes do lugar que passam a consultá-lo para diversas coisas. Passam-se anos e um dia, o monge resolve repetir a sua encenação da peça. Como um demônio, ele hipnotiza todos os moradores da região, força-os a entrarem no circo e a se suicidarem mediante suas ordens. Aliado a isso, tem-se um pedófilo que, após o suicídio coletivo, começa a assediar os meninos que escolhera para ser coroinhas. O narrador é testemunha de todos esses fatos, ele diz que sabia o “segredo” (mais uma vez a frequência dessa palavra), por isso não se deixou levar pelo monge na cerimônia do Juízo Final. Aqui podemos perceber que o narrador teve também, assim como Marcola, do conto “As nove cantoras paralíticas”, seu castigo por ter descoberto Os milagres do cão Jerônimo

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o segredo do plano sagrado e por tentar fazer parte desse espaço: ficou deitado entre os mortos, horrorizado, e passou a ser testemunha do assédio cometido pelo monge às crianças. Sobre este conto, em 2011, foi produzido um curta-metragem, de 19 minutos, de Ronaldo dos Anjos, em Santa Catarina. Você poderá assisti-lo no seguinte endereço: https://www.youtube.com/watch?v=8cLqvW8s-0A.

9. Alexandria Narração: 1ª pessoa Personagens: o animal Tempo: não definido Espaço: uma biblioteca Temática: conto fantástico – ocultismo, ciência Elemento: animal Este conto narra a história de um animal (talvez um cão) que vai parar, ferido, em uma biblioteca, em cima dos livros. O título da obra nos remete à Biblioteca de Alexandria, considerado o Centro do Saber, no antigo Egito. O cão se sente estranho mediante aquele cenário, está ferido e quer sair daquele lugar. Por fim, não resiste, cai “colorindo a paisagem no livro aberto”.

10. A simples morte pelo punhal Narração: 3ª pessoa Personagens: um homem Tempo: não definido Espaço: não definido Temática: mistério, segredo, magia, ocultismo, solidão Neste conto, o personagem protagonista diz querer matar o escritor de língua alemã Rainer Maria Rilke, isso porque ele “morre diversas vezes” quando o lê, pois “cada palavra, cada frase são longos alfinetes 206

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rompendo sua inspiração”. A literatura de Rilke, poeta do século XX, é envolta de dramas existencialistas, solidão, mistério, amor desfeito e é caracterizada pela presença de “Anjos”, mas não o anjo celestial católico, e sim “Anjos terríveis”, como ele bem assinala em sua obra As Elegias de Duíno (obra citada no conto); tais anjos representam e nos lembram o tempo inteiro as nossas limitações, pois eles são capazes de transitar entre o visível e o invisível, e nós, não. “Todo anjo é assustador”, afirma Rilke. O protagonista sente-se um fracassado, mesmo tendo dinheiro, o amor dos filhos e plantado árvores (aqui temos a intertextualidade com a frase/provérbio: Plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho). Pois bem, falta ao personagem a competência de escrever um livro. “para ele o pior é saber pela boca das crianças e reconhecer atrás de sua máscara a pálida figura de um escritor.” Mediante esse fracasso, ele vai até o cofre, pega uma fotografia e crava um punhal onde deveria estar o coração (provavelmente da amada). Em sua agonia, atravessa a lâmina em suas têmporas, suicidando-se. Paralelo a isso, “os últimos versos das Elegias de Duíno são murmurados, como se Rilke oferecesse a brevidade de uma vingança.” Aqui é preciso saber que os últimos versos dessa obra indicam que é melhor ficar com a felicidade no pensamento do que se deixar desconcertar por qualquer realidade – por isso o suicídio do protagonista.

11. O tapete indiano Narração: 1ª pessoa Personagens: a prostituta Madalena e o tapete Tempo: não definido Espaço: não definido Temática: conto fantástico – espiritualidade, religiosidade, prostituição, decadência Elementos: tapete, número sete Conta a história de uma prostituta que batia todas as manhãs em um tapete indiano: “Despedia-se dos conhecidos amantes, arrumava a cama Os milagres do cão Jerônimo

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com doentia organização e o passava nas mãos, esmurrando-o com fúria incontrolável.”. O tapete esperou o momento certo para se vingar dela. E o momento veio anos depois, quando ela já era velha, não servia mais para a profissão nem para o mundo e foi parar, abandonada, na rua, na sarjeta. O tapete, então, que vinha “sob o braço esquerdo” da mulher, que de vez em quando precisava se escorar nos muros, esperou-a fechar os olhos “para envolver-se, rápido no pescoço”. Enforcou-a e “fugiu, aproveitando a escuridão para enfiar-se no mais próximo esgoto, à beira da calçada.” Este conto fantástico, que tem como personagem principal o tapete, um tapete vingativo, um tapete que cria vida, nos remete à cultura oriental das tapeçarias. De origem milenar, os tapetes foram criados pelos povos nômades os quais possuíam o intuito de se abrigar do frio – é o que faz Madalena, quando está na rua, sem casa e sem abrigo. A figura do tapete indiano, por fim, com suas cores e desenhos exuberantes de animais, flores, deuses e mandalas remonta à espiritualidade e religiosidade do povo oriental. A figura do tapete simboliza a decadência total, pois ele passa da riqueza que representa sua origem para a extrema pobreza quando ele e a prostitua ficam velhos e arruinados – e ele ainda se torna um assassino! No entanto, se por um lado ocorre essa decadência, por outro ele consegue sua liberdade a partir do momento em que mata a prostituta. E, por falar nisso, não podemos nos esquecer aqui da figura da prostituta, de nome Madalena, nome este que nos remete diretamente à religiosidade. Personagem polêmico, Maria Madalena é caracterizada no Novo Testamento como uma das discípulas mais dedicadas de Jesus Cristo, depois que este expulsou dela sete demônios (neste conto, a simbologia do número sete aparece novamente). De prostituta a santa, Maria Magdalena é, sem dúvida, uma das mais enigmáticas personagens bíblicas, assim como o foi neste conto, uma vez que não se sabe por que ela batia tanto em um tapete. Observação: nas versões mais novas, o nome da personagem aparece como “Adriana”, e não Madalena.

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12. A maravilhosa história de um tatu Narração: 3ª pessoa Personagens: o tatu e a família de Mr. Jones Tempo: não definido Espaço: “Província do Sul” Temática: conto fantástico – morte, loucura, doença, crueldade do ser humano Elemento: doença Essa narrativa fantástica conta a história de uma família “excêntrica”, cujos filhos andam de muletas “muito embora sejam saudáveis e perfeitos”. Esses mesmos meninos possuem um “tatuzinho loiro” que tinha uma “catarata cor de abóbora” crescida nos olhos. Ser loiro nem era o espanto, o espanto era ter a tal catarata. E mais espanto, ainda, para o leitor é descobrir que a família julgava que esse problema do tatu o tornava mais importante que eles, como questionou o pai: “Por que razão tem esse privilégio?” se ele (o pai) sequer tinha tido um cisco no olho? A família se reuniu na grande sala do banheiro, pesquisou em vários livros, mas não conseguiram encontrar um que falasse sobre catarata em olho de tatu. Para acabar com essa “superioridade” do animal, o jeito era matá-lo. Nota-se aqui a crueldade do ser humano, a eliminação do “inimigo” por meio da morte. Descoberta a solução, a família voltou a se reunir, agora na sala de jantar, para ver como executariam o pobre bicho. E foi a esposa de Mr. Quint (que não sabemos quem é, o texto não dá a indicação de quem é Mr. Quint) quem deu a ideia de jogar o tatu na própria toca que ele cavasse e tapasse o buraco. E pensam de maneira mórbida: “ninguém na face da terra, salvo a família, saberia a verdade”. A ideia teria sido boa, não fosse um detalhe: o tatu não sabia cavar buraco. Ainda mais agora que ele estava praticamente cego. E isso gerou muita discussão filosófica na família. Tempos depois, ocorre uma reviravolta no pensamento deles: decidem ajudar o tatu e contratam um “famoso médico, especialista entre os Os milagres do cão Jerônimo

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especialistas” para fazer a operação. Gastariam uma fortuna, mas valeria a pena. Aqui temos a figura do herói; toda a esperança da família está depositada nele. Por três dias choraram pelo tatu. No entanto, outro incidente ocorre: emocionado com o que estava fazendo, o médico tem um ataque do coração. Inesperadamente, o tatu acorda, salta da mesa de cirurgia e faz um buraco no lugar em que ficava o coração do médico, aplicando-lhe uma massagem “eminentemente técnica”. O médico revive. Aqui temos uma intertextualidade, quando o narrador comenta: “A própria razão desconhece o coração dos tatus” – frase alusiva a “O amor tem razões que a própria razão desconhece.” Depois disso, o tatu desfalece e nunca mais volta ao normal. A família procura outros tratamentos, mas não consegue torná-lo à vida. Ao final da história, temos a informação de que o tatu permanece “frio, imóvel para a eternidade”, mas a família está satisfeita, pois não precisavam mais se incomodar com o problema da catarata.

13. A perna Narração: 3ª pessoa Personagens: um homem Tempo: não definido Espaço: não definido Temática: conto fantástico Elementos: tempo, desumanização Conta a história de um personagem que sentia dor na perna há oito anos. Em certo momento, a dor aumenta e começa a tomar proporções tais que a perna se transforma em mármore. Começa pelo joelho, que se torna “uma bola azul, rutilante” e depois a perna inteira se transforma “em um bloco azul de mármore”. O mais interessante é que o personagem se acha o máximo por causa disso; para ele, é motivo de orgulho a perna estar se transformando em algo inanimado, frio – é a questão da 210

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desumanização, ele deixa sua condição de ser vivo para se transformar em estátua de mármore. E isso é bem evidente ao final da narrativa, quando ele retira a estátua que está na praça e assume o lugar dela.

14. No museu Narração: 3ª pessoa Personagens: o pintor de roxas faces, o homem de branco e cabelos verdes da pintura de van Gogh Tempo: não definido Espaço: uma casa de artes Temática: conto fantástico – morte, pintura, inveja, frustração, vingança Elemento: tempo Este conto narra a história de um pintor “de roxas faces” que odiava a genialidade do pintor holandês Vincent van Gogh, certamente pelo fato de ele nunca conseguir pintar à altura do grande gênio – uma pessoa frustrada. E como o odiava, resolveu vingar-se dele: modificaria a pintura Café à noite, um óleo sobre tela de 1888, que tem como cenário um café da Paris do século XIX, o qual abrigava notívagos (moradores de rua, bêbados, pessoas abandonadas), que não tinham para onde ir. Para conseguir seu intento, metodicamente, durante dez anos, ele almoçava, depois ia para a casa de artes, cumprimentava Lipont, o guarda das telas, e começava a conversar com o homem vestido de branco e cabelos verdes – a personagem central da tela de van Gogh que, sabemos por uma das cartas enviadas ao irmão, que se tratava do dono do bar. Acontece que não era uma conversa comum, era uma espécie de vingança armada. O pintor de roxas faces queria modificar o quadro de van Gogh e colocar nele a SUA genialidade. Para isso, usou o homem de branco, oferecendo-lhe sua liberdade (lembrem-se de que esse é um conto fantástico, então, veja a cena como algo “normal”, duas pessoas conversando). E fez a chantagem: eu só o libertarei da tela, desse ambiente depressivo, se você me ajudar a modificá-la, tirando os vesOs milagres do cão Jerônimo

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tígios do grande gênio. O homem de branco aceita a proposta e passa a modificar o quadro, vagarosamente, de maneira que as pessoas não reparassem. E foram dez anos neste trabalho que acabou passando despercebido pelo público. Interessante de se reparar é que todo o conto é descrito com base na tela do holandês – por isso, é legal ler o conto, tendo a pintura de van Gogh ao lado, para que se entendam as modificações realizadas. E eles modificam bastante: mudam o horário do relógio, acrescentam bolas na mesa de bilhar, retiram o taco que estava sobre a mesa na tela original, mexem no número de lampiões acesos, colocam mancha de sangue no chão, como indicando que por ali houvera uma luta, colocam rachadura na parede e deixam “a cabeça de todos os fregueses pendidas sobre as cadeiras”, indicando uma possível matança coletiva. E o Café à noite, torna-se o cenário de uma chacina. Naquele dia, o pintor de roxas faces sentiu o trabalho terminado; finalmente vingara-se de van Gogh e colocara na pintura do holandês as suas marcas. Ia embora, quando o homem de cabelos verdes perguntou-lhe baixinho pela sua libertação. Zombando dele, o pintor de roxas faces diz: “– Ora, a libertação está em ti.” Observa-se aqui a falta de caráter da personagem. Ele fez um trato com o homem de cabelos verdes, mas não cumpriu a sua parte. Revoltado, o homem de cabelos verdes crava-lhe um punhal nas costas e mata o pintor de roxas faces. O guarda das telas vê o pintor caído com um inexplicável punhal às costas, tenta ajudá-lo, e é confundido pela polícia como sendo o autor do crime. Observação: cuidado para não confundir as telas de van Gogh. Existem duas com nomes bem parecidos: O terraço do café à noite e a outra: Café à noite (ou Café noturno, dependendo da tradução). É muito importante que se saiba um pouquinho da história dessa obra, até para entender melhor o conto. Confira! Le café de nuit (título original em francês, escrito pelo próprio pintor, 212

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abaixo de sua assinatura, no canto direito do quadro) tem sido traduzido de algumas formas: O café à noite na Place Lamartine ou simplesmente O café à noite ou O café noturno. A pintura é um óleo sobre tela produzido por Vincent van Gogh, em setembro de 1888, e representa, em estilo pós-impressionista, o ambiente do café de la Gare, situado próximo à Place Lamartine (Praça Lamartine), com uma mesa de bilhar, um homem de branco com olhar perdido (possivelmente o balconista) e alguns poucos clientes que parecem demonstrar solidão e abandono. Van Gogh escreveu uma carta ao irmão Theo7, sobre esta tela, em 1888, onde dizia que: “Hoje provavelmente eu irei começar o interior de um café onde possuo um cômodo, à noite, sob iluminação a gás. É o chamado “café de nuit” (muito frequentes aqui), e que fica aberto toda a noite. Notívagos podem se refugiar quando não têm recursos para pagar pelo pernoite ou estão bêbados demais para serem aceitos.” Em outra carta ao mesmo irmão, nesse mesmo ano, ele diz: “ Em meu quadro ‘Café Noturno’ procurei expressar a ideia de que o café é um lugar onde uma pessoa pode arruinar-se, enlouquecer ou cometer um crime. Por isso tentei expressar, por assim dizer, os poderes em uma taverna, com os contrastes de rosa suave, vermelho-sangue, cor de vinho e do verde suave à Luís XV e Veronese, contrastando os verdes amarelados e os verdes azulados duros, tudo isso numa atmosfera de fornalha infernal, de um amarelo-enxofre.” (https://www.historiadasartes.com) 7- Você poderá ler parte dessa carta:

Carta para Theo, Arles, 8 de setembro de 1888. “Então, para grande alegria do senhorio, do carteiro que eu já pintei, dos visitantes noturnos vagabundos e de mim mesmo, passei três noites consecutivas pintando, e dormi durante o dia. Penso, com frequência, que a noite é bem mais viva e tem um colorido mais rico do que o dia. Agora, quanto receber de volta o dinheiro que paguei ao senhorio por meio da minha pintura, não insisto nisso, pois o quadro é dos mais feios que já fiz. É equivalente, embora diferente dele, aos ‘Comedores de Batatas’. Tentei expressar as terríveis paixões humanas com o vermelho e o verde. A sala é de um vermelho sangrento e de um amarelo escuro, com uma mesa de bilhar verde no meio; há quatro lâmpadas amarelo-limão com um brilho alaranjado e verde. Em toda parte há choque e contraste dos vermelhos e verdes mais díspares nas pequenas figuras do vagabundos adormecidos, na sala vazia e triste, na violeta e no azul. O vermelho-sangue e o verde amarelado da mesa de bilhar, por exemplo, contrastam com o suave verde Luís XV do balcão, sobre o qual há um buquê rosado. A roupa branca do dono do bar, de pé num canto dessa fornalha, transforma-se num amarelo-limão, ou num luminoso verde-pálido.” (Fonte: https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/cafe-noturno-1888-vincent-van-gogh/) A carta, na íntegra, mas em língua inglesa, você poderá conferir em: http://www.webexhibits.org/vangogh/letter/18/518.htm

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Recentemente, em 2015, esta tela de van Gogh foi artisticamente trabalhada de maneira interativa dentro de um videogame, pelo artista digital Mac Caulley, que criou a versão 3D imersiva da obra. “O café virtual também apresenta elementos que foram deslocados de algumas de suas obras mais icônicas para expandir o ambiente do mundo simulado, incluindo um avatar do próprio Van Gogh.” Você poderá assistir essa animação no endereço: https://www.mdig.com.br/index. php?itemid=35408, intitulado “O café da noite – um tributo de realidade virtual a Vincent Van Gogh”.

15. Os milagres do cão Jerônimo Narração: 1ª pessoa Personagens: o cão Jerônimo Tempo: não definido Espaço: uma aldeia Temática: mistério, segredo, sagrado, magia, ocultismo, castigo Elementos: animal, fogo Conta a história misteriosa de um cachorro “branco, digno e nobre”, chamado Jerônimo, que vivia há muito tempo, em uma aldeia, em um tempo desconhecido. Todos o temiam e tinham por ele quase que um sagrado respeito. Diversas histórias fantásticas eram contadas sobre ele; em todas elas, o cachorro ajudava as pessoas, como um verdadeiro herói – o narrador conta quatro dessas histórias, que o povo diz serem verdadeiras, as quais eram narradas por seu avô, um velho caçador de borboletas. Mas, o que intrigava a todos mesmo era um mistério em torno do cão: ninguém nunca o vira abrir a boca, nem para latir nem para comer. Um dia, um jesuíta, de nome Sandor (nome de origem húngara, que significa “defensor e protetor da humanidade – observe que o nome não é em vão), teve “uma ideia destruidora”, convocou os fieis e colocou todos contra Jerônimo, dizendo que ele era conduzido pelo demônio e que, por isso, deveriam matá-lo. Jerônimo, portanto, aos olhos de Sandor, repre214

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sentava uma ameaça àquela comunidade. “No dia marcado, o enorme cão, impassível, encostado na porta da sacristia, era uma triste estátua de carne.” – pela descrição, percebe-se que o cão não representava perigo algum aos moradores da aldeia. Mas, incitados pelo padre, que primeiramente exorcizou o animal, sem que esse mostrasse alguma reação, e depois tentou pegar o animal, mas sem êxito, os fieis conseguiram pegar Jerônimo. “Foram necessários muitos homens para segurá-lo.” E aí aconteceu a tragédia: o padre abriu forçosamente a boca do bicho e dela saiu “uma extensa língua de fogo, serpente de infinitas chamas, enleou-se pelas vestes dos crentes, iniciando o mais terrível incêndio de que a humanidade tem notícia.” Aqui se verifica, novamente, a questão do castigo por se meter em algo divino, misterioso, assim como aconteceu os contos “As nove cantoras paralíticas” e “O Monge Astheros”. Também não se pode esquecer da referência feita pelo autor ao místico “fogo”, um dos quatro elementos, que está presente nas grandes religiões (tais como, Catolicismo, Hinduísmo, Judaísmo, Islamismo e Wicca), na alquimia, na astrologia e em várias crenças ancestrais como o Esoterismo e a Maçonaria.

EXERCÍCIOS 1. Marque as alternativas verdadeiras em relação à obra Os milagres do Cão Jerônimo e seu autor. 01. As personagens de Os milagres do Cão Jerônimo costumam seguir modelos arquétipos próprios, estabelecendo diálogos e intertextos com as mais diversas culturas e simbologias. 02. Péricles Prade é escritor, advogado e professor universitário. Também já ocupou o cargo de vice-prefeito de Florianópolis. 04. O livro é composto de 15 contos curtos, com espaço e tempo definidos. 08. A ficção de Péricles Prade é marcada pelo caráter insólito, pelo clima fantástico que se dá, sobretudo, pela quebra da normalidade, suscitada pela intromissão de algo estranho, não explicável pela lógica comum. Os milagres do cão Jerônimo

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16. A intertextualidade é presença constante nos contos de Os milagres do Cão Jerônimo. 2. Com base na leitura de Os milagres do Cão Jerônimo, de Péricles Prade, assinale as opções corretas e faça o somatório: 01. No conto “Alexandria”, um cavalo cai em uma biblioteca, em meio a livros e morre ao final da história 02. Em “O tapete indiano”, uma prostituta compra um tapete e o coloca em sua sala para recepcionar seus clientes com muita classe. 04. No conto “O pecado original”, o personagem-olho vive em uma caverna; ao final, fura-se e tenta o suicídio, mas não consegue. 08. A personagem Marcola descobre um segredo e, como castigo, fica paralítico – enredo do conto “As nove cantoras paralíticas”. 16. O conto em que os fieis exigem a expulsão de uma peregrina da Igreja de São Sebastião dos Humildes chama-se “O sábio”. 32. No conto “A dentadura”, o dono da dentadura era o Mr. Jones. 3. Marque a(s) assertiva(s) verdadeira(s) e faça o somatório. 01. No trecho do conto “A dentadura”: “Enquanto dormia, a dentadura saiu do vaso, tranquilamente, e caminhou até a cozinha onde comeu todo o bolo.” (p. 43), as palavras destacadas desempenham, respectivamente, o papel de: locução adverbial de lugar, advérbio de modo e pronome relativo. 02. Em: “Haverei de matar Rainer Maria Rilke, pensou.” (do conto “A simples morte pelo punhal”), o verbo grifado está no futuro do presente. Ao passarmos esse verbo para o presente do indicativo, de acordo com as normas gramaticais, ficará: “Hei de matar...” 04. O fragmento do conto “O tapete indiano”: “Diziam as vizinhas que ela o espancava de forma cruel.” É formado por duas orações. Na primeira delas, o sujeito é do tipo indeterminado (isso pode ser verificado pelo verbo “Diziam” na 3ª pessoa do singular) e, na segunda, sujeito simples, “ela”. 216

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08. Em: “Sandor, o violento Jesuíta, teve há poucos dias uma ideia destruidora” (do conto “Os milagres do Cão Jerônimo”), o trecho sublinhado é um aposto. 06.No trecho do conto “O sábio”: “O sábio, encantado, assustou-a, mostrando-lhe a língua.”, os vocábulos destacados exercem, respectivamente, a função sintática de: objeto direto e objeto indireto; morfologicamente, ambos são pronomes pessoais. 4. Observe o quadro Café à noite, do pintor van Gogh e um trecho do conto “No Museu”, de Péricles Prade e assinale a(s) alternativa(s) correta(s).

Fonte: História das Artes (2019).

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Texto 1 “Todos os dias, após o almoço, bate na porta da conhecida casa de arte (...) Há dez anos conversa com o homem de branco e de cabelos verdes que se mantém de pé, bem perto da mesa de snooker. São velhos amigos? O que o público não tem notado é a sensível modificação da bela pintura. O pintor de roxas faces, frustrado, fez um pacto com o homem de branco e de cabelos verdes: libertá-lo-ia do quadro se subvertesse todo o ambiente, pois odiava van Gogh, o grande gênio. E assim ocorreu. (...) Quando fez menção de levantar-se, o homem de branco e de cabelos verdes pergunta, baixinho, se não irá libertá-lo. - Ora, a libertação está em ti.” (PRADE, Péricles. No museu. In: Os milagres do Cão Jerônimo. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1999. p. 87-88)

01. No conto, Péricles Prade utiliza-se da intertextualidade para estabelecer um diálogo entre sua narrativa e a arte de van Gogh. 02. A pintura de van Gogh é classificada como pós-impressionista, e o conto de Prade, como pós-modernista. 04. Ao final, o pintor de roxas faces é assassinado pelo policial que cuida das obras de arte, o General Lipont. 08. A personagem do quadro, em troca de sua libertação, aceita o pacto feito pelo pintor de roxas faces. No entanto, ao final da história, como o pintor não cumpre sua parte, ele o mata com um punhal. 16. No trecho: “Quando faz menção de levantar-se, o homem de branco e de cabelos verdes pergunta, baixinho, se não irá libertá-lo.”, os termos sublinhados exercem a mesma função de pronome. 32. O conto faz parte do realismo fantástico de Péricles Prade.

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5. Associe o título a cada um dos enredos da obra Os milagres do Cão Jerônimo. ( 1 ) A filha do Rei Anjahamara ( 2 ) No hipódromo ( 3 ) As nove cantoras paralíticas ( 4 ) O sábio ( 5 ) O herói salva a cidade dentro de um sapato ( 6 ) A dentadura ( 7 ) O pecado original ( 8 ) O monge Astheros ( 9 ) Alexandria (10) A simples morte pelo punhal (11) O tapete indiano (12) A maravilhosa história de um tatu (13) A perna (14) No museu (15) Os milagres do cão Jerônimo (( ) Conta a história de um tatu loiro que tinha uma catarata cor de abóbora. (( ) Um pintor faz um pacto com a personagem de uma tela de van Gogh, mas não o cumpre. Ao final, a personagem mata o pintor enfiando-lhe um punhal nas costas (( ) Conta a história de nove meninas que eram belas cantoras e nunca envelheciam, tinham sempre a mesma voz e beleza. (( ) É a história de um estranho e misterioso cachorro que não abria nunca a boca, nem para latir nem para comer. Um dia, tentaram abri-la e dela saiu muito fogo, causando um grande incêndio. (( ) Um animal cai entre os livros de uma biblioteca, não aguenta e morre. (( ) Um Rei, na tentativa de salvar sua pequena filha, passa parte de sua vida caçando abelhas. (( ) Um escritor fracassado se mata ouvindo murmúrios da poesia de Os milagres do cão Jerônimo

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(( (( (( (( ((

Rainer Rilke. ) O narrador vai a uma corrida de cavalos e vê cavalos alados voando. ) Uma prostituta espancava um tapete; um dia, ele resolveu se vingar dela, enforcando-a. ) Uma cidade está sendo inundada, e aparece um herói para salvar a população. ) Um homem tem uma de suas pernas transformada em mármore e sente-se orgulhoso daquilo. ) Uma dentadura, ao sair à noite, presencia um caso de estupro. Ao tentar ajudar a menina, é esmagada.

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MELHORES

CONTOS


MELHORES CONTOS Autora: Lygia Fagundes Telles Escola literária: Pós-Modernismo – 3ª geração do Modernismo Ano de publicação: 1982 Gênero: Contos Divisão da Obra: 16 contos

A AUTORA Lygia Fagundes Telles (1923) Nasceu em São Paulo, é romancista e contista. Formou-se em Direito e Educação Física, mas amava a literatura. Recebeu vários prêmios importantes por seus contos e romances e foi a primeira mulher brasileira a ser indicada ao prêmio Nobel de Literatura em 2016. O estilo de Lygia Fagundes Telles é caracterizado por representar o universo urbano e por explorar de forma intimista a psicologia feminina. Ocupa a Cadeira nº 16 da Academia Brasileira de Letras.

Bibliografia Principais obras: Contos: Porão e Sobrado (1938); O Cacto Vermelho (1949); Histórias do Desencontro (1958); O Jardim Selvagem (1965); Antes do baile verde (1970); Seminário dos Ratos (1977); Mistérios (1981); Histórias de Mistérios (2004); Passaporte para a China (2011); Romances: Ciranda de Pedra (1954); Verão no Aquário (1964); As Meninas (1973); As Horas Nuas (1989). 222

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A ESCOLA LITERÁRIA Pós-Modernismo (a partir da década de 1945) A obra de Lygia Fagundes Telles está situada pela crítica no período pós-modernista, que nasceu em 1945, mas teve nos anos 60 uma época de grandes mudanças devido às descobertas tecnológicas, sociais, artísticas, científicas e arquitetônicas. Nessa época, enquanto a poesia firmava suas características no Concretismo, a prosa segue por diferentes estilos, adotando várias tendências: regionalista, intimista, urbana, realista-fantástica, política, psicológica, etc. São escritores desse período: Guimarães Rosa, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Nelson Rodrigues, Adélia Prado, Autran Dourado, Augusto e Haroldo de Campos, João Ubaldo Ribeiro, Mário Quintana, Lygia Fagundes Telles, Ariano Suassuna, Osman Lins, Nélida Piñon, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Luis Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes, Moacyr Scliar, Carlos Heitor Cony, Moacyr Scliar, João Antônio, Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles, João Ubaldo Ribeiro, Caio Fernando Abreu entre outros. (Mais detalhes da Literatura Contemporânea, você poderá conferir na análise da obra obra Quarto de despejo: diário de uma favelada).

SÍNTESE DA OBRA Verde lagarto amarelo Ano: 1960 Temática: lembranças da infância, frustração, relacionamento familiar, solidão Personagens: Rodolfo e Eduardo (irmãos) Narração: 1ª pessoa – Rodolfo Melhores Contos

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Eduardo chegou silenciosamente à casa do irmão e chamou-o: “- Rodolfo!” Estava sozinho, como sempre (morava só), lendo Dostoiévski. Ele deixou a pasta na cadeira e abriu um pacote de uvas roxas. Rodolfo jogou o paletó por cima da mesa, sobre um conto que começara a escrever – era escritor. A uva, de tão doce, provocou-lhe náuseas. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto. (aqui se percebe o uso da metalinguagem: a escrita falando da escrita) - Trouxe também uma coisa... Mostro depois. – disse Eduardo. Rodolfo lembrou-se de que ele sempre fora assim, desde pequeno; ficava ansioso quando tinha uma surpresa para lhe mostrar. E recorda-se também que o irmão sempre fora um rapaz bonito: o cabelo louro, a pele bronzeada de sol, as mãos de estátua, e os olhos “cor de violeta”, como dizia a mãe. Começaram a relembrar o passado: a tia, a mãe, a parreira de uvas que nunca dera um cacho (Rodolfo comia tudo antes de amadurecer). Durante a conversa, Eduardo convida o irmão para ir a sua casa no domingo: a Ofélia releu seu romance e ficou no maior entusiasmo. Rodolfo tentou fugir, mas o irmão insistiu: então no sábado! Enquanto foi para a janela na tentativa de fugir dos olhares do irmão, deparou-se com as lembranças da infância: Será que ele não vê que para mim foi só sofrimento? Por que não me deixa em paz? Por que tem que vir aqui e ficar me espetando, não quero lembrar nada, não quero saber de nada. Eduardo trazia recordações muito ruins para Rodolfo; enquanto Rodolfo, o filho mais velho era gordo, suava muito (ah! O suor! A mãe odiava. A roupa dele ficava cheia de manchas amarelas.), Eduardo era a perfeição de filho, o preferido da mãe: nunca se sujava, mantinha sempre a pele fresca. E lembra: Era menino ainda mas houve um dia em que quis morrer para não transpirar mais. – esse era um de seus traumas: a sudorese em excesso. Enquanto fazia o café, as lembranças da mãe lhe vinham à mente. 224

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Eduardo lhe conta que sonhara com a mãe – mas Rodolfo também havia sonhado; e no sonho era magro, dançava alegremente com a mãe quando, de repente, o suor começou a escorrer. Seu vestido branco se empapava do meu suor amarelo-verde mas ela continuava dançando, desligada, remota. Disse ao irmão que havia sido uma “valsa póstuma” que dançara com a mãe (ou seja, no sonho, ela já estava morta). Tomaram café na xícara de porcelana que fora da mãe – Rodolfo deu a xícara perfeita para o irmão e ficara com a que estava rachada (aqui podemos fazer uma alusão à forma como Rodolfo se sentia: o irmão mais novo era perfeito para a mãe – a xícara perfeita – e ele, o problemático: a xícara rachada). Essa foi a única recordação que quis da mãe; todo o resto ele deixara para Eduardo, mesmo a contragosto do irmão. E vinhalhe a voz da mãe: “Rodolfo, por que você há de entristecer seu irmão?” Sem muito interesse, Rodolfo perguntou para quando seria o filho que ele e a esposa Ofélia estavam esperando. Eduardo observava atentamente cada movimento do irmão, enquanto ele fazia o café, e isso incomodava Rodolfo. Enquanto estava procurando a lata de açúcar, uma barata fugiu, escondendo-se embaixo de uma tampa de panela e logo uma outra maior se despencou não sei de onde e tentou também o mesmo esconderijo, mas não consegue porque a outra ali está. Em seguida Rodolfo pensa: ah, o mesmo humano desespero na procura de um abrigo – aqui podemos perceber mais uma metáfora para a situação dos irmãos: só havia espaço para um deles – o irmão menor (a barata menor), pois a barata maior (Rodolfo) não cabia no buraco, não cabia no coração da mãe). Eduardo convida Rodolfo para ser o padrinho – o irmão repudia, tem ânsia de vômito, mas Eduardo insiste. Ao perguntar ao irmão se era essa a surpresa, Eduardo diz que não, que era outra coisa; e faz suspense. Voltam-lhe as lembranças da infância. Sempre quis que ele o esquecesse – a perfeição do irmão o incomodava; quando criança fugia para o porão, escondia-se, subia na figueira, ficava imóvel, um lagarto no vão do muro. Mas o irmão sempre o achava – desde menino estava condenado ao seu fraterno amor. Melhores Contos

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E veio a lembrança de quando a mãe ficara doente, e o pai lhe contara a verdade, mas disse que a mãe o proibira de contar ao irmão mais novo: não queria que ele sofresse. Em seu leito de morte, no dia do aniversário dela, ficaram reunidos em redor da cama. “Laura é como o rei daquela história – disse meu pai – só que ao invés de transformar tudo em ouro, quando toca nas coisas, transforma tudo em beleza.” (repare aqui a intertextualidade com a história do Rei Midas). Rodolfo lembra que chorava muito e pousou sua cabeça perto da mão da mãe para receber um afago, mas ela só via o broche, um caco de vidro que Eduardo achou no quintal e enrolou em fiozinhos de arame. E o arame ficou sendo prata e o caco de garrafa ficou sendo esmeralda. Foi o broche que lhe fechou a gola do vestido. Quando me despedi, apertei sua mão gelada contra minha boca, e eu, mamãe, e eu?... (aqui mais uma lembrança do desprezo que a mãe nutria por ele, segundo suas lembranças; repare que a frase: “Foi o broche que lhe fechou a gola do vestido.” representa uma metáfora indicando a morte, “fechou a gola do vestido”; e o broche representa o amor do irmão, ou seja, foi com essa imagem, a do filho preferido, que ela partiu, mesmo sendo o filho mais velho quem estava ali, fisicamente, com ela – esse sentimento de tristeza ainda perturbava Rodolfo. Conversavam trivialidades enquanto comiam sequilhos – lembraramse de que a mãe fazia uns maravilhosos. Rodolfo se lembra de mais um episódio da infância: enquanto ele tomava chá, a mãe servia o irmão com chocolate quente e sequilhos. Para puxar assunto e tentar alegrar o irmão, Eduardo diz que procurara o romance de Rodolfo nas livrarias, mas disseram que estava esgotado – estava vendendo bem. Mas os sequilhos fizeram-no recordar, ainda, de um outro trauma: da mãe brigando com ele porque comia muito, estava muito gordo. “Mas, filho, comendo de novo?! Quer engordar mais ainda? Onde está seu irmão?” Encolhi os ombros. Não sei, não sou pajem dele. (aqui, segundo os críticos, pode-se ter mais uma intertextualidade com a Bíblia, na 226

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passagem em que Deus pergunta a Caim: “Onde está teu irmão Abel? E ele respondeu: Não sei. Porventura sou eu o guarda de meu irmão?” – na Bíblia, Caim sente inveja de Abel, que é o predileto do Senhor). Ao dizer aquilo à mãe, saiu correndo para salvar o irmão, que estaria brigando com Júlio, um garoto da rua – imaginara que o rapaz teria enfiado um canivete em sua barriga, mas Eduardo apenas havia torcido o pé. E fora Rodolfo quem trouxera o irmão para casa. Trouxe-o em suas costas, pois ele não conseguia andar: era tão magro. Mas pesava como chumbo. (Eduardo sempre fora um peso para Rodolfo). Mas o irmão o agradeceu: “Que bom que você veio me buscar...” Após essa introspecção do irmão, Eduardo, de novo, para puxar conversa, pergunta se o irmão estava escrevendo um novo romance, pois vira os manuscritos sobre a mesa. Rodolfo os esconde, diz que não, e ao mesmo tempo adivinha a surpresa do irmão. Olhei para a pasta na cadeira e adivinhei a surpresa. Senti meu coração se fechar como uma concha. A dor era quase física. Olhei para ele. Você escreveu um romance. É isso? Os originais estão na pasta... É isso? Ele então abriu a pasta. (Nesse final, o texto sugere que Eduardo também se tornara escritor, para desespero de Rodolfo, pois a única coisa que o tornava “melhor” que o irmão era o seu talento na escrita; mas isso, agora Eduardo também lhe “roubara”). O título do conto: a figura do lagarto, de acordo com o dicionário de símbolos, simboliza a procura da luz – este animal pode ficar horas no sol e é muito tímido, por isso, solitário; suas lições falam muito em solidão e autoestima baixa. O lagarto pode, ainda, ser associado ao camaleão, que muda de cor de acordo com o ambiente. Toda essa explicação remete ao título do conto: o lagarto, como sendo Rodolfo, homem solitário, “estranho”, inteligente; e as cores do título podem remeter a essa associação com o camaleão: de verde ele passa a ser amarelo, seria a sua transformação, a sua adaptabilidade ao ambiente (também não se pode Melhores Contos

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esquecer que Rodolfo diz que seu suor era “amarelo” – a referência à cor também pode ser feita nesse sentido). Apenas um saxofone Ano: 1970 Temática: solidão, existencialismo, busca do eu Personagem: Luisiana Narração: 1ª pessoa – Luisiana Este conto traz como personagem central a própria narradora: Luisiana, uma prostituta rica de “quarenta e quatro anos e cinco meses”. Nessa fase de maturação, ao ver-se solitária e rica, questiona a felicidade. Repare que a mulher é uma prostituta, e isso ela deixa bem claro na narrativa “Tenho um velho que me dá dinheiro, tenho um jovem que me dá gozo e ainda por cima tenho um sábio que me dá aulas sobre doutrinas filosóficas com um interesse tão platônico que na segunda aula já se deitou comigo”; no entanto, não existe um julgamento moral de si por causa dessa condição. É prostituta e ponto final. A narrativa também não enfoca o lado erótico, mas sim a questão existencial. Luisiana inicia a narrativa citando um verso de Xenofonte: “Merde! Voilà l’hiver”1. E reflete sobre sua condição de mulher: não deveria dizer palavrões! Aprendi com ele que palavrão em boca de mulher é como lesma em corola de rosa”. Mas, em língua estrangeira, estaria perdoada, segundo ela mesma. Está em sua luxuosa casa, olhando seus móveis e objetos riquíssimos – sentia menos frio quando estava no apartamento humilde de antigamente. Despedira todos os seus empregados e estava pensando no que valia aquilo tudo. Comparou sua “escuridão” com a escuridão da sala: É que fomos escurecidas juntas, a sala e eu. Nessas reflexões sobre a vida, começa a pensar em como era explorada – o fato de ser rica fazia dela um 1 “Merda! chegou o inverno”

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alvo de oportunistas. Lembra-se de Renê, um decorador que a explorava e a enganava trazendo-lhe objetos que dizia ser relíquias – ela se deixava enganar por puro prazer de vê-lo bajulando-a. Enquanto pensa em sua existência bebe, bebe muito. Repara em seu retrato em cima da lareira que fora pintado por um suposto namorado de Renê. Para agradá-la, ele pintou a face de uma mulher muito mais nova do que realmente era “Um ectoplasma muito mais jovem do que eu”, vestida com uma túnica muito branca: uma Dama das Camélias2 voltando do campo. Meu nome é Luisiana, me diz agora o ectoplasma. Há muitos anos mandei embora meu amado e desde então morri. Trocaria o diamante, o sapato de fivela, o iate para poder ouvir um pouco que fosse a música do saxofone. Nem seria preciso vê-lo, juro que nem pediria tanto, eu me contentaria em saber que ele estava vivo, vivo em algum lugar, tocando seu saxofone. E Luisiana começa a contar como conheceu aquele que ela amava, o homem que tocava saxofone. Quero deixar bem claro que a única coisa que existe para mim é a juventude. Ele era a minha juventude – ele e seu saxofone, mas naquele tempo eu não sabia. Conhecera-o em uma festa de casamento e já se apaixonara. A primeira vez que nos amamos foi na praia. E foi lá também que ele a batizou de “Luisiana”: “Agora você se chama Luisiana.” Acreditava em Deus, e isso fê-la acreditar também. Levou-a para seu apartamento em um prédio muito velho. Amava tocar, era autodidata. Nesse tempo, nossa vida foi tão maravilhosamente livre! Ele contava várias versões diferentes sobre sua vida, sobre quem ele era, dizia que tinham de ser criativos e inventar sempre. Um dia, ela começou a querer provas de amor – e foi aí que tudo começou a desandar... Se você me ama mesmo, suba então naquela mesa e grite vocês são todos uns cornudos! Se você me ama mesmo, me leva agora a um restaurante, me compre já aqueles brincos, me compre imediatamente um vestido novo! E ela foi ficando cada vez mais cara, e ele começou a trabalhar muito para satisfazer as vontades dela. Até que 2 Intertextualidade com a obra de Alexandre Dumas, “A dama das camélias”.

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um dia, ele falou: “Luisiana, você é a minha música e eu não posso viver sem música.” Aquilo para ela foi o fim. Não queria o peso de toda essa responsabilidade. Resolveu deixar seu amor “apodrecer”. E agora se perguntava onde ele estava. Chorou. Se você me ama mesmo, eu disse, se você me ama mesmo então saia e se mate imediatamente. E o conto termina dessa maneira. Importante reparar que o conto foca na preocupação de Luisiana na busca de reparar o engano cometido com seu amor da juventude. Por isso sua preocupação e seu remorso em saber se, pelo menos, ele está vivo. Antes do baile verde Ano: 1970 Temática: carnaval, morte, mesquinharia humana, egoísmo Personagens: Tatisa (patroa), Lu (empregada), Raimundo (namorado de Lu) e o pai de Tatisa Narração: 3ª pessoa, narrador observador Este conto aborda com veemência a questão do egoísmo de uma filha que, na ânsia de ir a um baile de carnaval, despreza o fato de o pai estar morrendo. Na incapacidade de assumir suas falhas, ela transfere a culpa aos outros (para Lu e o médico). Os sentimentos da moça são, ao mesmo tempo, de culpa, consciência pesada (de deixar o pai em casa, morrendo) e de medo (reação do namorado caso ela se atrasasse) – entre os dois, ela fica com o namorado. Tatisa e Lu estão no apartamento preparando-se para o Baile Verde de carnaval. A empregada, Lu, avisa que terá de ir embora rápido: “O Raimundo já deve estar chegando, ele fica uma onça se me atraso. A gente vai ver os ranchos, hoje quero ver todos.” Tatisa, que ainda estava colando lantejoulas em sua saia verde, para o baile, pede ajuda a Lu que, contrariada, fica mais um pouco. Estão conversando trivialidades quando, de repente, Lu diz que foi ao quarto do pai de Tatisa: “Ele está morrendo.” – disse ela. Tatisa disfarça 230

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e muda de assunto. Mas depois, com a consciência pesada retoma a conversa: - Você acha, Lu? - Ah, está sim. Ele não passa desta noite. - Mas você já se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que estava nas últimas... E no dia seguinte ele já pedia leite, todo radiante. - Radiante? – espantou-se a empregada – E depois eu não disse a senhora que ele ia morrer, eu disse que ele estava ruim. - Mas quando fui lá ele estava dormindo tão calmo, Lu. - Aquilo não é sono. É outra coisa. Tatisa pega a garrafa de uísque e começa a tomar; a empregada manifesta preocupação com o namorado, que estava a esperá-la, mas Tatisa a obriga a ficar ali para que ela a ajudasse em sua fantasia. De repente, a moça explode: - Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Quer que eu cubra a cabeça com cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está querendo? Que é que eu posso fazer? Não sou Deus, sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu? De repente, sua atenção volta-se para o baile, estava ansiosa, sentia muito calor. Começam a conversar trivialidades. Em seguida, Tatisa volta a falar do pai: “- Ele não pode estar morrendo, não pode.” E diz que naquela manhã esteve lá olhando o pai e ele pareceu estar muito bem: “Ele até me reconheceu, ficou me olhando, me olhando e depois sorriu. Você está bem papai?, perguntei e ele não respondeu mas vi que entendeu perfeitamente o que eu disse. Depois ela diz que até escorreu uma lágrima escura do lado do rosto que estava paralisado. - Ele estava se despedindo. - Lá vem você de novo, merda! Pare de bancar o corvo, até parece que você quer que seja hoje. E Tatisa manda a empregada ir lá ver o pai, mas ela se recusa, precisa terminar a fantasia. - Aquele médico miserável. Tudo culpa daquela bicha. Eu bem disse Melhores Contos

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que não podia ficar com ele aqui em casa, eu disse que não sei tratar de doente, não tenho jeito, não posso. Tatisa se queixa da empregada, e esta se defende dizendo que o pai não era dela. A patroa a acusa de “egoísta”, mas sua preocupação se volta para o baile, depois para o pai, depois para o uísque; Lu pensa em Raimundo, que a estava esperando, até que disse à patroa: - Você não ouviu? - O quê? - Parece que ouvi um gemido. Ela abaixou o olhar. – Foi na rua. Tatisa ainda tenta subornar a empregada oferecendo-lhe suas roupas, mas a mulher diz que esta noite ela não poderia. Terminaram a fantasia já era quase meia-noite. Lu queria ir embora, mas Tatisa ordenou que a esperasse. Falavam baixinho, andavam na ponta dos pés. Pararam no topo da escada. Foi a preta quem primeiro se moveu. A voz era um sopro: - Quer ir dar uma espiada, Tatisa? - Vá você, Lu... Nenhuma das duas foi. Decidiram ir ao carnaval, mesmo com sem a certeza de que o velho estivesse vivo. Eu era mudo e só Ano: 1958 Temática: casamento saturado, comodismo, relacionamento marido e mulher, busca do eu Personagens: Manuel e Fernanda (marido e mulher) Narração: 1ª pessoa - Manuel Manuel e Fernanda estão casados há 12 anos, possuem um casamento “perfeito”, mas caíram no comodismo. O homem se sente entediado pelo excesso de cuidados que a mulher tem para com ele, distanciara-se dos amigos e de sua profissão, sente-se solitário e não consegue sair 232

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dessa situação. A superior situação financeira da família de Fernanda contribuíra para isso. Fernanda está no quarto lendo, quando Manuel chega e começa a observá-la. Ele repara na forma elegante como ela está vestida e, pela descrição do quarto, percebe-se um ambiente rico. Falou à mulher que estava com vontade de sair, de tomar um chope, mas não teve coragem. Em seu monólogo interior, Manuel diz que a mulher sempre está atenta a todos os seus atos – seu olhar é mais preciso do que a máquina japonesa que comprou numa viagem: “Veja – disse mostrando a fotografia – até a sombra da asa da borboleta a objetiva pegou.” De repente, pensa alto: - E se não vê a sombra das minhas asas é porque elas foram cortadas. Era exatamente assim que ele se sentia, de asas cortadas, podado. Sente-se só, vai para a janela, lembra-se do amigo Jacó, que lhe dissera que a mulher, ao casar, pode tomar dois rumos: ou fica super amiga, ou fica de fora; no primeiro caso, pode virar tão amigona, gostar tanto de seus amigos, que acabará dormindo com um deles; no segundo, conseguirá afastar todos os amigos do marido. E essa segunda opção foi a que ocorreu com ele. A mulher reparou que ele estava com ares de cansado; precisava ir a um oftalmo. Ele pensou que precisava parar de esfregar os olhos, porque a mulher iria obrigá-lo a fazer uma consulta. E repensa sua situação: - Eu era mudo e só na rocha de granito. Fernanda julgou essa frase uma poesia barata. Só gostava de literatura cult. A mulher mudou o assunto dizendo que a filha Gisela ganharia uma medalha por distinção em inglês. E ele começou a pensar que a filha tinha os mesmos modos supérfluos da mãe – era igual. Lembrou-se também da família dela, do pai, o senador que o forçara a largar sua profissão para trabalhar com ele, com máquinas, tratores. Nunca tivera coragem para dizer que odiava aquilo. Olhou para a mulher, a cena era perfeita, de um cartão-postal, ela lendo sob a luz do abajur. Pensou que algo poderia acontecer para quebrar Melhores Contos

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a rotina: a morte dela, ou se ela tivesse um amante, enfim, algo desagradável e chocante. Mas nada disso acontecera. Incrivelmente distantes. Imagina-se indo para o cais, pegando um navio para Sumatra ou Hong Kong, fugindo da mulher e da sua vida ordinária. Estava na janela sonhando com isso, quando a mulher pede que ele feche a janela. Ele sente que era tarde demais para mudar. Estava perdido. Através do vidro, as estrelas pareceram-lhe incrivelmente distantes. Fechou a janela. As pérolas Ano: 1958 Temática: morte, relacionamento marido e mulher, desconfiança Personagens: Tomás e Lavínia (marido e mulher) Narração: 3ª pessoa Narra um diálogo entre Tomás e a esposa Lavínia, e introspecções do marido enquanto ela se arruma para ir a um jantar. Lavínia está na frente do espelho se arrumando; ele a observa, estava mais bonita que antes, mais magra – “Quando a visse, Roberto também pensaria o mesmo”. Roberto era um amigo do casal, um “galanteador” que gostava de sua esposa, aos olhos de Tomás. Tomás estava doente, e a mulher mostra preocupação com seu estado de saúde. Em suas reflexões, ao ver a mulher se arrumando tanto, já não sabia mais o que era pior: a doença ou a propensa traição. Aos poucos, ele começa a pensar e a projetar imagens de como seria o encontro entre o amigo e a esposa: “ o certo é que ficariam sozinhos uma parte da festa, apoiados no gradil dentro da noite escura. Só os dois, lado a lado, em silêncio. O braço dele roçando no braço dela. O piano.” Seria triste pensar, por exemplo, que enquanto ele ia apodrecer na terra ela caminharia ao sol de mãos dadas com outro? – pensava Tomás. Enquanto pensava na traição, estava tão absorto do mundo real que, de vez em quando falava algumas palavras ou frases em tom alto, e a mulher acabava dialogando com ele. 234

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– Ai! essa reunião. Estou com tanta vontade de ir como de me enforcar naquela porta. Vai ser uma chatice, Tómão, as reuniões lá sempre são chatíssimas, tudo igual, os sanduíches de galinha, o uísque ruim, o ponche doce demais… E ele a incentivava a ir... no entanto, por dentro, queria muito que ela dissesse que não iria mais, que ficaria com ele. Ele diz que Roberto iria; já fazia mais de um ano que ele sumira. Pede para que a mulher lhe prometa que irá dizer como foi a festa. Ela promete, mas ele pensa que não diria; seria, então, o primeiro segredo entre os dois. Encolheu-se no fundo da poltrona, uma mão escondida na outra, caramujo gelado rolando na areia, solidão, solidão. “Lavínia, não me abandone já, deixe ao menos eu partir primeiro!” A boca salgada de lágrimas. “Ao menos eu partir primeiro…” Retesou o tronco, levantou a cabeça. Era cruel. “Não podem fazer isso comigo, eu ainda estou vivo, ouviram bem? Vivo!” Diante do espelho, ela se vê com o vestido preto – e preto foi o vestido que chamou a atenção de Roberto dois dias antes do casamento de Tomás. Quando Roberto viu Lavínia vestida de preto, com o colar de esmeraldas rosas (falsificadas) que Tomás dera a ela, ele a elogiou muito. Em sua mente, Tomás imaginava que Roberto dizia: “Fique com ela, fique com ela por enquanto. Depois veremos.” Depois era agora”. Como se sentia impotente mediante aquela situação, afinal não podia impedir que os dois se encontrassem tempos depois e ficassem juntos, Tomás escondeu o colar de pérolas que Lavínia iria usar – pelo menos, na cena projetada em sua cabeça, faltaria uma peça naquele cenário de amor. Lavínia procurou muito, tinha certeza de que minutos antes ele estava ali. Mas vai para a reunião sem o colar. No quarto, sozinho, Tomás sentiu-se vitorioso – pegara o colar! No entanto, segundos depois, ele vai até a janela e chama a mulher. – Lavínia! Lavínia! Achei seu colar de pérolas. Tome – disse, estendendo o braço. Deixou que o fio lhe escorresse por entre os dedos.

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Herbarium3 Ano: 1977 Temática: amor, inocência, adolescência Personagens: uma menina e seu primo Narração: 1ª pessoa – menina narradora Conta a história de uma menina (provavelmente uma adolescente) a qual se apaixona por um primo mais velho que, por motivos de doença, vai passar uns dias na casa dela. O rapaz veio passar uns dias no sítio da tia; era portador de uma doença da qual não temos conhecimento durante todo o conto - Que doença era essa que o fazia cambalear, esverdeado e úmido quando subia rapidamente a escada ou quando andava mais tempo pela casa? Moravam ali também mais duas tias: tia Marita e tia Clotilde, que fazia a leitura de mãos. Não se tem muita informação sobre o rapaz, apenas que ele gostava muito de plantas e que possuía um herbário no qual depositava amostras de folhas. Era uma noite muito fria quando ele chegou; a menina foi-lhe levar uma xícara de chá na cama e percebeu o quanto ele tremia – É o frio – pensou; mas depois viu que não, que isso era uma constante nele. Nesse dia, ele lhe perguntou: “Quer ser minha assistente? A insônia me pegou pelo pé, ando tão fora de forma, preciso que me ajude. A tarefa é colher folhas para minha coleção, vai juntando o que bem entender que depois seleciono. Por enquanto, não posso mexer muito, terá que ir sozinha” Prontamente ela aceitou o convite, e aquela tarefa mudou sua vida: Todas as manhãs eu pegava o cesto e me embrenhava no bosque, tremendo inteira de paixão quando descobria alguma folha rara. Seu objetivo era impressioná-lo; tinha medo de ir ao mato e passara a ir todos os dias lá; deixou de roer unhas; não gostava do latim, mas como as plantas tinham nomes latinos, ela até recuperou seu dicionário dessa língua; parou de mentir tanto (quando mentia era para impressionar o rapaz, em 3 Em latim, significa: coleção de plantas.

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sua saga pela folha almejada), encompridou suas saias para que ele não visse suas pernas finas e cheias de marcas da infância, enfim, mudou seu comportamento e passou a viver em função do primo. Um dia, tia Clotilde teve uma previsão: no fim da semana viria uma amiga buscá-lo, uma moça muito bonita, podia ver até a cor do seu vestido de corte antiquado, verde-musgo. Os cabelos eram compridos, com reflexos de cobre, tão forte o reflexo na palma da mão! Não. Não existia ninguém de cabelo de cobre que no fim da semana ia aparecer para buscá-lo, ele não ia embora nunca mais, NUNCA MAIS! – pensou a menina. O primo alcançava melhoras, e já saíra do quarto. Ela estava muito feliz. Quando lhe entreguei a folha de hera com formato de coração (um coração de nervuras trementes se abrindo em leque até as bordas verde-azuladas) ele beijou a folha e levou-a ao peito. Espetou-a na malha do suéter: “Esta vai ser guardada aqui.” No sábado, a moça que tia Clotilde previra nas cartas chegou. A menina havia ido catar as folhas; achara uma que a deixou impressionada: Tinha a forma aguda de uma foice, o verde do dorso com pintas vermelhas irregulares como pingos de sangue. Uma pequena foice ensanguentada. Escondi a folha no bolso, peça principal de um jogo confuso. Essa eu não juntaria às outras folhas, essa tinha que ficar comigo, segredo que não podia ser visto. Nem tocado. Tia Clotilde previa os destinos mas eu podia modificá-los, assim, assim! e desfiz na sola do sapato o cupim que se armava debaixo da amendoeira. Fui andando solene porque no bolso onde levara o amor levava agora a morte. Ao saber, por tia Marita, que a moça chegara, a menina ficou chocada; parecia que o mundo desabara sob seus pés. Quando olhou, viu os dois pela janela – a moça era igual à descrição feita por tia Clotilde. Quando me viu, veio até a varanda no seu andar calmo. Mas vacilou quando disse que esse era nosso último cesto, por acaso não tinham me avisado? O chamado era urgente, teriam que voltar nessa tarde. Sentia perder tão devotada ajudadora mas um dia, quem sabe?... Precisaria Melhores Contos

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perguntar à tia Clotilde em que linha do destino aconteciam os reencontros. Mas, ele, que já a conhecia, reparou que ela estava escondendo algo; insistiu para que ela lhe mostrasse, e ela a entregou a ele a sua folha. Pomba enamorada ou uma história de amor Ano: 1977 Temática: amor não correspondido, desilusão, conflitos individuais, superstições, crenças, solidão Personagens: uma moça (Pomba enamorada) e Antenor (um rapaz grosseiro) Narração: 3ª pessoa Este conto narra a história de uma moça, a “Pomba enamorada” que se apaixona por um rapaz muito grosseiro. Ao sentir que sua paixão não é correspondida, ela passa a assediá-lo, enviando-lhe presentes, telefonando-lhe, mandando-lhe cartas, invadindo sua privacidade e sua vida profissional (que já era bagunçada); como resposta a esse amor doentio, ele fica cada vez mais arredio e indignado com ela. Esse “repúdio” acaba gerando na moça consequências drásticas. O tempo passa, eles se casam com outras pessoas, mas ela nunca o esquece. A moça encontrou o rapaz pela primeira vez quando foi coroada princesa no Baile da Primavera. Ele a tirou para dançar, e ela ficou muito nervosa. Durante a dança, disse-lhe que ela deveria ter sido a rainha, porque a rainha é uma bela bosta ao que a moça rebateu e disse que foi graças ao namorado da outra que comprou todos os votos. Em seguida, ele pediu-lhe licença, iria na rua fumar. E não mais voltou. Ela o procurou por todo lugar; o diretor do clube disse que o vira sair logo depois da valsa, todo atracado com uma escurinha de frente única. A garota estava apaixonada e, de tanto procurar, conseguiu achar o paradeiro do rapaz. Foi até uma oficina de automóveis e o encontrou. Ele não a reconheceu e tratou-a com rudeza: Mas ninguém tem este 238

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endereço, porra, como é que você conseguiu? E a enxotou dali. Ela foi à Igreja dos Enforcados, acendeu sete velas para as almas mais aflitas e começou a Novena Milagrosa em louvor de Santo Antônio, isso depois de telefonar várias vezes só pra ouvir a voz dele. No sábado, viu que seu signo, Capricórnio, anunciava um dia maravilhoso e resolveu ligar para ele, do salão de beleza em que trabalhava, mas falou tão baixinho que ele precisou gritar, Fala mais alto, merda, não estou escutando nada. Ela então se assustou com o grito e colocou o fone no gancho, delicadamente. Depois, com a ajuda de Rôni, e com um gole de vermute, ligou novamente, identificou-se, sugeriu um cinema, mas o telefone ficou mudo do outro lado. Rôni pegou o telefone, e o rapaz foi muito ríspido, disse que não era mais para ligarem, pois estava comprometido. Se ele quisesse, ele mesmo telefonaria: Ela que espere, porra. Esperou. Depois disso, a moça resolveu escrever-lhe várias cartas e passou a assinar como “Pomba Enamorada”. Ele não respondeu a nenhuma delas, mas ela não se importava com isso; começou, inclusive a fazer um suéter de tricô para ele. Outras vezes pediu que Rôni telefonasse a ele (e ele respondia grosseiramente); depois resolveu cercá-lo na saída do serviço, chovia muito; ele a levou ao ponto de ônibus – estava muito indignado com a derrota do Corinthians; falou palavrões e pediu pelo amor de Deus que ela não mais o procurasse. Sem se deixar abalar, ela volta à Igreja dos Enforcados, acende velas, depois faz simpatias com Santo Antônio, dorme com um galhinho de arruda debaixo do travesseiro; pede dinheiro emprestado, compra champanhe e cigarros e coloca-os na encruzilhada, consulta pais e mães de santo, faz feitiços para trazer o amado de volta, mas de nada adianta. No último dia do ano, Rôni diz a ela que Antenor iria se casar. Desmaiou ali mesmo, em cima da freguesa que estava no secador. Ficou doente e tentou mais feitiços. Sem resposta, foi atrás dele. Dessa vez, foi Gilvan, um chofer de praça, amigo de Antenor, que disse a ela que naquele dia ele estaria se casando.

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Dessa vez não chorou. Comprou um presente, um licoreiro, mandou-lhe de presente e assinou no cartão P.E. (Pomba enamorada). Foi para casa e tomou soda cáustica. Saiu do hospital cinco quilos mais magra, amparada por Gilvan de um lado e por Rôni do outro. Passou, ela disse a Gilvan num fio de voz. Nem penso mais nele. Mentira! Dias depois escrevera a Antenor, que agora já era manobrista, dizendo-lhe que quase havia morrido, mas se arrependia do gesto tresloucado que lhe causara uma queimadura no queixo e outra na perna, que ia se casar com Gilvan que tinha sido muito bom no tempo em que esteve internada e que a perdoasse por tudo o que aconteceu. Seria melhor que ela tivesse morrido porque assim parava de encher o saco, Antenor teria dito quando recebeu o bilhete que picou em mil pedaços. Quando engravidou, mandou um postal para Antenor – ele agora morava em Piracicaba com a mulher e as gêmeas; ela dizia-se feliz. Quando o filho fez 3 anos, ela mandou-lhe uma carta desejando-lhe felicidades, agora como chofer de ônibus. O tempo passou e, no dia do casamento de sua filha mais nova, de brincadeira, ela pediu a uma cigana que deitasse as cartas e lesse seu futuro. A cigana disse que, no próximo domingo, chegaria um homem cujo nome começava com a letra “A”, na estação rodoviária, e que iria mudar por completo sua vida. Mesmo dizendo que não acreditava mais nisso, ela, sabendo que Antenor era chofer de ônibus, vestiu o vestido azul-turquesa das bodas de prata, deu uma espiada no horóscopo do dia (não podia ser melhor) e foi. Seminário dos ratos Ano: 1977 Temática: Conto fantástico (social: corrupção, censura, política, miséria) Personagens: Secretário do Bem-Estar Público e Privado e seu assessor, o Chefe de Relações Públicas Narração: 3ª pessoa 240

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O conto é uma alegoria criada pela autora para mostrar um lugar fictício (porém com várias pistas que remontam ao nosso mundo real) dominado pela corrupção, com políticos que nos lembram muito um tal de Brasil... Nesse lugar, ocorrerá o VII Seminário dos Roedores (uma reunião para discutir a problemática dos ratos que infestam o país), onde se reunirão burocratas, coordenados pelo Secretário do Bem-Estar Público e Privado e seu assessor, o Chefe de Relações Públicas. O texto é escrito quase todo em discurso direto, com o diálogo dos dois personagens; na ocasião, o Secretário sofre de gota e seu pé está muito inchado, por isso ele não pode participar dos preparativos para o Seminário, e quem os faz é seu assessor. A história começa com a visita do Chefe das Relações Públicas no escritório do Secretário do Bem-Estar Público e Privado (reparem que eles não têm nome, apenas cargos). O assessor diz a seu chefe que acabara de vir do coquetel com os burocratas e que já os instalara na tal mansão que eles mandaram reformar (e que gastaram uma fortuna para isso). O Assessor da Presidência da Ratesp (repare o nome, faz alusão à cidade de São Paulo) está instalado na ala norte, vizinho do Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas, que está ocupando a suíte cinzenta. Nesse ponto, a conversa dos dois vai para a cor “cinzenta”, o porquê disso – cinza é a cor dos ratos! (aqui não podemos nos esquecer de que o texto foi escrito na época da repressão política do governo militar, e esse trecho tem relação direta com o fato). Depois o assessor diz que os americanos estão na piscina. O chefe fica surpreso que tem mais de um e diz que fora contra a indicação deles no Seminário: “Os ratos são nossos, as soluções têm que ser nossas. Por que botar todo mundo a par de nossas mazelas? (aqui podemos perceber mais uma intertextualidade com nosso país: a influência/intervenção americana). Querendo saber mais das novidades, o chefe instiga seu assessor perguntando-lhe qual a opinião da imprensa, ao que ele responde: Melhores Contos

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- Bueno, é de conhecimento de Vossa Excelência que causou espécie o fato de termos escolhido este local. Por que instalar o VII Seminário de Roedores numa casa de campo, completamente isolada? Essa é a primeira indagação geral. A segunda é que gastamos demais para tornarmos esta mansão habitável, um desperdício quando podíamos dispor de outros locais já prontos. (Isso te lembra algum país, vestibulando?). E continua: “Ah, e aquela eterna tecla que não cansam de bater, que já estamos no VII Seminário e até agora nada, nada de objetivo, que a população ratal já se multiplicou sete mil vezes depois do I Seminário, que temos agora cem ratos para cada habitante.” Estavam conversando quando, de repente, o Secretário pensou ter ouvido um barulho; mas seu assessor disse não ter ouvido nada. E continuaram a conversar e a tramar táticas para trazer a imprensa a seu favor; pretendiam influenciar todos os meios de comunicação – diriam que estrategicamente os ratos já se encontram sob controle (manipulação da imprensa). E mandou o assessor telefonar. Novamente, ele diz escutar um barulho, mas o assessor não ouve nada. - Pois eu escuto demais. Quando fiz a Revolução de 32 e, depois, no Golpe de 64, era sempre o primeiro do grupo a pressentir alguma anormalidade. (Repare que aqui a autora cita dois episódios da história brasileira) O secretário está tão certo desse barulho que pensa ter uma escuta dentro de seu escritório. O Chefe das Relações Públicas teve um olhar de suspeita para a estátua de bronze em cima da lareira, uma opulenta mulher de olhos vendados, empunhando a espada e a balança. Passou o dedo num dos pratos empoeirados. (Repare aqui o símbolo da justiça brasileira, completamente obsoleta, empoeirada, desacreditada). Mostrando-se preocupado, o assessor pergunta qual o problema com o pé do Secretário; ele diz que é a gota. - Pode ser a gota d’água! Pode ser a gota d’água! – cantou e brincou o assessor (aqui, mais uma intertextualidade com a música de Chico Buarque “Gota d’água” – lembrando-se que esse cantor participou dos movimentos da música popular brasileira no período da Ditadura). 242

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O Secretário fala, ainda, da “imprensa marrom”, a imprensa “de esquerda” que só se lembra do povo quando os ratos começam a expulsar os favelados de suas casas. Ou roer os pés das crianças da periferia. Depois, eles veem a solução na iniciativa privada (mais uma crítica da autora) para o problema: se cada família tivesse em casa um ou dois gatos esfaimados... e o assessor lembra que a população já havia comido todos os gatos (aqui uma referência à situação de miséria a qual vive o povo brasileiro). Eram quase sete horas, e o jantar seria servido às 8h – com lagostas e vinho chileno, pois o vinho nacional poderia dar “dor de cabeça”. E o Secretário lamenta sua condição de doente: tomaria um caldo sem sal, uma canjinha rala – e várias vezes o “copo de leite” aparece em cena, demonstrando a fragilidade de sua saúde. De repente, o barulho se fez muito forte e assustador, parecia uma bomba. – Eu não disse, eu não disse? O assessor correu para ver o que era e tomar providências. Todos na mansão estavam assustados, o telefone parara de funcionar em todos os cômodos; um cheiro ruim se espalhou pelo local. Foi o cozinheiro quem veio trazer a novidade: os ratos haviam invadido a mansão: Comeram tudo e o que não tiveram tempo de comer levaram embora. Eram ratos enormes, que guinchavam feito doidos – todos os empregados fugiram. O pânico instaurado e o Chefe tentando salvar o jantar dos burocratas – a geladeira estava intacta, os ratos não pegaram nada lá porque ela estava trancada; mandaria buscar mais mantimentos para o jantar, mas o cozinheiro disse que iria embora também, estava apavorado. Mandou que todos fossem embora, mas teriam de ir a pé, pois os ratos haviam roído todos os fios dos carros – daí o Chefe descobriu que também foram os ratos que roeram os fios dos telefones. A essa altura o pânico estava instaurado entre os hóspedes. Então deu-se a invasão, espessa como se um saco de pedras borrachosas tivesse sido despejado em cima do telhado e agora saltasse por todos os lados numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo Melhores Contos

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negríssimos. Quando a primeira dentada lhe arrancou um pedaço da calça, ele correu sobre o chão enovelado, entrou na cozinha com os ratos despencando na sua cabeça e abriu a geladeira. Ficou ali por, não sabe dizer quanto tempo; não fechou a porta completamente, temia congelar – deixou o dedo na fresta, mas ao sentir uma espetada em seu dedo, substituiu-o pela gravata. E os ratos tentavam entrar, mas não conseguiram. Quando tudo silenciou, saiu, olhou a casa, tudo destruído, sem móveis, tapetes, cortinas. Só as paredes. E a escuridão. Começou então um murmurejo secreto, que parecia vir da Sala de Debates e teve a intuição de que estavam todos reunidos ali, de portas fechadas. Fugiu para o campo, correu quilômetros, apavorado. Quando olhou para trás, o casarão estava todo iluminado. (Repare que neste conto a autora insere uma de suas maiores caraterísticas: o conto fantástico. Neste final, podemos interpretar a inversão dos fatos: agora os ratos estavam reunidos, e eles iriam governar o país, enquanto os homens fugiram – a vitória dos roedores; o casarão iluminado pode significar também, ironicamente, uma nova era – talvez o país fosse melhor sendo governado pelos ratos que pelos humanos. Como ele ficou iluminado se os fios foram roídos? Isso é um conto fantástico, vestibulando. E a figura dos ratos nada mais é do que uma metáfora criada pela autora como uma forma de indignação contra a repressão, a censura e a corrupção. A confissão de Leontina Ano: 1949 Temática: prostituição, violência, miséria, conflitos intimistas, condição da mulher, infância, morte, desilusão, busca do eu, amor, solidão Personagens: Leontina (Pedro, Rubi, Rogério, Armando, Velho) Narração: 1ª pessoa – Leontina Leontina é uma mulher que está presa por ter matado um homem em legítima defesa. O conto, como o título indica, é uma confissão da 244

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personagem que conta a uma suposta senhora sua sofrida história de vida, desde a infância até o momento atual, na cadeia. A personagem central é uma moça pobre, muito sensível e ingênua; teve uma infância dura, sempre trabalhando para ajudar a mãe a criar a irmã (a qual tinha problemas mentais) e o primo (que a desprezava e só pensava nos estudos – queria ser um médico para se livrar daquela pobreza); o pai, ela não conhecera. Moravam no interior de Minas Gerais, em um lugar chamado Olhos d’Água. A narrativa inicia com Leontina na cadeia contando sua história a uma senhora (a quem não conhecemos). Ela diz que os jornais a chamaram de “Messalina da boca do lixo”. Como não sabia o que era isso, perguntou ao seu Armando, o pianista do salão de danças (Leontina trabalhava em um salão de danças; os homens pagavam para dançar com as moças – é claro que, na maioria das vezes, ela ia para a cama com eles, mas não se considerava uma prostituta, pois não ia por dinheiro, mas por amor). Ao saber o que significava o termo “Messalina”, ela se decepcionou. Sei que trabalhei tanto e aqui me chamam de vagabunda e me dão choque até lá dentro. Sem falar nas porcarias que eles obrigam a gente a fazer. Daí seu Armando disse pra não perder a esperança. Então fiquei mais conformada. E começou a se lembrar da infância. Morava em uma casa caindo aos pedaços, com a mãe, a irmã Luzia e o primo Pedro, que desprezava a todas. A mãe era lavadeira e sofria de terríveis dores de cabeça; enquanto ela ia lavar, Leontina fazia comida e cuidava da casa, da irmã e servia ao primo. Apesar de tudo, Pedro dizia que seria médico e que a tia viveria como uma rainha. Luzia tinha problemas mentais – ficara assim depois que Pedro deixou-a cair, e ela bateu com a cabeça no pé da mesa. Depois do tombo, não parou mais de babar e fuçar a terra procurando minhocas que às vezes escondia debaixo do travesseiro. Leontina não acreditava que o primo iria ajuda-las, mas a mãe prometera à irmã, em seu leito de morte, que cuidaria dele melhor que das Melhores Contos

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filhas, por isso, só ele tinha direito a estudar e a ter uma boa vida, nas condições deles. A narrativa volta ao presente, e Leontina diz a senhora que Pedro, de fato, se tornara médico e que, por acaso, um dia encontrou com ele no hospital, mas ele fingiu que não a conheceu e fugiu. Foi no dia em que fora visitar a amiga Rubi no hospital. Quando a amiga soube do fato, ficou indignada; ao falar com Pedro, ele disse que poderia atender a prima em outro lugar, mas não ali no hospital. Rubi ficou com tanta raiva que rasgou todo o cartão que ele havia deixado para Leontina e encheu-o de desaforo. A verdade é que bem que eu queria guardar aquele endereço e numa hora qualquer ir lá conversar com ele. Gosto dele apesar de tudo e por mais que ele faça eu sei que vou continuar gostando igual porque não se arranca o bem-querer do coração. No hospital, Rubi briga com Leontina porque ela vai para a cama com os homens sem cobrar. Ela precisava de dinheiro, trabalhava no salão, mas não se julgava mulher da vida. Mas estamos na zona. Pergunta pros tiras se eles deixam a gente ficar lá de graça pergunta. Sendo da zona é tratada feito vagabunda e está escrito que tem que pagar sim. Leontina, ou Leo, como Rubi a chamava, era semianalfabeta. Estava presa há três meses, e lamentava que o primo nunca dera sinal de vida – e decerto nem vai dar. Ela retorna às recordações da infância; lembra-se de que Pedro, na festa da escola, fingira que não a conhecia (como ele fez no hospital); tinha vergonha da prima, não queria ser visto com ela em público. Lembrou-se da cachorra Tita que, um dia, começou a olhar o horizonte, deixou os filhotinhos na caixa, seguiu sem rumo e, no dia seguinte, foi encontrada morta. Tempos depois, a mãe dela também morrera, e ela ficou responsável pela irmã e por Pedro. Ele terminou o colégio. No dia da formatura dele, Luzia, que ficara em casa porque ele não quis que ela fosse, pois tinha vergonha dela, acabou se afogando no lago e morreu. Depois de se formar, Pedro se mudou – iria “ser doutor”, mas antes 246

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fez a prima vender o barraco em que moravam, pegou todo o dinheiro e mandou-a ir trabalhar na casa de dona Gertrudes, uma mulher muito ruim que a maltratava bastante. Ele prometeu a Leontina que mandaria buscá-la assim que pudesse. Tempos depois, Leontina resolveu fugir e ir para São Paulo procurar Pedro. Juntou suas economias, comprou uma passagem de trem e, de madrugada, vestiu o vestido cinza que era da mãe e fugiu. Em São Paulo, ainda na estação, conheceu Rogério, um marinheiro que a levou para o quarto que ele alugava em um hotel – ela não sabia o que era um marinheiro. Rogério a tratava bem, mas já foi falando que não esquentava lugar e nem queria mulher atrás dele, que em breve viajaria. Ele lhe apresentou a cidade, ensinou-a a tomar banho todos os dias, dava-lhe comida. Ela só não gostava muito na hora do sexo. Fazia amor tudo direitinho pra deixar ele contente mas sempre com uma tristeza que até hoje não sei como explicar. Essa hora do amor foi sempre a mais sem graça de todas. Um dia Rogério partiu sem avisar. Ela ficou tão triste que pensou em se matar. Foi pra rua comprar veneno. Comprou um cachorro-quente, encontrou um amigo de Rogério e ele lhe ofereceu cerveja – Aconselhou ainda que eu bebesse cerveja porque formicida queima que nem fogo e cerveja sempre lava o coração. Depois conheceu outros homens; foi maltratada, perdeu o que tinha, vivia na pobreza; conhecera Rubi, que se tornou sua amiga. Alugaram um quarto perto do salão em que Rubi dançava; Leontina trabalhava em um bar, mas depois também tornou-se dançarina. Lá conheceu os tipos mais ruins de homens. No fundo do coração cheguei a esperar que de repente aparecesse alguém que gostasse de mim de verdade e me levasse embora com ele. Nunca aconteceu. Lembrou-se de Pedro que a renegara duas vezes. Seu Armando, que era crente, lembrou que Pedro tinha negado Jesus três vezes. Faltava ainda uma vez pra Pedro dizer que nunca me viu. Ela fala a tal senhora que Rubi fora visitá-la e que lhe dera muita força, Melhores Contos

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mas sua situação era difícil. E começa a contar como foi que cometeu o crime. Um dia, saiu para comprar um sapato, como não tinha dinheiro, ficou vendo vitrines. Em uma delas, viu um lindo vestido marrom. Estava olhando quando um velho disse que poderia ser dela, se quisesse. Comprou-o. Ela saiu com ele, de carro – suas amigas a invejariam. Mas esqueceu-se de seu vestido na loja, saiu com o novo e deixara o vestido velho lá. Quis voltar, mas o velho não deixou, pensou que ela iria fugir. O velho a levou para uma estrada deserta e tentou agarrá-la. Ela não gostou; ele disse que se não quisesse, que a deixaria ali mesmo – ela gostou disso, assim se livraria dele. Mas o homem não quis saber, expulsou-a do carro e exigiu que deixasse o vestido. Ela tentou conversar, disse que pagaria o vestido. Foi quando o velho começou a bater nela. Deu-lhe um bofetão, ela caiu; deu-lhe outro que rachou sua cabeça. Ela pediu para que ele a deixasse ir embora, mas ele cada vez batia mais. Até que ela achou um ferro e bateu na cabeça dele – assim que comecei a bater fui ficando com tanta raiva que bati com vontade e só parei de bater quando o corpo do velho foi vergado pra frente e a cabeça caiu bem em cima da direção. pensou que logo ele se levantaria, como ela via nas brigas de bar, mas ele havia morrido. Ela fugiu do lugar. Foi para casa, mas não acreditava no que havia acontecido – pensara ter tido um sonho. No dia seguinte, saiu pela cidade. Começou a olhar vitrines. Chegou em frente a tal loja em que o velho lhe abordara e resolveu entrar para pegar seu antigo vestido. Esse foi seu erro. Um policial que lá estava, investigando o caso, prendeu-a. Amaldiçoada essa hora. Minha Nossa Senhora o que é que eu tinha que pedir aquele vestido de volta? Ainda ontem a Rubi me disse que se eu não tivesse aparecido lá nunca ninguém no mundo ia saber que era eu. Miolo mole, ela berrou. Por que tinha que voltar lá por quê?

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Missa do Galo Ano: 1977 Temática: paixão, sedução, condição da mulher (dominante x dominada) Personagens: Conceição, Nogueira, D. Inácia, Menezes Narração: 1ª pessoa – narrador desconhecido Antes de mais nada, é preciso dizer que este conto foi publicado na obra “Missa do Galo: variações sobre o mesmo tema”, organizado por Osman Lins – nessa obra, seis escritores brasileiros, Antonio Callado, Autran Dourado, Julieta de Godoy Ladeira, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e Osman Lins, recontam o conto “A Missa do Galo”, de Machado de Assis, publicado em 1892, sob diferentes pontos de vista, tempo e espaço. Para você entender esse conto de Lygia F. Telles, é importante conhecer o conto original, de Machado de Assis (M.A.), escritor do Realismo – se puder, leia-o na íntegra, se não, aí vai um curto resumo sobre ele: a narrativa de Machado é feita do ponto de vista de Nogueira, um rapaz de 17 anos que se hospedou na casa do escrivão Menezes; viera de Mangaratiba para o Rio de Janeiro a fim de assistir à Missa do Galo (missa realizada na noite de Natal, à meia-noite). Temeroso em perder a hora da missa, apesar de um amigo seu ter se comprometido em vir chamá-lo, Nogueira prefere não dormir após o jantar e ir para a biblioteca. Menezes já havia saído – fora para a casa da amante – Conceição, sua mulher, e a sogra, D. Inácia, já haviam se recolhido para dormir. Estava o garoto lendo um livro quando aparece, de repente, Conceição. Começam a conversar banalidades. Ela está com um roupão que permite com que o rapaz veja seu braço – ficou inebriado. Nunca tinha estado com uma mulher assim tão intimamente. Ficou fascinado também quando viu a ponta da chinela da mulher... Estavam nesse clima, quando o amigo vem e, da rua, grita que estava na hora da missa. A situação fica por isso mesmo. No dia seguinte, Conceição nem parecia a mesma mulher da Melhores Contos

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noite anterior, fingiu que nada acontecera. No ano novo, Nogueira volta para Mangaratiba e quando retorna ao Rio, fica sabendo que o escrivão havia falecido e que Conceição tinha se casado com outro. No conto de Lygia F. Telles, a história é narrada sob o ponto de vista de um narrador onisciente – veja, vestibuland@: a versão de Lygia é escrita na época do Modernismo, 78 anos depois. Se no conto de M.A. há um diálogo entre Nogueira e Conceição, no conto de Lygia o foco está exatamente no que eles “não dizem”, ou seja, no que eles pensam, insinuam, naquilo que o leitor de M.A. ficou imaginando até hoje – Lygia expõe a seguinte epígrafe, retirada do próprio conto de M.A.: “Chegamos a ficar algum tempo – não posso dizer quanto – inteiramente calados.” E isso é importante você entender nesse conto, vestibuland@: a versão de Lygia trabalha as emoções, o psicológico, o desapontamento do rapaz, em vez dos acontecimentos em si. Assim, a narrativa inicia com a descrição detalhada do ambiente para chegar até o rapaz, que está lendo, com os cotovelos fincados na mesa. Em seguida, a narrativa de Lygia foca para a ansiedade e dúvida do rapaz, que não entendera o que aconteceria dali a pouco. As omissões. Os silêncios tão mais importantes... Conceição chegara até onde estava o rapaz, de roupão branco: Magra, mas os seios altos como os da deusa da gravura, os cabelos num quase desalinho de travesseiro. Deixou travesseiro e quarto numa disponibilidade sem espartilho, livre o corpo dentro do roupão que arrepanhou sem muito empenho para que a barra não arrastasse, a outra mão fechando a cintura, hum, essas roupas para os interiores. – Repare aí, leitor, uma passagem muito importante desta obra; enquanto na obra de M.A. Conceição é vista como uma mulher “mais ou menos”, aqui ela é vista com uma dose extra de erotismo; ela é mostrada de forma sensual. Ao mesmo tempo, Lygia deixa claro a versão moderna da condição de mulher: livre, sem repressão (isso é repassado pela roupa que Conceição veste – ou “não” veste). No conto de M.A., a repressão sexual é marcante; Lygia quer mostrar que, no decorrer da história de repressão da 250

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mulher, a personagem Conceição representa essa “cisão sexual” por que a mulher lutou por tantos anos e que tem deixado marcas na sociedade contemporânea (entenda-se essa “cisão” como a superação de limites que eram impostos à mulher, em busca da sua liberdade, deixando para trás marcas de dominação). Ao retrucar alguma coisa, Conceição chega a tocar na mão do rapaz, pedindo que ele falasse baixo, pois a mãe dormia. Diz a ele que acordara e fora até lá – mas sabemos que ainda nem se deitou na larga cama, por que mentiu? Para justificar o roupão indiscreto ou por delicadeza? Nesse momento, diferentemente da obra de M.A., a obra de Lygia menciona que as empregadas estão acordadas, falando mal do patrão que àquelas horas deveria estar “montado na concubina”; a sogra também estava acordada, no oratório, pensando na situação do genro que, em plena noite de Natal havia ido à casa da teúda e manteúda... Até aí nenhuma novidade, os homens são todos iguais, por que o genro ia ser à exceção? Ela escuta Conceição sair do quarto e ir para a sala. Julgou-a imprudente, senhora direita não deveria fazer isso. A versão de Lygia mostra, ainda, Menezes na cama da amante comendo biscoitos de polvilho (ele estava nu, e ela com pouca roupa; ela, uma mulata). Ele compara a situação com Conceição: não gostava dos biscoitos dela: “Mulher fria de cama não dá boa cozinheira.” Também na casa da amante, ela o surpreende: deveria falar baixo, pois a madrinha dormia. Que nada! A madrinha estava bem acordada, pensando na má sorte da afilhada – não botava fé nesse Menezes. A narrativa volta para Conceição e Nogueira: Mas foi Conceição que entrou na sala da casa antiga. O andar é lerdo, os pés ligeiramente abertos, num maneio de barco, ancas fortes. Ombros estreitos. Os seios em liberdade com uma certa arrogância que lembrava os seios das estátuas das gravuras. O garoto descrito por M.A. é essencialmente ingênuo, já o de Lygia parece ter maior consciência dos fatos. Ele também se calou pensando no quanto era fino aquele pulso. A pele suave. Foi subindo o olhar pelo braço, a ampla manga escorregara até o cotovelo. Quando ela Melhores Contos

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recuou para se sentar no canapé – tão à vontade! – ele viu a ponta da chinela de cetim aparecer na abertura do roupão. Tudo isso acontece e nada é dito, apenas sentido. De repente, um sinal de repressão de seus sentimentos (do rapaz): A dona Conceição, imagine! Tão apaziguada (ou insignificante) durante o dia. E agora ocupando todo o espaço como um navio, a mulher era um navio: imponente navio branco, preto e vermelho, os lábios brilhantes, de vez em quando ela os umedece com a ponta da língua (repare aí toda a sensualidade na figura da personagem no ato de seduzir o rapaz). Assim como no conto de M.A., uma mariposa entra na sala – mas por onde? É uma bruxa de asas poeirentas com leve reflexo de prata. E conversam sobre banalidades quando ouvem o canto do galo. Estaria na hora da missa? Ainda não. Ele está em êxtase. Vai até a janela, volta, passa por trás da cadeira em que está o rapaz e pega um livro na estante: ah! Esses romances tão compridos, prefere os de enredo curto. (nesse fragmento, a personagem mostra a que veio: diz que prefere enredos curtos; seria isso uma alusão a aventuras curtas?) E a narrativa mostra a decepção, o desapontamento: E os dois de mãos abanando. E o grande relógio empurrando os ponteiros. Hora da missa, vamos? Perdidos um para o outro, nunca mais aquela sala. Aquela noite. Vocês sabem que dentro de alguns minutos será o “nunca mais”? (outro detalhe importante a ser observado na versão de Lygia é a fala com o leitor, tal como o faz M.A.). O vizinho chama... não queriam sair dali, estão em êxtase; mas ela toma as rédeas da situação e manda que ele vá. Ele a olha pela última vez, os bicos acentuados das chinelas e a pele branca, a lividez do mármore: o mármore está debaixo da renda. Ele fecha o livro. Ela tranca a porta. Os amigos se afastam. Ela volta para o quarto sem a preocupação de não fazer barulho, e o narrador diz que apaga o lampião (esse final para a narrativa nos leva a crer que a história se acabou por ali, ou seja, houve toda uma situação, a mulher vai 252

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para a sala para seduzir o garoto, mas na hora “h” nada acontece. Tudo se apaga, como se eles estivessem “saindo de cena”). A estrutura da bolha de sabão Ano: 1978/ republicado em 1991 Temática: amor interrompido, morte, infância, relacionamento marido e mulher Personagens: narradora (sem nome), o físico e sua mulher Narração: 1ª pessoa – mulher narradora A narradora reencontra, depois de anos, uma antiga paixão, um físico, que agora estava casado e que estudava a estrutura da bolha de sabão (sólida / líquida / gasosa): híbrida. No momento em que se veem, ela se recorda da infância dos dois quando brincavam de fazer bolhas de sabão com canudos do mamoeiro. Quis evitar o encontro com os dois, pois ainda sentia atração por ele, mas não conseguiu. Estavam num bar, e ela acabou se sentando à mesa com eles. A mulher do físico começou a sentir ciúmes, “Uma antiga amizade?” Dali a pouco, o ciúme ficou muito evidente, a dor de cabeça veio e, não fosse o marido pedir a conta, ela teria virado a mesa. Foram embora. Na rua ele pensou em me beijar de leve, como sempre, mas ficou desamparado e eu o tranquilizei. Deixou-a ali e foi embora com a mulher. No dia seguinte, ele telefonou para se explicar – ela imagina que a mulher esteja escutando na extensão e começa a falar trivialidades sobre cinema e poesia. Então ela desligou. O segundo encontro foi numa exposição de pintura. Novamente a paixão aflora, mas o ciúme da mulher também. A narradora fica sabendo por um amigo que o físico estava muito doente, só não sabia que doença era; fora a mulher quem falara a ele. Preocupada, ela decidiu ir até a casa dele para visitá-lo. A esposa o recebeu muito cortesmente e a elogiou. Disse-lhe que o susto tinha sido Melhores Contos

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grande, mas que o marido já estava melhor. Ao entrar, a narradora verificou que a casa aparentemente não mudara, mas tinha menos livros. A mulher do físico levou a narradora até o quarto, conversava alegremente com ele. Estava de chambre verde. De quando em quando me olhava interrogando, sugerindo lembranças mas eu sabia que era por delicadeza. Atento e desligado. Minutos depois, a mulher dele disse que precisa sair e pediu para que a narradora ficasse, que ela não demoraria. Se quisesse, estava tudo na copa, uísque, gelo, ficasse à vontade. Saiu e fechou a porta. Fechou-nos. Então descobri o que estava faltando, ô! Deus. Agora eu sabia que ele ia morrer. A caçada Ano: 1965 Temática: conto fantástico (conflitos intimistas, delírio, morte, mistério, busca do eu) Personagens: homem, dona da loja de antiguidades Narração: 3ª pessoa – narrador onisciente Um homem entra em uma loja de antiguidades e, dentre as tantas peças lá existentes, fica fascinado com uma tapeçaria, que está pendurada na parede, a qual retrata uma caçada. Começa, então, um diálogo com a velha atendente: — Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso… Pena que esteja nesse estado. O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la. — Parece que hoje está mais nítida… — Nítida? Nítida, como? E ela lhe explica que a peça não aguentaria a mais leve escova. Ela diz que foi um homem que a vendera, pois precisava de dinheiro. Estava ali na parede há muitos anos. Tinha medo de que na hora em que fosse desprendê-la caísse aos pedaços. 254

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O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?… — Parece que hoje tudo está mais próximo — disse o homem em voz baixa. — É como se… Mas não está diferente? A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los. — Não vejo diferença nenhuma. — Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta… — Que seta? O senhor está vendo alguma seta? — Aquele pontinho ali no arco… A velha suspirou.— Não vejo diferença nenhuma. — Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo, essas traças dão cabo de tudo. Defronte à imagem, o homem ficou estático. Sentia que conhecia a paisagem. Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada. Viu a caça atrás da touceira. Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a seta… A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão no arco. Sentiu-se estranho. Não conseguia explicar toda aquela familiaridade medonha. Saiu da loja, vagou pelas ruas e, quando olhou, estava diante da loja de antiguidades, olhando a tapeçaria pela vitrina. Em casa, seu pensamento era na tapeçaria, na caçada e em tudo o que ela representava. Teve pesadelos. Haveria de destruí-la, não era verdade que além daquele trapo detestável havia alguma coisa mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira. Bastava soprála, soprá-la! No dia seguinte, voltou à loja muito cedo. A velha o mandou entrar. Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho… Em frente à tapeçaria, sentiu cheiro de terra e folhagem. A loja ficava embaçada e só a tapeçaria parecia ser real. Imensa, real só a tapeçaria Melhores Contos

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a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis retroceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. Seus dedos afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era uma coluna, era uma árvore! Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor! “Não…” – gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração. ... O conto trabalha elementos da literatura fantástica. A narrativa se passa em uma loja de antiguidades e trabalha a descrição sensorial: a loja “tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus panos embolorados e livros comidos de traça”. O homem, personagem principal fica fascinado por uma tapeçaria que retrata uma caçada. Ele a visita vários dias e observa que ela estava ficando mais nítida, com cores mais vibrantes. Ao perguntar para a velha se ela havia feito algo na tal peça, ela diz que não. Esse diálogo entre os dois representa o real e o imaginário: ele vê a mudança na tela, e a velha discorda de tudo. O clima de mistério do conto se instaura quando ele começa a se imaginar dentro da tela; a cena da caçada lhe provoca muitas sensações. Ao final, ele mergulha dentro da cena e não tem certeza se é a caça ou o caçador; sente apenas a seta acertando-lhe o peito e a dor súbita. Encolhe-se no chão da loja, com as mãos no coração. A narrativa fantástica deixa a dúvida no leitor: seria sonho ou realidade?

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As formigas Ano: 1977 Temática: conto fantástico (mistério, sobrenatural) Personagens: duas amigas e primas, estudantes de Direito e Medicina e a dona da pensão Narração: 1ª pessoa – estudante de Direito Narra a história de duas primas que estão chegando a uma pensão em que alugaram por ficar mais próximo da universidade, uma fazia Medicina e a outra, Direito. Chegaram era quase noite e ficaram assustadas com o lugar. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes. – É sinistro.- disse uma delas Mas, como não tinham dinheiro e aquela era a mais barata, resolveram ficar. Subiram a escada, que era velhíssima, cheirando a creolina e encontraram a dona, de aparência tão decadente como a pensão: uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna (repare aqui a intertextualidade com a obra “Iracema”, de José de Alencar, que compara os cabelos da índia com a asa da graúna), pijama desbotado e unhas aduncas descascadas pintadas de vermelho-escuro descascado nas pontas encardida e sempre com uma tosse encatarrada. A mulher não foi nada acolhedora; atendeu-as com indiferença, conversou rapidamente e, ainda, deu uma baforada de charuto na cara delas. Estavam na sala, um lugar bem feio: A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. Encaminhou-as ao quarto, que ficava no sótão. Disse que o inquilino anterior também estudava medicina e que esquecera um caixotinho de ossos, que ainda estava lá no quarto. Passaram por uma estreita escada caracol e chegaram até ele. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, Melhores Contos

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estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. A estudante de Medicina ficou fascinada pela caixa, ainda mais quando a mulher lhe disse que era o esqueleto de um anão – coisa rara. Se quisesse ficar com eles, poderia. A mulher dita as regras da pensão e vai embora. Elas se ajeitam no quarto, colocam uma lâmpada mais forte que trouxeram na bolsa – agora, mais iluminado, viram que as roupas de cama eram encardidas. A prima ainda estava fascinada com o esqueleto. – Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele. Já era noite quando foram comer alguma coisa: sardinha e bolacha Maria. Sentiram um cheiro meio ardido. – É de bolor. A casa inteira cheira assim – ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama. A narradora sonha com um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! mas acordei antes. Ao acordar, viu a prima olhando fixamente para o chão, ela estava vendo milhares de formigas que se dirigiam para dentro do caixote, embaixo da sua cama. O mais assustador é que não tinha caminho de volta, as formigas só iam e ficavam no caixote. A prima conta do sonho; elas decidem jogar álcool nas formigas para matá-las. Ao examinar o caixote, ela verifica que os ossos estavam limpinhos (teoricamente não haveria motivo para ter formigas ali, nada que as atraísse), mas a outra constatação foi pior: ela verificou que os ossos haviam sido trocados de lugar, não estavam na mesma posição que ela deixara. E começam a matança. Voltam a dormir, e a narradora sonha novamente, mas dessa vez, que estava em aula e não sabia nada da prova – isso é que é pesadelo, hein vestibuland@!?! Acordou às seis da manhã e viu que, de maneira mágica, não havia nenhum rastro de formiga, nenhuma marca daquelas 258

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que elas haviam matado; tudo sumira, inclusive o cheiro estranho. Mas o caixote continuava lá, intacto. A prima apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava. – Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo. Na noite seguinte, o cheiro voltara. A narradora conta que a prima estava tão deprimida, que nem falou nada. Ela jogou água de colônia no quarto para ver se passava aquilo. De madrugada, teve mais um pesadelo: sonhou que havia marcado encontro com dois namorados ao mesmo tempo e no mesmo lugar. E aquela aflição que um chegaria e encontraria o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Acordou com a prima chamando, mais estrábica do que nunca. As formigas haviam voltado e o mais assustador era que os ossos estavam mudando de lugar: - estão se organizando. – disse a prima. – Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e… Venha ver! Dormiram e, no dia seguinte, nenhum rastro de formiga. À noite, a estudante de medicina resolve ficar acordada para ver de onde surgiam as formigas. A outra chegou tarde, havia ido a uma festa, e encontrara a prima lá, de plantão. Logo dormiu e sonhou novamente com o anão. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga. Ela havia dormido também, e as formigas haviam voltado. Foi ver no caixote e acontecera o que ela previra: – Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui. Apavoradas, resolveram fugir no meio da noite mesmo, sem que a “bruxa” da dona da pensão as visse. Melhores Contos

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Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito? No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra. Noturno amarelo Ano:1977 Temática: conto fantástico (família, lembranças, memórias, busca do eu, amor, relacionamento marido e mulher) Personagens: Laura, Fernando e familiares de Laura Narração: 1ª pessoa – Laura Laura (ou Laurinha, como é chamada pelos seus familiares) está parada à beira da estrada com o marido Fernando, pois faltara gasolina no carro; estavam indo a um jantar. Fernando providencia o combustível, e começa um diálogo entre os dois. O rapaz mostra-se extremamente grosseiro e percebe-se que a relação não vai bem: Quando me lembro dessa noite (e estou sempre lembrando) me vejo repartida em dois momentos: antes e depois. Antes, as pequenas palavras, os pequenos gestos, os pequenos amores culminando nesse Fernando, aventura medíocre de gozo breve e convivência comprida (...) Anos e anos tentando desenredar o fio impossível, medo da solidão? Medo de me encontrar quando tão ardentemente me buscava? E aí começa a viagem da personagem. Absorta em seus pensamentos, Laura passa para um outro espaço da narrativa. Sente cheiro de dama-da-noite (uma flor que desabrocha somente à noite), vai em direção ao seu passado: E atravessei a faixa de mato rasteiro que bordejava o caminho. 260

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Nessa travessia, encontra a casa de seus avós. Aos poucos, vão aparecendo personagens que a saúdam festivamente: a empregada Ifigênia, a irmã Eduarda (a Ducha), o Avô, a Avó, seu amor, Rodrigo... Esse contato com a família, ali, toda reunida para um jantar não era gratuito. De certa forma, parecia que Laura queria aliviar seu “peso na consciência” e se desculpar com cada um deles a quem magoara. Durante a narrativa, descobre-se quem foram as pessoas que ela magoou e quais seus erros. A fala de Eduarda retrata isso: - Que feio, Laura! A Chapeuzinho Vermelho atravessou um bosque cheio de lobos só pra levar o bolo pra Avozinha que estava com resfriado, não era resfriado? - Pôs-se na ponta dos pés, pronta para dançar. Teve seu sorrizinho: - Não veio buscar Ifigênia que queria cumprir a promessa, não trouxe meu espelho, roubou a torre do Avô, roubou o noivo de Eduarda e não visitou a Avó! Ê demais... - E ainda por cima faz a femme fatale - acrescentou Ducha rapidamente, com o gesto de quem empunha uma arma e aponta contra o peito. Acionou o gatilho. - Pum!... Ducha referia-se a Rodrigo, que tentara se matar com um revólver, por causa de sua depressão após a traição de Laura. Para tentar apaziguar a situação, a avó, que está no piano, mostra a Laura uma música que está compondo: chama-se “Noturno Amarelo”. Nesse momento, Rodrigo chega, e Laura se desculpa com ele: - Eu te neguei, Rodrigo. Te neguei e te trai e traí Eduarda. Mas queria que soubesse o quanto amei vocês dois. Passei a noite me desculpando, só faltava você, oh Deus! como eu precisava desse encontro - disse, tocando no seu peito – Laura havia pedido desculpas também a Eduarda, pois roubara seu namorado, mesmo sem querer; ele havia lhe dito que tinham terminado. A menina lhe perdoou e até deu a ela sua pulseira que enganchou no vestido de Laura, como sua “nova aliança” (o que se percebe é que a personagem vai conversando com cada pessoa que ela magoou e consegue o perdão de todos eles para se manter numa zona de conforto). De certa forma, ele lhe perdoa. Ela sente frio, vai buscar o xale e, Melhores Contos

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quando volta, ele havia sumido. De repente, todos começam deixar a sala: o avô, a avó, Eduarda e o namorado, Ifigênia... Saí pela porta da frente e antes mesmo de dar a volta já tinha adivinhado que atrás da porta por onde todos tinham saído não havia nada, apenas o campo. E aqui a personagem volta ao seu espaço inicial: no carro, com o marido. Atravessei o jardim que não era mais jardim sem o portão. Sem o perfume. A vereda (mais fechada ou era impressão?) foi desembocar na estrada: o carro continuava lá adiante com suas portas abertas e seus faróis acesos. Fernando tapava o vasilhame. Quando retorna ao tempo presente, repara que o marido nem notara sua ausência: - Demorei muito? Ele vestiu o casaco. Acendeu um cigarro, se demorei? Mas como? Eu tinha saído? - Você está linda, amor, mas tão distante, tão fria, ih! que merda de música - gritou, mudando de estação. - Será que o jantar vai ser bom? Hoje estou a fim de comer peixe. A impressão que se tem, inicialmente, é que a personagem pode ter ficado apenas recordando o passado e viajado no tempo. No entanto, pouco antes de terminar a narrativa, o elemento surpresa: Laura diz que está segurando a pulseira que Eduarda lhe dera como símbolo da nova aliança (só para lembrar que essa pulseira foi dada durante o tal encontro na casa dos avós que acabara de acontecer – isso representa o fantástico dentro da obra). Fiquei olhando a Via-Láctea através do vidro. Fechei os olhos. Fechei com força a pulseira que ainda trazia na mão. A presença Ano: 1977 Temática: morte, velhice, desilusão, abandono, soberba, solidão, mistério 262

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Personagens: um rapaz de 25 anos, o porteiro do hotel, velhos do hotel Narração: 3ª pessoa Um rapaz de 25 anos chega a um hotel em que só moram velhos. O porteiro, que também era velho, tenta persuadi-lo a não se hospedar ali. Que graça um hotel desses podia ter para um jovem? Depois das nove da noite, silêncio absoluto, porque todos dormiam cedíssimo. E a comida tão insípida, sem gordura, sem sal, com pratos sem nenhuma imaginação dentro de dietas rigorosas. Um jovem assim saudável passar suas férias num hotel tão frio quanto um hospital!?! E o porteiro relata que os velhos que ali estavam eram burgueses decadentes, que ficaram esquecidos no tempo; alguns, até, eram pessoas famosas, atrizes, corredores, esquecidos, completamente esquecidos. Ele relata, ainda, sobre os espelhos. Para que não precisassem mais se lembrar de que todos os dias ficavam com aparência pior, isto é, cada vez mais velhos, mandaram retirar todos os espelhos do hotel – Era evidente o alívio dos hóspedes livres daquelas testemunhas geladas, captando-os em todos os ângulos: mais do que suficientes, os espelhos menores dos banheiros, apenas o essencial para uma barba, um penteado. O porteiro conta, também, que 50 anos atrás aquele hotel era muito luxuoso e movimentado, mas que agora se transformara em um “hotelmausoléu”. No entanto, o jovem insistiu. Ficaria ali; só desistiria se houvesse uma cláusula que proibisse um jovem de vinte e cinco anos de hospedar-se ali. Contrariado, o porteiro fez seu check-in, certo de que se ele não se importava com a presença dos velhos, era bem provável que os velhos se importassem (e quanto!) com a presença dele. O fato de ver um rapaz forte e saudável seria uma ofensa aos velhos, que não mais se reconheceriam em um corpo jovem. O porteiro se indagava: será que o amigo não percebia que ia ser importuno? Um intruso? Representava o direito do avesso. Ou o avesso desse direito? Por mais tolos que esses velhos pudessem parecer, guarMelhores Contos

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davam o segredo de uma sabedoria que se afiava na pedra da morte. Era preciso lembrar que usariam de todos os recursos para que as regras do jogo fossem cumpridas: até onde poderia chegar o ódio por aquele que viera humilhá-los, irônico, provocativo, tumultuando a partida? O rapaz se animou com a piscina, apesar de estar abandonada, cheia de folhas, pois os velhos não a utilizavam. Foi levado até o quarto por um velho funcionário do hotel, cheirou o quarto: lavanda? E perguntou enquanto abria a mala, se por ali não havia fantasmas, sempre sonhara com um hotel de fantasmas. Os fantasmas somos nós, respondeu-lhe o velho, e ele riu alto. Tirou a garrafa de uísque da mala. Ligou o rádio. Depois foi para a piscina e começou a observar sussurros, gente espiando pela fresta da cortina das janelas, cabeça atrás das sombras, mas não se importou. Acariciou seu corpo jovem ao sol. Riu silenciosamente enquanto apanhava o copo que deixara no chão – fazia movimentos calculados de quem queria aparecer. No jantar, antes mesmo de provar a comida, despejou o sal, o molho inglês, a pimenta e bateu palmas para os três velhos músicos que tocaram antigas peças que alguns hóspedes (poucos desceram para o jantar) ouviram imperturbáveis. Achou um certo amargor na goiabada com queijo. Ao se deitar, depois de ter tomado o chá servido às vinte e uma horas, ele já não se sentia bem. Fim. (Este conto deixa em aberto qual o fim da personagem, mas sugere que teria morrido envenenado, ao dizer que “achou um certo amargor na goiabada com queijo”. E por quem? Mais um dos mistérios da autora. Talvez pelos próprios velhinhos do hotel – o porteiro avisara a ele que eles usariam de todos os recursos para que as regras do jogo fossem cumpridas. A mão no ombro Ano: 1977 Temática: conto fantástico (morte, comportamento humano, suas fragilidades, conflitos, medos, infância, relacionamento marido e mulher) 264

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Personagem: um homem de quase 50 anos Narração: 3ª pessoa A narrativa tem como foco a reflexão de um homem antes da própria morte, em uma tentativa de entender toda a sua vida. Tudo começa quando o homem sonha com um ambiente estranho, um jardim, fora do tempo e do espaço; sentiu um perfume úmido de ervas, continuou caminhando. Apanhou uma folha. Mas que jardim era esse? Nunca estivera ali nem sabia como o encontrara. Mas sabia – e com que força – que a rotina fora quebrada porque alguma coisa ia acontecer, o quê?! Sentiu o coração disparar. Habituara-se tanto ao cotidiano sem imprevistos, sem mistério. Viu, logo à frente uma estátua de uma mocinha que levantava o vestido para não molhar os pés e um inseto que saía de sua orelha era o único movimento que vira ali. Aos poucos, o jardim vai revelando elementos familiares ao personagem: lembra-se do pai e seu inquietante jogo de quebra-cabeças em que ele tinha de achar o caçador perdido no bosque. Envergonhou-se. Meu Deus, murmurou num tom de quem pede desculpas por ter entrado em pânico assim com essa facilidade, meu Deus, que papel miserável, e se for um amigo? Simplesmente um amigo? Começou a assobiar e as primeiras notas da melodia o transportaram ao menino antigo com sua roupa de Senhor dos Passos na procissão da Sexta-feira Santa. Sentou-se no banco verde de musgo, tudo em redor mais quieto e mais úmido agora que chegara ao âmago do jardim. Recordou-se do dia em que fora com a tia ao circo, e o trapezista caíra lá de cima. Sentia o pé adormecido, e a dormência já estava no joelho, depois no braço. Queria fugir, mas não conseguia. . E fugir para onde se tudo naquele jardim parecia dar na escada? E teve certeza de que a morte estava próxima. Ficou horrorizado. Equilibrou-se tentando se agarrar ao banco, não quero! gritou. Agora não, meu Deus, espera um pouco, ainda não estou preparado! Calou-se, ouvindo os passos que desciam tranquilamente a escada. Mais tênue do que a brisa um sopro pareceu reavivar a alameda. Melhores Contos

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Agora está nas minhas costas, ele pensou e sentiu o braço se estender na direção do seu ombro. Ouviu a mão ir baixando numa crispação de quem (familiar e contudo cerimonioso) dá um sinal, sou eu. O toque manso. Preciso acordar, ordenou se contraindo inteiro, isto é apenas um sonho! Preciso acordar! acordar. Acordar, ficou repetindo. Abriu os olhos. Fugira da morte, despertando de seu sonho. Inebriado, ainda, com o sonho, pensa em conversar com a mulher, que sonhara com a morte, mas percebe que ela não lhe dá atenção. Levantase e começa a prestar mais atenção em sua vida: na frieza da mulher e do filho, nos empregados que tem em casa e que nunca prestara atenção neles; também valorizou as coisas boas e simples da vida, como um simples passar geleia no pão; lamentou o fato de ter acabado o amor entre ele e a mulher. Teria uma reunião dali a pouco, mas resolveu adiála. Precisava viver, perceber coisas que ele nunca teria visto antes, pois estava sempre com pressa (aqui, provavelmente, ele estava pressentindo a morte ou seria apenas reflexo do sonho que tivera?). Tanta pressa nas relações dentro de casa. Lá fora, um empresário de sucesso casado com uma mulher na moda. A outra fora igualmente ambiciosa, mas não tinha charme e era preciso charme para investir nas festas, nas roupas. Investir no corpo. O sonho interrompera o fluxo da sua vida no corte do jardim. Entrou no carro para ir trabalhar, mas o carro não obedecia aos seus comandos. De repente, sentiu o perfume de ervas úmidas. Descansou no assento as mãos desinteressadas. Deu-se conta de que estava naquele mesmo jardim do sonho. Novamente, viu tudo aquilo que tinha visto quando estava dormindo. Mas agora estava acordado. Não era absurdo? Isso da realidade imitar o sonho? Foi novamente até o centro do jardim, agora sem medo. Entendera o que estava acontecendo: Descobri! Descobri. A alegria era quase insuportável: da primeira vez, escapei acordando. Agora, vou escapar dormindo. Enganar assim a morte saindo pela porta do sono. Preciso dormir, murmurou fechando os olhos. 266

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Em um estado de sonolência, viu que retomava o sonho no ponto exato em que fora interrompido. A escada. Os passos. Sentiu o ombro tocado de leve. Voltou-se. Fim (nessa cena final, o que se percebe é que os dois cenários se fundem na busca do eu: o do sonho e o da realidade).

ANÁLISE DA OBRA A estrutura da obra Melhores contos é composto por 16 contos, selecionados a partir de outras obras de Lygia Fagundes Telles (LFT), a saber: do livro Antes do Baile Verde (1970): “Verde Lagarto Amarelo”, “Apenas um Saxofone”, “Antes do Baile Verde”, “Eu Era Mudo e Só”, “As Pérolas” e “A Caçada”; do livro Seminário dos Ratos (1977): “Pomba enamorada ou uma história de amor”, “Seminário dos ratos”, “As formigas”, “Noturno amarelo”, “A presença” e “A mão no ombro”; da obra Cacto vermelho (1949), “A confissão de Leontina”; já o conto “Missa do Galo” foi uma participação da autora na coletânea Missa do Galo: variações sobre o mesmo tema, livro organizado por Osman Lins a partir do conto clássico de Machado de Assis; finalmente, o conto “A estrutura da bolha de sabão”, publicada em 1978 sob o nome de “Filhos pródigos” e reeditada em 1991 sob o título A estrutura da bolha de sabão.

As personagens A ficção de LFT, junto à de Clarice Lispector (escritoras da 3ª fase do Modernismo), trabalha o universo feminino sob uma perspectiva mais moderna, trazendo vida e liberdade à mulher, o que não era admissível até então, já que a mulher era normalmente apresentada como a dominada. As personagens de LFT são pessoas comuns do século XX que expressam suas alegrias, tristezas, melancolias, desejos, amores platônicos, Melhores Contos

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amores interrompidos, amores terminados, práticas cotidianas, desgaste de relacionamento. Há também personagem de aparência sinistra, como a dona da pensão, em “As formigas”. E, ainda, há personagens que não são pessoas, são animais, como nos contos “As formigas” e “Seminário dos ratos”. Nos contos estudados, pode-se notar a presença, ainda, do caráter intimista dado pela autora que trazem uma análise psicológica das personagens, trabalha o inconsciente e o fluxo da consciência, o monólogo interior, as fantasias, os sonhos (universo onírico), os conflitos interiores e introspectivos que dão à obra uma multiplicidade de interpretações.

A temática Em Melhores contos, pode-se perceber a presença da temática da vida nas grandes cidades, os problemas sociais e temas como vícios, prostituição, adultério e amor. Sobre essa questão, observe uma síntese de todos os contos no quadro abaixo: A temática em Melhores contos Conto

Temática

Verde lagarto amarelo

Infância, frustração, relacionamento familiar, solidão

Apenas um saxofone

solidão, existencialismo, amor perdido, busca do eu

Antes do baile verde

carnaval, morte, mesquinharia humana, egoísmo

Eu era mudo e só

casamento saturado, comodismo, relacionamento marido e mulher, busca do eu

As pérolas

morte, relacionamento marido e mulher, desconfiança

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Herbarium

amor, inocência, adolescência

Pomba enamorada ou uma história de amor

amor não correspondido, desilusão, conflitos individuais, superstições, crenças, solidão

Seminário dos ratos

Conto fantástico: corrupção, censura, política, miséria

A confissão de Leontina

prostituição, violência, miséria, conflitos intimistas, condição da mulher, infância, morte, desilusão, busca do eu, amor, solidão

Missa do galo

paixão, sedução, condição da mulher (dominante x dominada)

A estrutura da bolha de sabão

amor interrompido, morte, infância, relacionamento marido e mulher

A caçada

conto fantástico: conflitos intimistas, delírio, morte, mistério, busca do eu

As formigas

conto fantástico: mistério, sobrenatural

Noturno amarelo

conto fantástico: família, lembranças, memórias, busca do eu, amor, relacionamento marido e mulher

A presença

morte, velhice, desilusão, abandono, soberba, solidão, mistério

A mão no ombro

conto fantástico: morte, comportamento humano, suas fragilidades, conflitos, medos, infância, relacionamento marido e mulher

Em Melhores contos, pode-se encontrar uma das características mais marcantes da autora, que é o conto fantástico, um gênero de ficção que traz um fenômeno o qual não pode ser explicado pelas leis da razão. Isso ocorre com os seguintes contos:

Melhores Contos

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O realismo fantástico em Melhores contos Conto

Fenômeno

Seminário dos ratos

Apesar de alguns críticos considerarem ser este conto uma alegoria (representação da realidade), pois mostra, de certa forma, uma realidade brasileira, com a repressão, gastos excessivos do dinheiro público, etc., o conto aborda também essa questão fantástica em: o próprio ataque dos ratos à mansão; o tamanho dos ratos; a intensidade com que tudo acontece; a força e o tamanho deles.

A caçada

O fantástico aparece no encontro do personagem com o seu duplo, isto é, o seu eu que havia se perdido no tempo.

As formigas

As formigas aparecem, vão montando os ossos do anão e somem como num passo de mágica.

Noturno amarelo

Laura faz uma viagem ao passado, reencontra os familiares, numa fração de tempo que não consegue ser cronometrada.

A mão no ombro

Em um sonho, um homem faz uma viagem a um jardim que não tem tempo nem espaço e fica apavorado quando sente que a mão que toca seu ombro é a morte; consegue escapar dela ao acordar. Quando vai para o trabalho, ele se vê novamente no tal jardim, mas agora está acordado. Como estratégia para enganar a morte, decide fazer o contrário do que fizera no sonho: dormir.

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O tempo e o espaço das narrativas de Melhores contos são diversificados. Abaixo faremos um quadro na tentativa de sintetizar esses elementos, mas é válido observar, em relação ao fator tempo, a maioria não estipula exatamente o tempo da narrativa, então marcamos uma “estimativa” de acordo com as pistas que nos são dadas pelo narrador; além disso, em especial nas narrativas fantásticas, elas seguem o recurso da atemporalidade (sem tempo definido, um tempo psicológico); já em relação ao espaço, há contos que se passam em diversos lugares, outros somente em um lugar e outros, ainda, em um espaço fantástico, como no caso dos contos “Seminário dos ratos”, “Noturno amarelo”, “A caçada” e “A mão no ombro”. O tempo e o espaço em Melhores contos Conto

Tempo

Espaço

(estimativa) Verde lagarto amarelo

Algumas horas

Casa da personagem

Apenas um saxofone

Algumas horas

Casa da personagem

Antes do baile verde

Algumas horas

Casa da personagem

Eu era mudo e só

Algumas horas

Casa da personagem

As pérolas

Alguns minutos

Casa da personagem

Herbarium

Espaço de uma semana

Casa, num sítio

Pomba enamorada ou uma história Muitos anos de amor

Salão de beleza, rua, clube

Seminário dos ratos

Mansão

Melhores Contos

Um dia

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A confissão de Leontina

Algumas horas

Casa (no interior); cidade grande, ruas de SP, pensão, hotel, salão de dança

Missa do galo

Algumas horas

Casa da personagem

A estrutura da bolha de sabão

Alguns dias

Bar, casa da personagem Loja de antiguidades

A caçada

Alguns dias (talvez 2)

Espaço fantástico: bosque representado dentro da tela

As formigas

3 dias

Quarto de pensão

Noturno amarelo

Não se sabe ao certo (alguns minutos)

A presença

1 dia

Carro Espaço fantástico: casa dos avós Hotel de velhos Casa da personagem A mão no ombro

1 noite e 1 dia

Espaço fantástico: um jardim

A linguagem Em Melhores contos, pode-se encontrar uma linguagem de fácil entendimento, com traços coloquiais. Como em todo texto introspectivo, em muitas narrativas, a autora sugere mais do que escreve; assim, a essência fica nas entrelinhas e a incerteza predomina. Tem-se o uso constante de diálogos que são permeados pelo monólogo interior.

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Síntese dos contos Atente agora para uma revisão com as características e síntese de cada um dos contos de Melhores contos: Características e síntese de Melhores contos Conto

Verde lagarto amarelo

Características

Síntese

Ano: 1960

Eduardo visita Rodolfo, os dois conversam sobre trivialidades e relembram o passado, o que significa uma tortura para Rodolfo, pois lhe traz lembranças dolorosas da infância.

Personagens: Rodolfo e Eduardo (irmãos) Narração: 1ª pessoa – Rodolfo

Ano: 1970 Personagem: Luisiana Apenas um saxofone

Narração: 1ª pessoa – Luisiana

Luisiana é uma prostituta velha e rica. Tem de tudo em casa, mas vive infeliz. Sente saudades de seu grande amor, um saxofonista.

Ano: 1970

Antes do baile verde

Melhores Contos

Tatisa se prepara para ir ao baile de carnaval. Ela pede Personagens: ajuda para a empregada, Tatisa (patroa), para terminar sua fantasia. Lu (empregada), Raimundo (namorado Enquanto isso, o pai está de Lu) e o pai de Tatisa no quarto ao lado à beira da morte. Narração: 3ª pessoa

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Ano: 1958

Eu era mudo e só

Personagens: Manuel e Fernanda (marido e mulher) Narração: 1ª pessoa Manuel

Ano: 1958

As pérolas

Personagens: Tomás e Lavínia (marido e mulher) Narração: 3ª pessoa

Ano: 1977 Herbarium

Personagens: uma menina e seu primo Narração: 1ª pessoa – menina

Manuel sente-se oprimido pelo casamento que o afastou dos amigos. Abandou sua profissão e foi trabalhar com o sogro, com máquinas agrícolas, só para manter o nível de vida da mulher. Tomás e Lavínia são casados. Ela se prepara para ir a uma reunião, enquanto ele está deitado e doente. Por ciúmes, ele esconde o colar de pérolas da mulher, mas depois o devolve. A menina se apaixona por um primo que estava doente e que viera passar uns dias em sua casa. O garoto colecionava folhas.

Ano: 1977 Pomba enamorada ou uma história de amor

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Pomba enamorada era uma jovem moça que posPersonagens: uma sui uma paixão não corresmoça (Pomba enamorada) e Antenor pondida por Antenor. Ela sofre, depois se casa com outro, tem filhos, mas nunNarração: 3ª pessoa ca desistiu do seu primeiro amor.

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Ano: 1977

Seminário dos ratos

Personagens: Secretário do BemEstar Público e Privado e seu assessor, o Chefe de Relações Públicas Narração: 3ª pessoa Ano: 1949

A confissão de Leontina

Personagens: Leontina (Pedro, Rubi, Rogério, Armando, Velho) Narração: 1ª pessoa Leontina

Ratos invadem uma mansão onde irá acontecer um Seminário entre autoridades políticas justamente para tentar exterminar ratos que invadem a cidade.

A mulher está na cadeia, presa por ter assassinado um homem em legítima defesa. Ela conta sua triste história de vida, desde a infância, a uma senhora que se propôs a escutá-la.

Ano: 1977

Missa do galo

Melhores Contos

Versão moderna de um conto homônimo de MaPersonagens: Conceição, Nogueira, chado de Assis, no qual a personagem principal, D. Inácia, Menezes Conceição, mostra-se seNarração: 1ª pessoa – dutora e sensual em seu narrador desconhecido diálogo com o garoto Nogueira.

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Ano: 1978/1991

A estrutura da bolha de sabão

A narradora reencontra, depois de anos, uma antiPersonagens: narradora (sem nome), ga paixão, um físico, que agora estava casado e à o físico e sua mulher beira da morte e que estuNarração: 1ª pessoa – dava a estrutura da bolha mulher narradora de sabão. Ano: 1965

A caçada

Personagens: homem, dona da loja de antiguidades Narração: 3ª pessoa

Ano: 1977

As formigas

Personagens: duas amigas e primas, estudantes de Direito e Medicina e a dona da pensão Narração: 1ª pessoa – estudante de Direito

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Um homem visita uma loja de antiguidades e fica fascinado com uma tapeçaria que está na parede. Sente-se preso à imagem, como se fizesse parte da caçada que ela ilustrava. Duas estudantes se hospedam em um quarto de pensão; à noite, elas veem formigas misteriosas andando pelo quarto e indo em direção a uma caixa de ossos – os insetos montam o esqueleto de um anão.

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Ano: 1977

Noturno amarelo

Personagens: Laura, Fernando e familiares de Laura Narração: 1ª pessoa Laura

Laura transpassa a um outro tempo e espaço (vai para a casa de seus avós) enquanto está parada, com o marido, na beira da estrada, por falta de combustível.

Ano: 1977

A presença

Personagens: um rapaz de 25 anos, o porteiro do hotel, velhos do hotel

Um rapaz de 25 anos se hospeda em um hotel para velhos e é misteriosamente assassinado.

Narração: 3ª pessoa Ano: 1977 A mão no ombro

Personagem: um homem de quase 50 anos Narração: 3ª pessoa

Um homem de quase 50 anos de idade prenuncia a sua morte a partir de um sonho, por meio do toque de uma mão em seu ombro.

EXERCÍCIOS 1. Assinale a(s) opção(ões) correta(s) em relação a obra Melhores contos e o estilo de sua autora. 01. As obras de Lígia Fagundes Telles (LFT) trabalham com as experiências humanas, sobretudo as experiências interiores. 02. LFT é escritora conhecida internacionalmente por seus contos, romances e crônicas

Melhores Contos

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04. Na obra estudada, LFT utiliza um estilo coloquial e conciso que dão espaço a uma narrativa com diálogos que, muitas vezes, são interrompidas por monólogos interiores. 08. A solidão é um tema recorrente nas obras de LFT; é por meio dela que a autora insere nas percepções das personagens os conflitos entre o mundo real e o ficcional, entre o objetivo e o subjetivo. 16. A autora de Melhores contos possui características do período conhecido como Pós-45; sua abordagem, em especial nas personagens femininas, é psicológica, mostrando complexidade e marcada pela reflexão. 2. Verifique as proposições corretas e faça o somatório a respeito dos contos da obra Melhores contos. 01. No conto “Verde lagarto amarelo”, LFT se utiliza da intertextualidade algumas vezes; pode-se citar, por exemplo, a Bíblia, a partir da história de Caim e Abel (a inquietação dos irmãos Eduardo e Rodolfo) e, ainda a história do Rei Midas, quando o pai diz que a mãe transforma tudo em beleza. 02. Em “As formigas”, a narradora é também a personagem principal (junto com a irmã) que vivencia a história contada. A este tipo de narração denominamos autodiegética. 04. No conto “Eu era mudo e só”, aparece um casal que se ama, mas ele está muito doente, e os dois sabem que sua morte poderá ser breve. Ele sabe que a situação entre os dois irá mudar depois daquela noite, depois do encontro que acontecerá entre a mulher e o amigo. 08. Em “Pomba enamorada ou uma história de amor”, a personagem feminina revive a infância e seu amor adormecido ao encontrar seu ex-namorado, agora casado, e muito doente. 16. O título do conto “Noturno amarelo” fica por conta da avó da narradora que, ao piano mostra uma composição de sua autoria: Noturno amarelo, para a neta visitante, que vê sua irmã caçula, Ducha dançar ao som da música. 278

Estudos de Textos


3. Faça o somatório das questões verdadeiras. 01. Ao longo da leitura das narrativas de LFT não é raro encontrarmos figuras de linguagem. No fragmento: “O Raimundo já deve estar chegando, ele fica uma onça se me atraso. A gente vai ver os ranchos, hoje quero ver todos.”, do conto “Antes do baile verde”, a expressão grifada indica uma metáfora. 02. Em: “Boa tática, meu jovem, é influenciar no começo e no fim todos os meios de comunicação do país.”, do conto “Seminário dos ratos”, a expressão grifada indica a presença de um eufemismo. 04. Existe uma elipse no trecho assinalado do fragmento seguinte, extraído do conto “Verde lagarto amarelo”: “– Não, era uma valsa póstuma – eu disse colocando na frente dele a xícara perfeita. Reservei para mim a que estava rachada.” 08. Um dos recursos a que LFT recorre em sua obra é o uso do discurso indireto livre, como ocorre no seguinte fragmento do conto “As pérolas”: “ – Sinto-me tão bem. – Pensei que você tivesse com alguma dor. – Dor? Não. Eu estava mas era pensando.” 16. LFT tece suas narrativas utilizando uma técnica literária chamada fluxo da consciência, que nada mais é do que contar a história por meio do processo de pensamento da personagem. Essa técnica foi usada nos seguintes contos: “Apenas um saxofone”, “A confissão de Leontina”, “A caçada” e “Noturno amarelo”. 32. A morte é uma constante nos contos de LFT, ora ela aparece de forma explícita, como no conto “A caçada”, ora apenas como sugestão, como ocorre nos contos “Antes do baile verde”, “A mão no ombro” e “A estrutura da bolha de sabão”.

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4. Tendo como base o conto “Seminário dos ratos”, representado no Texto I, os contos de Melhores contos e sua autora, faça o somatório das questões verdadeiras. Texto I - Bueno, é do conhecimento de Vossa Excelência que causou espécie o fato de termos escolhido este local. Por que instalar o VII Seminário dos Roedores numa casa de campo, completamente isolada? Essa a primeira indagação geral. A segunda é que gastamos demais para tornar esta mansão habitável, um desperdício quando podíamos dispor de outros locais já prontos. O noticiarista de um vespertino, marquei bem a cara dele, Excelência, esse chegou a ser insolente quando rosnou que tem tanto edifício em disponibilidade, que as implosões até já se multiplicam para corrigir o excesso. E nós gastando milhões para restaurar esta ruína... O secretário passou o lenço na calva e procurou se sentar mais confortavelmente. Começou um gesto que não se completou. - Gastando milhões? Bilhões estão consumindo esses demônios, por acaso ele ignora as estatísticas? Estou apostando como é da esquerda, estou apostando. Ou, então, amigo dos ratos. Enfim, não tem importância, prossiga, por favor. - Mas são essas as críticas mais severas, Excelência. Bisonhices. Ah, e aquela eterna tecla que não cansam de bater, que já estamos no VII Seminário e até agora, nada de objetivo, que a população ratal já se multiplicou sete mil vezes depois do I Seminário, que temos agora cem ratos para cada habitante, que nas favelas não são as Marias mas as ratazanas que andam de lata d’água na cabeça - acrescentou contendo uma risadinha. - O de sempre... Não se conformam é de nos reunirmos em local retirado, que devíamos estar lá no centro,

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Estudos de Textos


dentro do problema. Nosso Assessor de Imprensa já esclareceu o óbvio, que este Seminário é o Quartel-General de uma verdadeira batalha! E que traçar as coordenadas de uma ação conjunta deste porte exige meditação. Lucidez.Onde poderiam os senhores trabalhar senão aqui, respirando um ar que só o campo pode oferecer? Nesta bendita solidão, em contato íntimo com a natureza... TELLES, Lygia F. Melhores contos. São Paulo: Global, 2015.

01. Os contos “Seminário dos ratos”, “A caçada”, “As formigas”, “Noturno amarelo” e “A mão no ombro” apresentam elementos insólitos, aproximando-se do realismo fantástico, que são narrativas elaboradas a partir do imaginário, por uma dimensão supostamente inexistente na realidade convencional. 02. Em: “- Mas são essas as críticas mais severas, Excelência.” , o termo sublinhado indica um vocativo. 04. O conto aparece em livro homônimo, no ano de 1977, época em que o Brasil se encontrava em um momento histórico de repressão política. 08. No trecho: “... nas favelas não são as Marias mas as ratazanas que andam de lata d’água na cabeça”, LFT faz uma intertextualidade com a marchinha de carnaval “Lata d’água”, de Joaquim Antônio Candeias Júnior. 16. Nos fragmentos: “- Bueno, é do conhecimento de Vossa Excelência que causou espécie o fato de termos escolhido este local.” e “Começou um gesto que não se completou.” As duas palavras possuem a mesma função gramatical: pronome relativo. 32. Ao lado de Guimarães Rosa e de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles é responsável pela continuidade de uma tradição literária marcada pelo engajamento dos escritores em projetos literários voltados à denúncia das mazelas e deficiências da sociedade brasileira. Melhores Contos

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5. Agora vamos ver se você se recorda de todos os contos estudados. Relacione os títulos dos contos com seu resumo: ( 1 ) Verde lagarto amarelo

( ) A menina se apaixona por um primo que estava doente e que viera passar uns dias em sua casa. O garoto colecionava folhas.

( 2 ) Apenas um saxofone

( ) Uma jovem moça possui uma paixão não correspondida por Antenor. Ela sofre, depois se casa com outro, tem filhos, mas nunca desistiu do seu primeiro amor.

( 3 ) Antes do baile verde

( ) Um rapaz de 25 anos se hospeda em um hotel para velhos e é misteriosamente assassinado.

( 4 ) Eu era mudo e só

( ) Eduardo visita Rodolfo, os dois conversam sobre trivialidades e relembram o passado, o que significa uma tortura para Rodolfo, pois lhe traz lembranças dolorosas da infância.

( 5 ) As pérolas

( ) Tatisa se prepara para ir ao baile de carnaval. Ela pede ajuda para a empregada, para terminar sua fantasia. Enquanto isso, o pai está no quarto ao lado à beira da morte.

( 6 ) Herbarium

( ) A narradora reencontra, depois de anos, uma antiga paixão, um físico, que agora estava casado

( 7 ) Pomba enamorada ou uma história de amor

( ) Um homem visita uma loja de antiguidades e fica fascinado com uma tapeçaria que está na parede. Sente-se preso à imagem, como se fizesse parte da caçada que ela ilustrava.

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( 8 ) Seminário dos ratos

( ) Tomás e Lavínia são casados. Ela se prepara para ir a uma reunião, enquanto ele está deitado e doente. Por ciúmes, ele esconde o colar da mulher, mas depois o devolve.

( 9 ) A confissão de Leontina

( ) Laura transpassa a um outro tempo e espaço (vai para a casa de seus avós) enquanto está parada, com o marido, na beira da estrada, por falta de combustível.

( 10) Missa do galo

( ) Um homem de quase 50 anos de idade prenuncia a sua morte a partir de um sonho.

( ) Versão moderna de um conto homônimo de Machado de Assis, no qual a per( 11 ) A estrutura da bolha sonagem principal, Conceição, mostra-se de sabão sedutora e sensual em seu diálogo com o garoto Nogueira. ( 12 ) A caçada

( ) Luisiana é uma prostituta velha e rica. Tem de tudo em casa, mas vive infeliz. Sente saudades de seu grande amor.

( 13 ) As formigas

( ) Manuel sente-se oprimido pelo casamento que o afastou dos amigos. Abandou sua profissão e foi trabalhar com o sogro, com máquinas agrícolas, só para manter o nível de vida da mulher.

( 14 ) Noturno amarelo

( ) A mulher está na cadeia, presa por ter assassinado um homem em legítima defesa. Ela conta sua triste história de vida, desde a infância, a uma senhora que se propôs a escutá-la.

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( 15 ) A presença

( ) Duas estudantes se hospedam em um quarto de pensão; à noite, elas veem formigas misteriosas andando pelo quarto e indo em direção a uma caixa de ossos

( 16 ) A mão no ombro

( ) Ratos invadem uma mansão onde irá acontecer um Seminário entre autoridades políticas justamente para tentar exterminar ratos que invadem a cidade.

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UM ÚTERO É DO TAMANHO DE

UM PUNHO


UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO Autora: Angélica Freitas Escola literária: Literatura Contemporânea Ano de publicação: 2012 Gênero: poesia Divisão da Obra: 7 partes Temática: O ser mulher

A AUTORA Angélica Freitas (1973) Nasceu em Pelotas (RS), em 1973. Formada em Jornalismo, mudou-se para São Paulo, onde trabalhou no Jornal O Estado de São Paulo e na Revista Informática Hoje. Saiu de São Paulo em 2006 e morou em países como Holanda, Bolívia e Argentina. Atualmente, a poeta vive e trabalha em Pelotas. Seus livros foram traduzidos na Espanha, México, Estados Unidos, Alemanha e França.

BIBLIOGRAFIA Poesia: Rilke Shake (2007); um útero é do tamanho de um punho (2012).

A ESCOLA LITERÁRIA Literatura Contemporânea Ver dados sobre essa escola literária na análise da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada.

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ANÁLISE DA OBRA Um útero é do tamanho de um punho foi publicado em 2012 e retoma a estética modernista a qual pode ser verificada a partir dos versos livres, da linguagem coloquial, da paródia e da sátira na poesia (poema-piada). A obra tem como temática o “ser mulher” e traz questões ligadas ao feminismo considerando a pluralidade de gêneros e de sujeitos e, claro, problematizando a sociedade estruturada de forma patriarcal. Por meio do humor, Angélica Freitas ridiculariza o discurso de convenções dessa sociedade e critica-o ao mesmo tempo em que propõe que seja revisto, reconstruído, alinhando-se à linha feminista ao passo que sua obra problematiza as experiências das mulheres. A obra é construída a partir do uso de versos livres (muitas vezes bem evidenciado na estética do Modernismo e nas Vanguardas Europeias), da linguagem simples e coloquial, da ausência de pontuação em quase todos os poemas, do não uso de letras maiúsculas para os inícios de frases e substantivos próprios, da brincadeira fonética (de rimas e jogos de palavras), das cantigas populares, dos provérbios, da ironia e do riso. O livro está dividido em sete partes independentes, porém, que dialogam entre si, todas intituladas. São eles: “Uma mulher limpa”, “Mulher de”, “A mulher é uma construção”, “Um útero é do tamanho de um punho”, “3 poemas com o auxílio do Google”, “Argentina” e “O livro rosa do coração dos trouxas”. Outro ponto interessante de ser notado, é que as mulheres não têm nomes, elas são rotuladas, como: “uma mulher limpa”, “uma mulher gorda”, “uma mulher ébria”, “mulher que não perdia a chance de enfiar o dedo no ânus”, “mulher vermelha, entre outras. À medida em que vamos lendo a obra de Angélica Freitas, percebemos a presença de muitas vozes, muitos “eus” nos poemas que nos contam suas realidades, as suas verdades, os seus pontos de vistas – o lugar da enunciação. E aí nos deparamos com discursos que conflituam os Um útero é do tamanho de um punho

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comportamentos femininos, aborto, questões de gênero, violência, homossexualidade e opressão, vindos de padrões estéticos estabelecidos. Um útero é do tamanho de um punho possibilita a reflexão do que é ser mulher na sociedade brasileira; ele nos leva a pensar no quão definido se tornou o papel de submissão da mulher e no quão os seus desejos eram/são direcionados para a realização dos desejos e vontades de outras pessoas (no caso, o marido e os filhos). Tudo isso provoca a anulação do ser mulher e, pior, passou a ser visto de forma natural para o comportamento feminino. Antes de começarmos a navegar pelo livro da poeta, convém-nos uma observação a respeito do título do livro: Um útero é do tamanho de um punho, nos lembra de expressões populares como: “o útero é do tamanho de um punho cerrado” ou “o coração é do tamanho de um punho cerrado”. Não foi por acaso, certamente, a escolha desse título, que associa o útero ao coração – ambos, órgãos direcionados metonimicamente às mulheres: o útero (de seu lado biológico, exclusivamente feminino, que proporciona à mulher a maternidade) e o coração (de seu lado metafórico, associado às mulheres, que pensam com o coração, são mais emotivas, sentimentais). Mas não pense, você, que a autora escolheu fazer essa associação por mero conformismo, muito pelo contrário, e aqui citarei uma estudiosa de Angélica Freitas, chamada Amélia Petrani (2013, p. 30), que muito bem interpretou essa questão: “A substituição por associação pode, assim, começar a ser compreendida em um outro plano, em que se rasura uma certa concepção do feminino: um (é bom destacar o uso desse artigo indefinido no título) útero/coração é do tamanho de um punho, um punho cerrado, um punho pronto para o soco, o murro. Punho é uma metáfora (gasta) da ideia de luta e de força – comumente masculina, viril – , mas se associa também a “pulso”, que é parte de outra expressão muito comum: é preciso ter pulso (firmeza, coragem) para fazer algo. Com isso, as dicotomias sexuais e de gênero são borradas. Mulher tem pulso. É forte, é firme. É mulher, tem útero. Tem coração.” 290

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Agora, vamos aos poemas:

Parte I - Uma mulher limpa Esta parte é composta por 14 poemas que trazem, em sua maioria, o termo “mulher no título” e sempre relacionada a uma caracterização ou ação (“porque uma mulher boa”; “uma mulher muito feia”; “uma mulher sóbria”; “era uma vez uma mulher”; “uma canção popular (séc. XIX-XX); “uma mulher gorda”; “é o poema da mulher suja”; “uma mulher insanamente bonita”; “uma mulher limpa”; “uma mulher gostava muito de escovar os dentes”; “uma mulher não gostava de dizer”; “uma mulher sóbria”; “era uma vez uma mulher que não perdia”; “alcachofra”). Vamos analisar, aqui, alguns poemas dessa parte. porque uma mulher boa porque uma mulher boa é uma mulher limpa e se ela é uma mulher limpa ela é uma mulher boa há milhões, milhões de anos pôs-se sobre duas patas a mulher era braba e suja braba e suja e ladrava porque uma mulher braba não é uma mulher boa e uma mulher boa é uma mulher limpa há milhões, milhões de anos Um útero é do tamanho de um punho

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pôs-se sobre duas patas não ladra mais, é mansa é mansa e boa e limpa O primeiro poema, “porque uma mulher boa”, tem como eu-lírico uma sociedade machista, que dita o que as mulheres devem ou não fazer (e elas devem ser boas e limpas – obedientes e puras); o poema inicia com uma conjunção explicativa (porque), como se retratasse uma realidade social em que a mulher sempre tem que se explicar antes de qualquer pergunta. Após a conjunção, aparece o artigo indefinido “uma”, indicando que pode ser qualquer mulher, ou seja, generaliza o gênero feminino. O poema segue associando ironicamente o vocábulo “boa” a “limpa” (uma mulher boa é uma mulher limpa, e uma mulher limpa é uma mulher boa) e o vocábulo “braba” a “suja”. Aqui, é necessário analisarmos o significado dessas palavras no poema. O eu-lírico associa duas palavras agradáveis (boa e limpa) e duas “desagradáveis”, incômodas (braba e suja). Mas o que seria esse “boa”? Ser uma mulher boa, indica ser uma mulher agradável, pacífica, submissa; já o termo “limpa” remete à pureza, mansidão, obediência. Na contramão, aparecem os termos “braba” e “suja”, que são exatamente o contrário dos termos anteriores, indicando a desobediência, o incômodo. O eu-lírico segue indicando que hoje a mulher é boa e limpa, mas antes, “há milhões, milhões de anos” era “braba e suja e ladrava”, ou seja, a mulher é aqui associada a um animal (a partir do termo “ladrar”), isto é, um ser irracional, que incomodava, que era desagradável. E a autora faz novamente o jogo de palavras com as antíteses “braba” e “boa”: “porque uma mulher braba/ não é uma mulher boa”. O poema se encerra novamente fazendo a relação mulher-animal: “pôs-se sobre duas patas/ não ladra mais, é mansa”; daqui podemos inferir ironicamente que a mulher deixou de ser irracional, passou a andar como o homem, com “duas patas” e tornou-se mansa, ou seja, silenciou-se; a partir do momento em que a mulher começou a ser “do292

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mesticada”, ela se tornou boa e limpa – eis a grande crítica que a autora faz à sociedade patriarcal. Percebe-se que a questão da limpeza no texto remete-se à castração: a partir do momento em que ela é castrada, isto é, não raciocina mais, é submissa, não incomoda, ela torna-se a mulher ideal (ideal para esse tipo de sociedade machista, claro). Outro poema que vai na mesma linha desse primeiro, é o poema “uma mulher gorda”, leia-o: uma mulher gorda uma mulher gorda incomoda muita gente uma mulher gorda e bêbada incomoda muito mais uma mulher gorda é uma mulher suja uma mulher suja incomoda incomoda muito mais uma mulher limpa rápido uma mulher limpa Nesse poema, é visível novamente a associação de palavras “desagradáveis” à sociedade, com características pejorativas dadas à mulher: “gorda e bêbada”. Ironicamente, esse perfil de mulher faz uma intertextualidade com a música infantil “Um elefante incomoda muita gente”; a associação mulher gorda – elefante não é gratuita; e a palavra “incomoda” aparece várias vezes indicando que a mulher que não se cala incomoda muita gente. A música infantil graceja pelo fato de quantos Um útero é do tamanho de um punho

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mais elefantes existirem, mais eles incomodarão (e isso é percebido pela quantidade de vezes em que a palavra “incomoda” aparece). Chega-se ao final do poema, concluindo-se que urge acabar com as mulheres que incomodam; é preciso trazer as “limpas”, e rápido! Outro poema interessante desta primeira parte é “uma canção popular (séc. XIX-XX), descrito a seguir: uma canção popular (séc. XIX- XX): uma mulher incomoda é interditada levada para o depósito das mulheres que incomodam loucas louquinhas tantãs da cabeça ataduras banhos frios descargas elétricas são porcas permanentes mas como descobrem os maridos enriquecidos subitamente as porcas loucas trancafiadas são muito convenientes interna, enterra Neste poema, percebe-se mais um caso de violência às mulheres: a perda de sua liberdade. Já nos primeiros versos, temos a informação de que uma mulher que incomoda deve ser interditada, ou seja, deve ter sua liberdade encerrada. E essa interdição a leva ao “depósito”, o de294

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pósito “das mulheres que incomodam”; o termo depósito, no dicionário, indica um lugar onde é colocado um “objeto” – e aqui temos a associação mulher-objeto. E um objeto que é usado pelos maridos “enriquecidos”. Mas esse objeto só serve quando não incomoda, porque a partir do momento em que ele passa a atormentar, ele deve ser retirado de circulação. Na segunda estrofe, os termos “loucas louquinhas/ tantãs da cabeça” representam os vocábulos associados às mulheres desobedientes, aquelas que enfrentam os homens, as loucas. E aparecem termos que remetem à ditadura: “ataduras banhos frios/ descargas elétricas”, isto é, a aplicação de métodos corretivos que se tornam cada vez mais violentos – repare que aqui a ausência de pontuação contribui para o efeito de intensificação das ações praticadas. Na terceira estrofe, a mulher é associada a animal, dessa vez, a porca, “são porcas permanentes”, ou seja, são incorrigíveis, nem com aqueles métodos de tortura de silenciam. O poema indica que os maridos sabem que essas porcas são convenientes, e são convenientes porque a sociedade vive de aparência, mas elas vivem “trancafiadas” – e tranca-se o que é perigoso, o que deve ser isolado, o que se torna uma ameaça – e uma mulher empoderada é uma ameaça. O último verso dá o fechamento ao círculo: a mulher que incomoda (louca) deve ser internada, trancafiada até que morra a sua essência; e morta, quando já não representa mais perigo, deve ser enterrada.

Parte II – mulher de Esta parte é formada por dez poemas, todos com o título iniciado conforme o título da seção, “mulher de” ou, em apenas dois casos, repete-se a sonoridade “mulher de”, mas é um vocábulo iniciado pelo som “de” (depois e depressa): “mulher de vermelho”; “mulher de valores”; “mulher de posses”; “mulher depois”; “mulher de rollers”; “mulher depressa”; “mulher de um homem só”; “mulher de respeito”; “mulher de malandro”; “mulher de regime”. Todos eles indicando lugares-comuns Um útero é do tamanho de um punho

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relacionados à figura da mulher. mulher de vermelho o que será que ela quer essa mulher de vermelho alguma coisa ela quer pra ter posto esse vestido não pode ser apenas uma escolha casual podia ser um amarelo verde ou talvez azul mas ela escolheu vermelho ela sabe o que ela quer e ela escolheu vestido e ela é uma mulher então com base nesses fatos eu já posso afirmar que conheço o seu desejo caro watson, elementar: o que ela quer sou euzinho sou euzinho o que ela quer só pode ser euzinho o que mais podia ser Este poema tem uma forte relação com a simbologia e com as questões de gênero. O título “mulher de vermelho” possui duas palavras que, socialmente, são muito significativas em relação à figura do feminino, quando juntas: representa a sensualidade, a paixão, a sedução. A figura da mulher de vermelho é sempre associada ao mistério, à noite, à sedução, ao fogo. O poema começa com uma indagação: “o que será que ela quer / essa mulher de vermelho”? E complementa: “ alguma coisa ela quer / pra ter 296

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posto esse vestido”. Vejamos bem: o eu-lírico é um homem (e daqueles bem machistas!) – isso comprovamos nos versos finais, quando ele fala em “euzinho”. O eu-lírico, então, afirma, com toda a bagagem construída socialmente, com todo o preconceito, que a mulher (e aqui pode representar qualquer mulher ou todas as mulheres) colocou vermelho porque quer seduzi-lo, porque quer algo. Ele já dá a resposta para a pergunta inicial, de forma bem coloquial: “o que ela quer sou euzinho / sou euzinho o que ela quer / só pode ser euzinho”. E, para descobrir esse mistério, da pergunta inicial, o poema faz uma intertextualidade com a obra de William Shakespeare, com a famosa frase do detetive Sherlock Holmes, quando este julgava ter resolvido um mistério: “Elementar, meu caro Watson!”. Outra questão interessante de se observar é que o poema, é feito bem aos moldes modernos: não é separado em estrofes e é praticamente isento de pontuação (a não ser em um verso, que possui dois pontos); no entanto, pode-se dizer que ele começa e termina com uma pergunta (mesmo sem os pontos de interrogação), mas a indagação final já é uma espécie de resposta para a pergunta inicial. Em paralelo a essa diversidade de mulher, o poema “mulher depois” aborda a questão da transexualidade. mulher depois queridos pai e mãe tô escrevendo da tailândia é um país fascinante tem até elefante e umas praias bem bacanas mas tô aqui por outras coisas embora adore fazer turismo pai, lembra quando você dizia Um útero é do tamanho de um punho

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que eu parecia uma guria e a mãe pedia: deixem disso? pois agora eu virei mulher me operei e virei mulher não precisa me aceitar não precisa nem me olhar mas agora eu sou mulher O eu-lírico é um “filho” que escreve a seus pais, indicando que escreve da Tailândia; na segunda estrofe, porém, a mensagem se remete diretamente ao pai: “pai, lembra quando você dizia / que eu parecia uma guria / e a mãe pedia: deixem disso?” – aqui temos bem o padrão da família tradicional paternalista, em que o pai reclama sobre o comportamento do filho (que tem modos de guria) e a mãe sempre intermediando o conflito. Na terceira e última estrofe, vem a revelação: “pois agora eu virei mulher / me operei e virei mulher”; o poema termina com palavras de quem realmente sente na pele a dor do preconceito “não precisa me aceitar/ não precisa nem me olhar”, mas também de quem possui a determinação do seu ser: “mas agora eu sou mulher”. O poema, seguindo a linha dos demais, possui uma linguagem coloquial “tô”, e a ausência de pontuação é notável.

Parte III – a mulher é uma construção Esta seção é composta por sete poemas, os quais possuem títulos bem diversificados (ao contrário das duas primeiras partes). São eles: “ a mulher é uma construção”; “uma serpente com a boca cheia de colgate”; “ítaca”; “metonímia”; “querida angélica”; “pós”; “eu durmo comigo”. Aqui, vamos fazer a análise do poema “a mulher é uma construção”.

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a mulher é uma construção a mulher é uma construção deve ser a mulher basicamente é pra ser um conjunto habitacional tudo igual tudo rebocado só muda a cor particularmente sou uma mulher de tijolos à vista nas reuniões sociais tendo a ser a mais mal vestida digo que sou jornalista (a mulher é uma construção com buracos demais vaza a revista nova é o ministério dos assuntos cloacais perdão não se fala em merda na revista nova) você é mulher e se de repente acorda binária e azul e passa o dia ligando e desligando a luz? (você gosta de ser brasileira? Um útero é do tamanho de um punho

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de se chamar virginia woolf?) a mulher é uma construção maquiagem é camuflagem toda mulher tem um amigo gay como é bom ter amigos todos os amigos têm um amigo gay que tem uma mulher que o chama de fred astaire neste ponto, já é tarde as psicólogas do café freud se olham e sorriem nada vai mudar – nada nunca vai mudar – a mulher é uma construção O poema traz no título, novamente, a palavra mulher e tematiza a questão da generalização e da particularidade. O título nos remete a dois significados diferentes para a palavra “construção”: ou pode se referir à construção de uma edificação - e daí aparecem palavras como “conjunto habitacional”, “rebocado”, “tijolos”; ou pode se remeter à ideia de construto social, um código de conduta. Na segunda estrofe, o eu-lírico refere-se à mulher em geral (poderia ser qualquer uma ou todas elas), indicando que ela “é pra ser” um “conjunto habitacional. Já na terceira estrofe, a autora expõe sua biografia no poema; ela se identifica como uma mulher “de tijolos à vista”, “a mais mal vestida”, a “jornalista”; uma mulher de tijolos à vista faz menção à 300

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construção de favela (o conjunto habitacional sem reboco). Posteriormente, ela indica que “a mulher é uma construção com buraco demais / vaza”. Aqui, pode-se perceber uma comparação indireta ao homem no sentido biológico, quanto aos seus orifícios, que são em números superiores aos dos homens. Além disso, a mulher “vaza” todo mês, isto é, menção direta ao processo da menstruação. A estrofe seguinte faz uma crítica às revistas femininas de futilidades: “a revista nova é o ministério / dos assuntos cloacais / perdão / não se fala em merda na revista nova)” – vemos aqui o uso da coloquialidade, do vocabulário chulo. Ainda nesses versos, ironicamente, o eu-lírico dá mostras da repressão, da censura: “perdão / não se fala em merda na revista nova”. Na próxima estrofe, ela se remete à orientação sexual da mulher: “de repente acorda binária e azul” - o termo binário remete-se a algo que tem dois elementos ou que comporta dois aspectos e azul é a cor socialmente atribuída ao sexo masculino. O poema segue e, nele, continuamos percebendo a crítica à ditadura do embelezamento, citado anteriormente pela revista e, agora, pelo uso da maquiagem: “maquiagem é camuflagem”, isto é, a mulher sempre está se escondendo; nesse caso, atrás da maquiagem. Posteriormente, nos deparamos com uma frase do cotidiano: “toda mulher tem um amigo gay” e, ela completa: “como é bom ter amigos” – a amizade é primordial na vida de alguém. A poesia fala ainda das aparências: o amigo gay “que tem uma mulher que o chama de fred astaire” – Fred Astaire (1899-1987) foi um famoso ator e dançarino estadunidense. O poema termina em tom de lamentação: “neste ponto, já é tarde / as psicólogas do café freud / se olham e sorriem / nada vai mudar / a mulher é uma construção” – aqui, percebemos o clima de pessimismo, quando o eu-lírico diz que nada vai mudar, que a mulher é uma construção e que a forma de enxergá-la não vai mudar nunca – as próprias “psicólogas do café freud” (Café Freud é um café localizado em Viena, ao lado do Museu Freud, o pai da psicologia) se mostram descrentes perante esse fato: nada vai mudar. Um útero é do tamanho de um punho

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Parte IV – um útero é do tamanho de um punho Este poema, que dá nome ao livro, é o mais longo de todos: possui 42 estrofes e 173 versos que falam sobre o útero e os discursos que o cerceiam. Seus versos lembram a estética dadaísta, em que os versos parece que são jogados aleatoriamente. A temática central do poema são as repressões exercidas sobre o útero (o órgão reprodutor feminino) e, consequentemente à mulher, a qual possui uma autonomia interditada quanto ao exercício da sexualidade e à interrupção de uma gravidez indesejada. O título do poema é muito representativo e ele aparece quatro vezes ao longo (do poema). O útero assemelha-se ao punho fechado, em tamanho, mas também na função de acolher: o útero acolhe o óvulo fecundado, segura o óvulo; a mão fechada também tem a função de segurar, segurar o feto. O poema mostra, também, o quão poderoso é o útero, uma vez que abriga médicos, indivíduos formados e importantes para a sociedade: um útero é do tamanho de um punho num útero cabem cadeiras todos os médicos couberam num útero o que não é pouco uma pessoa já coube num útero não cabe num punho quero dizer, cabe se a mão estiver aberta o que não implica gênero degeneração ou generosidade Outro aspecto importante a ser observado é a infantilização da linguagem, uma forma sutil e irônica de a autora manifestar sua crítica – para isso, ela utiliza a língua do “i”: im itiri i di timinhi di im pinhi 302

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quem pode dizer tenho um útero (o médico) quem pode dizer que funciona (o médico) i midici o medo de que não funcione para que serve um útero quando não se fazem filhos para quê piri qui Aqui percebemos a menção crítica à função do útero: a de ter filhos; e uma mulher que não pode ter filhos, também não serve, assim como o útero. O útero é tão democrático que está em mulheres comuns e também em famosas: úteros famosos: o útero da frida kahlo o útero da golda meir o útero da maria quitéria o útero da alejandra pizarnik o útero de hilary clinton [o útero de diadorim] Reparemos no último verso, em que “o útero de diadorim” está entre colchetes (uma tendência pós-moderna, usar símbolos na poesia) e lembremos que Diadorim é uma personagem de Guimarães Rosa, da obra Grande Sertão Veredas, que cometeu o “erro” de ter nascido mulher em uma sociedade machista – ela é simultaneamente a representação do masculino e do feminino. Em tono da temática central, a poeta não poderia deixar de falar da menstruação e da sensação de alívio ao verificar que não está grávida: Um útero é do tamanho de um punho

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um útero expulsa os óvulos óbvios vermelho = tudo bem! isti tidi bim vici ni isti grividi O fato de não estar grávida está associado à liberdade, à não obrigação da maternidade, da responsabilidade de ter um filho. Seguindo, ainda, na temática central, a figura do aborto torna-se inevitável: manha manha pata de aranha quem manda nas entranhas de mamãe tiru tiru lero lero ___ a-b-o-r-t-o-u eu não posso Aqui podemos perceber a inserção da cultura popular, da parlenda, nos versos da poeta. Os versos fazem menção à bruxa e seu caldeirão, com “pata de aranha”, associados à ideia de que a mão não manda em suas entranhas. E aqui podemos fazer a associação com a questão do aborto, que apesar de ser um problema de saúde pública, toma proporções religiosas e morais, cujo Estado exerce controle pela proibição: a mulher não tem direito sobre seu corpo. E aqui vemos também a palavra “abortou” toda separada, simulando as partes do feto abortado e um sonoro “eu não posso”, estou proibida de fazer isso. 304

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O poema segue com várias quadras, como se fosse uma brincadeira ingênua, mas é forte e crítico: a menina que não estuda / vai puxar carroça / a égua foi à escola / ficou do lado de fora”. E os trocadilhos vão tomando conta do poema de forma humorada: “se a bunda fosse na frente/ e os peitos fossem atrás/ livros abundariam/ pra instruir o rapaz”. E o útero vem tendo sua representação nos mais variados ambientes: nos discursos de pronunciamentos (“prezadas senhoras, prezados senhores, / excelentíssimo ministro, querida rainha da festa da uva”), nas conversas informais (“querida amiga, dicas para conservar / melhor o seu útero”) e nas universidades (“caros alunos: hoje vamos dissecar / o útero daquela que foi / uma das maiores cantoras nacionais”). A última parte do poema inicia com um “apêndice” (um verso com essa palavra) e, novamente, assemelhando-se a uma brincadeira de rimas, verificamos o lado científico da questão: “alguns fatos que rimam sobre o útero:/ o útero fica/ entre o reto/ e a bexiga / uma das extremidades/ se abre na vagina/ outra é conectada/ às duas tubas uterinas”. O poema termina com uma classificação fonológica (em sílabas) sobre o útero: monossílabos empregados em literatura sobre o útero: um dissílabos: feto, cérvix, pélvis, parto trissílabos: útero, vagina, falópio outros polissílabos: mamíferos, mesométrio a 36 graus em ante-verso-flexão i piri qui Um útero é do tamanho de um punho

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Parte V – 3 poemas com o auxílio do google Como o próprio título já indica, essa seção é formada por três poemas: “a mulher vai”; “a mulher pensa” e “a mulher quer”. São três verbos que acompanham o vocábulo mulher: vai, pensa e quer. Em todos os três poemas, há uma sequência aleatória de ações que parecem ter sido procuradas no site da Google e escritas pelo eu-lírico após suas pesquisas (e se você escrever, por exemplo, “o que a mulher pensa”, no Google vai se horrorizar com as páginas que aparecem como, por exemplo: “Quantas vezes por dia a mulher pensa “naquilo” ou “4 coisas que toda mulher pensa e quer de um homem, mas não tem coragem de pedir” – Céus!). E parece que os poemas foram montados assim mesmo, com pesquisas no Google: a mulher vai ao cinema / a mulher vai aprontar / a mulher vai ovular / a mulher vai sentir prazer / a mulher vai implorar por mais / a mulher vai ficar louca por você / a mulher vai dormir / a mulher vai ao médico e se queixa...” “a mulher pensa com o coração / a mulher pensa de outra maneira / a mulher pensa em nada ou em algo muito semelhante / a mulher pensa será em compras talvez [...] a mulher pensa que a culpa foi dela / a mulher pensa em tudo isso / a mulher pensa emocionalmente” “a mulher quer ser amada / a mulher quer um cara rico / a mulher quer conquistar um homem / a mulher quer um homem / a mulher quer sexo [...] a mulher quer tudo / a mulher quer ser valorizada e respeitada / a mulher quer se separar / a mulher quer ganhar, decidir e consumir mais / a mulher quer se suicidar”

Parte VI – argentina Esta seção apresenta-se dividida em dez partes, todas numeradas de 1 a 10. Na Argentina, Angélica Freitas teve uma experiência que marcou significativamente sua vida: conviveu com um grupo de feministas 306

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ativistas , desde então, passou a refletir muito sobre o tema. O título desta parte do livro é ambíguo: pode se referir ao país ou a uma mulher argentina, e isso é mostrado já no primeiro verso: “se estou na argentina sou uma poeta argentina” – e a confusão se faz maior ainda em virtude da ausência de pontuação e de maiúsculas. A segunda estrofe deste poema remete à culinária e compara o “churrasco” da argentina com o do Rio Grande do Sul – e faz brincadeiras coma fonética da sigla r.g.s., que “bem podia ser a sigla de complicações estomacais / ou o barulho de uma frase que não te sai / porque está entalada na garganta”. O eu-lírico faz menção à tradição machista de que é o homem que faz churrasco: “e você tem que ser muito independente / ou estranha / para fazer um churrasco” – observemos a palavra “estranha” aqui para a sociedade, no sentido de que ela tem que ser “masculinizada” par fazer churrasco. E completa essa ideia de uma maneira genial: “e me parece que o churrasco sai mal / quando é muito pensado”. A mulher pensa, o homem faz de qualquer jeito. Ela conclui dizendo: “que é melhor que não se pense em nada / e que os churrascos sejam machos / como as saladas são fêmeas / a verdade é que não voltei da argentina” – e aqui percebemos como a vida que a poeta teve na Argentina marcou sua essência. No poema II, uma subversão, após reflexões sobre alfaces e churrascos e as questões de gênero: “que suem as lindas na frente da churrasqueira / e que piquem eles as folhas verdes”. E aqui percebemos essas inversões sociais de papéis entre o homem e a mulher não só no fazer culinário, mas também no espaço ocupado: a cozinha e a área. O homem vai para o espaço socialmente designado como feminino, o espaço interno, e a mulher passa a ir para o espaço masculino, a parte de fora.

Parte VII – o livro rosa do coração dos trouxas Esta última seção do livro é composta por 12 poemas, todos numerados. Angélica Freitas novamente traz à tona, por meio do riso e da ironia, Um útero é do tamanho de um punho

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uma crítica aos discursos sexistas tão comuns, ainda, nos dias atuais e que afetam as mulheres. A começar pelo título desta parte da obra, “o livro rosa do coração dos trouxas”, não podemos deixar de perceber a ironia ali contida, por meio das palavras “rosa” e “trouxas”. Em vários poemas, percebe-se a temática das relações, seja entre homem e mulher ou mulher e mulher, e daí a questão do namoro e casamento: “eu quando corto relações / corto relações. / não tem essa de / briga de torcida / todos os sábados.” Os poemas IV, V e VI iniciam-se da mesma maneira: “eu tive uma namorada”, mas daí a temática varia: IV eu tive uma namorada que não queria me convencer de que a vida era uma merda (...) V eu tive uma namorada com superpoderes de invisibilidade e quando andava com ela também era invisível (...) VI eu tive uma namorada que combinava meu sofrimento com calcinhas azul-bebê 308

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diminutivos e new order (...) Os poemas X, XI e XII também iniciam da mesma maneira, mas agora com questões ligadas ao matrimônio: “não devias te casar”: X não devias te casar com alguém que não te leva a pescar ou a ver o pôr do sol no ralo do banheiro ou no cume de um morro (...) XI não devias te casar com uma subversiva que usa mauser debaixo do poncho e calcinhas de algodão cru em desacordo com as meias (...) XII não devias te casar com ela, ponto final. (...) Um útero é do tamanho de um punho

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Outra questão interessante a ser apontada nesta parte é a brincadeira que a poeta faz no poema três, em que usa o termo “mulheres” em substituição “homens” – certamente, é mais uma de suas críticas e amostras de que as diferenças entre homens e mulheres se dão no campo social e são impositivas e sem sentido. as mulheres são diferentes das mulheres pois enquanto as mulheres vão trabalhar as mulheres ficam em casa lavando a louça e criam os filhos mais tarde chegam as mulheres estão sempre cansadas vão ver televisão. Por fim, de tudo o que lemos de Angélica Freitas, percebemos que a poeta nos dá mostras de como nossas considerações sobre o feminino são convenções, criações de uma ideologia patriarcal. E Freitas denuncia essas convenções ao se utilizar da ironia e do riso para falar da relação de poderes entre homens e mulheres.

EXERCÍCIOS 1. Sobre a obra Um útero é do tamanho de um punho, pode-se afirmar (assinale a(s) verdadeira(s)). 01. Os poemas de Angélica Freitas nessa obra possuem a estética modernista e, muitos deles possuem versos livres, linguagem coloquial 310

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e poema-piada. 02. O experimentalismo linguístico é outra característica presente nos poemas dessa obra que marca a tendência modernista. 04. A autora utiliza temáticas feministas e de gênero em seus poemas, tanto no sentido irônico como no sentido crítico. 08. Nessa obra, a autora inova com sua forma incisiva de representar a mulher, muitas vezes dando-lhes rótulos categóricos, tais como, “uma mulher limpa”, “uma mulher gorda”, “uma mulher sóbria”, “mulher de vermelho”. 16. Pode-se afirmar que Angélica Freitas se insere num contexto de escritoras que problematizam a sociedade patriarcalmente estruturada afinando-se com os movimentos feministas. 2. Leia o poema “um útero é do tamanho de um punho” e faça o somatório das questões verdadeiras. um útero é do tamanho de um punho num útero cabem cadeiras todos os médicos couberam num útero o que não é pouco uma pessoa já coube num útero não cabe num punho quero dizer, cabe se a mão estiver aberta o que não implica gênero degeneração ou generosidade (...) im itiri i di timinhi di im pinhi im itiri i di timinhi di im pinhi quem pode dizer tenho um útero (o médico) quem pode dizer que Um útero é do tamanho de um punho

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funciona (o médico) i midici o medo de que não funcione para que serve um útero quando não se fazem filhos para quê piri qui 01. O tema central do poema são as coerções exercidas sobre o órgão reprodutor e, por extensão, sobre a mulher, cuja autonomia é interditada no que diz respeito ao exercício da sexualidade e à interrupção de uma gravidez indesejada 02. O uso da linguagem do “i” no poema reforça a ideia de submissão da mulher, de que ela não possui vontades próprias. 04. O poema demonstra condição de passividade do eu-feminino, submetendo-se sempre à vontade dos outros. 08. O poema está escrito em linguagem trabalhada, com a presença de métricas e rimas internas. 16. O título do poema reforça a associação comparativa entre útero e punho: o útero, órgão feminino, possui semelhanças com o punho fechado em tamanho e na função de acolher/segurar um feto. 3. Observe o fragmento do poema “porque uma mulher boa” e assinale a(s) alternativa(s) correta(s). porque uma mulher boa porque uma mulher boa é uma mulher limpa e se ela é uma mulher limpa 312

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ela é uma mulher boa há milhões, milhões de anos pôs-se sobre duas patas a mulher era braba e suja braba e suja e ladrava (...) 01. O poema é composto por versos curtos, de ritmo simples, fácil, repetitivo, concreto, prosaico. 02. No primeiro verso da primeira estrofe, o vocábulo “porque” indica uma conjunção coordenada explicativa. 04. O poema indica alguns tipos de discurso, dentre eles o discurso de declaração, de aconselhador. 08. No terceiro verso da primeira estrofe, “e se ela é uma mulher limpa”, a palavra “se” indica ideia de contradição, podendo ser substituída, sem mudança de sentido, pelo termo “como”. 16. Na segunda estrofe, observa-se um discurso histórico-cultural, que pode ser comprovado a partir do primeiro verso: “há milhões, milhões de anos”. 4. Uma das grandes marcas dos poemas de Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas, é a intertextualidade. Dos fragmentos dos versos a seguir, assinale a(s) proposição(ões) em que ocorre esse fenômeno. 01. “não é sua culpa se não sei fazer churrascos / preparar martínis / e se não li como deveria ter lido barthes” (“Argentina”, p. 79) 02. “diz-me com quem te deitas / angélica freitas” (“mulher de respeito”, p. 39) 04. “e se essa louca / for a minha dalila? / o que que eu faço? / pra onde é que eu corro?” (“alcachofra” p. 26) Um útero é do tamanho de um punho

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08. “amélia que era a mulher de verdade / fugiu com a mulher barbada / barbaridade (...)” (“alcachofra” p. 24) 16. “(...) queria escrever um poema / bem contemporâneo / sem ter que trocar fluidos / com o contemporâneo (...)” (“metonímia”, p. 52) 32. “uma mulher gorda / incomoda muita gente / uma mulher gorda e bêbada / incomoda muito mais (...)” (“uma mulher gorda”, p. 16) 64. “a mulher vai ao cinema / a mulher vai aprontar / a mulher vai ovular (...)” (“a mulher vai”, p. 69) 5. (ENEM 2018) o que será que ela quer essa mulher de vermelho alguma coisa ela quer pra ter posto esse vestido não pode ser apenas uma escolha casual podia ser um amarelo verde ou talvez azul mas ela escolheu vermelho ela sabe o que ela quer e ela escolheu vestido e ela é uma mulher então com base nesses fatos eu já posso afirmar que conheço o seu desejo caro watson, elementar: o que ela quer sou euzinho sou euzinho o que ela quer só pode ser euzinho o que mais podia ser FREITAS, A. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Nayfi, 2013.

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No processo de elaboração do poema, a autora confere ao eu lírico uma identidade que aqui representa a) A hipocrisia do discurso alicerçado sobre o senso comum. b) Mudança de paradigmas de imagem atribuídos à mulher. c) Tentativa de estabelecer preceitos da psicologia feminina. d) Importância da correlação entre ações e efeitos causados. e) Valorização da sensibilidade como característica de gênero.

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MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE

BRÁS CUBAS


MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS Escola literária: Realismo Ano de publicação: 1881 Gênero: Romance Divisão da Obra: 160 capítulos Temática: Política, crítica social, aparências, triângulo amoroso, etc.

O AUTOR Machado de Assis (1839 – 1908) Joaquim Maria Machado de Assis nasceu na cidade do Rio de Janeiro, no dia 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento. Filho de Maria Leopoldina Machado e do pintor de letreiros mulato Francisco José de Assis, perde a mãe muito cedo e é criado pela madrasta, Maria Inês, também mulata, que se dedica ao garoto e o cria como seu verdadeiro filho. Desde pequeno, sempre teve a saúde muito frágil: era gago, epilético, possuía problemas intestinais e na visão. Ainda pequeno, trabalhou como vendedor de doces num colégio do bairro em que morava. Como não tinham dinheiro para pagar-lhe os estudos, consta que o garoto assistia às aulas pelo lado de fora, enquanto trabalhava no colégio. Venceu todas essas barreiras e se tornou um dos maiores escritores do mundo. Autodidata, sua evolução é notória: de vendedor ambulante passa a Presidente da Academia Brasileira de Letras. Aos 16 anos, publica seu primeiro trabalho na Revista Marmota Fluminense, o poema “Ela”. Aos 17, torna-se aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional e, aos 20 anos, já era redator do Diário do Rio de Janeiro. Com 28 anos, torna-se funcionário público e exerce diversos cargos, chegando a ser diretor-geral de contabilidade no Ministério da Viação. Em 1869 (aos 30 anos), casa-se com Carolina Augusta Xavier de No318

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vais com quem nunca teve filhos. Em 1897 é eleito presidente da Academia Brasileira de Letras, fundada no ano anterior. Morre no dia 29 de setembro de 1908, no Rio de Janeiro.

BIBLIOGRAFIA Sua carreira literária é marcada pela variedade de sua escritura: foi cronista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta. Suas obras podem ser divididas em duas fases bem distintas: uma romântica e a outra, realista.

Principais obras: Fase Romântica - Romances – Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878). Contos – Contos fluminenses (1870), Histórias da meia-noite (1873) Fase Realista - Romances – Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904), Memorial de Aires (1908). Contos – Papéis avulsos (1882), Histórias sem data (1884), Várias histórias (1896), Páginas recolhidas (1899), relíquias da casa velha (1906)

A ESCOLA LITERÁRIA REALISMO (1881-1893) O Realismo, juntamente com o Naturalismo e o Parnasianismo representam tendências antirromânticas, iniciadas na segunda metade do século XIX. A característica principal destes movimentos era a abordagem de temas sociais e um tratamento objetivo da realidade do ser humano. Agora, acabavam-se as idealizações e seus autores faziam questão de mostrar problemas sociais como miséria, pobreza, exploração e corrupção, dentre outros. Inicia-se um movimento que valoriza o caráter Memórias póstumas de Brás Cubas

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psicológico de seus personagens e que, objetivamente, trata dos dramas ocorridos na vida real. No mundo, o Realismo tem seu início na França, com a publicação de “Madame Bovary”, em 1857, por Gustave Flaubert. No Brasil, tem seu início com a publicação, em 1881, de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis e, no mesmo ano, com o naturalismo de Aluísio de Azevedo por meio da obra “O mulato”.

PERSONAGENS Brás Cubas – personagem principal da história. Brás é o defunto-autor, um morto que decide escrever, do além, suas memórias. A personagem é de família rica, nunca precisou trabalhar para se sustentar; sempre foi mimado; nunca se casou e também não teve filhos. Virgília – amante de Brás Cubas, grande paixão da vida dele. Conheceu Brás, mas casou-se com Lobo Neves, por ver neste maior possibilidade de fama e fortuna. Moça ambiciosa. Lobo Neves – marido de Virgília e político influente. Quincas Borba – amigo de Brás Cubas que cria a filosofia do Humanitismo. Marcela – garota de programa; a primeira mulher a quem Brás Cubas beijou. Era interesseira e gastava muito o dinheiro de Brás, adorava presentes luxuosos; adquire varíola e fica com marcas no rosto, o que descaracteriza sua beleza. Eugênia – menina coxa e pobre a quem Brás despreza por causa de sua deficiência. 320

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Sabina – irmã de Brás Cubas. Cotrim – marido de Sabina. Nhã Loló – moça com quem Sabina e Cotrim desejavam que Brás se casasse, mas ele não se interessa por ela; morre de febre amarela. Dona Plácida – ex-empregada de Virgília; ela é a responsável pela casa em que os amantes Brás e Virgília se encontram clandestinamente.

SÍNTESE DA OBRA A obra começa com um prólogo, em que a personagem Brás Cubas se remete a autores que possuem um estilo literário semelhante ao seu (Stendhal e Xavier de Maistre) e indica que muitos leitores poderão não gostar de sua obra. Ele já anuncia que essas memórias foram escritas “cá no outro mundo”, ou seja, já está explícito que ele morreu e viera contar suas memórias. Já no início, ele reflete sobre sua própria escrita: Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor. Brás Cubas morreu numa sexta-feira de agosto de 1869, às 2 horas da tarde, na chácara de Catumbi, no Rio de Janeiro, aos 64 anos. Seu enterro é acompanhado por 11 amigos, dentre eles, sua irmã Sabina, esposa de Cotrim, a filha dela e uma terceira senhora, Virgília, de quem ele falará mais adiante. Brás diz que seu atestado de óbito indicava pneumonia, no entanto, ele acredita que sua morte fora provocada por uma ideia “grandiosa e útil” que tivera. Brás decidira criar um medicamento sublime, um emplastro anti-hipoMemórias póstumas de Brás Cubas

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condríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade para o qual daria o nome de “Emplasto Brás Cubas”. E, como estamos em um texto realista, a personagem indica que suas intenções não eram apenas humanitárias, mas desejaria ficar famoso e ganhar dinheiro. Brás conta sobre a sua origem familiar e descreve a enfermidade que o acometeu. Relembra que estava já muito doente quando recebeu a visita de sua amada da juventude, Virgília, em seu leito de morte. Ele conta sobre seu delírio: Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim. Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de S. Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto. Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino. Em seguida, ele encontra Pandora, que se apresenta a ele: sou tua mãe e tua inimiga. Diz ser Pandora, porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens (...) eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Brás lhe pede mais alguns anos de vida, mas ela o chama de idiota e diz que ele não pode fugir da morte. Nesse momento, ela o leva para cima de uma montanha e ele pôde ver durante um tempo largo, ao longe através de um nevoeiro, uma cousa única. Imagina tu leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas 322

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as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das cousas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga. Por fim, ele decide se entregar a Pandora: Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a cousa é divertida? mas digere-me. Dito isso, ele observa a paisagem novamente pelos séculos e vê o hipopótamo que o trouxera ali diminuindo diminuindo até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel... A narrativa volta-se para a infância de Brás Cubas. Nascera no dia 20 de outubro de 1805, na cidade do Rio de Janeiro. Filho de pais ricos (seu pai era um negociante que enriquecera), tinha uma irmã e era muito mimado. Fazia de seu escravo, o negrinho Prudêncio, alvo de suas traquinagens. Seu professor era Ludgero Barata e seu amigo de infância, Quincas Borba, um garoto muito criativo. Em 1822 (também o ano da Independência), aos 18 anos, relaciona-se com a espanhola Marcela, uma garota de programa, com quem tem seu primeiro beijo. Marcela tinha interesses econômicos no rapaz, e ele gastava muito dinheiro com ela. Ficaram juntos por 15 meses: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.” Após dar-lhe um pente cravejado de brilhantes, indignado por seus caprichos juvenis, o pai o coloca à força em um barco com destino a Lisboa. Em Coimbra, Brás forma-se em Direito e lá fica por oito ou nove anos; a doença da mãe é sua oportunidade para voltar ao Brasil. Brás ainda consegue ver a mãe viva, mas ela morre em seguida. O pai planeja o futuro do filho: seria deputado e ficaria noivo de Virgília, filha do Conselheiro Dutra, uma garota de 15, 16 anos, muito bonita e volúvel. Nesse tempo, Brás conhece Eugênia e se encanta por ela, no entanto, quando vê que a moça é coxa (manca), ele desiste dela e se aproxima de Virgília. Mais tarde, ele reencontra Marcela, agora mais velha e dona de um Memórias póstumas de Brás Cubas

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pequeno comércio, com marcas de varíola (bexiga) no rosto. Ele vai se encontrar com Virgília e, em sua alucinação, vê marcas da varíola no rosto da moça, mas depois tudo volta ao normal. Então apareceu o Lobo Neves, um homem que não era mais esbelto que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura, dentro de poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano. Desgostoso pelas perdas do filho, o pai de Brás morre. Sabina, Brás e Contrim brigam pela herança; os irmãos se afastam e Brás fica solitário, dedicando-se à escrita de textos sobre política e textos literários; chega a ganhar fama como escritor de poesias e de textos polêmicos. Tempos depois, Brás Cubas reencontra Virgília e torna-se seu amante. Um dia, ele reencontra também seu amigo de infância, Quincas Borba, que se tornara morador de rua. Compadecido de sua situação, Brás lhe doa cinco mil réis, e este lhe rouba o relógio. Brás e Virgília tornam-se amantes; ele está sempre na casa dela, e o marido não desconfia de nada. Um dia, a baronesa X conta à amante que a presença dele na casa dela estava sendo motivo de cochichos entre a vizinhança. Os amantes resolvem alugar uma casa para seus encontros amorosos, já que ela não pretendia se separar do marido. Dona Plácida, uma ex-empregada de Virgília, é contratada para cuidar da tal casa. Mesmo que Virgília já tivesse filho, Brás queria um também. Lobo Neves, o marido de Virgília, é nomeado presidente de província e, não sabendo de nada, convida Brás para ser seu secretário, entretanto como a nomeação iria ser realizada em um dia 13, o supersticioso Lobo Neves desiste da posição para alívio dos amantes. Quincas Borba envia uma carta a Brás, devolvendo o relógio que lhe havia roubado e apresenta-lhe sua nova tese, um novo sistema de filosofia ao qual deu o nome de Humanitismo, derivado de Humanitas, o princípio das coisas. Nesse tempo, a irmã de Brás e seu marido, preocupados com os cochichos dos vizinhos sobre o caso dos amantes, resolvem se aproximar dele 324

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e apresentam-lhe Nhã-loló, mas ele não se encanta pela moça. Lobo Neves recebe uma carta anônima falando sobre os encontros dos amantes na casa de dona Plácida. Chega a ir até a tal casa, encontra a esposa, que lhe diz ter ido visitar a amiga, mas não faz nada, apenas a leva de volta para casa. Novamente é indicado à presidência e como agora a nomeação seria no dia 31, ele aceita e parte com a esposa e filho. Era o fim do relacionamento de Brás e Virgília que se afastam de maneira muito natural, como se nada tivesse ocorrido. Sabina e Cotrim continuam insistindo no namoro de Brás com Nhã-loló, mas a moça vem a falecer de febre amarela aos 19 anos. Brás assume o posto de deputado e vai trabalhar com Lobo Neves. Tempos depois ele vê Virgínia em uma festa, lindíssima, mas nada acontece entre os dois. Aos 50 anos, Brás Cubas ouve do amigo Quincas Borba que deveria se voltar às pesquisas científicas e à política. Entretanto, naquele mesmo ano, Brás abandona o cargo de deputado. Agora passava seus dias discutindo filosofia sobre a existência humana com o único amigo que lhe restara, Quincas Borba. Dona Plácida fica doente e, a pedido de Virgília, Brás a ajuda financeiramente – dá-lhe cinco contos de réis (uma fortuna), mas ela recebe o golpe de um carteiro que se disse apaixonado e levou todo o seu dinheiro. Às vésperas da morte, ainda assim, Brás lhe consegue uma internação na Misericórdia, onde ele falece uma semana depois. Brás resolve fundar um jornal de oposição aos governantes e também a seu cunhado Cotrim. Com o término do jornal, seis meses depois, reata com o cunhado e decide dar um rumo melhor a sua vida, influenciado pela teoria do Humanitas. Filia-se na Ordem Terceira de ***, exerce alguns cargos e vê essa a fase mais brilhante de sua vida. Não obstante, calo-me, não digo nada, não conto os meus serviços, o que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as recompensas que recebi, nada, não digo absolutamente nada. No fim de três ou quatro anos, quando já estava cansado do ofício, deixou um bom dinheiro para a Ordem. Nesse tempo, enquanto ainda Memórias póstumas de Brás Cubas

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estava trabalhando no Hospital da Ordem, vê Marcela, que estava internada lá, morrer. Nesse mesmo dia, foi a um cortiço distribuir esmolas e encontrou, entre os pobres, Eugênia, mais coxa do que nunca. Ela mostrou-se digna, fechou-se em seu cubículo e ele nunca mais a viu. Lobo Neves morreu às vésperas de se tornar ministro. Brás vai ao enterro e vê Virgínia chorar verdadeiramente pelo marido. Quincas Borba volta de uma viagem que fizera a Minas Gerais, muito demente. Contou-me que, para o fim de aperfeiçoar o Humanitismo queimara o manuscrito todo e ia recomeçá-lo. A parte dogmática ficava completa, embora não escrita; era a verdadeira religião do futuro. Morreu pouco tempo depois, em minha casa, jurando e repetindo sempre que a dor era uma ilusão, e que Pangloss, o caluniado Pangloss, não era tão tolo como o supôs Voltaire. Ao fim da obra, Brás Cubas faz um retorno ao início do livro, indicando que conseguira fazer o emplasto Brás Cubas, mas que, por causa de sua moléstia, não coseguira registrar. E escreve um capítulo denominado “Das negativas”, mostrando seu lado Realista: Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Também nunca precisou trabalhar para se sustentar; não lamentou a morte de D. Plácida nem a loucura de Quincas. Por fim, largou a mais negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

ANÁLISE DA OBRA Memórias Póstumas de Brás Cubas representa o marco inicial do Realismo no Brasil. Publicado em 1881, o romance traz as memórias de Brás Cubas que escreve seu livro após sua morte, um defunto-autor. E, já morto, não precisa mais se preocupar com fatos morais e com a hipocrisia. Assim, faz um texto em que reflete sobre suas ações e comportamentos, denuncia segredos, julga amigos e familiares, tudo isso de forma sarcástica e desiludido da vida e dos homens. 326

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O título O título da obra, Memórias Póstumas de Brás Cubas, já revela o que se vai encontrar: as memórias pós morte de uma personagem, Brás Cubas. É claro que o leitor se surpreende quando se depara com um autor-defunto; mas Brás insiste em dizer que não é um autor-defunto, mas um defunto-autor, ou seja, alguém que morreu e escreveu o livro depois de morto.

A estrutura A obra é dividida em 160 capítulos, todos intitulados.

A narração A história é narrada em primeira pessoa, pelo narrador-personagem, Brás Cubas, o defunto-autor.

A linguagem Na obra, temos a presença de uma linguagem culta, cheia de duplos sentidos, metáfora e ironia. Também não podemos deixar de lembrar de uma das características mais marcantes de Machado de Assis, que é o diálogo com o leitor.

O tempo e o espaço O tempo em Memórias Póstumas de Brás Cubas aparece de duas maneiras: o psicológico, em que o narrador descreve o que viveu, de outra dimensão, além da morte, sem precisar se preocupar com o tempo; e o cronológico, em que segue um encadeamento dos fatos desde a infância, passando pela juventude, velhice, até chegar à morte. Memórias póstumas de Brás Cubas

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O espaço da narrativa, característico de Machado, é o Rio de Janeiro. Mas há menções à cidade de Coimbra (em Portugal), onde o jovem Brás Cubas foi estudar Direito, e a Gamboa, local em que ficava a casa dos amantes, Brás e Virgília.

Intertextualidade Machado de Assis se remete várias vezes a Shakespeare, Virgílio, Voltaire, Stendhal, Xavier de Maistre e a tantos outros. Percebemos claramente as influências desses autores em sua literatura, a partir dos diálogos com o leitor, intertextualidade, metalinguagem, ironias e críticas.

Humanitismo Filosofia desenvolvida pela personagem Quincas Borba, a qual indica que tudo o que acontece na vida faz parte de um quadro maior de preservação da essência Humana. Na obra, Brás Cubas se utiliza dessa filosofia para justificar sua existência vazia; já Quincas Borba faz dela sua razão de viver, uma descoberta de um novo sentido para sua vida.

As paixões de Brás Cubas No romance, percebemos que não há uma realização do amor. Brás Cubas tem namoradas ou pretendentes, mas permanece solteiro. A primeira paixão é a prostituta Marcela, afastada dele pelo pai, quando viu que o filho gastava muito dinheiro com ela; depois Eugênia, mas esta era coxa, e por isso ele a desprezou. Depois, sus grande paixão, Virgília, que o troca por Lobo Neves, mas depois volta a ser amante de Brás – no entanto, não é um grande amor, pois os dois se separam de uma forma muito fria. Por último, Nhã-Loló, uma moça que não desperta em Brás paixão e que morre de febre amarela aos 19 anos.

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O emplasto Brás Cubas Brás Cubas almeja criar um medicamento capaz de curar todas as doenças do mundo; mas, como tudo o que fez na vida, fracassou. Sua doença não deixou que ele registrasse o remédio, e ele acaba morrendo antes disso.

As características da obra O romance traz as seguintes características realistas (e características da escrita do próprio Machado de Assis): a) Descrição das personagens e da realidade dos fatos – o escritor realista é fiel à realidade dos fatos e das personagens: ele mostra o que é, não o que deveria ser. “(...) a verdade é que Marcela não possuía a inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do código. Era boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes.” (Cap. XIV) b) Análise psicológica das personagens – essa é uma das marcas mais fortes do realismo, tendo em vista que a ciência predominava na época. “Em verdade, parecia ainda mais mulher do que era, seria criança nos seus folgares de moça; mas assim quieta, impassível, tinha a compostura da mulher casada. Talvez essa circunstância lhe diminuía um pouco da graça virginal. Depressa nos familiarizamos; a mãe fazia-lhe grandes elogios, eu escutava-os de boa sombra, e ela sorria com os olhos fúlgidos, como se lá dentro do cérebro lhe estivesse a voar uma borboletinha de asas de ouro e olhos de diamante...” (Cap. XXX) Memórias póstumas de Brás Cubas

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c) Objetividade – como forma de reação ao Romantismo, o Realismo prima pela objetividade dos fatos. “Não digo que ia lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não.” (Cap. XXVII) d) Narrativa lenta – a narrativa, em muitas partes é pormenorizada, e a sensação que se tem é que ela quase não sai do lugar. “Era uma briga de galos. Vi os donos contendores, dous galos de esporão agudo, olho de fogo e bico afiado. Ambos agitavam as cristas em sangue, o peito de um e de outro estava desplumado e rubro; invadia-os o cansaço. Mas lutavam ainda, assim, olhos fitos nos olhos, bico abaixo, bico acima, golpe deste golpe daquele, vibrantes e raivosos.” (Cap. CXXI) e) Interferência do autor – é uma característica muito marcante de Machado conversar com o leitor. “Agora, se querem saber em que circunstância se deu o fenômeno, basta-lhes ler este capítulo até o fim.” (Cap. CXXI) f) Triângulo amoroso – outra característica importante na obra (sempre composto por uma mulher e dois homens). No romance analisado, temos as figuras de Brás – Virgília – Lobo Neves. “Na noite seguinte fui efetivamente à casa do Lobo Neves estavam ambos, Virgília muito triste, ele muito jovial. Juro que ela sentiu certo alívio, quando os nossos olhos se encontraram, cheios de curiosidade e ternura.” (Cap. LXXX) g) Política - A obra de Machado de Assis é rica em alusões que servem tanto para reconstituirmos o clima político do século passado, no Se330

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gundo Império e dos primórdios da República, como também para mostrar que uma série de vícios da vida política brasileira de hoje já existiam naquela época: a fraude eleitoral, o tráfico de influência, os conchavos dissimulados, a mudança de opinião motivada pelo simples interesse pessoal, etc. Veja um exemplo de favorecimento que Brás fazia ao cunhado Cotrim, enquanto era deputado: “Ao contrário, as recordações eram de verdadeiros obséquios; assim, por exemplo, sendo eu deputado, pude obter-lhe uns fornecimentos para o arsenal de marinha, fornecimentos que ele continuava a fazer com a maior pontualidade, e dos quais me dizia algumas semanas antes, que no fim de mais três anos, podiam dar-lhe uns duzentos contos.” (Cap. CXLVIII) h) Dinheiro - O dinheiro aparece como um poderoso mediador das relações humanas. E para falar desse tema, o nosso autor nunca dispensa a ironia e o sarcasmo. “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai, logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil.” (Cap. XVII) i) Loucura - Machado de Assis descreve a loucura como a consequência de uma inadequação da natureza íntima da natureza íntima do indivíduo às exigências da vida em sociedade, esta “Segunda natureza”. “Quincas Borba não só estava louco, mas sabia que estava louco, e esse resto de consciência, como uma frouxa lamparina no meio das trevas, complicava muito o horror da situação.” (Cap. CLIX) j) Ceticismo - É comum destacar-se na obra de Machado de Assis um forte espírito de ceticismo, isto é, de falta de fé nas possibilidades de transformação do homem, de dúvida e de descrença generalizadas, que leva inevitavelmente a um forte pessimismo e a uma visão negativa da natureza humana. “Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco Memórias póstumas de Brás Cubas

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contos, - os cinco contos achados em Botafogo, como um pão para a velhice. D. Plácida agradeceu-me com lágrimas nos olhos, e nunca mais deixou de rezar por mim, todas as noites, diante de uma imagem da Virgem, que tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo.” (Cap. LXX) k) Ser e parecer - Destaca-se na obra de Machado de Assis o conflito entre essência e aparência, isto é, entre aquilo que o indivíduo realmente é no seu íntimo e aquilo que a sociedade, com suas regras e convenções, o obriga a aparentar ser. É o grande drama da dissimulação, da hipocrisia, do disfarce. “(...) não gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te não ver brilhar, como deves, e te convém, e a todos nós; é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo e ilustrá-lo ainda mais. (...) foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios...” (Cap. XXVIII) l) Vaidade - Dentro da visão pessimista e cética de Machado de Assis, a vaidade cumpre uma função importante: é a mola mestra de muitas atitudes, a verdadeira causa dos grandes gestos nobres que, na verdade, buscam apenas encobrir a ânsia de reconhecimento e glória de quem os pratica. “No fim de alguns anos, três ou quatro, estava enfarado do ofício, e deixei-o, não sem um donativo importante, que me deu direito ao retrato na sacristia.” (Cap. CLVIII) m) Humour - Machado de Assis não tinha uma visão muito favorável da natureza humana, e toda sua obra é permeada de um amargo pessimismo. No entanto, o que torna seus livros tão deliciosos de ler é o acentuado senso de humor que com que ele aborda seus temas, em geral tão sombrios. Este humor, no entanto, é extremamente refinado, sutil, mesclado de ironia e às vezes de sarcasmo. Como 332

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exemplo, citamos aqui uma passagem em que Lobo Neves convida Brás, o amante da esposa para ser seu secretário. Brás fica atônito, em princípio, mas depois pensa: “Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretário era resolver as cousas de um modo administrativo.” (Cap. LXXX) n) Fatos históricos e referências a clássicos da literatura mundial - A presença de fatos históricos ou personagens desses fatos é muito marcante na obra machadiana. “Não chego a alcançar o que seria de mim, se não rebentasse na Dalmácia uma revolução, que derrocou o governo e purificou as embaixadas. Foi sangrenta a revolução, dolorosa, formidável; os jornais, a cada navio que chegava da Europa, transcreviam os horrores, mediam o sangue, contavam as cabeças; toda a gente fremia de indignação e piedade. . .” (Cap. CI). Também a literatura clássica mundial é constantemente citada nas obras. “Contudo, se hei de acabar este capítulo, direi que não quisera ser Aquiles nem lady Macbeth; e que, a ser alguma cousa, antes Aquiles, antes passear avante o cadáver do que a mancha; ouvem-se no fim as súplicas de Príamo, e ganha-se uma bonita reputação militar e literária.” (Cap. CXXXIX)

EXERCÍCIOS 1. Assinale a única proposição INCORRETA em relação ao romance Memórias Póstumas de Brás Cubas e seu autor. a) Considerado um cânone da literatura brasileira, Machado retratou em suas obras o cotidiano da sociedade brasileira do século XIX, na qual estava inserido. b) Os personagens que compõem a obra são majoritariamente da elite brasileira. Por outro lado, Machado inclui figuras de menor prestígio Memórias póstumas de Brás Cubas

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social, como Prudência, Dona Plácida, a prostituta Marcela e Cotrim. c) O romance Memórias póstumas de Brás Cubas foi inicialmente publicado em folhetins para a “Revista Brasileira”, periódico de grande circulação na época, e somente em 1881 transformou-se em livro. d) Repleto de ironias, metáforas e eufemismos, Machado conseguiu representar nessa obra diversas críticas sociais, inclusive à elite da época. e) No romance não há idealização do amor ou da mulher. Brás tem amores ao longo da narrativa, mas nada é visto como eterno. 2. Quanto aos aspectos políticos, econômicos e culturais da época em que é narrado o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, assinale a única alternativa que NÃO está correta. a) A obra inaugurou o Realismo no Brasil. Pode-se dizer que após a euforia do Romantismo, o século XIX retomava uma visão de mundo baseada na razão e na observação objetiva da natureza. b) A ação do romance abarca a segunda metade do século XIX, período que corresponde ao governo de D. Pedro II. A juventude de Brás coincide com a Independência do Brasil, em 1822. c) O romance caracteriza perfeitamente a sociedade brasileira de meados do século XIX: escravista, hierarquizada, patriarcal e patrimonialista. d) O movimento artístico do Realismo se propõe a mostrar a realidade sem fantasias, buscando explicações científicas para o comportamento social e psicológico das pessoas. e) Brás Cubas traça um paralelo entre os fatos históricos e os acontecimentos vividos pelo país, mas não faz uma associação direta com seus personagens.

3. Em relação às personagens de Memórias Póstumas de Brás Cubas, assinale a alternativa INCORRETA. a) Brás e Virgília, depois de alguns anos juntos, acabam por se separar, quando Lobo Neves consegue definitivamente um lugar como presi334

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dente de província. b) Com o auxílio de seu antigo amigo e filósofo Quincas Borba, ele decide dedicar-se a conseguir reconhecimento na política e quando este lhe é negado, passa para o lado da oposição, fundando seu próprio jornal. c) Virgília foi o grande amor de Brás, possuía qualidades que o narrador admirava, além de pertencer a uma classe social alta. Por esses motivos, ele se lamenta tanto ao final da narrativa e torna-se um desacreditado na vida, principalmente pelo fato de a moça não lhe ter dado um filho. d) Quando Brás oficializa sua ideia de fundar um jornal oposicionista, no qual imprimiria as ideias do Humanitismo, Cotrim expõe-se, declarando que nada tem a ver com as ideias do cunhado e que, inclusive, é contrário a elas. e) Ao final da obra, Brás Cubas indica não ter tido filhos. Sem herdeiros e malsucedido na política, Brás acaba com a linhagem dos Cubas, pela qual seu pai lutava tanto. 4. Assinale a alternativa INCORRETA a respeito de Memórias Póstumas de Brás Cubas, seu autor e seus personagens. a) O romance trabalha aspectos históricos, tais como, a libertação dos escravos (1888) e a Proclamação da República (1889). b) Virgília era ambiciosa, manipuladora e possuía características fúteis. Ela se importava excessivamente com as aparências, motivo pelo qual trocara seu amor por Brás por um casamento promissor com Lobo Neves. c) Quando Brás e Virgília se separam, no início da década de 1850, ele decide voltar suas atenções para Eulália, ou Nhã-loló, com quem pretende se casar. d) Brás Cubas é indivíduo oportunista, egocêntrico, indolente e improdutivo, mas, apesar disso, a sociedade trata com deferência, distinção e respeito, afinal, Brás Cubas possuía boa cultura e, principalmente, posses materiais. e) O Humanitismo condensa a sátira filosófica que Machado faz às várias Memórias póstumas de Brás Cubas

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doutrinas que justificam o egocentrismo, ao mesmo tempo em que, aos moldes do enciclopedismo do Emplasto Brás Cubas, funciona como crítica à “formação mental” típica da elite brasileira durante o império. 5. (ENEM 2014) Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele possuía um caráter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos que se seguiram ao inventário de meu pai. Reconheço que era um modelo. Arguiam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude, e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o déficit. Como era muito seco de maneiras, tinha inimigos que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando morreu Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não única. Era tesoureiro de uma confraria, e irmão de várias irmandades, e até irmão remido de uma destas, o que não se coaduna muito com a reputação da avareza; verdade é que o benefício não caíra no chão: a irmandade (de que ele fora juiz) mandara-lhe tirar o retrato a óleo. ASSIS, M. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.

Obra que inaugura o Realismo na literatura brasileira, Memórias póstumas de Brás Cubas condensa numa expressividade que caracterizaria o estilo machadiano: a ironia. Descrevendo a moral de 336

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seu cunhado, Cotrim, o narrador-personagem Brás Cubas refina a percepção irônica ao: a) acusar o cunhado de ser avarento para confessar-se injustiçado na divisão da herança paterna. b) atribuir a “efeito de relações sociais” a naturalidade com que Cotrim prendia e torturava os escravos. c) considerar os “sentimentos pios” demonstrados pelo personagem quando da perda da filha Sara. d) menosprezar Cotrim por ser tesoureiro de uma confraria e membro remido de várias irmandades. e) insinuar que o cunhado era um homem vaidoso e egocêntrico, contemplado com um retrato a óleo.

Memórias póstumas de Brás Cubas

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O CONTO

DA MULHER BRASILEIRA


O CONTO DA MULHER BRASILEIRA Escola literária: Literatura Contemporânea Ano de publicação: 1978 Gênero: Contos - Antologia Divisão da Obra: 19 contos Temática: frustrações, medos, angústia, realizações, etc.

AS AUTORAS A obra é organizada por Edla Van Steen com posfácio de Nelly Novaes Coelho e é composta por 19 contos, assinados pelas seguintes escritoras da literatura brasileira: Anna Maria Martins, Cristina de Queiroz, Dinah Silveira de Queiroz, Edla Van Steen, Helena Silveira, Hilda Hilst, Judith Grossmann, Julieta de Godoy Ladeira, Lygia Fagundes Telles, Márcia Denser, Maria de Lourdes Teixeira, Myriam Campelo, Nélida Pinõn, Rachel Jardim, Sônia Coutinho, Tania Jamardo Faillace, Vilma Arêa, Vivina de Assis Viana, Zulmira Ribeiro Tavares.

A ESCOLA LITERÁRIA Literatura Contemporânea Ver dados sobre essa escola literária na análise da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada.

ANÁLISE E SÍNTESE DA OBRA A obra O conto da mulher brasileira é uma antologia publicada em 1978, composta por 19 contos escritos por mulheres brasileiras, organizada por Edla Van Steen com posfácio de Nelly Novaes Coelho. 340

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De acordo a escritora Nelly Novaes Coelho, no posfácio da obra, “a seleção procurou fugir à temática exclusivamente “feminina”, ou melhor, o eterno problema do Amor.” No entanto, esta temática aparece em vários contos. Importante, também, observar, de acordo com Coelho (2007, p. 176) “a urgência de se repensar criticamente as relações Homem-Mulher. Tendo em vista a confusa época de transformação em que vivemos, o reconhecimento do “mito-mulher” em relação ao “mundo dos homens” torna-se fundamental.” Nos contos, podemos encontrar temáticas diversas, tais como frustrações (amorosa, familiar, pessoal, social, existencial), solidão, falta de esperança, morte, opressão, desespero, família, separação, relações amorosas, enfim, há uma gama de temas que estão associados à realidade, ao dia a dia da mulher brasileira, seja ela dona de casa, estudante, que trabalha fora, rica, pobre, classe média, jovem, experiente, velha, “loba”, “pegadora”, recatada, erótica, enfim, de todos os tipos possíveis. A ficção nos é apresentada de diversas maneiras, seja a partir da prosa intimista ou por meio da literatura de testemunho, de denúncia, de reflexão, todos com muita subjetividade. A linguagem mostra-se também muito diversificada: culta, coloquial, erótica, chula permeada de diálogos, discurso direto, indireto, direto-livre, textos sem linearidade, tomadas cinematográficas, monólogo interior. Quanto às personagens, em sua maioria, as personagens-principais são femininas; há apenas três contos que fogem a essa regra: “HD 41”, “A porca” e “A curiosa metamorfose pop do senhor Plácido”. A seguir, você poderá ler a história e os comentários de cada um dos contos presentes na obra. 1. HD 41 Anna Maria Martins Narração: 3ª pessoa Tempo e Espaço: São Paulo, 1972 O conto da mulher brasileira

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Personagens: Horácio José Leme da Silva Dias, o HD – um rico executivo que trabalhava feito um trator, casado, com filhos e amantes. Mulher de Horácio (sem nome) – exemplo de mulher submissa: dona de casa, cuidadora dos filhos, lê livros ruins (uma “merda açucarada”, como diz o marido) e faz tricô. O conto inicia com essa frase: “Apresentando a empreiteiros e firmas de terraplanagem o trator HD41, de fabricação americana: remove qualquer obstáculo a sua frente.” Assim nos é apresentado o executivo de sucesso Horário Dias, que trabalha quase 24 horas por dia, tem mil compromissos diários e é extremamente dedicado ao trabalho. Quanto à família... bem, sobra-lhe algum tempo para chegar a casa, jantar, tomar banho e dormir. Nesse tempo, ainda consegue ter amantes; mas não por muito tempo, não tem paciência para relacionamentos longos. Enquanto isso, a mulher é a verdadeira Amélia: é submissa, cuida do marido e dos filhos, faz tricô, assiste televisão, lê livros rasos, enfim, uma mulher perfeita para um homem ocupado e mulherengo. Um dia, voltando de uma viagem a Nova Iorque, Horácio aparenta estar muito cansado gostaria de descansar, ficar com a família, mas seus compromissos não deixam. Reclama da vida, mas a mulher, de forma brilhante o surpreende e diz: - Desculpe, meu bem, mas você é pago para isso. Com estafa total, Horácio decide tirar férias na Suíça. Passou quarenta dias em Lausanne, à beira do lago. Voltou mais dinâmico e eficiente do que nunca. Jamais a empresa admirou tanto, como nessa época, sua capacidade de trabalho, seu espírito criativo e empreendedor. Foi, então, que o indicaram para ser presidente da empresa. Uma bela festa de comemoração é realizada na casa de Horácio em virtude de ele ter assumido a presidência. No entanto, ele sente-se mal. Uma nuvem negra escureceu-lhe subitamente a vista, pontinhos brilhantes dançavam à sua frente. Foi ao banheiro, lavou o rosto com água fria, 342

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voltou para a festa e se inseriu no meio daquele vozerio, de ruído de copos, risos, abraços, cumprimentos. O conto termina com o ciclo se fechando: “Todos os obstáculos removidos, HD na presidência.” (só para lembrar, o ciclo se fecha, porque o conto inicia com a frase: “[...] o trator HD41 remove qualquer obstáculo a sua frente.”). Ou seja, mesmo com amostras de que o corpo não mais está aguentando a rotina de trabalho, Horácio insiste nessa vida. Mas o trator dá mostras de que não aguentará muito tempo. Elementos presentes na narrativa: O conto recebe o título “HD 41”, que são as iniciais do nome do personagem principal, Horácio Dias, e 41, provavelmente sua idade. A narrativa centraliza em um homem de negócio, o qual representa o perfil masculino da sociedade patriarcal: trabalhador, forte, mulherengo, pai de família, esposo. A esposa é a típica representação da mulher do lar: dedicada ao marido e aos filhos, submissa, assiste televisão, lê livros rasos e faz tricô. 2. O piano Cristina de Queiroz Narração: 1ª pessoa Tempo e Espaço: presente com voltas ao passado; não indica o espaço (mas é urbano) Personagem principal: uma mulher (sem nome) insatisfeita com a vida que leva - Você é rebelde e cínica. Intratável também. Não, eu sou apenas só e por isso agrido os que não o compreendem! Essas são as reminiscências da personagem-narradora que, a partir de um certo momento da sua vida, decidiu ser uma outra pessoa: obediente e querida por todos – mas isso era trair sua essência, descobrira agora. Quando criança, órfã, foi criada pela tia Alice, que sempre a ameaçava em virtude de sua rebeldia. Como a tia julgava que a sobrinha não teria O conto da mulher brasileira

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mais jeito, resolveu mandá-la para a casa da tia Glória, uma solteirona, mesquinha, maledicente, egoísta e má e fizeram-na prometer que seria obediente – ela era o protótipo da insubordinação. A menina ficou desesperada, gostava das crianças com quem convivia, especialmente de Carlinhos, o que horrorizava tia Alice – Carlinhos era seu filho mais velho. No entanto, ela decidiu tornar-se obediente, mesmo que aquilo lhe ferisse o amor-próprio. Tia Glória nem era tão ruim assim como diziam; morava em um casarão, deixou a pequena dormir no quarto que fora de sua mãe e ensinou-lhe a tocar piano. Tornei-me dócil e compreensiva, ou ainda, meu medo era tanto que parti para aquela espécie de fuga e desistência. Compreendi ser bem mais fácil viver assim. Foi desse modo que me converti num simples objeto de uso alheio, alienando-me de mim mesma. À medida que crescia, fui-me corrompendo-me gradativamente, adquirindo expressões aprovadas por ela e normas de conduta previamente estabelecidas. Com a morte de tia Glória, ela pensa em se livrar dessa outra que não era ela, mas não consegue. Carlinhos, quando cresceu, como prometera, veio buscá-la. Ficaram juntos, amaram-se, mas ela o largara, mesmo sem saber muito o porquê. Depois aparece Fernando em sua vida (no conto não fica claro, mas tem-se a impressão de que ela casa-se com ele ou, pelo menos, moram juntos). O relacionamento com Fernando era o de uma mulher extremamente submissa. Fernando era o protótipo de homem bem-sucedido. Sólido e estável, perfumado, estabelecido, formado em Direito e de relógio no bolso do colete. Essa “perfeição” do marido a irritava, mas ela sempre engolia tudo. Hoje pressinto que não levarei até o fim a encenação que venho propondo a Fernando, alguma coisa explodiu em mim. Com esse pensamento, ela começa a perceber que precisa de se livrar daquela “outra submissa” que não era sua essência. Começa a associar as atitudes de 344

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Fernando com as de suas tias – ele sempre queria que ela tomasse chá, igual sua tia Alice fazia (ela tomava, mas detestava); toda semana ele lhe enviava cravos de presente (tia Glória amava cravos, e ela odiava, porém nunca dissera isso a Fernando); ele adorava que ela tocasse piano (e ela se lembrava de que a tia Glória e tia Alice a obrigavam a tocar). Chega à conclusão de que Fernando deveria ser o marido de sua prima Neusa, que era uma moça obediente e dedicada ao lar. E, naquele dia, ela decidiu que iria lutar contra essa outra, e o piano torna-se símbolo de sua rebeldia, quando Fernando lhe pede (praticamente ordena!) que ela tocasse, mas ela se recusa. A cena fica tensa, ela treme, ele fica enraivecido. Ela odeia todo aquele lugar, a casa, os móveis, o homem que ali estava. A voz da tia Alice lhe vem aos ouvidos: “Não erre nas escalas, senão, já sabe!” Tenta se lembrar da mãe, mas não consegue, era muito pequena; de repente, lembra-se da mãe, morta, coberta de cravos, viaja... muita gente na sala, sombras, e a tampa do caixão se fechando. Fernando fala... fala... fala...! Saio para a rua, quero inundar-me de garoa e de neblina. Elementos presentes na narrativa: conflito entre o presente e o passado; obediência e transgressão; insatisfação com a vida; o uso de máscaras durante a vida; o amor e o ódio; a vida e a morte; a prisão e a liberdade. 3. Port Moresby Dinah Silveira de Queiroz Narração: 3ª pessoa Tempo e Espaço: O tempo não é relatado, mas é uma época em que ainda não existia internet; o espaço é São Paulo Personagem: Dorothy – mulher de classe média, casada com Jorge, vendedor de máquinas agrícolas Sem ter muito o que fazer, Dorothy vivia passeando com seu carro pelo O conto da mulher brasileira

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Jardim Europa – SP para passar o tempo. E ela sentia-se “gêmea” de tantas outras mulheres fúteis que faziam o mesmo que ela, disputando espaço no trânsito, com seus carros rumo ao nada. Ao nada ou às compras inúteis que fazia. Naquele dia, ela chegou a casa e viu algo na capa do jornal destinado a seu marido, o Boletim Agrícola de São Paulo, algo que lhe chamara a atenção: “Em Port Moresby, uma mulher é vendida por cem bois, duzentas sacas de café e cinquenta cabras.” Imediatamente, foi ler a notícia, que dizia: “Na pequena cidade de Port Moresby, que fica no Golfo Papua, no Pacífico, a filha do líder de emancipação feminina, tendo tido a oferta altíssima com fins de casamento de cem bois, duzentas sacas de café e cinquenta cabras, além de mais trezentos quilos de sal, foi vendida em matrimônio para um jovem herdeiro que desmoralizou com sua oferta os pendores político-sociais do pai da noiva, uma bela papua de dezenove anos.” Como nunca havia ouvido falar de Port Moresby, foi até a enciclopédia do marido fazer a consulta. Ao ler essa notícia, fica indignada, principalmente pelo fato de o pai da moça ser o líder de emancipação feminina, e decide dar um novo rumo a sua vida: faria um movimento contra esse fato. Naquela noite, o marido tem um compromisso e deixa Dorothy em companhia de Martinha, a cunhada, que fazia tapetes e que havia desistido de casar. Dorothy, irritadíssima, l conta-lhe o que leu, mas a cunhada não demonstrou muito interesse; na verdade, até acha que foi um bom dinheiro e fica pensando em quanto ela mesma valeria. Jorge chega a casa, ela tenta conversar com ele sobre o assunto, mas ele dorme. E aquilo não saía da cabeça de Dorothy. No dia seguinte, ela e o marido foram jantar na casa de uma família rica e tradicional – ele foi a negócios, e ela, viu no jantar a oportunidade de iniciar seu movimento sensibilizando as damas da alta sociedade. Durante a sobremesa, Dorothy vê a oportunidade de falar sobre Port Moresby, mas as mulheres não lhe dão atenção. Théo, um colunista social, é o único que se interessa (mas o interesse era pela “carne nova”, e não pela história). Ele a convida para ir 346

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ao terraço, galanteia-a e a beija – em nome de seu ideal, ela aceita tudo isso, esperando por uma nota em sua coluna, me favor das mulheres de Port Moresby. No dia seguinte, olha os jornais, mas nada encontra a não ser uma pequena nota falando sobre o jantar e a anfitriã. Isso representa o fim de seu ideal e o esquecimento de Port Moresby. Dorothy volta ao seu vazio, a sua rotina de sempre. Elementos presentes na narrativa: condição social da mulher (a venda da mulher papua; a venda de Dorothy e de todas as mulheres ociosas da elite paulistana – crítica a essa elite; a mulher tem a representação da “madame”, que não faz nada e gasta o dinheiro do marido, enquanto o homem é o responsável pela receita da casa e é o cérebro pensante (a enciclopédia não é da casa, é do Jorge). 4. Os mortos não têm desejos – Roteiro de uma vida inútil Edla Van Steen Narração: 1ª pessoa – narrador-personagem: Heloísa Tempo e Espaço: não mencionados Personagem principal: Heloísa, uma pintora de telas que já aparece morta, no início do conto, visitando seu próprio velório e relatando sua vida para com as pessoas que ali estão: Marcos, o marido que a traía; Fábio, um amigo apaixonado por ela; Alice, uma amiga, amante do marido; Mariana, uma amiga que ela descobre ali, no velório, também ser apaixonada por ela; Luís, o filho de 5 anos. Heloísa era uma mulher burguesa, tinha feição nórdica, os olhos azuis e loura; quando pequena, fora criada pela governanta alemã Matilde, que lhe contava contos de fada. O conto é estruturado com recursos cinematográficos: há 16 sequências acompanhadas de 9 flashbacks, ou seja, isso indica a mudança de foco narrativo – as sequências narram o velório, e os flashbacks, algo acontecido em algum momento anterior com a personagem Heloísa. O conto da mulher brasileira

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Também a palavra “zoom” aparece no conto, outro recurso cinematográfico, indicado na cena narrada. Heloísa é uma jovem pintora de telas, casada com Marcos. É infeliz tanto no casamento como na vida profissional. Sabe que o marido é amante de Alice, uma amiga, mas nunca fala nada. Sua pintura reflete a imagem de mulheres, retratos e cavalos, mas queria mesmo era pintar paisagens – Fábio, uma vez observou que ela queria era estar na paisagem, e não apenas pintá-las; ou seja, ali já existe o reconhecimento da frustração da vida da amiga. A história tem início no velório de Heloísa, que morrera em um acidente de automóvel, e é ela mesma quem nos conta a história, à semelhança da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis – aliás, a própria narradora cita o autor do Realismo. Os flashbacks feitos pela narradora nos mostram a sua história desde a infância (pautada nos contos de fadas e na espera do príncipe encantado – ela adorava a lenda de Siegfried, o príncipe alemão), até o dia da sua morte, no momento do acidente (no último flashback, em que ela conta sobre o acidente, quem a ampara é um duende de barba e bigodes ruivos, “entre confuso e medroso, absolutamente seduzido, como se tivesse no colo uma feiticeira perversa.” – essa associação com o duende ruivo é uma intertextualidade feita com personagens das lendas de Siegfried, o possuidor do tesouro dos Nibelungen, povo de anões mágicos das montanhas que guardavam tesouros enterrados. Heloísa e Marcos têm um filho de 5 anos; ele é amante de Alice, e Heloísa possui uma relação ambígua com Fábio. Marcos não gostava dos amigos da esposa e desprezava suas telas, aliás, desprezava o modo burguês da mulher: “Acho a sua pintura uma porcaria. Detesto seus amiguinhos intelectuais e ando cheio de representar o papel de marido da pintora. Odeio essa sua aura de superioridade, essa educação fajuta de colégio de freiras, essa frescura de gente fina. Além disso, não suporto seus jardins, suas histórias infantis. Contos de fada! Não vou ser nunca o príncipe encantado bicha que você adoraria que eu fosse.” 348

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No decorrer da narrativa, Heloísa vai vendo e ouvindo as observações das pessoas que estão em seu velório a seu respeito; o amor de Fábio por ela, que tinha esperanças de que ficassem juntos até o dia do acidente; o amor de Mariana por ela, desmascarado por Alice; a ousadia de Alice, ao querer amparar Marcos, não respeitando o corpo da defunta; o choro lamentoso de Marcos. Ela anda por toda a casa, vai até a cozinha, vê as empregadas em sua função e solta um lamúrio de pessoa realmente frustrada: “Ah, se minha alma pudesse secar lustrosa de detergente no escorredor de pratos!” Ao longo da narrativa, percebe-se uma autocrítica da narradora, em seus pensamentos, de sempre acreditar na ficção e, talvez por isso, na dificuldade de amar e da expectativa de a vida não corresponder à fantasia. Por fim, o tempo acaba transformando seu sonho de princesa em pesadelo. Elementos presentes na narrativa: Intertextualidade com a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; relato de uma vida frustrada amorosa e profissionalmente; criação romântica da personagem: apaixonada por contos de fadas; conto que possui a linguagem cinematográfica como estrutura básica (flashbacks, fragmentação da narrativa, objetividade no registro, cortes de cenas, etc.). 5. Aida Arouche Magnocavallo Helena Silveira Narração: 3ª pessoa Tempo e Espaço: 1930, São Paulo Personagem principal: Aida Arouche Magnocavallo, filha de um italiano e de uma brasileira Aida Arouche Magnocavallo era filha de Andrea Magnocavallo, italiano, e de uma brasileira, Filomena Arouche Magnocavallo. A história se passa em 1930, em São Paulo, época em que os imigrantes italianos eram discriminados pela elite paulistana e denominados de “carcamaO conto da mulher brasileira

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nos”. Aida foi educada em colégio de freiras francesas, assim como a mãe, e estudava com toda a aristocracia paulistana. Era discriminada pelas colegas, que tinham sobrenomes brasileiros, eram ricas e moravam em casarões na Avenida Higienópolis, enquanto ela era pobre, tinha sobrenome italiano e morava no bairro de Bom Retiro. Todo esse sobrepeso, toda essa discriminação sofrida no colégio fez com que Aida passasse a odiar o pai (a mãe, não, pois a mãe tinha sobrenome brasileiro, Arouche, havia até uma praça com esse nome!); ela atribuía ao pai toda a culpa desse sofrimento por que passava – com o tempo, foi achando justo que a relegassem, pois não era filha de italiano, apesar de insistir que a mãe era brasileira . Queria a todo custo mudar de sobrenome, inclusive, um dia, sugeriu isso ao pai, que não a levou a sério – o pai não via maldade na menina. Dizia que não se casaria com estrangeiro, mas gostou muito de Isac Wewbeiczyk, seu vizinho violinista de sobrenome polonês. Casar-se-ia com ele para mudar seu sobrenome. E Isac passou a frequentar seus sonhos; ia ao cinema e via nos mocinhos o rosto do vizinho. Namorou o violinista que a levava sempre ao cinema. Só não admitia ver filmes de cowboy, pois os cavalos lhe lembravam o sobrenome. No dia de sua formatura, ignorou a presença do pai e enalteceu a presença da mãe e dos pais das amigas ricas. Por outro lado, estaria livre das amigas e das freiras que a discriminavam. Um dia, quando Isac lhe disse que abandonaria o violino, ela terminou o namoro com ele. Ao se ver sozinha, passou a desejar a morte do pai. Nesse tempo, o pai fica doente e vai tratar-se na Itália. Imaginou o navio afundando ou morrendo em um acidente qualquer na Itália. Matou Andrea Magnocavallo de todos os feitios: por acidente ou por moléstia. Ela via na morte do pai a condição de ascensão social para ela e a mãe: trocariam de sobrenome e iriam morar em outra casa. O pai retorna, muito doente, e ela pressente sua morte. Quando ele morre, algo muda em Aida: o remorso começa a lhe corroer a alma. Por conta disso, isola-se; faz questão de perder sua mocidade e não se casa 350

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com ninguém. A fim de reconciliar-se com o pai, ela pede à mãe que transforme a casa delas em uma pensão. E mandou fazer uma tabuleta de fundo verde com letras brancas: “PENSÃO MAGNOCAVALLO ESTRITAMENTE FAMILIAR”. Elementos presentes na narrativa: problema social: discriminação; vinda dos imigrantes italianos para o Brasil; questões econômicas; problemas de ordem psicológica: solidão; frustração; arrependimento. 6. Lucas, Naim Hilda Hilst Narração: 1ª pessoa Tempo e Espaço: tempo indefinido; espaço: um apartamento Personagens: Lucas (narrador), Naim (personagem com quem Lucas fala; tem 25 anos) Este conto não apresenta a estrutura tradicional de enredo, tempo e espaço. As informações vão sendo relatadas (parece que até “jogadas”) em uma espécie de monólogo interior cujo eu, a personagem Lucas, tece reflexões sobre sua própria existência, abordando temas como homossexualidade e velhice – é uma história contada sobre um amor homossexual. “[...] não tinha esta cara, eu Lucas tinha outra, corpo e palavra se refazem, tu não és mais o mesmo, tu Lucas, as palavras também adquiriram surpreendentes significados, por exemplo velhice era coisa de longe, de vazio, de aderência de outro não de mim, bochechas magras, franzimentos, velhice hoje é perto e adequada a mim.” Esse é o tipo de texto complexo, de difícil entendimento; daqueles que se tem que ler algumas vezes para entendê-lo; a sensação de estar perdido nas amarras de Lucas é grande; ele se dirige, muitas vezes a um receptor mudo, Naim, seu companheiro. Na tentativa de se encontrar, O conto da mulher brasileira

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ele se enxerga por meio de Naim, já que se encontra fragmentado, diluído. “Três caras, tua minha e a cara desse morto que parece estática, cara que possuo, enorme, tomando o peito e o abdômen, morto sem cabeça agora porque desiste de meditar no que já sabe.” “Hiperdialético construíste um vetor, mas se eu fizer disso uma evidência, se rascunhar para o teu olho cego porque jovem, que tu mesmo, Naim, me levas até o lago onde boiam estufadas as palavras de amor, negarás intenção e ambiguidade, disse colados diante do que se via, disse colados, Lucas, como mil outros diriam diante do que se via...” “... revejo teus dissimulados toques, uma lascívia escura, um remendo rugoso inaceitável para a tua brilhosa juventude, remendo rugoso, gozo grosseiro desculpável em ti porque há velhice em mim, e amor na velhice para o teu ser cego é espetáculo imundo e risível, ainda que eu seja honrado...” O discurso inteiro de Lucas é de angústia e ele utiliza palavras pesadas em sua voz, “... penso que és um, soberbo, Naim, mais minhas dores, mais meu esfolamento álmico...” (aqui percebemos o neologismo “álmico”, referente ao esfolamento da alma). Por fim, caminha até a janela e se joga. Elementos presentes na narrativa: o texto é um monólogo interior e trabalha com a temática da homossexualidade e da velhice; texto fragmentado; brinca com palavras, usa neologismos (palavras inventadas); usa a tônica da angústia, que acaba em morte. 7. A sra. Büchern em Lebenswald Judith Grossmann Narração: 3ª pessoa Tempo e Espaço: Tempo: não identificado; espaço: Lebenswald, na Alemanha Personagens: Senhora Büchern, mulher enigmática

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Senhora Büchern era uma mulher enigmática ninguém sabia quem ela era, de onde viera, como viera, por que viera. Peregrinava desde a juventude em expiação de seus pecados. Chegara a Lebenswald com pouquíssima bagagem, apenas uns livros e poucos objetos. Alimentava-se de frutas e chá basicamente, era vegetariana. Era um mistério para seus vizinhos. Ninguém sabia sua idade; havia dias em que estava radiante, alegre, como uma menina; porém, outros, em que se mostrava triste, amuada, parecendo uma anciã. Às vezes cumprimentava os vizinhos com um beijo, às vezes virava-lhes a cara; às vezes aparecia linda, toda arrumada, às vezes, bem relaxada. A Sra. Büchern era um enigma no prédio, mas como enigma a respeitavam. Apenas uma pessoa entrava em sua casa: um rapazinho, magro, alto, com ar de pássaro assustado, que vinha visitá-la diariamente. Ele era, na verdade, um natimorto; a função de Sra. Büchern era cuidar daquele morto-vivo, o único homem morto em Leberswald. E cuidava com muita dedicação, ocupava-se da iniciação do jovem sábio de Leberswald. Um dia, porém, o rapaz a repudiou quando nela reconheceu o mais legítimo comparsa de sua natimortividade (esse repúdio significa que sua missão fora cumprida, que ela o ressuscitara). Quando Sra. Büchern pensa que sua missão ali acabara, encontra outro rapaz, um jovem, os longos cabelos cor de mel e seda, os olhos acetinados, dois topázios, sóis naquela manhã cor de chumbo, que lhe sorria e implorava. O rapaz era filho de judeus, e era o único homem vivo em Leberswald. Era o único vivo e por isso era tão triste. A Sra. Büchern teve de morrer várias vezes por dentro para levar a bom termo sua missão. Depois de meses de dedicação, o rapaz compreendeu ser ela o mais legítimo cúmplice de sua vitalidade, não hesitando assim em imolá-la com a maior rapidez possível. E saiu dali mais morto do que vivo para todo o sempre – e ela cumpriu sua missão novamente. Não teve dessa vez a Sra. Büchern qualquer dúvida em emalar e sair de Lebenswald. Já havia cuidado dos dois moradores mais importantes da cidade, agora seguiria caminho em expiação de seus pecados. O conto da mulher brasileira

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Elementos presentes na narrativa: Este é um conto fantástico que trabalha com a temática da morte e da vida, a partir da representação de dois jovens que são cuidados pela protagonista da história. A autora utiliza duas palavras que se opõem e que têm muito significado na narrativa: “imolar” e “emalar”, que trabalham a questão feminina nos aspectos do sacrifício e do exílio. Outra questão importante é a expiação de Sra. Büchern, que representa a expiação da mulher na sociedade, sua imolação e, consequentemente, sua emaculação. 8. Curriculum Vitae Julieta de Godoy Ladeira Narração: 3ª pessoa, narrador observador Tempo e Espaço: tempo: não definido; espaço: urbano (Vila Mariana e Ana Rosa, em São Paulo) Personagens: a protagonista (uma moça, sem nome) Uma personagem procura mostrar seu Curriculum Vitae e, durante a narrativa, coloca flashes de sua infância em Vila Mariana e Ana Rosa São Paulo. Sentia repulsa pela classe, o quadro negro, a professora que cheirava a mofo e a incenso, as meninas que, como larvas silenciosas e obedientes, atravessam em fila... (aqui se pode reparar na crítica à sociedade patriarcal, ao comportamento submisso da mulher, e o repúdio da protagonista). Mãe brasileira, pai italiano, e assim ela vai montando seu currículo. Em 1958, aos catorze anos, em vez de ir para a escola, vai trabalhar; seu patrão, fazia com que ela “copiasse assinaturas” em papeis brancos e timbrados, mas ela não tinha a mínima noção do que ele fazia com aquilo. Um dia, durante uma greve, o patrão desce até o subsolo onde ela ficava e rasga todo o trabalho dela e some com ele. Abandona o emprego. Em 1962, já empregada, faz um empréstimo e oferece ao pai participação na fábrica de confecções, sonho dele, a fim de mantê-lo junto à família. No início, estava empolgado e ganha 354

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dinheiro; depois, cansa-se e se afunda em dívidas; é expulso da sociedade e viaja para Santa Catarina, afastando-se da família. A mãe culpa a filha e lamenta-se constantemente. Ela, no entanto, tenta agradar a mãe de todas as maneiras. Procurava substituir o pai dando-lhe coisas para a casa, e perfumes, vestidos, até mesmo joias, recebidos com desdém: “Para que gastar comigo? Só atrapalho. Por você decerto eu já estaria morta e enterrada”. 1965 – torna-se secretária executiva em indústria de produtos alimentícios. Pensa em se casar com um colega de trabalho, mas a mãe seria contra. 1968 – Aproveitando a experiência adquirida nessa indústria, torna-se contato, numa agência de propaganda, de uma conta de produtos similares. A protagonista trabalha feito uma louca, chega tarde em casa, mas a mãe nunca reconhece, só reclama da vida. 1970 – outro emprego para tentar melhorar a vida da mãe. Torna-se Chefe de Grupo de uma indústria de tecidos. A mãe não cuida mais da casa, conversa com gatos; ela tem novo namorado, mas como ele era desquitado, achava difícil que a mãe aceitasse o relacionamento. 1972 – o namorado a pressiona, a relação está ruim, esfriando, mas a mãe está cada vez pior: expulsa as empregadas, não faz mais comida, imagina-se perseguida, reclama da filha, que a abandona. 1973 – a mãe morre. 1975 – com a morte da mãe, decide deixar o emprego e vai viajar. 1976 – de volta, tenta arrumar emprego, mas não consegue; ao contrário do que ouvira quando iniciara sua carreira, agora dizem que não podem contratar quem possui experiência demais. Senta-se no carro, dá partida, quer se distanciar desses musgos e tábuas, águas contaminadas, raízes ocultas, linfas silenciosas e obedientes. Quer atravessar a rua, como fazia quando criança, encontrar arbustos e se livrar de ordem estabelecida por clipes, relógios, arquivos, cheques. Elementos presentes na narrativa: O texto conta a história da vida O conto da mulher brasileira

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de uma moça, da qual não sabemos o nome, mesclando as informações postas em um documento (o currículum vitae) e o fluxo de memória da própria protagonista. O conto contextualiza problemas familiares, relações tensas com a mãe, o abandono do pai; frustrações enquanto mulher, que não pode ter relacionamentos por causa da mãe. 9. As formigas Lygia Fagundes Telles Narração: 1ª pessoa – estudante de Direito Tempo e Espaço: tempo: indeterminado; espaço: pensão Personagens: duas amigas e primas, estudantes de Direito e Medicina e a dona da pensão Narra a história de duas primas que estão chegando a uma pensão em que alugaram por ficar mais próximo da universidade, uma fazia Medicina e a outra, Direito. Chegaram era quase noite e ficaram assustadas com o lugar. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes. – É sinistro.- disse uma delas Mas, como não tinham dinheiro e aquela era a mais barata, resolveram ficar. Subiram a escada, que era velhíssima, cheirando a creolina e encontraram a dona, de aparência tão decadente como a pensão: uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna (repare aqui a intertextualidade com a obra “Iracema”, de José de Alencar, que compara os cabelos da índia com a asa da graúna), pijama desbotado e unhas aduncas descascadas pintadas de vermelho-escuro descascado nas pontas encardida e sempre com uma tosse encatarrada. A mulher não foi nada acolhedora; atendeu-as com indiferença, conversou rapidamente e, ainda, deu uma baforada de charuto na cara delas. Estavam na sala, um lugar bem feio: A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. Encaminhou-as ao quarto, que ficava no sótão. Disse que o inquilino 356

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anterior também estudava medicina e que esquecera um caixotinho de ossos, que ainda estava lá no quarto. Passaram por uma estreita escada caracol e chegaram até ele. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. A estudante de Medicina ficou fascinada pela caixa, ainda mais quando a mulher lhe disse que era o esqueleto de um anão – coisa rara. Se quisesse ficar com eles, poderia. A mulher dita as regras da pensão e vai embora. Elas se ajeitam no quarto, colocam uma lâmpada mais forte que trouxeram na bolsa – agora, mais iluminado, viram que as roupas de cama eram encardidas. A prima ainda estava fascinada com o esqueleto. – Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele. Já era noite quando foram comer alguma coisa: sardinha e bolacha Maria. Sentiram um cheiro meio ardido. – É de bolor. A casa inteira cheira assim – ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama. A narradora sonha com um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! mas acordei antes. Ao acordar, viu a prima olhando fixamente para o chão, ela estava vendo milhares de formigas que se dirigiam para dentro do caixote, embaixo da sua cama. O mais assustador é que não tinha caminho de volta, as formigas só iam e ficavam no caixote. A prima conta do sonho; elas decidem jogar álcool nas formigas para matá-las. Ao examinar o caixote, ela verifica que os ossos estavam limpinhos (teoricamente não haveria motivo para ter formigas ali, nada que as atraísse), mas a outra constatação foi pior: ela verificou que os ossos haviam sido trocados de lugar, não estavam na mesma posição que ela O conto da mulher brasileira

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deixara. E começam a matança. Voltam a dormir, e a narradora sonha novamente, mas dessa vez, que estava em aula e não sabia nada da prova – isso é que é pesadelo, hein vestibuland@!?! Acordou às seis da manhã e viu que, de maneira mágica, não havia nenhum rastro de formiga, nenhuma marca daquelas que elas haviam matado; tudo sumira, inclusive o cheiro estranho. Mas o caixote continuava lá, intacto. A prima apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava. – Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo. Na noite seguinte, o cheiro voltara. A narradora conta que a prima estava tão deprimida, que nem falou nada. Ela jogou água de colônia no quarto para ver se passava aquilo. De madrugada, teve mais um pesadelo: sonhou que havia marcado encontro com dois namorados ao mesmo tempo e no mesmo lugar. E aquela aflição que um chegaria e encontraria o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Acordou com a prima chamando, mais estrábica do que nunca. As formigas haviam voltado e o mais assustador era que os ossos estavam mudando de lugar: - estão se organizando. – disse a prima. – Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e… Venha ver! Dormiram e, no dia seguinte, nenhum rastro de formiga. À noite, a estudante de medicina resolve ficar acordada para ver de onde surgiam as formigas. A outra chegou tarde, havia ido a uma festa, e encontrara a prima lá, de plantão. Logo dormiu e sonhou novamente com o anão. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga. Ela havia dormido também, e as formigas haviam voltado. Foi ver no caixote e acontecera o que ela previra: – Estão mesmo montando ele. 358

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E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui. Apavoradas, resolveram fugir no meio da noite mesmo, sem que a “bruxa” da dona da pensão as visse. Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito? No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra. Elementos presentes na narrativa: conto fantástico. 10. Relatório final Márcia Denser Narração: 1ª pessoa (mulher, sem nome) Tempo e Espaço: relato de um dia, 30/12/1977; São Paulo Personagem: a protagonista O conto narra a história de uma jornalista durante um dia de sua vida, o dia 30 de dezembro de 1977. A narrativa mistura dois gêneros textuais: o conto e o relatório, mas este último parece mais um fluxo da consciência. A narrativa pode ser considerada erótica e conta uma aventura sexual da protagonista no último dia no ano de 1977, aventura esta, regada de angústias, por causa de um acontecimento que não lhe agradou. Nesse dia, houve uma festa de fim de ano da empresa em que ela trabalhava, em um bar; lá ela se embebeda e conhece um rapaz (que não sabe se é um bancário ou um representante de bebida), que se senta à sua mesa: Eu não sei até que ponto fiz mal àquele que não tem rosto e que não tem nome, aquele que teve o incrível mau gosto de sentar à O conto da mulher brasileira

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mesa de quem já estava suficientemente bêbada. Mais tarde, saíram dali e foram a um hotel, que, pela descrição, era baixo nível: atrás do Hilton e no meio de boates de putas e travestis. Tudo me dava nojo... Depois devo ter apagado. Apagado até acordar com a calcinha enrolada nas pernas e uma coisa mole do lado direito tentando falar ou fazer pegar ou não sei... a coisa foi socando como um pilão e eu gemendo... e então fingi que acabei e a coisa parou e me deixou em paz. Saem dali e dirigem-se a outro bar. Ela ainda está muito excitada, e ele fica também depois de ela dizer que gostava de mulheres e sugere uma companhia feminina para apimentar a relação. Ele diz nunca ter feito isso, mas adora a ideia. No entanto, ela volta e diz que agora já era muito tarde; então, resolvem transar no meio da praça da igreja. Transaram, ele disse que estava machucado, não deu conta o recado, e ela não se satisfez: ... mas ele mole ele não presta para nada mesmo ele é um frouxo. Saíram, ele disse novamente que estava machucado, mas eu sabia que era nojo, que ele era um cara cheio de preconceitos e coisas assim na cabeça. Despediram-se, deram apenas um tchau. Dentro do táxi fui embora imaginando você morto lá em Osasco enquanto eu moro no Morumbi e amanhã vai ter uma puta festa. Elementos presentes na narrativa: Neste conto, temos o relato de uma mulher que deixa bem clara a sua liberdade de desejo sexual e a inversão de papeis assumidos entre homem e mulher: estão em um bar, ele está sóbrio, fala em pai, mãe, família, e ela está muito bêbada; é “atirada” e tem desejos sexuais muito mais forte do que ele. Ou seja, percebe-se que ela transforma o sexo em algo violento, agressivo e repugnante; ao final, fica frustrada com o resultado daquilo tudo. 11. Luar no Beco Maria de Lourdes Teixeira Narração: 3ª pessoa 360

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Tempo e Espaço: tempo indefinido; espaço: São Paulo Personagens: Teresa e Virgolino O conto apresenta-se dividido em duas partes: na primeira delas, vemos a narrativa da história de Teresa, uma quarentona e solteirona que dedicava sua vida à mãe, que estava muito doente e já caduca. Teresa perdera sua juventude cuidando da mãe e dos afazeres de casa, em uma dura rotina na luta pela sobrevivência. O pai, ferroviário, morrera de acidente e deixara para as duas uma pequena pensão que, pelo menos, dava conta do aluguel. Teresa e a mãe moravam em um beco, sujo e pobre. Em certa noite, após os afazeres domésticos e depois de ter cuidado da mãe, foi até a janela para descansar. Estava uma noite clara que deixava o beco azulado. Naquele dia, no beco deserto, viu passar um vulto, um cavalheiro ereto que envergava casaca ou fraque (ela não sabia bem) e ostentava uma legítima, uma indiscutível, uma insofismável cartola negra. O cavalheiro, ao vê-la, cumprimenta-a distintamente. Aquele gesto fez com que Teresa ficasse em êxtase; custou a dormir pensando no vulto. Teria sido uma visão? Passou o dia pensando na cena e já se preparava ansiosa para a noite: iria novamente para a janela para verificar se havia sido produto ou não de sua imaginação. O dia custou a passar. Teresa fez todas as suas tarefas, pôs a mãe a dormir, arrumou-se toda e foi para a janela. Naquela noite, ele passou (um pouco mais tarde, quando Teresa já estava quase desistindo) e repetiu os gestos e o cumprimento. A partir de então, a vida de Teresa se modifica; ela passa a ver a vida com mais amor e poesia. As noites de luar no beco passaram a ter um significado muito especial em sua vida, pois a mesma cena passou a se repetir. Quem seria ele? Seria mais velho? Mais novo? Casado? Rico? Teresa começou a fazer planos para sua vida. Começou a se cuidar mais e a cuidar menos da mãe e da casa. Precisava ficar bonita para quando ele a visse de dia (sentia-se velha e feia, mas sentia que poderia melhorar). O O conto da mulher brasileira

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desejo começou a tomar conta de seu corpo virgem. Parte II Na segunda parte do conto aparece outra personagem: Virgolino, um homem de quase sessenta anos que vivia às custas da amante, D. Antônia, uma lavadeira, que fazia de tudo para manter os mimos de seu homem. Um dia, decidiu ajudar o camelô e amigo Chico Cegonha, que estava doente, e passou a trabalhar fazendo propagandas para lojas na ruas de São Paulo. Colocava aquela placa no corpo e saía perambulando pelas ruas, uma forma de sair de dentro de casa e de poder beber sua cachacinha e conversar com os amigos, já que em casa ele não podia fazer isso. Começa a usar esfarrapadas cartola e casaca de Chico Cegonha para ir trabalhar. No início, cumpria seus horários corretamente, mas depois foi desleixando. Mentiu para a amante, dizendo que trabalharia à noite à porta de teatros, boates e cinemas. Certa vez, em noite de luar, vinha de ônibus para casa e resolveu saltar um ponto antes, passando por um beco para cortar caminho. Foi aí que viu um vulto de mulher na janela; teve pensamentos eróticos com ela, mas como percebeu que ela não lhe falara nada, reconheceu que era uma moça digna e a cumprimentou. No dia seguinte, passou novamente pelo beco e viu a moça lá. Sentiu que ela o esperava. Foi no terceiro dia para ter certeza de que ela o estaria esperando. E assim passaram-se várias noites. Ele tentava descobrir-lhe o rosto, mas não conseguia. Começou a sonhar com a moça. Um dia, gelou ao pensar que ela o poderia reconhecer quando ele estivesse trabalhando; sentir-se-ia humilhado. Depois, pensou em D. Antônia, se ela descobrisse, ele estaria perdido, podia até comprometer a segurança de sua vida. E, depois, aquilo poderia ser uma assombração. Estava decidido. Adeus, beco. E nunca mais passou por lá. De seu lado, Teresa voltou a ter uma vida sombria, pois seu cavalheiro encantado desaparecera. Então, o beco voltou a ser o último refúgio da desistência dos vencidos.

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Elementos presentes na narrativa: O conto é dividido em 2 partes e apresenta o mesmo acontecimento, um encontro e posterior “namoro” utópico, visto de pontos de vista e histórias diferentes. A personagem Teresa é uma quarentona virgem, já desiludida da vida, que, de repente, imagina ter a chance de viver um grande amor, mas isso não se concretiza. Aqui podemos perceber a questão da mulher sofredora (perdera a juventude trabalhando e cuidando da mãe e, portanto, morrendo para o amor conjugal); a mulher sonhadora e a mulher que volta à dura realidade. Também pode-se perceber, na personagem de D. Antônia, a mulher trabalhadora, que sustenta o amante, “um branco”, dando-lhe boa vida e não permitindo que os vizinhos lhe façam críticas por isso. O conto, ao mesmo tempo que mostra o lado feio do beco (sujo, com ratos) e da vida (sofredora), mostra que tanto o beco como a vida podem ver vistos de maneira mais poética quando se tem esperança no coração. 12. Dia 24 à noite Myriam Campelo Narração: 1ª pessoa Tempo e Espaço: tempo: uma noite de Natal; espaço: indefinido Personagens: a narradora, protagonista da história O conto possui apenas um parágrafo e é narrado por uma mulher (sem nome) que espera o ex-marido (mesmo sabendo que ele não virá) na noite de Natal. O conto é permeado de angústia e, por meio do fluxo da consciência, narra a história da protagonista que vivera cinco anos casada e separa-se do marido há dois anos. Com o tempo, o relacionamento foi se desgastando; ele casara-se novamente, mas ela não. Ela o vê mais grisalho, consumista e cheio de desculpas. Irrita-se, pois, quando jovem, era um revolucionário e agora tornara-se um burguês rico, que toma uísque, compra quadros e é cheio de mulheres. Em sua amargura, relembra do relacionamento deles: Acho que a coisa mais forte em você foi mesmo o seu amor por mim, o que explica a violência com que nos demolimos uma vez soada a tromO conto da mulher brasileira

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beta. Sim, nos demolimos. Que outra palavra pode definir as vísceras ensanguentadas sobre uma relva antes tão verde? Hoje procuro entre os escombros desse homem adormecido e comum o meu Tristão moreno, devorado pela febre. Nunca o acharei. Ao fim, ainda com esperanças de que ele voltará, ela lhe deseja, mesmo de longe, um feliz Natal. Elementos presentes na narrativa: O conto possui como temática a separação e é narrado por uma mulher que, mesmo ainda sofrendo a dor do afastamento, tem noção de que foi o melhor a ser feito. É, portanto, uma mulher sensata, que analisa a sua vida em uma noite de Natal e, como é uma época festiva, familiar, ela retoma o desejo desse sentimento de união. 13. A Sagrada Família Nélida Pinõn Narração: 3ª pessoa, por um narrador onisciente Tempo e Espaço: tempo: indefinido; espaço: uma casa, herança de família Personagens: a prima, o primo e o filho dos dois A protagonista da história morava sozinha em uma casa herdada da família. Nunca fora boa filha, fora expulsa do colégio, expulsou o marido de suas terras, dizia que o amor era para mais tarde. Era professora de piano e tinha um problema hereditário de paralisação dos membros inferiores. Os pais eram separados, e ela dizia entender as razões do pai ter abandonado a mãe: vida junta terminava em amargura, consolidação de estimas erradas. Um dia, o primo vem reivindicar o direito à herança; ela trava luta áspera com ele. A decisão de Deus nem sempre é a mesma do homem. Você resolve matando, ou pela justiça. O ódio mortal fez com que amigos e alunos se afastassem dela. Um dia, ele chegou de arma na mão e a pediu em casamento. Casa364

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ram-se com a condição de que permaneceriam inimigos para sempre. Três meses depois, em um raro intervalo, ela permitiu que o matrimônio fosse consumido. Engravidou. Agora, ela entendeu e enviou bilhete a ele: perdemos a casa a um só tempo, não é mais sua nem minha. Via o inimigo crescer a cada dia. Quando a criança nasce, o pai faz questão de nunca olhar para o filho, não queria conhecer o inimigo. As brigas dentro de casa eram imensas desde sempre e, quando isso acontecia, para que a vizinhança não percebesse, ela ia ao piano tocar. O pai ia acompanhando o crescimento do filho sem vê-lo e colocou-lhe uma condição: sempre que se aproxime faça barulho para que jamais eu o veja. Aos quinze anos, mandaram o garoto ir embora. O filho só dizia: aqui eu fico, para que me suportem até a eternidade. O primo passa a quebrar objetos milenares e a danificar o patrimônio. Novamente uma menção a uma passagem bíblica: Elias sobre o povo de Israel em seu carro de fogo... trago de volta apenas minha imagem imortal. O filho se queixa do estrago feito, pois agora ele era o herdeiro. Aos vinte anos, o garoto pediu todas as chaves, que ficaria de posse delas. Com ódio, o pai (primo) volta a quebrar os objetos e a rasgar os quadros com canivete. Mãe e filho se olhavam; ela parecia pedir-lhe que matasse o pai. Mas como? Aproveita a ocasião, um dia, quando o pai organizara uma fila de pires e xícaras em cima da mesa e começa freneticamente a quebrá-los sem se quer olhar para os objetos. O filho, tendo a mãe como cúmplice, finge-se de pires e fica em cima da mesa. Após quebrar todos os objetos, o homem passa a mão sobre o último pires. Sentiu um pulso, a que se agarrou como se fosse matriz, e a certeza do calor o surpreendeu. Quando olhou, pela primeira vez viu o filho, o território do medo de que procurou se ausentar quase vinte anos. Com raiva e desafiado, o pai tenta ergue-lo da mesa para atirá-lo contra a parede. Durante algumas horas buscou quebrar aquela carne que ele e a mulher haviam construído pela disputa da casa. E o filho resistiu, O conto da mulher brasileira

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resistia mais do que um pires comum. Elementos presentes na narrativa: Este conto trabalha com o absurdo e o grotesco. Dois primos disputam uma herança, casam-se em sociedade e têm um filho a quem declaram ser inimigos, uma vez que seria mais um a disputar o direito da herança. Durante a narrativa são frequentes os discursos voltados a passagens bíblicas, a começar pelo próprio título; também percebe-se uma crítica às questões familiares que colocam os interesses acima do amor e a infelicidade que predomina. 14. Em uso Rachel Jardim Narração: 3ª pessoa, narrador onisciente Tempo e Espaço: tempo não definido; espaço: Rio de Janeiro Personagens: uma mulher de 50 anos O conto tem como protagonista uma mulher que estava fazendo cinquenta anos naquele dia. Iria dar um jantar aos amigos, já havia planejado tudo, só estava faltando um detalhe: não sabia fazer café e não gostava de confessar isso. Decidiu sair para comprar uma garrafa térmica – sempre odiara garrafas térmicas, achava-as muito feias, mas como, uma vez, havia visto uma de metal em Nova Iorque, resolveu ir até a loja “Em uso” para comprar uma igual. E a narrativa volta-se para ela, como um fluxo de consciência: era uma mulher independente, amava um homem, mas não era correspondida. E fazia questão de dizer isso a todo mundo. E fazia isso apenas por orgulho, se aquele homem não a amava estava jogando fora uma oportunidade única em sua vida. Ele era cearense e chamava-se Afonso Cavaleiro. À caminho da loja “Em uso”, que ficava em Ipanema, perto da casa de Afonso Cavaleiro, lembra-se dos homens que tivera, de suas aventuras sexuais “insatisfatórias”, do marido que a abandonara depois de dez anos por causa de uma secretária, mas ela não se abalava. Já estava so366

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zinha há mais de um ano, não queria saber de homem algum e não trocava nenhum reino por aquele de sua fantasia. Lá chegando, descobre que a loja mudara de lugar. Quando estava indo para o novo local, encontra Afonso Cavaleiro e a esposa, em um carro que para ao lado do seu. Os dois demonstravam alegria imensa, pareciam um só: ela era uma mulher com ar de esposa, dessas que andam de braço com o marido, baixinha e meio sobre o roliço; ele parecia ter lavado os cabelos de índio. Ela parecia absolutamente senhora de si e ele, ele, TINHA O AR MAIS FELIZ DO MUNDO. De volta a sua missão, ela compra uma garrafa de matéria plástica mesmo. Pensar em salvar-se pela fantasia é apenas mais uma fantasia. Ninguém consegue se salvar. Porque a vida não está aí para perdoar pessoa alguma. E pensa em suicídio (aqui a narrativa fica em primeira pessoa: se eu me atirar do alto de um edifício, desenharei no espaço um movimento puro e sorverei a manhã em grandes haustos.). Elementos presentes na narrativa: Este conto tem como protagonista uma mulher independente que, após desilusões amorosas, decide ficar sozinha com suas fantasias. A narrativa faz menção à obra Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, mantendo, assim, um certo diálogo com essa obra. Ao final, percebe-se um realismo em sua fantasia: a vida não perdoa ninguém. Mas volta a sonhar, quando vê no suicídio uma forma ideal para sorver a manhã. 15. Cordélia, a caçadora Sônia Coutinho Narração: 1ª pessoa do singular; 3ª pessoa; 1ª pessoa do plural Tempo e Espaço: tempo indefinido; espaço: Rio de Janeiro Personagens: Cordélia e Papá Cordélia, uma mulher de meia-idade, era virtuosa, tímida, introvertida e daqueles tipos que ficaria com um homem a vida inteira, até mesmo O conto da mulher brasileira

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por “preguiça” de trocar por outro. Como tinha um “ar de vítima”, era do tipo de mulher que os homens gostavam de massacrar e tronava-se vítima deles. Abandona pelo sexto homem, encontrou um advogado solteirão de cinquenta e poucos anos, o Papá, na verdade, Tales (ou sr. Tales). Conheceram-se, e ela tem o maior orgasmo de sua vida. Durante a narrativa, há algumas reflexões interessantes da personagem: Nosso relacionamento é como uma volta a Algo que Nem Chegou a Existir, uma Coisa Maravilhosa de Antigamente. No dia do pedido de casamento, ele revela “uma surpresa triste”: era desquitado. Mas a felicidade era tanta, que isso passou batido para Cordélia. Tatá fazia questão de que tudo fosse a seu gosto, até as roupas íntimas da mulher ele escolhia. Tudo tão Família! Pois o que caracteriza Papá, eu penso, são as coisas-feitas-como-se-deve-fazer. Vão morar em um belo apartamento, graças a ele, pois ela era funcionária pública e ganhava muito pouco. Tinham um casamento perfeito; ela era invejada pelas amigas do serviço. Pensava que Não é difícil ser uma mulher, ora, basta tomar banho todo dia e se perfumar e deixar o barco correr. Com o tempo, porém, Papá começa a mudar: primeiro começa jogando na cara da moça que ela está ali naquele luxo graças a ele, que ele a retirou da pobreza, que se não fosse por ele, ela estaria solteirona à mercê dos homens. Cordélia achava estranho, mas sempre concordava com o marido, de fato, ele tinha razão – depois disso, transavam, e ele se achava o homem mais importante do mundo. Depois, começou a reclamar da comida, dos talheres, da louça que não estava muito limpa, e ela dava razão a ele. Uma noite, porém, ele pediu algo estranho: depois de ela tomar o banho e se perfumar, pois há mais de uma semana não fazemos sexo, sinto que ele me procurará e quero atender aos seus desejos, ele pegou um chicote e sugeriu o sadomasoquismo. Ela não aceitou, era recatada demais para aquilo. 368

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Mas isso foi só questão de tempo, pois um mês depois, quando ele pediu novamente, ela não ousou negar. Sentiu-se uma pecadora; confessou, custosamente, à irmã o que lhe estava acontecendo, e foi aí que descobriu que a vida de nenhum casal era cor de rosa, que sempre havia muitas coisas “por debaixo do pano” que as pessoas não contavam, para manter as aparências. Mesmo fazendo todas as vontades do marido, ele se tornava cada vez pior e mais ameaçador, a ponto de ela estremecer perto do horário em que ele voltaria para casa. Começou a compará-la com a ex-mulher, a qual não fazia concessões sexuais, e chegou a esbofeteá-la. Cordélia fica mal, doente e conversa com uma colega de trabalho. A narrativa passa a ser contada na primeira pessoa do plural, “nós”, e vemos a amiga e ela combinando a sua fuga de casa. Morariam juntas, alugariam um apartamento, iriam à praia, “pegariam” muitos homens, garotos, surfistas, sarados, iriam à noite para Copacabana e, no dia, seguinte, sentir-se-iam poderosas e fortes. Esta noite mesmo, Cordélia, a Caçadora voltará a excurcionar. O conto termina, abrindo um parênteses: (Pois a vida é, decerto, extremamente engraçada, mas a gente só descobre isso quando perde completamente a esperança...) Elementos presentes na narrativa: O conto traz um inusitado jogo de narradores: ora em primeira pessoa (“eu”, em que Cordélia fala), ora em segunda pessoa (alguém falando de “você”, Cornélia) e, ao final, na primeira pessoa do plural (“nós”, a amiga de trabalho e Cordélia). A linguagem é simples e grafada diversas vezes com iniciais maiúsculas no meio das frases, como que chamando a atenção para a situação (Cruz e Sousa usava o mesmo artifício em suas poesias). A condição da mulher aqui apresentada é a de uma mulher que procura seguir uma vida correta, dedicada ao marido, no entanto, seu sonho acaba se desfazendo na loucura e no egoísmo do outro. Ao final, ela volta a ser aquela mulher “caçadora” do início, ou seja, ela se mostra como um ser forte, que se O conto da mulher brasileira

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refaz quando é necessário. No entanto, o último parágrafo do texto, que está entre parênteses, indicando que a mulher também vive dentro de parênteses a vida inteira, ela mostra frustração com a liberdade que conquistou: a vida só é engraçada quando não se tem nenhuma esperança. 16. A porca Tania Jamardo Faillace Narração: 3ª pessoa, narrador onisciente Tempo e Espaço: tempo indefinido; espaço: rural Personagens: um menino e sua família Narra a história de um menino que vivia perseguido pelo medo. O conto inicia como nas histórias infantis: Era uma vez um meninozinho que tinha muito medo. Ele ficava horrorizado como seus irmãos tratavam os animais, como se fossem brinquedos. Ele sempre ficava de longe assistindo a tudo, com medo. A figura da mãe é associada com a da porca: A mãe também era gorda. Ela batia nele com a vassoura. O pai, também não era muito sutil; um dia, deu um chute na barriga da porca, que fez com que ela abortasse – eram catorze leitões. Ficou enfurecido, e o menino correu para a cama, com medo. Ele se imagina caindo na pipa e lá encontra os catorze porquinhos encarquilhados. Os irmãos riam dele; à noite, dormiam juntos: a irmã tinha o costume de dar-lhe beliscões, e um dos irmãos sempre esperava que ele se distraísse para puxar-lhe “aquilo”. Depois, ria dizendo: “Por mais que se puxe é uma coisinha de nada”, e mostrava o seu, orgulhoso. O menino habituou-se a correr: ao ouvir as xingações da mãe, ao ouvir os tamancos do pai, ao ouvir as risadas dos irmãos. Em seus desejos e sonhos, ele imagina-se fugindo dali, queria ver o mar. Um dia, sentiu “aquilo” (seu sexo) se levantar em franco protesto. Um dia, assistiu uma cena que o chocou: mãe, pai e vizinhos estavam reunidos para matar a porca; foi um tumulto só; a mãe pegou a faca da 370

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mão do vizinho e cravou-lhe no ventre da porca. O sangue jorrou para todos os lados, explodiu na cara de todos, no braço da mãe, no rosto da mãe, no peito da mãe, no bigode do pai. O pai bate na mãe. De longe, assistindo a tudo isso, o menino se agachou atrás da bananeira, com mita dor em sua barriguinha. E nunca mais beijou a mãe. Elementos presentes na narrativa: Este conto, diferente dos demais, tem como personagem principal um “meninozinho” que sofre por medo e vive em um ambiente familiar rural e hostil; os pais batem-lhe com tamancos e vassouras, os irmãos fazem escárnio e judiam dele, enfim, em um ambiente em que nem pessoas nem animais são respeitados. A autora utiliza-se de linguagem infantil para narrar a história: “meninozinho”, “barriguinha”, etc. A narrativa é permeada pelo medo e pelo sangue, sempre presentes na vida do menino. Também tem-se a referência à descoberta do sexo e da primeira ereção, que é chamado no conto de “aquilo”, uma marca da censura; ainda, pode-se fazer relação do conto com o complexo de Édipo: o menino “nunca mais beijou a mãe”. 17. K de know-how Vilma Arêa Narração: 3ª pessoa Tempo e Espaço: tempo não definido; espaço: Rio de Janeiro Personagens: mãe e filha O termo “know-how”, do título significa, de acordo com o dicionário: habilidade adquirida; saber prático; nesse sentido, o know-how das personagens seria cuidar da vida alheia – percebe-se aí o humor da autora ao escolher esse título. O conto é narrado em terceira pessoa, mas é permeado de diálogos (a maior parte do texto é escrita em diálogos) entre uma moça e uma senhora, uma mãe e uma filha que cuidam da vida do filho da senhora e irmão da moça. Estão fazendo tricô e, enquanto tricotam, conversam O conto da mulher brasileira

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sobre a vida alheia. Primeiro é a do irmão, estava com “olheiras”, andava muito preocupado, decepcionado, sofrido; a velha teme a morte, mas a outra a tranquiliza dizendo-lhe que cuidaria dele. Olham um álbum de fotografias que está sobre a mesa e começam a tecer comentários sobre as mulheres do rapaz: – Ana como era linda! – Deixou até o marido. Nem assim ele se casou. – Tinha coxas bem lisinhas. – E a Bebé? – E a Cidilina? – E a Maria Aparecida? – Era doutora... Um dia, ele disse que iria se casar. Convidam a noiva para um almoço. A noiva será de boa família, ascendência italiana. Era preciso comprar o anel de noivado. Ele queria um de safira para combinar com os olhos da moça, Marinela; mas a irmã diz que anel de noivado deveria ser de brilhante. Ele rebate dizendo que “dessa vez” queria safira. Um dia, indo a Paquetá, ele pede a Marinela uma foto sua. Ela estranha; mas ele pede, e com uma dedicatória. Ao final do conto, as duas mulheres estão fazendo tricô, a velha olha o álbum desolada, as duas veem a foto de Marinela: – Marinela! Como era linda! – Muito linda! A mais linda de todas! Aqui, percebe-se que o rapaz teve mais um relacionamento fracassado, que ele colecionava fotos de suas namoradas e noivas e os colocava em um álbum. Mas as duas mulheres permaneciam sempre cuidando da vida dele. Elementos presentes na narrativa: Este conto é basicamente um diálogo entre mãe e filha que cuidam da vida do filho-irmão; o instrumento que as une é o tricô – elemento designado ao sexo feminino que representa um momento de fofocas “vamos tricotar”, indicando: vamos falar da vida alheia. O filho é um solteirão que nunca se casou, e isso preocupa a mãe, a qual teme a morte e não o vê perspectiva de ele tomar um rumo na vida. O rapaz se livra de muitas mulheres, mas não consegue se livrar dessas duas que possuem know-how em cuidar da vida alheia. As mulheres aqui aparecem sob a condição de abdicar de sua própria vida para cuidar da vida do filho-irmão; já as namoradas, noivas aparecem como vítimas do garanhão, que coleciona fotos de suas pretendentes. 372

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18. A coisa melhor do mundo Vivina de Assis Viana Narração: 1ª pessoa Tempo e Espaço: tempo: anos 1950, 60 e 70; espaço: indefinido Personagem principal: uma mulher, sem nome O conto está estruturado em três fases da vida da personagem: anos 1950, 1960 e 1970. O parágrafo inicia com: Eu tenho dezoito anos e faço planos. Nos anos 1950, quando tinha 18 anos, ela pensava que ter 18 anos era a melhor coisa do mundo. Tinha uma vida perfeita e era feliz: os professores gostam de mim, as pessoas com quem eu trabalho me admiram, meu namorado me adora. Ele chega cedo aos encontros, ficam de mãos dadas ouvindo João Gilberto, almoçam domingo na cidade, admiram a inteligência um do outro, escrevem e desenham um para o outro, prometem casamento um ao outro. Anos 60 – essa fase inicia com: Eu tenho trinta anos e faço planos de mulher. Os anos se passam, ela está casada, a faculdade acabou, mas continua feliz. Casara-se com o rapaz que amava, se marcam um encontro, ele não chega mais cedo, não almoçam mais na cidade aos domingos, as músicas de João Gilberto ficam cada vez mais raras, agora ouvem Caetano Veloso, ela continua admirando a inteligência dele, têm filhos – claro, para cada detalhe que se perdeu, uma desculpa: o trânsito, a falta de dinheiro, os filhos, etc. Ela pensa que a melhor coisa do mundo é deitar um corpo cansado e ouvir uma respiração também cansada, ao lado. Anos 70 – Tenho trinta e cinco anos e não faço planos de espécie alguma. As mulheres ainda estudam, mas desistiram de ser independentes, e já não se casam mais, pois têm os homens que querem. Ela se diz ser feliz, é formada, tem o marido que quis, não precisava mais trabalhar. No entanto, uma mudança profunda ocorreu: já não marcam mais encontros – ele tem gente muito mais importante para encontrar, O conto da mulher brasileira

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os almoços aos domingos são raros até em casa, João Gilberto foi substituído por outros, não é mais preciso admirar inteligências, o nome dele agora é o sobrenome, e ele faz muito sucesso; não há mais desenhos, nem escritas, nem canetas. À noite, quando vai dormir ouve apenas sons de buzinas. E eu fico pensando que não há coisas melhores no mundo. Nem coisas boas há. Elementos presentes na narrativa: Narrativa dividida em três partes e mostra a “evolução” da vida de uma mulher, como ela realmente ocorre: na mocidade, tudo são sonhos e realizações, a vida é maravilhosa e o amor colore mesmo o mais triste mundo. Com o tempo, o amor vai se desgastando, não há muito espaço para o amor, que agora é ocupado pelos filhos; por fim, o relacionamento chega a um ponto em que um precisa parar para cuidar da casa e dos filhos (nesse caso, a mulher) e o outro ascende social e profissionalmente (claro, o homem). A mulher em questão, aos dezoito anos, é inteligente, estuda, trabalha e é admirada pelo marido; aos 30, acaba a faculdade, casa-se, tem filhos, o marido “deve continuar” admirando-a, trabalha em casa; aos 35, ele segue sendo admirado, e ela para no tempo – até os filhos preferem a companhia dele à dela. A vida mudara nos anos 70 e não existe coisa melhor ou pior no mundo, o seu desencanto com a vida diz que simplesmente não há coisas boas. 19. A curiosa metamorfose pop do Senhor Plácido Zulmira Ribeiro Tavares Narração: 3ª pessoa, por um narrador onisciente Tempo e Espaço: tempo não definido; espaço: urbano Personagem principal: Sr. Plácido Sr. Plácido é gerente de uma loja de eletrodomésticos. Naquele dia, teria a tarde de folga e decidira ir à Bienal, por recomendação de um amigo entendido de arte. No entanto, ao chegar a casa e comunicar à 374

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esposa, ela lhe recordou dois outros compromissos que ele tinha: o amigo Tancredo Carvalho morrera, e ele deveria ir ao enterro (às cinco horas da tarde), e ele deveria, ainda, comprar um penico, pois tinha exame de fezes marcado. O amigo o instruíra a apreciar a obra de arte “com olhos de criança”, pois ele dissera que nada entendia de arte. Busque o “provisório”, o “precário”, o “perecível”. Sr. Plácido tenta relacionar a arte, com o penico de plástico que deveria comprar (onde encontraria?) e com a morte do amigo, que morrera de enfisema pulmonar. – Arte é vida! – disse o amigo. Mas Tancredo estava morto. E o amigo começa a lhe explicar sobre a magia da arte, que não havia limites entre a arte e a realidade e o aconselha a não ser “passivo” na hora de observar a arte: Atue! Coautoria. Participe. Na loja, sr. Plácido, constrangido, decide comprar um penico infantil rosa (para não deixar suspeitas de que seria para ele) e parte para a Bienal. Na Bienal, um amigo lhe pergunta aonde ele iria com aquele “significado” na mão (mesmo embrulhado, percebia-se o conteúdo do pacote). Sugere que sr. Plácido coloque o “negócio” entre dois catálogos do pavilhão americano. Fica preocupado, pois não consegue mexer o braço, e ele não poderia ser passivo, tinha que participar da exposição. No velório, a pergunta é: Que faz você em um enterro com catálogos do pavilhão americano? Nada. Qualquer coisa que eu fizer, o penico aparece. E segue o diálogo, não se sabe com quem, sobre a Bienal. São muitas perguntas e observações, mas Plácido estava pouco à vontade, pois não podia lhe passar o catálogo, se não o penico iria junto. O outro não entende e acha que ele está brincando, humor britânico. Em casa, a esposa não se conforma com o tamanho e a cor do penico: Mas Plácido! Onde você tem a cabeça? – Se o problema é o traseiro, que interessa a você a cabeça? Plácido está satisfeito, estivera na Bienal, agora precisava relaxar para O conto da mulher brasileira

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produzir o produto do exame. Como já estava com certa idade, custa-se a equilibrar naquela coisa rosa minúscula; sabia que algo tinha de cair, mas de preferência, não ele. Não consegue fazer cocô, lembra-se do livro de autoajuda A timidez vencida em dez lições. Começa a relacionar o pequeno penico, com os eletrodomésticos e, por fim, com a morte de Tancredo, que tinha a sua idade, quando, de repente, conseguiu, coube, os limites foram borrados. Uma coisa só. Ironicamente, uma verdadeira obra de arte! Arte e Ciência. Arte e não arte! Um puro perfeito objeto Pop (estas últimas cinco palavras são escritas como se formassem um poema, cada palavra em uma linha, dando ênfase ao aspecto visual; além do poema, também se pode imaginar o caminho vertical seguido pela arte Pop do sr. Plácido, o cocô). Elementos presentes na narrativa: O conto mostra, de maneira engraçada, as peripécias de sr. Plácido para cumprir três das suas obrigações em um só dia. Aqui tem-se um dos únicos contos cuja personagem central não é uma mulher. A narrativa mescla reflexões irônicas e associações entre Arte e Ciência, por meio de diálogos entre as personagens.

EXERCÍCIOS 1. Assinale a proposição correta, a respeito dos contos de O conto da mulher brasileira. a) O conto “HD 41”, de Anna Maria Martins, narra a história de um homem de negócios do ramo da informática que enriquece graças à exploração de seus funcionários. b) Em “Curriculum vitae”, de Julieta de Godoy Ladeira, duas universitá376

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rias encaminham seu curriculum para uma empresa e se desesperam quando encontram ossos de um anão. c) O conto “Luar no Beco”, de Maria de Lourdes Teixeira, tem como personagem central uma mulher que decepciona pelo fato de o noivo tê-la abandonado e nunca mais ter voltado ao beco onde morava. d) Em “A sagrada família”, de Nélida Piñon, a personagem casa-se com o primo com quem brigava por causa da herança, tem um filho e vê esse filho também como inimigo porque ele teria direito à herança. e) No conto “A melhor coisa do mundo”, de Viviana de Assis Miranda, uma menina narra suas histórias da infância e relembra da sua vida na fazenda, com a família. 2. Associe o enredo a cada conto. a) Um menino é protagonista dessa história; o texto é ambientado na zona rural e ele recorda de sua infância, quando apanhava dos irmãos, da mãe, do pai e relata que os hábitos da família com os quais ele não concordava. b) Conto que tem como personagem central uma mulher que narra sua vida dos anos 1950 até 1970 quando, então, com 35 anos, vê-se desiludida. c) Uma jornalista “caçadora” de homens narra uma aventura etílica e sexual na véspera de primeiro do ano. Neste conto, temos o relato de uma mulher que deixa bem clara a sua liberdade de desejo sexual. d) Dorothy é uma mulher de classe média alta. Fica indignada ao saber por uma manchete, que uma mulher, em determinado país, fora vendida por 100 bois, duzentas sacas de café e 50 cabras. e) O conto tem como protagonista a filha de um italiano em uma época de preconceito social. A elite paulistana dos anos 30 não aceitava os imigrantes italianos e a garota sofria bullying num colégio tradicional de freiras. ( ( ( (

) Port Moresby ) Aida Arouche Magnocavallo ) Relatório final ) A porca

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(

) A melhor coisa do mundo

3. Leia a síntese de alguns contos de O conto da mulher brasileira e seus títulos e, em seguida, assinale a opção correta.  I A personagem da história é gerente de uma loja de eletrodomésticos e tem três coisas a fazer: ir à Bienal, ir ao enterro do amigo Tancredo Carvalho e comprar o penico para um exame de fezes. – conto: “A curiosa metamorfose pop do Senhor Plácido”.  II Duas universitárias pobres moram no sótão de uma pensão. Anteriormente ocupado por um estudante de medicina, o lugar esconde uma caixa com ossos de anão. – conto: “As formigas”.  III A personagem cuida de um rapaz natimorto que no final a repudia; depois cuida do único moço vivo do lugar. – conto: “Relatório final”.  IV Uma mulher casada apresenta seu casamento com Fernando como uma fraude, uma encenação. – conto: “A Sra. Büchern em Lebenswald” Estão corretamente associados o enredo e o título do conto (assinale a única opção correta): a) As proposições I, II e IV. b) As proposições I e II. c) As proposições III e IV. d) As proposições II, III e IV. e) Todas as proposições. 4. O fragmento abaixo foi extraído do conto “O piano”, de Cristina Queirós. Tendo como base o conto e esse fragmento, assinale a única alternativa correta. “Tornei-me dócil e compreensiva, ou ainda, meu medo era tanto que parti para aquela espécie de fuga e desistência. Compreendi ser bem mais fácil viver assim, não causava tantos aborrecimentos, isolava-me em um quarto e pronto. Terminaram as constantes queixas a meu 378

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respeito e percebi também que seria muito mais fácil fazer cada um enxergar aquilo que pretendia. Era uma maneira de poupar-me. Foi desse modo que me converti num simples objeto de uso alheio, alienando-me de mim mesma. Descobri que a única maneira de obter permissão para passeios e outras ausências era seduzindo adultos. Por meio de pequeninas coisas comprava-lhes uma certa indulgência. Assim, colhia flores para tia Glória, apressava-me em estender-lhe a mão quando ameaçava levantar-se da cadeira, levava-lhe aspirina e chá. Pedia-lhe que me contasse histórias de sua mocidade, respondia às suas perguntas com suas próprias palavras e intercalava minhas frases com seus conceitos.” (STEEN, Edla Van (Org.). O piano. In: O conto da mulher brasileira. São Paulo: Global, 2007, p. 28)

a) Nesse conto, a protagonista é uma mulher, casada com Fernando, que sofreu muito na infância em virtude dos maus tratos das tias, mas que conseguiu recuperar sua paz interior quando se casou com Fernando. b) Em: “Assim, colhia flores para tia Glória, apressava-me em estender-lhe a mão quando ameaçava levantar-se da cadeira, levava-lhe aspirina e chá.”, cada um dos verbos grifados podem ser classificados em transitivo direto e indireto. c) No trecho: “Descobri que a única maneira de obter permissão para passeios e outras ausências era seduzindo adultos.”, o vocábulo “que” é um pronome relativo. d) A menina protagonista gostava muito de sua tia Glória, por isso cuidava tanto dela. e) No fragmento: “Terminaram as constantes queixas a meu respeito...”, o sujeito da oração é do tipo simples, queixas.

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5. Associe o enredo a cada conto. a) Este conto faz intertextualidade com a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Heloísa, a narradora, assiste a seu próprio enterro (morrera de acidente automobilístico). b) Conto de Hilda Hilst em que o narrador confunde-se com a própria linguagem; o conto aborda as temáticas da velhice e da homossexualidade. c) A protagonista, uma mulher sensata, analisa sua vida em uma noite de Natal e, como é uma época festiva, familiar, ela retoma o desejo desse sentimento de união. d) Dois primos disputam uma herança, casam-se em sociedade e têm um filho a quem declaram ser inimigos, uma vez que seria mais um a disputar o direito da herança. e) Este conto apresenta um diálogo entre mãe e filha que cuidam da vida do filho-irmão; o rapaz é um solteirão que nunca se casou, e coleciona fotos de suas namoradas e noivas em um álbum. f) Duas estudantes se hospedam em um quarto de pensão; à noite, elas veem formigas misteriosas andando pelo quarto e indo em direção a uma caixa de ossos – os insetos montam o esqueleto de um anão. g) A condição da mulher apresentada neste conto de Sônia Coutinho é a de uma mulher que procura seguir uma vida correta, dedicada ao marido, no entanto, seu sonho acaba se desfazendo na loucura e no egoísmo do outro. Ao final da narrativa, ela se mostra como um ser forte, que se refaz quando é necessário. h) O conto tem como protagonista uma mulher que estava fazendo cinquenta anos naquele dia. Iria dar um jantar aos amigos, já havia planejado tudo, só estava faltando um detalhe: não sabia fazer café e não gostava de confessar isso. Decidiu sair para comprar uma garrafa térmica. ( ( 380

) A sagrada família ) K de know-how Estudos de Textos


( ( ( ( ( (

) Em uso ) Cordélia, a caçadora ) As formigas ) Lucas, Naim ) Os mortos não têm desejos – roteiro de uma vida inútil ) Dia 24, à noite

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MELHORES

POEMAS


MELHORES POEMAS Autor: Paulo Leminski Escola literária: Literatura Contemporânea Ano de publicação: 1996 Gênero: Poesia Divisão da Obra: 3 livros (Antologia) Organizadores: Fred Góes e Álvaro Marins

O AUTOR Paulo Leminski (1944-1989) Paulo Leminski foi poeta, escritor, tradutor e professor. Nasceu em Curitiba – PR e era descendente de pai polonês e mãe africana. Sua carreira literária é bastante intensa e trabalhou diferentes estilos, tais como a poesia concreta, a poesia marginal e o haicai. Faleceu em 1989.

BIBLIOGRAFIA Principais obras: Poesia: Catatau (1976); Não Fosse Isso e Era Menos/Não Fosse Tanto/e Era Quase (1980); Caprichos e Relaxos (1983); Agora é Que São Elas (1984); Anseios Crípticos (1986); Distraídos Venceremos (1987); Guerra Dentro da Gente (1988); La Vie Em Close (1991); Metamorfose (1994); O Ex-Estranho (1996).

A ESCOLA LITERÁRIA Literatura Contemporânea A obra de Paulo Leminski se enquadra na Literatura Contemporânea e suas poesias podem ser classificadas a partir de dois movimentos literá384

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rios no Brasil e do haicai japonês. O Concretismo O Concretismo surge no Brasil a partir da publicação da revista “Noigrandes”, de autoria de três poetas: Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari e fixa-se com a Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. A poesia concreta traz uma nova concepção de arte: a valorização do aspecto visual e sonoro em detrimento do conteúdo. Assim, trabalha com textos que abolem os versos e insere figuras geométricas em seu lugar – por essa razão, os poemas eram chamados de “poema-objeto”. São característica da poesia concreta, portanto: aproveitamento do espaço do papel; valorização dos aspectos visuais e sonoros; os vocábulos são representados nos seus aspectos geométricos; abolição do verso.

A Poesia Marginal A Poesia Marginal, também chamada de “Geração Mimeógrafo”, surge na década de 1970 (bem na época da Ditadura Militar) e recebe este nome por causa de sua produção e distribuição serem feitas de maneira alternativa, ou seja, os poemas não eram publicados em livros, mas em folhas de papel mimeografados (uma produção mais barata) e em pequenas tiragens. A distribuição era realizada pelos próprios poetas nas portas dos cinemas, teatros, restaurantes, universidades entre outros. A Poesia marginal se caracteriza por ser espontânea, de dimensões reduzidas, às vezes com apelos visuais como fotografias e quadrinhos. A linguagem é do tipo coloquial e inclui muita ironia e sarcasmo, gírias, palavrões e humor. A temática gira em torno do cotidiano. Seus principais representantes são: Paulo Leminski, José Agripino de Paula, Francisco Alvim, Torquato Neto, Chacal, Cacaso e Ana Cristina Cesar.

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O Haicai O termo haicai possui derivação japonesa (haikai) e é formado pelos vocábulos hai = brincadeira, gracejo e Kai = harmonia, realização, isto é, representa um poema humorístico. É, portanto, um poema curto, de origem japonesa. O haicai japonês possui a seguinte estrutura fixa: um poema composto por 17 sílabas poéticas, assim distribuídas: 5 sílabas poéticas no primeiro verso, 7 sílabas poéticas no segundo verso e 5 sílabas poéticas no terceiro verso. Atualmente, no Brasil, o haicai não segue necessariamente esse padrão; eles podem ou não apresentar rimas e títulos, possuem uma linguagem simples, a métrica é mais livre (mas normalmente um verso é mais longo que os outros dois). Sobre a questão do número de versos, também nem todos possuem três (versos). Quanto à temática, enquanto o haicai japonês possui versos voltados à natureza, no Brasil, a variedade temática é grande, trabalha-se temas sociais, humorísticos, cotidianos e normalmente envolvem questões sentimentais e humanas. (Mais detalhes da Literatura Contemporânea, você poderá conferir na análise da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada)

ANÁLISE E SÍNTESE DA OBRA Para entender a obra de Paulo Leminski, primeiramente é preciso conhecer um pouco da trajetória do autor. Nascido em Curitiba e tendo passado boa parte da infância em Santa Catarina, Leminski foi seminarista, frequentou o Monteiro de São Bento, em São Paulo, onde estudou latim, grego e japonês (adorava a cultura oriental, praticava judô). Conheceu os mestres da poesia concreta, Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos, em 1963, em Belo Horizonte, na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda e, no ano seguinte, publica seu 386

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primeiro poema concreto na revista “Invenção”. Estava lançado o poeta concretista Paulo Leminski, com disposição para o humor. Leminski foi professor de História e Redação em cursinhos pré-vestibulares, trabalhou com publicidade e, na década de 1970, tornou-se um “poeta marginal”; além disso, escreveu letras de músicas em parceria com Caetano Veloso, Itamar Assumpção e A Cor do Som e exerceu a função de crítico literário e tradutor. Como se vê, Leminski desfilou por várias vertentes: Concretismo, Poesia Marginal, MPB, Tropicalismo, Modernismo, elementos da cultura pop e algumas características da cultura japonesa, como o haicai. O que vamos perceber na poética do autor é uma maneira própria de escrever, usando trocadilhos, rimas, ditados populares, o próprio haicai1 e, ainda, palavrões e gírias. De suas muitas leituras, Leminski recebeu influência dos simbolistas Mallarmé e Rimbaud e de vários outros poetas que seguiam na linha de ruptura com a tradição e criou uma escrita totalmente livre, mesclando os versos tradicionais do haicai japonês e a liberdade de escrita dos concretistas. Apesar de sua fase na poesia marginal, em 1970, Leminski tematizava, em alguns de seus versos, um tom mais subjetivo, sugerindo uma transcendência histórica, em vez da existência concreta; a linguagem sempre foi muito bem trabalhada e cuidadosa, e ele usa rimas em grande parte de seus versos.

Os Melhores poemas A obra Melhores poemas é uma antologia organizada por Fred Góes e Álvaro Marins e é formada por três livros do autor: Caprichos e relaxos (1983), Distraídos venceremos (1987) e La vie em close (1991). 1 - O Haicai, também chamado de “Haiku” ou “Haikai”, é um poema curto de origem japonesa. A palavra haicai é formada por dois termos “hai” (brincadeira, gracejo) e “kai” (harmonia, realização), ou seja, representa um poema humorístico. Essa forma poética foi criada no século XVI e acabou se popularizando pelo mundo. Apesar de serem poemas concisos e objetivos, os haicais são poemas que possuem grande carga poética. Os escritores que escrevem os haicais são chamados de haicaístas. (www.todamateria.com. br/o-que-e-haicai/)

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Caprichos e relaxos Da obra Caprichos e relaxos (1983), os organizadores selecionaram 72 poemas – é importante dizer que Caprichos e relaxos também é uma antologia e reúne quase vinte anos de poesia de Leminski, de 1963 a 1983. Nos poemas selecionados, podemos perceber a presença de poemas que possuem o estilo do Concretismo, da Poesia Marginal e também do haicai – são poemas que trabalham o humor, a ironia e os jogos de palavras, um verdadeiro exercício de experimentação da linguagem. Perceba, portanto, que existe aí uma certa inquietação do poeta, que trabalha um pouco de cada estilo, não se atendo a uma só corrente. Nesse contexto, outra questão interessante de se observar é que o título remete a sua escrita: os “caprichos” remetem-se à preocupação do poeta com as orientações concretas, os estudos linguísticos, a preocupação com a forma, e os “relaxos” às concepções da Poesia Marginal, por meio da espontaneidade, dos poemas curtos, do lirismo, entre outros. Veja alguns poemas que compõem essa parte: Um dia desses quero ser um dia desses quero ser um grande poeta inglês do século passado dizer ó céu ó mar ó clã ó destino lutar na índia em 1866 e sumir num naufrágio clandestino ... ali ali 388

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só ali se se alice ali se visse quanto alice viu e não disse se ali ali se dissesse quanta palavra veio e não desce ali bem ali dentro da alice só alice com alice ali se parece .............. parar de escrever parar de escrever bilhetes de felicitações como seu eu fosse camões e as ilíadas dos meus dias fossem lusíadas, rosas, vieiras, sermões .............. Melhores poemas

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entre a dívida externa entre a dívida externa e a dúvida interna meu coração comercial alterna ............ o novo o novo não me choca mais nada de novo sob o sol apenas o mesmo ovo de sempre choca o mesmo novo ............... dança da chuva senhorita chuva me concede a honra desta contradança e vamos sair por esses campos ao som da chuva que cai sobre o teclado 390

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............. aqui aqui nesta pedra alguém sentou olhando o mar o mar não parou pra ser olhado foi mar pra tudo que é lado .............. você você que a gente chama quando gama quando está com medo e mágua quando está com sede e não tem água você só você que a gente segue até que acaba em cheque ou em chamas qualquer som qualquer um pode ser tua voz Melhores poemas

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teu zum-zum-zum todo susto sob a forma de um súbito arbusto seixo solto céu revolto pode ser teu vulto ou tua volta ............. moinho de versos moinho de versos movido a vento em noites de boemia vai vir o dia quando tudo que eu diga seja poesia ............. acordo logo durmo acordo logo durmo logo nem memórias comigo mesmo daqui até dali até logo ..............

durmo acordo nem diários dialogo ali

não discuto 392

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não discuto com o destino o que pintar eu assino ............ acordei bemol acordei bemol tudo estava sustenido sol fazia só não fazia sentido ............ por um fio por um fio o fio foi-se o fio da foice

Distraídos venceremos Da obra Distraídos venceremos (1987), foram selecionados 62 poemas. Já nessa obra, percebemos uma diferença com aquela primeira: vemos um Leminski mais “unificado” na forma. Aqui foram reunidos poemas escritos para a imprensa, sem o tom político de outrora. Isso já pode ser reparado a partir do próprio título, que substitui a frase “unidos venceremos”, que nos remete ao engajamento, à força coletiva, a um Melhores poemas

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ponto único por “distraídos venceremos”, que indica justamente o contrário, uma multiplicidade de significados que cada palavra possui dentro da poesia; ele parece desejar a liberdade para ultrapassar os limites ou simplesmente ignorá-los. Nessa obra, vemos uma preocupação maior do autor para com a forma, com a construção de um verso mais preciso do que com a espontaneidade. Veja alguns poemas que compõem essa parte: aviso aos náufragos Esta página, por exemplo, não nasceu para ser lida. Nasceu para ser pálida, um mero plágio da Ilíada, alguma coisa que cala, folha que volta pro galho, muito depois de caída. Nasceu para ser praia, quem sabe Andrômeda, Antártida Himalaia, sílaba sentida, nasceu para ser última a que não nasceu ainda. Palavras trazidas de longe pelas águas do Nilo, um dia, esta página, papiro, vai ter que ser traduzida, para o símbolo, para o sânscrito, para todos os dialetos da Índia, vai ter que dizer bom-dia ao que só se diz ao pé do ouvido, vai ter que ser a brusca pedra 394

Estudos de Textos


onde alguém deixou cair o vidro. Não é assim que é a vida? ............. além alma (uma grama depois) Meu coração lá de longe faz sinal que quer voltar. Já no peito trago em bronze: NÃO TEM VAGA NEM LUGAR. Pra que me serve um negócio que não cessa de bater? Mais parece um relógio que acaba de enlouquecer. Pra que é que eu quero quem chora, se estou tão bem assim, e o vazio que vai lá fora cai macio dentro de mim? .............. desencontrários Mandei a palavra rimar, ela não me obedeceu. Falou em mar, em céu, em rosa, em grego, em silêncio, em prosa. Parecia fora de si, a sílaba silenciosa. Mandei a frase sonhar, e ela se foi num labirinto. Fazer poesia, eu sinto, apenas isso. Dar ordens a um exército, Melhores poemas

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para conquistar um império extinto. ............... o náufrago náugrafo a letra A a funda no A tlântico e pacífico com templo a luta entre a rápida letra e o oceano lento assim fundo e me afundo de todos os náufragos náugrafo o náufrago mais profundo ........... marginal é quem escreve à margem Marginal é quem escreve à margem, deixando branca a página para que a paisagem passe e deixe tudo claro à sua passagem. Marginal, escrever na entrelinha, sem nunca saber direito quem veio primeiro, 396

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o ovo ou a galinha. ........... . era uma vez o sol nascente me fecha os olhos até eu virar japonês

La vie en close Da obra La vie en close, publicada em 1991, por Alice Ruiz, escritora e esposa de Leminski, após a morte do escritor, foram extraídos 45 poemas. A obra revela uma tendência autobiográfica (Leminski já estava muito doente e sabia que não tinha muito tempo de vida), mas com muita vitalidade. Surgem alguns poemas mais visuais e a forte presença dos haicais remonta à ideia de uma poesia mais espontânea. O título da obra remete à música da francesa Edith Piaf, “La vie em rose”, mas em vez de “rose”, ele faz o trocadilho com “close”, ou seja, a vida está se fechando para ele – Leminski parece preparar seu leitor para o seu fim. E aí temos poemas com títulos que fazem menção ao “close”, tais como: “Lápide 1”; “Lápide 2”; “Esta vida é uma viagem”; “Vida e morte”. Veja alguns poemas dessa obra: sossegue coração sossegue coração ainda não é agora a confusão prossegue sonhos afora Melhores poemas

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calma calma logo mais a gente goza perto do osso a carne é mais gostosa .......... voyage au bout de la nuit o peito ensangüentado de verdades rolo na rua esta cabeça calva e cega não serve mais ao diabo que a carrega ................ profissão de febre quando chove, eu chovo, faz sol, eu faço, de noite, anoiteço, tem deus, eu rezo, não tem, esqueço, chove de novo, de novo, chovo, assobio no vento, daqui me vejo, lá vou eu, gesto no movimento 398

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................ o bicho alfabeto o bicho alfabeto tem vinte e três patas ou quase por onde ele passa nascem palavras e frases com frases se fazem asas palavras o vento leve o bicho alfabeto passa fica o que não se escreve .............. lápide 1 epitáfio para o corpo Aqui jaz um grande poeta. Nada deixou escrito. Este silêncio, acredito, são suas obras completas. .......... lápide 2 Melhores poemas

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epitรกfio para a alma aqui jaz um artista mestre em desastres viver com a intensidade da arte levou-o ao infarte deus tenha pena dos seus disfarces ............ insular mil milhas de treva cercadas de mรกgua por todos os fados .......... morreu o periquito morreu o periquito a gaiola vazia esconde um grito

EXERCร CIOS 1. Leia o haicai abaixo, de Leminski, e assinale a alternativa INCORRETA sobre esse tipo de poesia: 400

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vida e morte amor e dúvida dor e sorte quem for louco que volte

Paulo Leminski

a) O haicai é um poema de origem japonesa, que possui forma fixa, composto por dezessete sílabas poéticas. b) Nesse poema, os opostos não são vistos como complementos, mas como tensão insuportável. Uma vida é o bastante para passar por isso tudo. Nada de reencarnação. c) O haicai japonês geralmente focaliza um aspecto da natureza. d) O poema é composto de cinco versos e percebe-se a presença da métrica perfeita e de rima. e) O haicai tem poucas palavras e há predominância de substantivos. 2. (ENEM-2009) A poesia que floresceu nos anos 70 do século XX é inquieta, anárquica, contestadora. A “poesia marginal”, como ficou conhecida, não se filia a nenhuma estética literária em particular, embora seja possível ver nela traços de algumas vanguardas que a precederam, como no poema a seguir. S.O.S Chacal (...) nós que não somos médicos psiquiatras nem ao menos bons cristãos nos dedicamos a salvar pessoas que como nós sofrem de um mal misterioso: o sufoco CAMPEDELLI, Samira Y. Poesia Marginal dos Anos 70. São Paulo: Scipione, 1995 (adaptado).

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a) utilizou com frequência versos metrificados e temas românticos. b) recuperou traços da produção de vanguarda modernista. c) atribuiu ao espaço poético um lugar de fuga e escapismo. d) eliminou o diálogo com as artes visuais e as artes plásticas. e) valorizou a linguagem poética das formas consagradas. 3. Leia o poema abaixo, de Paulo Leminski, e assinale a assertiva verdadeira: um dia desses quero ser um grande poeta inglês do século passado dizer ó céu ó mar ó clã ó destino lutar na índia em 1866 e sumir num naufrágio clandestino Paulo Leminski

a) O poema apresentado é um haicai e pertence à literatura marginal. b) Apesar da presença de características românticas como o escapismo, a essência poética ironiza o sentimentalismo impregnado na estética romântica. c) No poema, não há uma distorção do sentimentalismo romântico em prol do sarcasmo poético. d) O poema apresenta-se com certo rigor formal, característica do autor, trabalhando rimas e versos pentassílabos. e) O eu-lírico valoriza o lirismo romântico presente na fase ultrarromântica e o transpassa para a época contemporânea. 4. Sobre Paulo Leminski e sua poesia, assinale a alternativa INCORRETA. a) Não existe negação ao lirismo, mas uma nova perspectiva lírica na poesia de Leminski, regada por uma sátira, que lhe é peculiar e ino402

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vadora. b) Levando em consideração a relação entre literatura e realidade, podemos afirmar que os textos de Leminski evocam uma inadequação amorosa, uma caricatura moderna das situações passionais. c) Embora fosse poeta multifacetado, Leminski teve sempre como marca registrada do seu fazer literário a sátira, cujo objetivo era debochar de situações sentimentais do eu. d) A arte literária de Paulo Leminski procura comunicar, em poucos versos, e por meio do jogo de palavras, a inversão propositada do lirismo por meio da sátira de costumes e ideias. e) Leminski sempre se caracterizou por buscar no cânone sua forma literária e, a partir daí, ironizar a visão da sociedade em relação às questões peculiares a um lirismo quase sempre paradigmático, cultuado em outros momentos da literatura brasileira. 5. Leia o poema “Despropósito geral”, do livro Distraídos venceremos, de Paulo Leminski, para responder à questão. Despropósito geral Esse estranho hábito, escrever obras-primas, não me veio rápido. Custou-me rimas. Umas, paguei caro, Liras, vidas, preços máximos. Umas, foi fácil. Outras, nem falo. Me lembro duma Que desfiz a socos. Duas, em suma. Bati mais um pouco. Esse estranho abuso, Adquiri, faz séculos. Aos outros, as músicas. Eu, senhor, sou todo ecos. Melhores poemas

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I O poema revela que “esse estranho abuso” (verso 13), Leminski adquiriu há séculos, reconhecendo o valor atribuído aos autores que antes dele também debruçaram-se sobre o fazer poético.  II A leitura dos dois últimos versos pode ser interpretada dessa maneira: Leminski atribui aos outros (aos poetas) o exercício musical, para que eles deem sentido à vida e ao mundo.  III O poema trabalha o fazer poético.  IV A linguagem utilizada no poema é própria da geração marginal: uma linguagem simples, de fácil entendimento, porém formal. Estão corretas (assinale a única alternativa verdadeira): a) As proposições I, II e III. b) As proposições II, III e IV. c) Apenas as proposições I e II. d) Apenas as proposições I, II e IV. e) Todas as proposições são corretas.

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QUARENTA

DIAS


QUARENTA DIAS Autora: Maria Valéria Rezende Escola literária: Literatura Contemporânea Ano de publicação: 2014 Gênero: Romance Divisão da Obra: várias partes (capítulos) não numerados Local em que passa a história: Porto Alegre – RS e João Pessoa – PB Temas: solidão, exclusão social, idoso, moradores de rua, imigrante, choque cultural, comportamento humano (egoísmo, loucura, processo de perdão)

A AUTORA Maria Valéria Rezende (1942) Nasceu em 1942, em Santos (SP), onde viveu até os 18 anos. Integrou a direção nacional da Juventude Estudantil Católica e, após o golpe de 1964, abrigou na sua casa militantes que lutavam contra o regime militar. Em 1965, entrou para a Congregação de Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho. Dedicou-se sempre à educação popular, primeiro na periferia de São Paulo e, a partir de 1972, no Nordeste. Formada em Língua e Literatura Francesa e Pedagogia, e mestre em Sociologia, trabalhou durante 20 anos como educadora em movimentos e organizações populares urbanas e rurais e na formação de educadores. Viveu no meio rural de Pernambuco e da Paraíba e, desde 1986, mora em João Pessoa. Escreve romances, contos, crônicas e literatura infantil e juvenil.

BIBLIOGRAFIA Romances: O Voo da Guará Vermelha (2005); Quarenta Dias (2014); Outros cantos (2016). Contos e Crônicas: Modo de Apanhar Pássaros à Mão (2006); A face 406

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serena (2008). Infantil e Juvenil: O Arqueólogo do Futuro (2006); O Problema do Pato (2007); Jardim de Menino Poeta (2012); Uma Aventura Animal (2013); e outros.

A ESCOLA LITERÁRIA Literatura contemporânea (a partir de 1960) Ver dados sobre essa escola literária na análise da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada.

PERSONAGENS Alice – personagem narradora, nasceu em Boi Velho – Paraíba, tem cerca de 60 anos, viúva de um desaparecido político e professora de línguas. Aldenora / Norinha – filha única de Alice; tem 33 anos, faz doutorado na UFRGS, em Porto Alegre (1ª fase do curso) é egoísta e mimada. Obriga a mãe a se mudar de João Pessoa para Porto Alegre para cuidar do filho que ainda nem nasceu. Umberto – marido de Norinha, 35 anos, faz doutorado na UFRGS, em Porto Alegre (já defendendo a tese) Aldenor - marido de Alice e pai de Norinha; é um desaparecido político – ele aparece na história somente na lembrança de Alice. Elizete – prima de Alice que mora em João Pessoa – totalmente influenciada por Norinha; é o contato de Alice entre a Paraíba e o Rio Grande do Sul.

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Milena – faxineira de Alice, assim “brasileirinha” (do nordeste do país) como a patroa. Lola, Arturo, Penha, Galo e outros – pessoas que Alice encontra nas ruas de Porto Alegre. Cícero Araújo – filho de uma manicure conhecida de Alice que morava em João Pessoa e se mudara para Porto Alegre, mas nunca mais havia dado notícia.

SÍNTESE DA OBRA Alice diz que agora sabe por que cismara em trazer aquele caderno com a capa da Barbie em sua mudança, um caderno velho vazio de trezentas folhas amareladas. Relembra, com tristeza, que durante a mudança, sua filha Norinha, e Elizete, sua prima, jogaram fora muitas coisas suas, dizendo que eram quinquilharias. Elizete dizia que conseguiriam algum dinheiro vendendo os bens de Alice, mas daria para pagar a viagem até Porto Alegre e uns trocados pra farrar... Farrar, eu? Elizete implicou também com o caderno da Barbie... queria vendê-lo. Aqui sabemos que Alice era professora e tinha duas aposentadorias (uma do Estado, outra das aulas de francês). Mas Alice recusou-se a entregar o caderno. Quis tomar o controle daquela minha vida, já escapando feito água usada pelo ralo desde que me decidi, ou cedi?, a pedir o raio da segunda aposentadoria. O caderno vai na bagagem por pura teimosia, mas com um destino oculto, tábua de salvação pra me resgatar do meio dessa confusão que me engoliu. *** Entrei neste apartamento – ainda não consigo dizer “em casa”, tento, 408

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mas não há jeito, com todos esses sentimentos acumulados por quarenta dias. Alice pega o caderno e começa a “vomitar” seus sentimentos, pensa em colocar tudo pra fora e esconjurar toda essa gente que tomou conta de mim e grita e anda pra lá e pra cá e chora e xinga e gargalha e geme e mija e sorri e caga e fede e canta e arenga e escarra e fala e fode e fala e vende e fala e sangra e se vende e sonha e morre e ressuscita sem parar. Alice sente no caderno sua tábua de salvação, a maneira de ela, como professora, voltar-se à velha conhecida escrita. ** Começa a rever o material coletado nas ruas e sebos e parte para a escritura. Repara que a casa está arrumada, que a empregada Milena, mesmo há quarenta dias sem receber, tem vindo limpá-la. Relembra de que quando chegou à portaria, quarenta dias fora, o porteiro a olhou assustado. Quarenta dias. Acabo de sair da quarentena. Não planejei nada, caí lá sem querer, sem me dar conta de que aquilo podia ser a barca do inferno. Alice reflete se não seria melhor, em vez de tinta, colocar fogo em suas lembranças, agora transcritas no papel (ou seja, acabar com tudo de vez). Mas, por onde começar? Por sua vida desde a infância, em que perdera os avós adotivos e a tia enchia sua paciência? Pelo namoro e casamento com Aldenor e pela filha (Aldenora, a Norinha) que teve com ele, em nada parecida com ela? Pelo sumiço do marido? Pela viagem de Norinha para o Sul? Nada disso lhe interessava. Iria descansar e no dia seguinte pensaria... ** Alice não consegue dormir à noite, e lembranças começam a vir em sua cabeça. Lembra episódios em que a filha Norinha reflete todo seu egoísmo, esquecendo a mãe. Já enchi páginas e não achei o começo. Deixe de embromar, Alice, confesse que o broto desse espinheiro que Quarenta dias

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cresceu dentro de você foi a revelação do egoísmo da sua filha. Foi isso. Diga à Barbie o que você está sem coragem de dizer a si mesma. Diga ** Alice pensa no começo... Nas férias de inverno do ano anterior, quando o genro voltara para Porto Alegre (fazia doutorado), a filha anuncia que queria engravidar: Chegou a hora da senhora virar avó! e que tudo dependeria de Alice. Para Norinha, engravidar era ato de muita responsabilidade e ela precisava estar segura de que a avó iria cuidar do filho. Em resumo, o certo pra ela era que eu, afinal, já tinha chegado ao fim da minha vida própria, agora o que me restava era reduzir-me a avó. ** Alice tenta se recordar do início de tudo e recorda a conspiração e chantagem que a filha lhe aplicou para que ela se mudasse para o sul. Armou uma cilada para a mãe, que resistia em vir, e juntou toda a família na festa de primeiro do ano (época em que as pessoas estão mais sensíveis) e todos começaram a cobrar: Você vai pra Porto Alegre, sim, e não se discute mais isso, é sua obrigação acompanhar sua filha única, só você que não aceita, parece um jumento empacado na lama. Eu cedi vergonhosamente. Foi isso. O resto é consequência. ** E começa a mudança. Elizete, a “comparsa-mor” de Norinha se meteu a fazer tudo. Decidia por Alice o que iria jogar fora ou vender ao brechó. Era humilhante o que a moça fazia com os pertences e lembranças de Alice. Na primavera, Alice se mudou. Sentia-se a verdadeira Alice no país das maravilhas, encolhendo, encolhendo cada vez mais em sua existência. Em Porto Alegre, a filha e o marido a recepcionaram; Alice parecia uma morta viva. Já não tinha vida própria, era “levada”, tinha a sensação de que “uma grande arapuca” se fechava à sua volta. Sentiu-se de novo a personagem Alice, diminuída. Ao final, confessa ao caderno sua vergo410

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nha em ter aceitado aquilo. ** Alice não tinha ânimo para nada. Tinha de ir ao banco, fazer compras, mas cadê ânimo? Olha para aquele apartamento, uma “gaiola alvinegra”, tudo branco e preto, decorado pela filha e que ela detestava. Sentia saudades de seu velho apartamento em Cabo Branco, Paraíba. Naquela sua primeira manhã no apartamento, surpreendeu-se, Norinha tinha a cópia da chave. A filha entrou com compras e com uma quentinha e fez questão de dizer à mãe a trabalheira que dera comprar tudo aquilo, “depois a gente se acerta”, não precisa pagar nada agora. Isso é pra abastecer a despensa de minha Maínha adorada, que vai ser tratada como uma duquesa pela filhinha preferida! Alice odiou aquela frase... Aquele “duquesa” ficou soando com ressonâncias sinistras... Se Norinha esperava agradecimento por todo o seu “sacrifício”, enganou-se. Alice ficou calada, só ouvindo a filha e odiando cada palavra que ela dizia. Quando Norinha ia saindo, Alice pede sua cópia da chave com o pretexto de fazer uma cópia à faxineira. Contrariada, Norinha deixou a cópia de sua chave ali. ** O almoço ficou o dia inteiro ali, e Alice só mexeu nele à noite. Foi dormir. No dia seguinte, acordou disposta a “voltar ao normal”, voltar a ser a professora Poli, de sempre. Paciência, “O que não tem remédio, remediado está”. Começou a desmanchar suas malas, arrumar tudo. A filha ligou dizendo que estava muito ocupada, que não poderia ir ali; o genro também – ela deu graças a Deus, principalmente porque ele falava num linguajar gaúcho: muitos bahs e trilegal. Enfim, aos poucos voltava a ser a Alice de antes. ** Alice brinca um pouco com o sotaque gauchês, não entendia muito, Quarenta dias

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mas aprendeu a gostar. No terceiro dia ali, voltou a arrumar suas coisas e viu que precisava de uma faxineira. Falou com o zelador; ele encaminhou-lhe uma mulher. Ao abrir a porta, Alice se deparou com uma moça “alourada” e estranha, mal encarada. Ficou na porta, não quis entrar, olhou para Alice e disse que não tinha tempo para faxinas. Foi embora. Alice estranhou, claro. O porteiro buscaria outra. Tentando seguir uma vida “normal”, Alice pensa em sua filha; estava há três dias ali e não tinha visto a casa da filha e nem tinha sido convidada a ir lá. Deixa pra lá, iria seguir sua vida normalmente. ** Quarto dia em Porto Alegre e Alice seguia animada; estava voltando a ser a “Alice antiga”. Naquele dia, o porteiro interfonou que estaria subindo uma diarista para falar com ela. Disse que dessa ela iria gostar, pois ela é brasileirinha assim como a senhora. Alice ficou intrigada: o que seria uma pessoa “brasileirinha” como ela? Ao chegar a moça, ela entendeu. Milena era uma mulata bonita e baiana – isso era ser “brasileirinha”. Milena já chegou arrumando as coisas, conversando com Alice e contando-lhe toda a sua vida enquanto arrumava a casa. Estava admitida e, naquele dia mesmo, a patroa lhe deu as chaves do apartamento. ** No final de tarde, Norinha ligou toda solícita para a mãe; o marido iria buscar a “maínha” para que ela conhecesse sua casa e para jantarem juntos. Que remédio senão obedecer? Eu já estava pegando o jeito de me comportar como filha da minha filha. Lá chegando, uma adulação total. Maínha pra cá, maínha pra lá, Norinha falando e respondendo ela mesma, sem dar direito de voz à mãe... até que abriram o jogo: iriam para a Europa em menos de uma semana e ficariam por lá por seis ou oito meses. Alice ouviu aquilo chocada. Saiu, bateu a porta, sumiu até se perder; chamou um táxi e foi para casa estarrecida. O telefone tocou, tocou, 412

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tocou. Chega, por hoje, Barbie. O resto que vem é pesado que só! ** Ao adormecer (ou estaria acordada entorpecida?), Alice tem recordações da filha jovem, que já a maltratava com seu egoísmo. Inventara uma tal TPM. Alice reflete sobre a situação e acha isso uma grande besteira; também ela, a mãe, a avó passaram por isso e nunca tiveram um “cuidado” especial por causa da época da menstruação. Pra mim sempre será mesmo só falta de educação tratar mal a quem quer que seja, em qualquer dia do ciclo, que TPM que nada! Acho que vou lançar um novo significado pra sigla: Tolerância pra Malcriadas. Uma onda de raiva tomou conta dela e começou a berrar de ódio na cama. Até o porteiro interfonou para ver se ela estava bem. De manhã, acordou com um plano pronto na cabeça, plano de defesa cerrada. Levantou-se, pegou uma mala e casaco e saiu. Falou ao porteiro que iria para Jaguarão para a casa de uma amiga; que se a filha a procurasse ou ligasse, que era para dizer que o chip do celular havia estragado, que ligaria para ela assim que comprasse outro. Mas Alice não saiu. Escondeu-se e assim que o porteiro deixou a portaria, ela entrou sorrateiramente, voltou para casa. O telefone começa a tocar sem parar, o dia todo, a campainha desesperada, uma vez o interfone, mil vezes o telefone. Alice tinha entrado pelos livros adentro, caído num poço profundo, passado pra outro mundo louco, um “wonderland” qualquer de onde esta Alice não pretendia voltar tão cedo ** Alice ficou isolada do mundo por cinco dias, só escrevendo, até que, neste quinto dia, ouviu barulho de chave na maçaneta, era Milena. Ela havia se esquecido de que a faxineira tinha a cópia da chave. Ao ser interrogada, Alice diz que havia chegado há pouco. A faxineira cuida dela, dizendo que ela estava com aquela aparência adoentada por causa de uma gripe. Pediu a Milena que não avisasse ao porteiro que havia Quarenta dias

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chegado. A moça concordou. ** No sétimo dia de enclausuramento, o telefone volta a tocar, era Elizete. A parente pedia-lhe que procurasse em Porto Alegre por um rapaz, filho de uma conhecida delas em João Pessoa, Cícero Araújo, que nunca mais havia feito contato. Da última vez em que se falaram, ele havia dito que morava na Vila Maria Degolada (‘vila”, em gauchês quer dizer favela). Alice viu naquela situação a chave para sua liberdade. Arrumou uma pequena bolsa de viagem e saiu a esmo, com a desculpa de ir em busca de Cícero. ** Alice ganhou as ruas. Parou em um boteco, pediu café e uma coxinha, que estava bem gordurosa; pediu informação ao dono do bar sobre a Vila Maria Degolada. Ele explicou, ficava próximo ao hospício, ela voltou a caminhar. Pedindo informações aqui e ali, chegou à tal favela. Nesse momento, parou de escrever, iria deixar Barbie descansar. Continuaria a escrita no dia seguinte. ** No dia seguinte, Milena veio fazer faxina. “Ô Dona Alice, andou por onde, sem levar roupa nem mala?” Relata que havia ficado preocupada com o sumiço da patroa, que procurava todos os dias nas páginas policiais para ver se descobria algo. Alice adorou o abraço e a franqueza de Milena, mas deu uma desculpa qualquer para seu sumiço: havia encontrado uns amigos da Paraíba e estava com eles. Voltou à narrativa do caderno: Alice começou a andar pelo lugar até que viu uma ladeira, resolveu subir. O sol já começava a queimar-lhe as costas. Encontrou duas moradoras, perguntou se ali era a Vila da Maria Degolada. “É aqui mesmo, tudo aqui é Vila Maria as Conceição, A capelinha, se tu veio rezar, é lá mais para cima, no alto, Veio fazer 414

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promessa? Tu não é daqui, né?” Dito isso, começou um ajuntamento de pessoas e uma grande discussão acerca da lenda que girava em torno da santa da capelinha; uns diziam que era uma prostituta que se arrependeu dos pecados e veio um homem e decepou-lhe a cabeça, outros não acreditavam na história; outros diziam, ainda, que a menina era uma virgem que subia todos os dias o morro para trazer comida ao pai que lá trabalhava e um soldado a teria degolado e, depois, estuprado; uns diziam que se chamava Conceição, outros Maria Francelina e que isso aconteceu lá nos 1800. Enfim, travou-se uma discussão sobre a lenda que trazia fieis àquele morro, para ir pagar promessas e rezar na capela. Alice ficou zonza com tudo aquilo. Muito tempo depois, conseguiu dizer que procurava por Cícero Araújo. Desinteressado, o povo dispersou; mas daí ela apelou para o sofrimento da mãe que nunca mais vira o filho; alguns piedosos voltaram para ajudá-la. Mas ninguém conhecia o tal Cícero. Ali seria muito difícil encontrá-lo, pois havia cerca de vinte mil pessoas na região. Alice para de escrever, estava cansada. E diz para Barbie: “ainda tem muita ladeira pra subir e descer nesta história, se prepare, americaninha.” ** Naquele dia, Alice acordara de bom humor. Deu bom dia a Barbie, em inglês, depois em francês. E começa a escrever... Adelaida, uma moradora do morro oferecera-se para ajudá-la, conhecia tudo e todos naquele morro. Subiram, subiram, subiram, perguntavam a todos; Adelaida dramatizava ainda mais a história da mãe sofredora e do pobre rapaz que sumira, tão bonzinho. Alice sentia-se bem, até esquecera a história de Norinha; perto de toda a desgraça que contara aquela gente sofrida, o problema dela com a filha era mínimo. Andaram, foram até a capelinha, Adelaida fez Alice prometer coisas à santa, depois foram falar com a pessoa que mandava no morro. Não conhecia o tal Cícero e disse que por ali ele não morava. Era para ela ir à Vila João Pessoa e falar com o Careca. Deveria dizer que foi o Paulão Quarenta dias

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quem a mandara lá. Adelaida vai embora, e Alice desce o morro. Já eram quatro horas da tarde, e ela estava andando desde as 7h. Foi pegar o ônibus para ir à Vila João Pessoa, que ficava em frente à PUC. Para a escritura. Conversa com Barbie. E relata que é ciente de que a Barbie é só um recurso mentiroso para eu me sentir em comunicação com alguém. ** Bonjour, mudinha, continue quieta, abra apenas suas páginas que eu vou contando. Chegou à Vila procurada e repetiu-se a mesma história na busca por Cícero; uma moradora tentou ajudá-la, e eles iam indicando possíveis lugares em que poderia estar o rapaz sumido. Alice ouvia histórias sobre o sumiço das pessoas e tomava consciência de que era isso o que eu mesma queria e estava fazendo, não dar mais notícias. Fez amizade com uma moça da floricultura, conversou um pouco com ela até que ela fechasse a loja. Já passava das cinco horas da tarde. Agora paro, Barbie. Não se anime pra voltar às suas futilidades, não, viu?, estou só começando, estou só no primeiro dia e ainda ** Alice continuou sua caminhada e encontrou pessoas boas e ruins; todos os que encontrava, perguntava por Cícero. Quase foi assaltada/violentada por um trio de mendigos. Saiu correndo. De repente, lembrou-se de que nem seu endereço não sabia de cor – estava realmente perdida. Quando chegou a um dormitório de homens que trabalhavam em construção, contou a história da mãe sofrida; ninguém conhecia Cícero, mas lembram que no dia anterior, um rapaz tivera um acidente e o SAMU veio buscá-lo. Não sabiam o nome, era novo ali. Disseram que estava no hospital. A fim de continuar sua peregrinação para o nada, Alice saiu da favela e foi em direção ao hospital, o qual nem sabia onde era. 416

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Pronto Barbie, à próxima parada, que vai durar uma noite inteira, você só vai chegar amanhã. ** No dia seguinte, começa a escrever. Pegou um ônibus, sentou novamente no banco da frente, bem desavergonhada. Já era noite. Dormiu ali no banco do ônibus. Um solavanco a despertou; sentiu vontade de conversar. Nisso entrou uma velhinha, e ela puxou assunto. Contou à senhora sobre sua jornada em busca de Cícero Araújo; iria para o pronto-socorro. A velhinha também relatou um pouco de sua biografia, morava de favor com a sobrinha, iria cuidar de outra idosa durante a noite para ajudar nas despesas da casa. Alice chegou, enfim, a seu destino. Foi até a recepção, um lugar grande, cheio de gente e de bancos. Aguardou sua vez, contou sua história, que se misturava à de Cícero; a moça se apiedou, procurou em todas as emergências das proximidades, mas nada do rapaz. Alice saiu dali; estava morrendo de fome, foi comer pipoca. Engasgou-se, uma moça a ajudou com um copo de água. Depois disso, voltou para dentro da emergência, onde dormiu a noite toda sentada em um banco. Acordou já eram 6h30min. O movimento já era grande. Viu dois médicos conversando e começa a pensar que hoje em dia já não existiam mais médicos como antigamente, que cuidavam de todo o corpo. Hoje há “engenheiros de órgãos isolados”, cada qual responsável por apenas um pedacinho do corpo. Alice acaba sua narrativa, dizendo a Barbie que havia ainda 39 dias pela frente para contar ou desistir de contar. Iria sair para fazer compras e depois voltar para casa. Eita! Reparou? Acho que foi a primeira vez que chamei de casa esse tabuleiro de xadrez. ** Alice continua a narrativa de seu segundo dia na rua. Levantou-se, foi ao banheiro, lavou o rosto, escovou os dentes e, com guardanapos, tomou seu “banho de gato”. Saiu do pronto-socorro e foi em direção Quarenta dias

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a uma padaria. Bem longe dali, encontrou-a. Catando moedas na bolsa para conseguir comprar seu pão, ouviu o simpático atendente perguntar a ela: “Está com fome? Quer um cacetinho?” Alice não sabia que o pão francês era chamado de “cacetinho” pelos gaúchos e sentiu-se ofendida. Quase xingou o rapaz, mas uma moça passou na sua frente e pediu “meia dúzia de cacetinhos bem assados”. Daí ela entendeu e pediu um cacetinho na chapa e um café com leite. Como o café veio muito branco, ela pediu a gentileza de um “tiquinho” mais de café. O atendente riu e disse a ela que “tiquinho”, em Porto Alegre, era outra coisa, que era melhor ela dizer um pouquinho. Eles riram; ela contou sobre o cacetinho, que na Paraíba também queria dizer outra coisa. Ao sair dali, não sabia para onde iria. Ao Instituto Médico Legal, como sugerira a moça do pronto-socorro é que não, pois não iria incomodar os mortos com sua mentira. Voltou para o Hospital e ficou lá nas escadas, como tanta gente... Ouvira falar que por ali tinha um parque... ** Alice conversa com Barbie e diz que dormira bem na suíte daquele apartamento que estava se esforçando para aceitá-lo como seu. Volta a escrever. Andou a ermo e, sem querer, acabou chegando ao parque. Achou uma árvore e dormiu em seus braços. Acordou com um cão lambendo sua perna – a menina que estava com ele disse: “não faz isso, deixa a pobre dormir, coitadinha, que ela não tem casa.” Alice ficou pensando nisso... viu muitas pessoas na praça, inclusive “avós profissionais”, pensava. Ficara ali por muito tempo. Saiu caminhando, ficou pensando nos avós dela, na mãe, que morrera logo depois do parto; no pai, que sumira mundo afora. Queria procurar um caixa eletrônico para ver se ainda tinha algum dinheiro, encontrar uma casa de celulares para ver se conseguia colocar um pouco de carga no seu... ligaria para Elizete, pediria o endereço e voltaria para casa. Caminhando, entrou em uma loja de R$1,99. Comprou alguns livros e uma mochila de rodinhas e continuou a andar, agora mais leve, sem muito peso nos braços. Encontrou uma 418

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loja de celulares; o rapaz colocaria uma carga para ela. Ela sentou para esperar, comprou um cachorro-quente e dormiu ali mesmo. O rapaz a acordou mais tarde; bateria com carga. Continuou caminhando, passou pela Universidade Federal, temeu encontrar Nora e o marido... besteira, a essas horas eles já estariam na Europa. Caminhou mais um pouco e foi parar em uma pracinha, perto da Santa Casa. Sentiu-se aliviada, quem sabe haveria lá também um saguão para ela passar a noite? Para de escrever. Fala com Barbie. Já começa a gostar da torradeira que a filha comprara e diz que já não tem tido mais sonhos agitados. ** Alice volta a escrever. Ficara na praça com nome de bispo até pouco mais de 4 horas da tarde, depois começou a andar e foi parar em um sebo – tinha esse hábito em João Pessoa. Ficou lá no fundo, sentada em uma pequena escada, lendo alguns livros; queria anotar uma frase, mas não tinha papel; conseguiu guardanapos. Sentiu saudades de Paris, onde ficara três meses com uma bolsa da Aliança francesa – a bolsa era de um ano, mas não quis deixar Nora sozinha com a tia por muito tempo. Por ironia do destino, agora a filha a deixava sozinha, “sem uma tia sequer”. Saiu do Sebo, a loja estava fechando; tinha vontade de dormir ali em cima dos livros... Achou um “hotel”, lugar bem pobre; quando foi solicitar uma diária, viu o tipo de clientela e desistiu. ** Sem destino, Alice caminha pelas ruas e chega até a Rodoviária. Muito maior e mais chique que a de João Pessoa – tinha até sala VIP, igual a dos aeroportos. Precisava tomar um banho, trocar a calcinha, pelo menos. Como havia várias lojinhas, foi até lá, mas as calcinhas que vendiam eram do tipo sexy, e ela precisava de algo confortável, de algodão. Confortável só mesmo cuecas, disse a moça. Alice já não lembrava mais como eram cuecas, afinal, o marido desaparecera há anos e, desde então, o assunto não mais lhe interessou. Acabou comprando, eram muito mais confortáQuarenta dias

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veis; comprou também meias e uma toalha e foi tomar banho. Debaixo da água, lembrou-se que não tinha sabão nem sabonete; mas não fazia mal, aquilo ali já era um luxo. Tomaria um banho demorado, depois iria comer algo, escovar os dentes e arrumar lugar para dormir. ** Terminou o banho, ficou com pena de jogar sua calcinha e meias fora, então lavou e pendurou-as em sua mochila. Foi jantar em um barzinho bem simples ali mesmo na rodoviária. Para seu espanto, a dona era uma paraibana também. Jantou, conversou com a moça, contou parte de sua vida e a procura por Cícero Araújo. A mulher tinha um filho que jogava futebol com vários paraibanos, quem sabe ele não conhecia Cícero? Passou-lhe o endereço e seu número de celular. Deveria ligar, pois ela iria falar com o filho. Alice saiu dali, procurou um banco e dormiu por ali mesmo. No dia seguinte, voltou ao bar e tomou um café. Saiu da rodoviária, voltou àquela pracinha com nome de bispo e estendeu suas roupas na grama, para secar. Começou a ler os livros “fingindo não perceber quem passava e ria do meu quarador. Eu já devia parecer uma inegável moradora de rua.” Nesse dia, conheceu Lola, uma mulher, provavelmente moradora de rua, que carregava um carrinho de supermercado, catando lixo reciclado. Alice disse não ser moradora de rua, mas a outra não acreditou. Ao ouvir que Alice tinha apartamento, etc., disse também que tinha uma casa lindíssima e que também não era moradora de rua. Alice também não acreditou em Lola. Alice para de escrever, precisava comprar umas coisas. No dia seguinte, Milena viria limpar a casa. “vou cuidar das urgências, da luta contra o caos material, que o outro caos, o de dentro da minha cabeça, já não me preocupa tanto.” Iria lavar a mochila de rodinhas que usara na rua e doá-la para a filha da faxineira. **

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Sentiu minha falta, Barbie, mais de um dia sem me ouvir? Não fique com ciúmes da Milena. Milena é gente e eu estou sentindo falta de muita gente, até de minha filha, acredita? Ontem, por insistência de Milena, recoloquei o telefone fixo na tomada e créditos no celular. Alice partiu da praça e foi para o Campo da Tuta procurar Cícero; o local não era uma favela, mas habitado por uma gente bem humilde. Entrou em uma pequena venda, conversou com o dono, um paraibano, ele não conhecia Cícero Araújo, mas indicou uma moça que talvez o conhecesse: Jozélia, a costureira. Alice conversou com Jozélia, que também não o conhecia, mas a filhinha dela foi em várias casas de família paraibana para procurar o rapaz. Comi tapioca com coco, tomei café, refresco de cajá. Alice não teve sucesso, mas indicaram um outro local, de nome Vila Quede, talvez lá fosse encontrá-lo. ** Desci do Campo da Tuta, de ônibus em ônibus, tudo de graça sem ninguém me cobrar, ô cidade gentil, esta! Pudera, eu devia estar envelhecendo velozmente, minuto a minuto desde que ganhei o mundo, em fuga, atrás de Cícero. A Vila Quede era uma favela, com tantos buracos como os becos da Maria Degolada. Após a favela, havia um enorme campo de golfe, daí Alice entendeu o nome da Vila: vinha de “caddy” (lê-se: /kedi/ - em português, caddie é a pessoa que ajuda o jogador de golfe a carregar os tacos). Alice se sentiu como a xará do país das maravilhas: Emburaquei pela viela, Alice em novo buraco dentro de outro buraco, de outro buraco, de outro... Novamente falou a vários moradores a triste história de Cícero, as pessoas tentavam ajudá-la, não o conheciam, iam até outros e sempre indicavam alguém que o pudesse conhecer. Sem sucesso, saiu de lá e rumou para a rodoviária. No caminho, as lojas já fechando e colocando o lixo nas calçadas. Achou uma manta de plástico de bolha e a catou. Daria um ótimo cobertor para aquela noite fria. Jantou no Quarenta dias

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restaurante da conterrânea, mentiu a ela, disse que encontrara Cícero, mas que, por estar de folga, viria só no dia seguinte. Foi dormir no banco da rodoviária. ** Daí por diante, Alice fizera uma rotina: ora dormia no pronto-socorro, quando precisava de banho, dormia na rodoviária, sempre alternando para não ficar visada. Mas sentia que seu aspecto vinha se deteriorando, tornando-se uma verdadeira moradora de rua. Com o tempo, já não mais perguntava por Cícero, só quando queria puxar conversa com alguém. Cícero não me faltava nunca, cumpria com perfeição sua função de álibi, dócil, mudando de endereço segundo minhas necessidades ou fantasias. Um dia, foi parar em um local chamado Alvorada. Pegou ônibus, foi até a parte bem pobre do lugar e acionou Cícero novamente para uma senhora. Como ela não o conhecesse, voltou. No caminho, viu um sofá abandonado, deitou-se ali e dormiu. Agasalhei-me com meu plástico bolha e dormi minha primeira noite ao relento, sem nada sobre a cabeça, senão estrelas. No dia seguinte, acordou-se e foi andar. Passou por debaixo de uma escada na calçada, tropeçou e um balde de tinta amarela caiu sobre ela. Teve de ir a um brechó (que os gaúchos chamam de “brique”, comprar umas peças de roupa). ** Alice conversa com Barbie e manifesta sua inquietação para “chegar a algum fim”, precisava escrever. Lembrou-se de Arturo e começou a escrita: certa vez, talvez nas suas primeiras semanas de rua, lembrou-se de ter visto uma barbearia 24h. Iria para lá, para diversificar seu lugar de dormir. Quando lá chegou, descobriu que o comércio não atendia 24h, então resolveu voltar. Na calçada, uma perna atravessou seu caminho, ela tropeçou e quase caiu se não fosse o dono da perna segurá-la. Era Arturo, um morador de rua, que falava com sotaque espanhol – isso a 422

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fez lembrar os refugiados, companheiros do marido Aldenor que eles abrigavam em casa. Arturo pediu desculpas e mandou que Alice sentasse na calçada para descansar. Já era perto da meia-noite e o frio se manifestava. Ele ofereceu-lhe um gole de chimarrão e, para não fazer desfeita ao “Chapeleiro Louco”, como ela o chamava, tomou. Era a primeira vez que havia criado coragem de tomar o mate amargo dos gaúchos. E gostou! Também foi a primeira vez que dormiu “literalmente na rua”, amontoada na calçada. Pela manhã, Arturo chamou-a; eram voluntários que vinham dar café e pão aos mendigos da região. Ela recebeu a doação, depois foi embora, despedindo-se de Arturo. Foi a um bar, usou o banheiro imundo e saiu ao notar o olhar hostil do dono. ** À tardinha, Alice voltou novamente para os arcos da Borges, onde ficava Arturo. Tentou saber mais sobre ele, mas ele desconversava; descobriu, enfim, que quisera ser poeta e tratara de aprender decorando páginas e páginas de Borges a Neruda, de Juana Inés, de Ibarbourou, de Mistral a Guillén e outros. De repente, ele começou a declamar alguns versos e a viajar em seus pensamentos. Alice saiu para ir chorar longe de Arturo. Lembrou-se de suas dificuldades e estava chorando compulsivamente quando Lola a interrompeu e levou-lhe a sua casa. De fato, ela tinha uma casa, mas era bem humilde, com poucas telhas; no entanto, um cadeado no portão a protegia. Alice sentiu-se segura; a nova amiga lhe abrigara e fizera-lhe uma cama com livros que estavam na estante e um pedaço de espuma retirado de algum sofá velho. No dia seguinte, Lola já estava de pé, com seu carrinho de supermercado, para ir trabalhar catando reclivável. O banho era gelado, com uma mangueira atrás da casa. Alice ofereceu à amiga um café com pão na padaria (ainda tinha um restinho de dinheiro). Tu vem todo dia dormir aqui, tu é direita, tu pode, aprende o caminho. Alice aceitou. ** Quarenta dias

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A romaria de Alice seguia todos os dias: andava pra lá e pra cá, ia à rodoviária, vilas, sebos e briques, alojamentos, pronto-socorro, etc., já, então, conhecia vários moradores de rua. Conhecera parte da história de vida de Lola, fora casada com um viúvo polaco rico, mas ele se matou (naquela casa em que ela morava); os filhos dele levaram tudo e só lhe deixaram a casa, sem condições de mantê-la. Alice visitava Arturo todos os dias; ele, misteriosamente limpo, e apenas seu saco de dormir e sua cuia de mate, sem carrinhos nem sacos cheios de tralhas que todos nós, habitantes dos buracos da cidade, arrastávamos. Ela dormia, agora na casa de Lola; andava com ela pelas ruas: Andar com Lola dava-me direitos de cidadania pelas ruas. Um dia em que seu celular estava ligado, recebeu ligações de Elizete, as quais ela não atendeu, e de Galo, do alojamento de operários, dizendo ter uma pista de Cícero. Ela foi até o local da pista, um lugar barra pesada. Para Galo, Cícero teria se tornado um travesti e caíra na vida. Alice conversou com vários travestis, já noite, mas ninguém sabia do rapaz. Mandaram que ela saísse dali, porque era muito perigoso. Alice se tornava cada vez mais parecida com uma moradora de rua. Nada mais na minha aparência, nem de leve, acho, me distinguia dos outros. ** Com o pretexto de achar Cícero Araújo, e já raramente fazia isso, Alice foi andar no Campo da Tuca e, já noite, foi parar em um lugar ermo, com ruas de barro, absolutamente escuro. Acendeu a lanterna do celular e viu sangue no chão; seguiu as marcas e viu um jovem rapaz morto, jogado no mato. Pensou que poderia ser Cícero e pensou também que se a polícia a visse ali poderia dizer que ela havia assassinado o rapaz. Saiu correndo pelo mato, rasgou a calça, arranhou-se no arame farpado, correu até chegar na Bento e dormiu no ponto de ônibus, como sempre fazia quando não ia à casa de Lola. De manhã cedo, foi acordada rudemente por alguém que ia pegar 424

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o ônibus. Pensou em ir a um orelhão, ligar a cobrar para Elizete, pedir seu endereço, mas abandonou a ideia. O que eu tinha prometido era não ceder a nada nem a ninguém, só voltaria se e quando eu mesma quisesse. Foi para a rodoviária e levou um baque quando foi ao caixa retirar dinheiro: “saldo insuficiente”. Não queria pedir esmolas, nem revirar lixo; vendeu seus livros ao preço de três cachorros-quentes, bebeu água da torneira mendigada em balcões de bares. Foi atrás de Lola, não a encontrou; resolveu esperá-la no degrau do portão. Dormiu e foi acordada com um sacão por Lola. Basta, tu não aguenta mais, tu não precisa disso, tu vai voltar pra tua vida que a gente também não precisa de mais uma na rua, à toa. No dia seguinte, bem cedo, Lola tirou Alice da cama. Vai, sai desse buraco, isso não é pra ti, tu só não esquece da gente. E quando voltar pra me visitar quero que tu venha bem faceira, como deve ser. Alice obedeceu, ligou ainda bem cedo para Elizete, dissera que estava voltando de Jaguarão e que perdera seu endereço. Voltei, assim, à superfície ainda por explorar. Suas rachaduras já as conheço todas e não esqueço. Chega, Barbie, agora eu paro mesmo, que já está clareando o dia. Agradeço a paciência, guria, a solidariedade silenciosa, mas agora vou te trancar numa gaveta, tu não leva a mal, tá? não digo que seja pra sempre, quem sabe ainda reabro estas páginas, passo tudo a limpo.

ANÁLISE DA OBRA A estrutura Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende, Prêmio Jabuti (maior prêmio da literatura) em 2015, é escrito sob a forma de um diário, um manuscrito, pela narradora Alice, uma ex-professora de francês. O caderno em que Alice escreve suas histórias, suas angústias, suas mágoas, tem uma Barbie na capa. “O caderno veio na minha bagagem por pura teimosia, Quarenta dias

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mas com um destino oculto, tábua de salvação pra me resgatar do meio dessa confusão que me engoliu.” O livro é dividido em partes (aqui iremos chamar de capítulos), todas iniciando com citações de autores que a narradora diz ter copiado em suas andanças pelos sebos de Porto Alegre, e que têm relação com a história ali narrada. A vida de Alice nas ruas fez com que ela, professora que era e, portanto, que gostava de escrever, catasse folders, publicidades, cartões, panfletos, cupons de padaria e guardanapos para ter onde escrever. E esses materiais estão ilustrados no livro, separando alguns capítulos, dando-nos a sensação de que foram testemunhas das andanças da personagem. Cada capítulo inicia, portanto, com uma citação, e a narradora deixa, separado por uma linha, evidente o seu momento presente, a sua vida atual, e o seu passado (o “buraco” em que se metera, a vida que lhe fora roubada). Nesses capítulos também ficam à mostra os momentos em que ela para e começa a escrever e para novamente – tudo isso é mostrado com as conversas que tem com Barbie: “Ufa! Cansei você, não foi, Barbie? ‘Sorry’”; “Desculpe, Barbie, não lhe dei bastante tempo para descansar...”; “Chega por hoje, não é, Barbie?”; “Good morning, Barbie” e várias outras.

A narração A obra é uma espécie de romance memorial, narrada em primeira pessoa, pela narradora-personagem Alice.

O tempo e o espaço O tempo em que se passa a narrativa não é evidenciado na obra, mas é um tempo atual – isso é percebido por algumas pistas como descrições de ruas, da universidade de Porto Alegre, do uso de celulares, do uso de 426

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cartão em caixa eletrônico, etc. Outra pista que nos evidencia o momento atual é uma conversa entre a personagem Alice com a boneca Barbie: “Melhor [idade] só se for pra você, Barbie, que já tem quase sessenta e fica sempre igual...” (a boneca Barbie foi lançada em 1959, portanto, hoje, ela tem 57 anos; Alice diz que ela tem “quase sessenta”, ou seja, a narrativa se passa nesses últimos anos (a partir de 2010, no máximo). A história se passa em Porto Alegre – RS, mas a narradora vem de João Pessoa – PB (diversos locais de Porto Alegre são citados nas andanças de Alice; já da Paraíba, ela se recorda muito da capital e de Boi Velho, local em que nascera).

A linguagem A linguagem utilizada é do tipo culta e muito fácil de ser entendida, apesar de possuir alguns trechos da linguagem oral e até chulos: “... e xinga e gargalha e geme e mija e sorri e caga e fede e canta e arenga e escarra e fala e fode e fala e vende e fala...”. A obra é repleta de figuras de linguagem e muita ironia por parte da narradora-personagem: “Deixe de embrumar, Alice, confesse que o broto desse espinheiro que cresceu dentro de você foi a revelação do egoísmo da sua filha...”; “...Só bem depois foi que eu entendi: ela tinha mudado de tática, resolveu tomar a sopa quente pelas beiradas...”; “Levantei os olhos, Aeroporto Internacional Salgado Filho, acabei de descer e acompanhei a manada...”; “Assumi a atitude do ET ingênuo sendo bem recebido por terráqueos benevolentes, muito maiores que ele.” “... que TPM que nada! Acho que vou lançar um novo significado pra sigla: Tolerância para Malcriadas.” Outra questão interessante é a ausência de pontuação no final de alguns períodos, como se a autora quisesse deixar para que o leitor imaginasse e criasse suas próprias conclusões: “Eu tenho vergonha de Quarenta dias

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ter cedido, estou lhe dizendo, vergonha”; “Vou deixar vocês descansando aqui mesmo, Barbie, buscar o que comer, sair pra rua”; “Mas não pense que acabei. Só comecei, acabei não” A obra aborda, ainda, expressões nas línguas inglesa, francesa e espanhola: “Good morning, Barbie”; “de la Palice, comme vous voulez.”; “O loca, bos te queres cair y lastimar?”. Notável, também, é o desenrolar e a aceitação do conhecimento dos sotaques, palavreados e costumes que Alice adquire dos gaúchos; inicialmente, somente as expressões de sua região: “O almoço é só esquentar no micro-ondas, viu, Mãínha?”; “... separar roupas que Vixe, Alice, só servem mesmo pra brechó...”. Quando chegou a Porto Alegre, achou engraçado o sotaque, a musicalidade, o hábito do chimarrão... No começo se recusava a tomar o mate, mas depois que tomou, gostou. Ao final da obra, já se autodenominava “gaudéria”, já conhecia as ruas principais de Porto Alegre: “Nem sei mais quantas vezes levei ao Borges, ao Bento, ao Protássio, ao Nilo, ao Osvaldo a minha desaparência. Gaudéria de dia, à noite dormindo quase sempre na casa de Lola...” Alice escreve em seu diário a fala gaúcha e seus desvios gramaticais em termos de concordância: “Come que tu está fraca...”; “Trilegal a decoração que Norinha fez, não é? Bah! (...) Falou mais umas coisas, pontuadas por aqueles vários bahs dele, que eu não entendia bem o que queriam dizer...”; “Se tu vai ir agora mesmo, meu guri te levar, ô Vandeílso, tu não, piá, tu é pequeno...”; “Viu como estou aprendendo a falar gauchês? Aprendi na rua, gostei e passei a pensar-me com esta palavra, gaudéria, vagabunda, vira-lata como eu estava e ainda” Em sua linguagem irônica, e dominadora das letras que era, Alice brinca com as palavras: “... já reparou, Barbie, que ninguém mais “calça” os sapatos ou as meias e nem “veste” a camisa, a calça, o vestido? Todo o mundo agora só “coloca” seja lá o que for, onde for... ninguém mais “ouve” nada, só “escuta” (...) ninguém mais “diz” nada, só “fala”. E como fica o 428

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dito “fala, fala e não diz nada”? E as palavras reformadas, que nem o verbo “rolar”, que substituiu o “acontecer”?, tudo rola, festa, namoro, casamento, aula, prova, emprego. Vão entender se eu disser que rolei uma escada ou ladeira, ou terei de dizer, perdão, Barbie, de falar que “aconteci” ladeira abaixo?” Outra passagem interessante, quando ela chega ao Aeroporto de Porto Alegre, ao ver o nome “Salgado Filho”, lembra-se de uma plaquinha rabiscada em papelão lá na Paraíba: “Salgado frito e assado”: “Assim fui eu, entre o Salgado Filho e o salgado assado...”. Outro trecho engraçado é quando chega a uma favela denominada “Vila Quede” (lê-se /kéde/) – havia um campo de golfe ao lado da favela que destoava daquela pobreza: caddie, em português indica ser o ajudante do jogador de golfe, que fica catando as bolinhas. Nesse mesmo capítulo, outro jogo com as palavras que mostra o estado de pobreza dos personagens ao dar informação a Alice sobre como chegar ao paradeiro de Cícero Araújo: “Mas é fácil, tu atravessa a avenida e tem logo o mequidônis na esquina, sobe pela rua do mequidônis que vai dar lá.” (mequidônis = MC Donald).

O título da obra Como lemos anteriormente, a autora do livro é uma freira e nada mais normal do que inserir aspectos de sua convivência, no caso a religião católica, em sua obra. O título do livro, Quarenta dias faz menção direta à religião cristã, pois “quarenta dias” é uma expressão repleta de simbologia nessa religião. No antigo testamento, Noé esperou 40 dias para as águas do dilúvio abaixarem e, assim, começar “um novo tempo”. Ainda nesse livro, Elis esperou 40 dias em jejum enquanto Deus realizava milagres em sua vida. Jesus passou em oração 40 dias no deserto em recolhimento e oração antes de iniciar seu ministério (nesse tempo, foi guiado pelo Espírito Santo, mas também tentado pelo Diabo). Esse recolhimento e reflexões que Quarenta dias

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Jesus viveu são relembrados pelos cristãos nos 40 dias que antecedem a Páscoa. Durante esse tempo de reflexão, denominado Quaresma, os católicos seguem alguns rituais e fazem penitências, principalmente de não comer carne vermelha. O ápice da Quaresma se dá no domingo de Páscoa, em que é celebrada a ressurreição de Cristo. 40 foram também os dias em que os apóstolos ficaram em comunhão com Cristo após sua ressurreição antes de expandirem a sua religião. A personagem Alice passa quarenta dias em seu deserto também: pelas ruas de Porto Alegre, sem conhecer nada nem ninguém. “Quarenta dias no deserto, quarenta anos.” Percebeu que eram exatos 40 dias quando chegou a casa e foi olhar no calendário. Arrancou todas as folhinhas do Sagrado Coração de Jesus, presente que a Tia Brites sempre lhe manda no Natal. “Quarenta dias. Atravessei a geena1. Acabo de sair da quarentena. Não planejei nada, caí lá sem querer, sem me dar conta de que aquilo podia ser a barca do inferno.” Assim como Jesus, Alice anda por 40 dias, refletindo sobre sua vida; nessas andanças, compartilha o sofrimento com outras pessoas, depara-se com o pecado, a humildade, o sofrimento, a fome (o jejum – em nenhum momento indica comer carne vermelha) e a necessidade do perdão; perdoar a filha pela vida que ela lhe roubou, de forma tão cruel, era a maior dificuldade de todas. E Alice se viu completamente atolada no lodo, sem forças para voltar. É Lola quem a acode e a fez ver que devia deixar aquele mundo. Assim, Alice volta para sua casa, começa a escrever no caderno com a capa da Barbie e, graças à escrita, começa a buscar respostas dentro de si. Agora já não mais odeia tudo o que a filha lhe comprara para o novo apartamento; vê-se obrigada a perceber a vida de uma outra maneira após os 40 dias de reclusão, vagando nas ruas. Alice também tem uma espécie de ressurreição.

Cícero Araújo 1- Geena: local de suplício eterno pelo fogo; inferno; sofrimento intenso; tormento; tortura.

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Esse personagem não tem ação na história, no entanto, ele é lembrado o tempo inteiro. Após um telefonema de Elizete, que dissera que o filho de uma manicure de João Pessoa, conhecida delas, estava em Porto Alegre e não dava notícias à família há muito tempo, Alice busca em Cícero sua razão para sair a ermo pelas ruas. Segundo informações da prima, Cícero trabalhava em construção e morava na Vila Maria Degolada (uma favela) e é com o pretexto de ir em busca dele que ela sai pelas ruas. Certamente ela não conhecia o rapaz e tampouco estava preocupada em encontrá-lo. Cícero é apenas o motivo que ela arrumou para fugir de sua vida; nas ruas, Cícero era razão para puxar conversa com os moradores (de rua ou de favela) e motivo para que ela buscasse algo que sabia que nunca encontraria. No início, essa era sua razão de estar na rua, mas já no final do livro, raramente ela perguntava a alguém por ele; andava por andar simplesmente. Aqui vida real se mistura com a ficção. A autora do livro, Maria Valéria Rezende, para tornar sua ficção mais real, decide fazer o mesmo que Alice, ou seja, vai para Porto Alegre, cidade que não conhecia, pede abrigo em casa de irmãs de sua comunidade e fica 15 dias nas ruas procurando por Cícero Araújo, uma pessoa que ela inventara. Nem sempre voltava para casa, muitas vezes dormia na rua, na rodoviária, ao relento, tal qual Alice (gente, a autora tem 70 anos!!!).

Alice no país das maravilhas X Alice no país dos assombros A intertextualidade está presente na obra. Em várias passagens, a professora Alice se remete à xará inglesa, personagem de Lewis Carroll, na obra Alice no país das maravilhas: “... como se eu tivesse encolhendo, mesmo sem ter tomado nenhum xarope desconhecido feito minha xará inglesa...”; Ao ver seu apartamento todo decorado em preto e branco, o chão parecendo um tabuleiro de xadrez: “Cheguei a rir por dentro da ironia, lembrando-me das aventuras de minha xará (...) Quem seria a Rainha Quarenta dias

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desse jogo em que eu estava metida?”; “... tinha entrado pelos livros adentro, caído num poço profundo, passado pra outro mundo louco, um “wonderland” qualquer de onde esta Alice não pretendia voltar tão cedo” “... ter-me metido numa aventura e, como minha xará despencando por um poço a parecer sem fundo, sem vontade nenhuma de parar...” “... pra não fazer desfeita ao Chapeleiro Louco, como comecei a chamá-lo e ele gosta.” (em Alice no país das maravilhas, existe o personagem Chapeleiro Maluco. A referência a tamanhos: “Quando Umberto [o genro gaúcho] embicou o carro num portão, (...) encolhi-me ainda mais, Alice diminuindo, diminuindo”; em outra passagem:”… acordei logo cedo, disposta a deixar pra lá o ressentimento, ser realista, encarar as coisas como eram agora, como gente grande, voltar ao meu tamanho normal”.

Barbie e seu mundo cor-de-rosa X Alice e seu mundo preto e branco Para escrever sua história, Alice usa um caderno de espiral antigo, com uma Barbie na capa. Essa informação nos é importante, porque Barbie não é apenas uma capa de caderno, ela se torna uma personagem também – passiva, é claro! Mas é com ela que Alice conversa grande parte de seu tempo. Cada vez que vai começar ou terminar uma história, a narradora trava esse diálogo com a boneca que ilustra o caderno, como se estivesse, de fato, conversando com alguém: “Bonjour” miudinha, continue quieta, abra apenas suas páginas que eu vou contando.” “Pronto, Barbie, à próxima parada, que vai durar uma noite inteira, você só vai chegar amanhã.” Por que a narradora nos coloca frente a um caderno com a capa rosa da Barbie? O que a personagem Alice tem em comum com Barbie? A boneca Barbie foi lançada no período pós-guerra, época em que o 432

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consumismo capitalista aflorou; Barbie tornou-se um ícone pela burguesia e pelas camadas populares e passou a vender milhões de exemplares, ganhando o status de boneca mais vendida do mundo. Barbie é, pode-se assim dizer, a principal representante da modalidade de bonecas manequim. Seu sucesso é sempre associado à beleza, à juventude e ao consumo. Vive em um mundo cor-de-rosa, sempre com muitos acessórios da moda e objetos de prestígio social – em suma, é a futilidade em pessoa. Todas essas características da boneca norte americana e os insultos que a cultura da “Barbie cor-de-rosa” representa para o feminismo (aqui não vamos nos enveredar nesse tema, nas questões de gênero, ok?) são de consciência da personagem Alice. Veja algumas amostras: “Melhor [idade] só se for pra você, Barbie, que já tem quase sessenta e fica sempre igual... Vai ver que é por isso que tem tanta velhota por aí vestida de Barbie.”; “Sorte sua que não tem estômago, Barbie, não é possível que caiba algum órgão aí por dentro dessa sua cintura inumana.” “Não se anime pra voltar às suas futilidades, não, viu?, estou só no primeiro dia e ainda” Em suas reflexões, Alice tece alguns comentários acerca da evolução dos tempos, evolução da linguagem, em conversa com Barbie: “Engraçado essa história das palavras antes tão comuns que a gente, de repente, percebe perdendo a serventia, meia-idade, solteirona, amasiada, quem diz isso hoje em dia? Até marido... viúva, então, nem se fala! É solteira... toda mulher sem homem próprio agora é solteira.” Também a TPM é tema do caderno e das conversas com Barbie. Um dia, na sala de espera do dentista, Alice ouviu uma reportagem que a deixou indignada, um psicólogo falava sobre TPM: “Então a mulher entra numa fase muito particular em que todo o seu organismo se prepara pra chegada de sua menstruação, conforme seu ciclo, blá-blá-blá… e seus hormônios se agitam e agem modificando as emoções e o comportamento, causando depressão, irritabilidade, mal-estar físico e até cólicas. Faça-me o favor! Ter de ouvir estas coisas calada!, havia mais pessoas Quarenta dias

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na sala, inclusive um rapaz. Minha vontade era de responder com uma pergunta: E daí? Cólica, dor nas pernas, que mulher nunca teve coisas assim, quando a menstruação se aproxima?, desde que o mundo é mundo!, sem precisar de siglas pra se saber que bastava uma cafiaspirina pra resolver um bocado daquilo (…) Mas a explanação continuava: Então as pessoas mais próximas tem que estar atentas, ter tolerância, tratar com carinho e respeitar esse momento delicado, e mais blá-blá-blá… Veja só, Barbie, onde foi dar aquela conversa piegas. (...)a tal síndrome, novidade inventada pra dar lucros a médicos, psicólogos, anunciantes de televisão, laboratórios, revistas femininas, farmácias, ou pra dar mais e mais espaço às grosserias e descontroles que a minha geração vinha permitindo aos mais novos, eu com vontade de cuspir fora aqueles rolos de algodão e explicar pra pobre da dentista que, desde muito antes dela nascer, eu, minha mãe e minhas avós fomos mulheres, e nunca nos permitimos comportamentos parecidos com o que hoje ouvia que devem ser tolerados em nome da tal de TPM. E argumentava comigo mesma Pra mim sempre será só falta de educação tratar mal a quem quer que seja, e qualquer dia do ciclo…”. Alice e Barbie. Ambas vieram forçadas àquele lugar; ambas não parecem ter vida própria (os outros é que decidem tudo por elas); ambas tinham missões importantes: uma veio para cuidar do neto que ainda nem existia, e outra, para “ouvir” os desabafos e registrar as histórias de alguém que necessitava escrever para não enlouquecer; ambas tinham quase 60 anos; ambas eram solitárias e tornaram-se cúmplices. As semelhanças terminam por aí, porque o mundo cor-de-rosa de Barbie era muito diferente do mundo preto e branco de Alice. Repare na metáfora do preto e branco do apartamento de Alice; na verdade, essa era a cor de seu mundo, de seus pensamentos, depois que foi arrancada pela filha do lugar onde morava e de sua vida. Atenção, a narradora personagem não é louca; na verdade, ela tem noção da passividade da boneca e sabe que decidiu escrever para aliviar suas tensões: “... você é só um recurso mentiroso pra eu me sentir em 434

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comunicação com alguém...” Escrever, para Alice, era uma forma de descarregar o peso que Norinha e a família haviam colocado sobre ela; ela escreve para tentar entender o que aconteceu, por fora e por dentro dela. É nesse caderno de capa cor-de-rosa que ela descarrega seu mundo preto e branco, contando suas revoltas, mostrando o material que coletara em suas andanças e a memória de toda aquela gente que encontrara na rua: “... escrever, seja lá o que for, me acalma, já me aliviou um pouco o sufoco...” “... quero mesmo é o manuscrito, deixar escorrer tudo direto do corpo pra caneta e pro papel. A única coisa que tenho ânimo pra fazer agora. O único jeito possível de livrar-me deles, expulsá-los do espaço que ocupam dentro de mim e recuperar minha própria presença é reduzi-los a tinta e papel e encerrá-los numa gaveta, ou tacar fogo pra sempre.” Esse era o mundo preto e branco montado pela filha Norinha: um mundo de desespero, de solidão, de fome, de miséria, de abandono... de desencanto com a vida! No entanto, mesmo nesse mundo escuro (preto), ela encontra a luz (branco) na amizade de moradores de rua e mendigos (como Lola e Arturo), de moradores de favelas, do atendente da padaria, da dona do bar da rodoviária (Penha), que dão a ela o que a filha nunca lhe dera: amizade, acolhimento, compreensão, inclusão, vida!

EXERCÍCIOS 1. Assinale a(s) opção(ões) correta(s) em relação ao romance Quarenta dias. 01. Alice é levada à força pela filha Norinha para Porto Alegre, para que esta a ajude a criar os netos que viriam. 02. Com a ajuda da prima Elizete, os móveis de Alice foram quase todos vendidos. Ela e Norinha trataram de vender os que julgaram ser coisas velhas (a maioria) e o pouco que sobrou mandaram pela transporQuarenta dias

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tadora. Alice não ajudou a carregar devido a sua idade, mas estava ali acompanhando tudo e ajudando na logística da mudança. 04. O texto é escrito de forma simples, em linguagem coloquial, mas com várias figuras de linguagem. 08. Quando Alice quer retornar a casa, da qual nem sabe a rua e nem o rumo, ela liga para a Elizete, diz que havia ido ver uns amigos do nordeste numa cidade vizinha, que estava de volta e havia perdido a anotação com o endereço. 16. No meio da mudança, Alice resgata um caderno velho que tem na capa uma Barbie. E esse passa a ser sua companhia. Alice o transforma em um diário e é por meio do que ela escreve nas páginas velhas da Barbie que acompanhamos a sua nova vida em Porto Alegre. 2. Indique a(s) proposição(ões) Verdadeira(s) e faça o somatório. 01. Ao andar pela periferia da capital gaúcha, Alice nos mostra um cenário de pobreza onde pessoas passam por dificuldades enormes; o que mais lhe chama a atenção é a falta de solidariedade dos mendigos e moradores de rua que se tratam de maneira muito hostil e preconceituosa, especialmente com os nordestinos. 02. Ao final da história, ao se reconciliar com a mãe, Norinha publica as histórias da mãe contidas no “diário” (caderno da Barbie). O resultado é esse livro que estamos lendo. 04. A ideia de encontrar o filho perdido de uma conhecida motivou Alice a sair do retiro em que estava, dentro de sua própria casa, e começar sua peregrinação pelas ruas desconhecidas daquela cidade grande e vazia de sentido para ela. 08. Logo nos primeiros dias, Alice recebe a notícia de que a filha e o marido Umberto vão morar por quase oito meses na Europa por motivos acadêmicos. A filha já sabia da viagem e escondeu só para não adiar a mudança da mãe. 16. Assim como a Alice, do País das Maravilhas, a personagem Alice, de Quarenta dias viveu inusitados encontros e grandes descobertas pelas 436

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tocas e pequenas brechas da cidade. 3. Marque as alternativas corretas em relação à obra Quarenta dias. 01. Pode-se depreender, da leitura da obra, que a narrativa traz uma reflexão acerca do papel do idoso na sociedade, da invisibilidade social e da migração nordestina (Alice, Cícero, Norinha e tantos outros personagens). 02. Ao perambular pelas ruas de Porto Alegre, Alice percebe o quanto o povo nordestino é bem quisto pelos gaúchos e possui posição social bem satisfatória. Ela sempre é ajudada por alguém quando precisa e, em seu prédio, há muitas “brasileirinhas” como ela morando lá.. 04. Alice sai atrás de Cícero Araújo. Sem lenço, sem documento e sem a menor vontade de voltar para aquela prisão que ela ainda não conseguia chamar de casa. E assim passa 40 dias nas ruas, andando a esmo, dormindo nas praças, se misturando com mendigos e moradores de rua. 08.Há uma característica, em especial, que chama a atenção na obra: todos os capítulos trazem epígrafes com trechos ou citações de outros autores contemporâneos. Dessa maneira, a narrativa funciona como uma espécie de hipertexto, oferecendo diferentes caminhos de leitura e promovendo a intertextualidade. 16. A final da leitura do livro, podemos concluir que os quarenta dias de peregrinação da Alice em Porto Alegre foram necessários para criar uma nova aliança com ela mesma. 4. (UFSC 2017) A partir da leitura e interpretação da obra de Maria Valéria Rezende, Quarenta dias, e de outras obras listadas como leitura obrigatória para o VESTIBULAR UFSC 2017, é correto afirmar que: 01. ao final de quarenta dias de peregrinação simbólica pela capital do Rio Grande do Sul, a protagonista da obra de Maria Valéria Rezende, Quarenta dias

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Alice, é agraciada com uma compreensão súbita e decide, ao término da narrativa, aceitar o compromisso de ser avó. 02. a questão da crença religiosa e dos ex-votos é central no livro Quarenta dias, o que estabelece certa proximidade temática do episódio com a obra dramatúrgica de Ariano Suassuna, Auto da Compadecida. 04. o conflito central do romance Quarenta dias é instaurado quando Alice, uma professora aposentada, vê-se presa a intensa chantagem emocional, por meio da qual é infantilizada pela própria filha, de quem recebe o encargo obrigatório de ser avó. 08. o projeto gráfico do livro Quarenta dias utiliza cartões de visitas e panfletos de propaganda na abertura dos capítulos para cumprir uma função de epígrafe visual e reforçar o conteúdo textual, função igualmente empregada no jogo fotografia-poema da obra As fantasias eletivas, do catarinense Carlos Henrique Schroeder. 16. insinua-se na obra de Maria Valéria Rezende uma inquietação típica do mundo contemporâneo: Norinha acredita que a maternidade não constituiria uma ameaça à sua carreira profissional se contasse com o auxílio da mãe na criação do filho. 32. na busca incansável por Cícero Araújo, imigrante paraibano, filho de Socorro, a protagonista de Quarenta dias acaba redescobrindo os laços familiares que unem tão fortemente pais e filhos e reconcilia-se com Norinha, sua própria filha, encorajada pelos conselhos familiares da catadora de lixo Lola. 64. ironizando o modo pelo qual o senso comum se refere ao Nordeste como uma massa homogênea, sem diferenciação dos estados que o compõem, a protagonista do romance de Maria Valéria Rezende passa a empregar a expressão “os de lá” para se referir aos que têm sua origem naquela região brasileira. 5. Assinale as alternativas corretas acerca da obra Quarenta dias, em seguida faça o somatório. 438

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01. Inconformada com o papel de avó profissional, em uma cidade totalmente desconhecida, a protagonista-narradora decide “desabafar” com um caderno velho cuja capa exibia uma fotografia da famosa boneca americana Barbie. 02. A intertextualidade com a obra infantil de Lewis Carol está presente na busca de Alice: ao lançar-se numa procura frenética pelo filho desaparecido de uma conhecida da Paraíba, Cícero Araújo, é como se Alice estivesse “correndo atrás de um coelho branco de olhos vermelhos, colete e relógio”, que ia levá-la pra um buraco, outro mundo. 04. Em seus delírios, Alice briga com Barbie e uma coisa estranha acontece: o caderno cai da mesa. Isso é visto por Alice como uma reação da boneca. 08. A Vila da Maria Degolada foi a primeira indicação que Alice recebeu de onde poderia estar Cícero Araújo. 16. Cícero Araújo era sobrinho de Alice que saíra da Paraíba e nunca mais dera notícias à família. 6. Indique a(s) opção(ões) verdadeira(s) acerca do romance estudado. 01. O sentimento de raiva e estranhamento da narradora evidencia-se também na recusa pelo apartamento “alvinegro” decorado pela filha, no contato com as pessoas em casa e nas ruas. 02. Lola encontra Alice pela primeira vez em uma praça. A mulher não acredita na história de Alice e pensa que ela é uma moradora de rua. 04. Alice era chamada de “brasileirinha” pelo porteiro do prédio. Ele assim chamava todos os que nasceram no nordeste (independente do estado). 08. Ao final da história, para se livrar daquele martírio em que se metera, Alice queima o caderno. 16. Alice vai para Porto Alegre para cumprir sua sina de “avó profissional”. No entanto, sua filha viaja para a Europa e leva o bebê consigo, deixando Alice sozinha. 32. Ao escrever sua história no caderno da Barbie, Alice tenta buscar Quarenta dias

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entender o que lhe acontecera; como se, de repente, sua vida virasse de cabeça para baixo. 7. Faça o somatório das questões verdadeiras. 01. Na Vila João Pessoa, numa favela gaúcha, Alice encontra outros “brasileirinhos” como ela, entrevendo uma realidade pouco divulgada nas metrópoles do Sul e do Sudeste: a exclusão e segregação geográfica de nordestinos e negros, empurrados para a periferia da cidade. 02. A história de Alice difere do drama do migrante que busca melhores oportunidades no Sul, porque o deslocamento de Alice foi uma “coação afetiva” (os parentes, em especial a filha a coagiu a sair do nordeste). 04. Cícero Araújo era filho de uma manicure conhecida de Alice; ele trabalhava em construção e, na última vez que deu notícias à mãe, dizia que morava na Vila Maria Degolada. 08. No trecho: “... a gente fica sem saber se a cidade está nascendo ou morrendo...” (p.99), temos duas figuras de linguagem: antítese e personificação. 16. Fragmentos do livro, tais como, “... história de mãe desesperada procurando por filho perdido era um abre-te Sésamo!” e “... mesmo sem ter tomado nenhum xarope desconhecido feito a minha xará inglesa...” indicam intertextualidade, ou seja, fazem referência a outras obras da literatura mundial. 32. Para conseguir uma faxineira, Alice se vale das indicações do porteiro do edifício em que estava morando. Milena fora uma indicação dele. 8. Indique a(s) opção(ões) correta(s) sobre a obra Quarenta dias. 01. Perdida de si mesma, sem o endereço da sua nova casa em uma cidade desconhecida, Alice preferiu passar quarenta dias em mendicância a ter que voltar para a nova situação que a vida lhe impunha. 02. A prima Elizete foi quem ajudou Alice e Norinha a arrumar a mudança de Alice; foi ela também a responsável pela compra do novo 440

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apartamento em Porto Alegre. 04. Assim como em “As fantasias eletivas, em “Quarenta dias”, a história escrita pelo personagem é a mesma que lemos no livro. 08. Alice chega a Porto Alegre para cumprir sua sina de “avó profissional” após uma conspiração familiar comandada por Norinha. No entanto, mediante um convite para passar alguns meses na Europa por causa de um projeto de doutorado, Norinha não hesita e recusa para que a mãe não ficasse sozinha na cidade desconhecida. 16. Em uma de suas andanças pelas ruas, Alice presencia um assassinato de um jovem rapaz. Com medo de que a polícia pensasse que era ela a assassina, ela foge correndo e rasga sua calça. 32. Alice era uma mulher de aproximadamente 60 anos, viúva de Aldenor, um desaparecido político, e tinha agora duas aposentadorias: uma do Estado e outra das aulas de francês. 9. Tendo como base a obra Quarenta dias e o fragmento abaixo, faça o somatório das questões verdadeiras. “Oi, boneca, bom dia. Acabo de folhear seu caderno e dar uma lida em diagonal nas últimas páginas. Reparou que muitas folhas atrás parei de falar da minha filha? É bom ou mau sinal? Você que nunca teve mãe nem filha deveria poder julgar com mais objetividade. Pena que você não tem nada dentro dessa cabeça, acho... Lembro agora de ter visto na capa de um dos livros que bisbilhotei por aí, acho que de um escritor-fotógrafo paulista que escreve sobre gente de rua, a imagem de uma cabecinha parecida com a sua, decapitada, pobre boneca, rolando na lama de uma sarjeta Agora venha, corra pra não perder o ônibus!” (REZENDE, Maria V. Quarenta dias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. p. 143)

01. No trecho, Alice conversa com a boneca Barbie, ilustração do caderQuarenta dias

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no em que estava escrevendo suas lembranças. 02. Em: “Oi, boneca, bom dia.”, as vírgulas foram empregada para separar um aposto. 04. Após tanta dor e decepção, Alice acaba ficando louca, por isso conversava com a boneca ilustrada na capa do caderno. 08. O fragmento: “Lembro agora de ter visto na capa...” está escrito em linguagem formal, obedecendo a regra de concordância do verbo “lembrar”. 16. Nesse trecho, o comentário que Alice tece sobre a filha indica que ela está, aos poucos, superando a dor causada por Norinha. 32. Na obra, é possível encontrar diversas temáticas, tais como, solidão, exclusão social, mendicância, adultério, política e misticismo. 64. Em “Reparou que muitas folhas atrás parei de falar da minha filha?, o período é composto por duas orações e o “que” exerce a função sintática de conjunção.

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AS FANTASIAS

ELETIVAS


AS FANTASIAS ELETIVAS Autor: Carlos Henrique Schroeder Escola literária: Literatura Contemporânea Ano de publicação: 2014 Gênero: Romance Divisão da Obra: 4 partes Local em que passa a história: Balneário Camboriú – SC Temas: A alma humana e suas implicações, solidão, criação literária

O AUTOR Carlos Henrique Schroeder (1970) Nasceu em 1970, na cidade de Trombudo Central – SC. É autor de romances, contos, novelas e peças de teatro. Tem recebido diversos prêmios e reconhecimentos por causa de suas obras e participado de algumas antologias. Atualmente é colunista do Jornal Diário Catarinense.

BIBLIOGRAFIA Romances: A mulher sem qualidades (2010); A rosa verde (2005); Ensaio do vazio (2006); As fantasias eletivas (2014); História da chuva (2014) Contos: As Certezas e as Palavras (2010) Novela: O publicitário do diabo (1998)

A ESCOLA LITERÁRIA Literatura Contemporânea (a partir de 1960) Ver dados sobre essa escola literária na análise da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada.

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PERSONAGENS Renê – recepcionista noturno de um hotel em Balneário Camboriú (saiba mais sobre os personagens em “análise da obra”, que está ao final da síntese desta história) Copi – travesti argentino obcecado por fotografias

SÍNTESE DA OBRA “S” DE SANGUE A A história inicia em terceira pessoa e conta que “ele”, o personagem ainda não tem nome, 34 anos, estava em um restaurante, acompanhado de uma nova namorada, e foi ao banheiro lavar o rosto. Estava agoniado, precisava se controlar, não podia colocar tudo a perder de novo, ela não merecia. Relembra de parte de sua vida em que tentara suicídio atirando-se ao mar, mas o mar o devolveu. A narrativa volta para a primeira pessoa, e o narrador se mostra agoniado, pois ainda está no banheiro e a moça lá na mesa esperando por ele. Talvez dissesse a verdade a ela, casara (agora estava divorciado), tivera um filho e quase matara os dois; bebera por dois anos feito um louco, tentara se afogar. Ao contrário dele, ela falava coisas maravilhosas. Dizia que gostava de dançar, era uma aluna aplicada e ciumenta – para o autor, essa era uma característica muito importante; ele precisava saber até onde ia o ciúme da moça. B Saiu do hotel, onde trabalhara a noite inteira, e foi a pé para casa – não tinha dinheiro para pegar um mototáxi. Estava caminhando quando As fantasias eletivas

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ouviu seu nome: “Ei, Renê!” Um rapaz com uma faca na mão, em tom ameaçador: “É um aviso, um lembrete, mermão, é pá deixa a Seca na dela. Some, sacô?” Deu-lhe uma facada no estômago e saiu Seca. Sacô. Seca. Sacô. Seca. Sacô. As duas palavras se misturaram, secô, saca, secô, saca. C E ardia o corte, ardia a esperança, e Renê não pensou em pedir ajuda, e o Seca, saco, saca, seco ficou na cabeça. Até que se lembrou de outros episódios de sua juventude, em que apanhara; aquela humilhação ardia como o corte. D O casal de namorados vai caminhar na praia, falam algumas trivialidades ao observar a lua; Renê estava com um grande mal estar no estômago por causa da tainha que comeram; Maria não falou nada, mas também não gostara do jantar; não gostava de peixe, pensava que aquela comida era de “fracos”. Ela lhe pergunta se ele acreditava em destino, depois se acha estúpida. Renê pensa que tem mais o que fazer do que acreditar em destino. Mas não estavam ruim a companhia do outro; ele apenas queria ir para casa tomar antiácido e ir dormir, pois estava exausto – primeiro dia de folga depois de quatro meses de serviço. E Era madrugada, Renê estava em seu trabalho, trabalhava como recepcionista em um hotel em Balneário Camboriú; era inverno, não havia quase ninguém no hotel, por isso estava tranquilamente passando seu costumeiro álcool no balcão. O patrão havia lhe oferecido aumento em troca de mudança de horá446

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rio: trabalharia das 23h às 07h. Sabia que se não aceitasse seria demitido. Aceitou-o. Mas isso já fazia dois anos. F Renê liga para sua mãe; diz querer falar com o filho, mas ela não consente. Percebe-se ali que há uma briga familiar grande: o pai de Renê não quer que a família fale com ele; a ex-mulher também não admite que Renê veja o filho. Renê sofre muito com isso; os últimos contatos com a criança deram-se aos 3 anos de idade. Depois disso, quando voltou a Balneário Camboriú, comprou um sabonete da Mônica para se lembrar do cheirinho do filho Léo. G Após a facada que recebera, Renê ainda viu o agressor fugir. Juntou muita gente, chamaram a ambulância, mas o dono da casa em frente à cena do crime, levou-o ao hospital. Aguardou um pouco na sala de emergência, depois entrou. O hospital trouxe a Renê uma recordação da infância. Tinha uns dez anos quando um dos amigos, em uma brincadeira, chutou uma lata aberta em sua direção. Protegeu o rosto com o cotovelo, e a lata abriu um corte muito fundo no braço. Pegou tétano, teve de ser internado; uma noite, porém, um louva-deus entrou no quarto do hospital; lembrou-se de que alguém lhe havia dito que o bicho era venenoso. Nervoso, chamou insistentemente a enfermeira, mas ela não veio – foi a primeira vez que não dormira uma noite, de tanto medo. H O recepcionista Ariel vai até o quarto 315, pois o cliente o chamara. Renê fica desconfiado. Lá, o rapaz deixa 8 álbuns de fotografias com o “esquisitão”, ganha seu dinheiro e vai embora. O narrador diz que Ariel era a pessoa que mais ganhava dinheiro naquele hotel – e vinha de diversas fontes (prostituição, drogas, pedofilia); As fantasias eletivas

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como tinha medo de cadeia, Renê ficava fora dessas negociações. Mas o que vinha se mostrando o mais lucrativo era o ramo da fotografia: um amigo deles pegava fotografias de crianças dos computadores de clientes, vendia a Ariel, e Ariel repassava aos seus clientes do Brasil inteiro. A imagem do desejo. O desejo pela imagem. Em Balneário Camboriú havia espaço para isso; era também uma cidade de recomeços, em que as pessoas vinham para sepultar o passado, como Renê, como Copi. I Renê estava na recepção quando Copi chegou para deixar seu book. Era uma mulher linda, que se oferecia aos clientes. Quando Renê pegou suas fotos para colocar junto às outras, de outras pessoas que ofereciam seus serviços, verificou que a argentina tinha “palmito na salada”, como diziam seus amigos. Não deu importância, “mais um traveco”. J Capítulo destinado aos recepcionistas de hotéis, os “verdadeiros donos das cidades turísticas”. Eles sabem de tudo, têm sua vida organizada e vivem de comissões, comissões, desde a comissão pelo uso do hotel até a comissão pelos encontros com prostitutas, travestis e traficantes. K Copi. Travesti magra, bonita, bem-vestida e inteligente. Nível universitário. Ativa e passiva: não decepciona, prazer além da carne. Atendo com local próprio e sem portaria. L Renê começou a reparar que Copi sempre passava em frente ao hotel. Um dia, ela chegou a ele, com o dedo em riste: “Você nunca me chamou.” Ele teve vontade de dar um soco, mas não queria arrumar confusão; tentou ser polido. Mas ela foi incisiva. Reclamara que ele sempre 448

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arrumava serviço para uma outra. Mas a outra era mulher e loira e lhe pagava a comissão em um suculento boquete. Com raiva, Copi joga um sapato, com força, no peito de Renê e outro, acerta-lhe a testa. M E a cidade de Balneário Camboriú tinha os perfis de seus clientes certos: novembro e dezembro chegavam os estudantes; dezembro e janeiro, os turistas com famílias; de janeiro a março os argentinos, brasileiros, paraguaios, uruguaios e chilenos; no inverno, os idosos, para a alegria das farmácias. E os recepcionistas sempre sabendo de tudo. N A primeira vez que Renê viu uma biblioteca que não fosse num órgão público foi no apartamento de Copi. O rapaz (ou a moça) havia feito jornalismo, estágio no Jornal “El Clarín”, algumas tentativas de seguir no mundo da escrita até ter coragem de fazer o que deveria fazer. O Um dia, Copi apareceu no hotel com uma caixa de alfajores Havanna para presentear Renê. Ele recebeu-a com um taco de beisebol: “Vou te arrebentar”. Ela saiu, viera selar a paz. No dia seguinte, trouxe-lhe uma garrafa de vinho; ele repetiu o gesto do taco de beisebol; e assim passou uma semana inteira trazendo presentinhos. Ao final, ele lhe devolveu o par de sapatos. Estava domesticado. P Um episódio de infância de Copi: ela pergunta à mãe “o que é o amor?”, depois: “por que as pessoas morrem?” A mãe fica meio sem resposta, responde por meio da ciência, que finaliza quando o coração para; pergunta, ainda, “E a alma. O que é?” A professora lhe ensinara que existia alma, mas a mãe não acreditava.

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Q Copi estava segurando o pincel quando dois pensamentos lhe vêm na memória: o primeiro era o de que havia muita palavra no mundo, muito mais do que gente. E o segundo de que o que nos liga ao passado, a memória (que rege essas inúmeras fantasias eletivas que chamamos de lembranças) empalidece ao sinal do primeiro desejo. R Renê pergunta a Copi quando ele assumiu essa vida, largou do jornalismo. O travesti responde naturalmente: “Há duas maneiras de lidar com o desejo: ou você apaga com o extintor ou deixa o fogo se alastrar. Eu resolvi me incendiar.” Quanto ao emprego de jornalista? “É tudo prostituição, meu caro, tudo, uns vendem o corpo, outros a cabeça, alguns seu tempo, é tudo putaria, todo mundo dá o cu.” S Um certo dia, alguém chama Renê ao telefone. Sebastián Hernández, a Copi, havia morrido; cortara seus dois pulsos com uma gilete. Tudo em seu apartamento estava intacto, suas roupas dobradas na mala e com um post-it rosa com o nome de Renê. Na lixeira da cozinha estavam alguns dos seus contos e o início de um romance, todos rasgados, amassados e salpicados com sangue. Havia também um envelope pardo grande, no bidê ao lado da cama escrito “Renê” – dentro havia alguns poucos poemas, a fotografia da menina no trilho do trem e sua série de fotografias e textos sobre a solidão. E um bilhete dizendo: “A Polaroid é para você, Ratón [como ela o chamava], está embaixo da cama.” Renê estava incrédulo e até deixou cair uma lágrima. Lembrou-se dos bons momentos em que passara ao lado de Copi. Certa vez, ele queria lhe contar uma história, mas Renê não tinha muita paciência, enquanto ele contava e cheirava cocaína, Renê bebia e o ouvia; interrompia-o 450

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sempre que ele adentrava aos detalhes de sua homossexualidade, não queria saber. Conta-lhe que fora atender a um cliente no norte do estado e que, depois de “servi-lo” foi andar com sua mochila e sua máquina Polaroid. Nisso, viu uma menina chorando (ou não se sabe fazendo o quê) nos trilhos de um trem. Tirou uma foto. A partir dali começou a perceber que o instante da fotografia é uma captura do tempo, é o mais próximo que podemos chegar da imortalidade. Nossas lembranças são a fotografia das palavras. Nunca mais vi a menina no trilho do trem. Ela não me viu, eu não existo para ela, mas a fotografia que fiz e o tempo que passei pensando nela fizeram um movimento, e são uma lição: de que para os outros somos um conjunto de imagens, de memória, fotográfica ou não. Pois, quando morrermos, restarão as fotografias, e as cenas das pessoas que nos viram, que presenciaram nossa existência. A fotografia da menina o acompanhara durante toda a sua vida; nunca se afastava dela. Copi começa a pensar na solidão humana; depois da era dos celulares, televisão, o homem se esqueceu do seu companheiro e só olha telas. Estamos na era da ausência do afeto. Mas, aonde Copi queria chegar é que a fotografia despertou nela o gosto pela escrita; não aquela escrita técnica, de jornalista, mas a escrita literária. A partir dali ela começou a criar histórias a partir das fotografias. A fotografia quer capturar um instante, quer aprisionar o tempo, cada clique quer imortalizar um segundo. E isso torna a fotografia mais humana ainda, pois ela nasce de um desejo humano de permanecer. A fotografia é uma espécie de “segunda memória”. Para Copi, esse gosto pela fotografia advém de sua similaridade com a literatura. A fotografia quer congelar um instante, e a literatura, recriá-lo. Copi se diz presa, porque só consegue escrever por meio das fotografias. Escrevera alguns poemas os quais considera “fotografias em palavras”. Dizia que escrevia para se entender. Ao final, ela vai até o quarto e pega uma pasta com várias fotos coAs fantasias eletivas

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ladas numa folha sulfite A4, e embaixo das fotos há pequenos textos. “O que você vê aqui?” “Fotos e textos?” “Não, Ratón, solidão, cara, solidão. Eu encontrei algumas coisas mais solitárias do que eu.”

A SOLIDÃO DAS COISAS Esta parte da obra é formada por vários textos, cada qual com uma fotografia acima dele; são as tais fotografias que Copi estava mostrando a Renê: as fotografias de objetos e cenas solitários. Primeira gravura: foto de um relógio de parede O maior caso de suicídios de objetos é o de ponteiros de relógio. Eles simplesmente não aguentam a tirania das horas e saltam para a eternidade. Segunda gravura: foto de um bar de hotel Não há lugar mais solitário que um bar de hotel, por mais cheio que esteja. Terceira gravura: foto de um marcador de página em cima de um livro Um marcador de páginas nunca sabe qual será seu destino após o término de um livro: o lixo ou outro livro? Depende do humor do leitor. Quarta gravura: Foto de um pé dentro de um ônibus (alguém deitado no banco do ônibus que esticou a perna para o corredor e deixou o pé à mostra) O que é um pé, solitário num corredor de ônibus? Ele não está na boca de ninguém prenunciando o gozo, tampouco no chão, na escravidão do caminhar, nem mesmo chacoalhando debaixo da mesa, na prostituição 452

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do trabalho. Um cobertor não esconde a solidão, o choro: só o frio. O corredor não significa nada para o pé. Quinta gravura: foto de uma cruz, no alto de algum lugar, com várias fitinhas do Senhor do Bonfim amarradas nela. Uma cruz sem rezas, uma cruz sem fiéis, uma cruz no topo de um morro quase inacessível. Dizem os moradores de Nova Trento que todas as noites as cruzes choram. A solidão de uma cruz é severa, pois nem Deus tem pena. Sexta gravura: foto da Ponte Hercílio Luz – Florianópolis – SC Fala da solidão da Ponte Hercílio Luz, que vê as vizinhas sendo massageadas pelos carros e ela fica só, marcada pela impossibilidade. Conta que pouco antes de Cruz e Sousa morrer, ele havia escrito 37 sonetos sobre uma ponte metálica que morderia a ilha todas as noites. Descontente com os sonetos, atirou-os ao mar, justamente no local em que a ponte foi construída. Sétima gravura – foto de uma lixeira vazia e de uma mochila Há solidões a dois. Elas choram, a lixeira e a mochila. Poderiam se abraçar, mas não sabem disso. Um abraço, só um abraço, assim como a morte abraça a vida uma vez, uma só, na história de cada animal. Oitava gravura – foto de um corredor vazio Um corredor vazio é como aquele grito engasgado, de um estupro ou de uma morte violenta. É a mais perigosa das solidões, pois é largamente contagiosa. Nona gravura – um tecido quadriculado Alguns dizem que os tecidos são uma segunda pele – isso é mentira. Eles ficam encarcerados em armários para servir de adereços para seus carcereiros e torturadores. As fantasias eletivas

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Décima gravura – um espelho redondo que reflete uma imagem de uma mulher tirando sua própria fotografia. Os espelhos estão condenados a refletir até que se quebrem em grãos ou sejam cobertos por algo. Esta é uma solidão diferente, a de ter que refletir ininterruptamente o que está à sua frente ou atrás, é o abandono de si. Décima primeira gravura – uma folha de um livro com nota de rodapé Um rodapé é o band-aid do texto, a moldura da tela. Estima-se que em cinquenta anos os rodapés desaparecerão dos livros ou serão relegados às prisões acadêmicas. Você já ouviu o choro de um rodapé? Garanto que não há nada mais triste. Décima segunda gravura – uma mão fechada anunciando um soco Dentre todas as solidões, a do nocaute é a mais dilacerante. A Bíblia é clara ao dizer que para cada homem haverá um nocaute. E Deus guardará um lugar especial no céu para cada nocaute, os verdadeiros excluídos. Décima terceira gravura – rejuntes de pisos cerâmicos Numa pesquisa de invisibilidade social, os rejuntes de pisos cerâmicos e porcelanato foram apontados como os verdadeiros párias. Ninguém os percebe. Ninguém os elogia. Décima quarta gravura – uma placa de trânsito: proibido parar e estacionar De todas as placas de trânsito, a de proibido estacionar é a mais odiada. Segundo o narrador, as placas não nasceram dessa forma; foram, antes, placas que cometeram algum crime grave, como placa de indicação de velocidade ou de aviso de lombadas. Décima quinta gravura – um pino de alarme de incêndio 454

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Um pino de alarme de incêndio é a coisa mais solitária que existe: ninguém quer tocá-lo. E quando o tocam é algo tão rápido, tão violento. Décima sexta gravura – um ginásio de esportes vazio e todo iluminado Um ginásio de esportes vazio é a maior obra de arte de todos os tempos. O narrador imagina que estamos depois de 2040 e que ele está vazio porque a arte havia vencido o esporte, nesta batalha que durou milênios. Décima sétima gravura – uma lata de cerveja alemã (“Kaiserdom” dark) O texto remete a Sartre que, em seu pseudotratado da melancolia, não se permitiu entender todo o sofrimento de uma lata de cerveja alemã, que cruza um oceano em navios negreiros, latas amontoadas, sujeitas ao frio e ao calor, e chegam ao Brasil, para cair na boca de gente de cabelo espetado que nunca ouviu falar em Goethe. Décima oitava gravura – sombras de duas pessoas As sombras carregam uma maldição eterna, sombras serão sempre sombras. Sombras trabalham ininterruptamente, mesmo quando dormimos, ela está sempre lá, pois sempre há luz, mesmo na escuridão. Décima nona gravura – telefone público Os telefones públicos, os populares orelhões, amargam a exclusão completa, imposta pela popularização dos celulares. Em todos os cantos do país é possível vê-los, sempre sozinhos, cabisbaixos e tristes, à espera de um milagre. Vigésima gravura – ducha higiênica A ducha higiênica ou sanitária, ou simplesmente lava-cu, como fala o Pereira, sofre todo tipo de preconceitos no país da celulose. Todos olham com desdém para ela, e fazem um affe enquanto esfregam o papel poroso no precipício entre as nádegas. As fantasias eletivas

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Vigésima primeira gravura – uma pizza inteira sobre a mesa O texto questiona se há imagem mais insólita que a de uma pizza, inteira, sobre uma mesa? Mesmo sabendo que será devorada, ela se mostra vistosa, alvissareira e cordial. Uma pizza é um gesto de renúncia, um exemplo. Vigésima segunda gravura – ponta de um cigarro de maconha A ponta de um baseado amarga todos os tipos de sofrimento. Alguns minutos antes, ela existia em partes independentes, a seda de um lado, o fumo de outro, e da relação sexual dessas duas partes, estimuladas por mãos ágeis, nasce por fim o baseado, este suporte da imaginação.

POESIA COMPLETA DE COPI Esse capítulo mostra a obra literária de Copi, são sete poemas. Duas cambojanas nuas leem James Joyce Mas o que elas gostam mesmo neste Lance é o suave odor que sai Da boca De cada uma Um cheiro quente de boceta.

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Observações Cambojanas = habitante de Camboja (país asiático) James Joyce (1882 – 1941) = escritor irlandês que escreveu contos, romances e poemas. Seu romance, “Ulisses”, um dos mais importantes da literatura ocidental, é a obra que dá início ao romance moderno. *** Na bunda de um tucano é possível perceber toda a gravidade da condição humana. *** Ninguém me disse que era fácil aprender a sofrer. *** Toda palavra é um As fantasias eletivas

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poema em ponto morto. *** No fim, é só o fim. *** Já fui um marinheiro chinês sodomita num barco ébrio russo e vi peixes maiores que minha desgraça morrendo sem água no convés insalubre do Capitão Rushkin. *** Eu me borrei naquele ano em Chinatown enquanto ouvia uma música que dizia morra morra morra.

AS FANTASIAS ELETIVAS T A narradora (Copi) se remete a sua mãe e diz que é escritora e que gostaria de escrever algo alegre, engraçado, mas não consegue. Sou só um traveco contador de pequenas histórias sem sentido. Também sou esquizofrênica em meu corpo, em meus quadris, e você nunca entendeu. Diz escrever esse tipo de “coisas” para se distender. Acho que os escritores, os de verdade, são aqueles que procuram na palavra aquilo que não encontram na vida. Escrever não é divino, é humano, é triste. Ao final da conversa com a mãe, Copi diz ser uma vadia que já nasceu 458

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melancólica, alguém que gosta da solidão, do silêncio, da reflexão. U Renê guardou a série de fotografias e textos sobre a solidão, e os poemas de Copi, junto com suas pastas de documentos pessoais. A literatura de Copi seria de um leitor só, uma só solidão. Certo dia, Renê comprou uma Polaroide para ele e começou a bater fotos. E descobriu que há coisas piores que a solidão. V Copi, uma vez teve a sensação de estar sendo observada ao andar pelo trilho do trem. Quando olhou de lado, viu uma moça com uma mochila, caminhando, de costas.

W Renê na recepção do hotel. Um cliente, de um dos quartos lhe telefona e pede um book ou telefone de acompanhantes. Não senhor, nosso hotel não tem esses serviços. X A vida de um recepcionista é impessoal. Você é apenas um número, o do seu quarto, disse um cliente. Trabalhava há muitos anos naquele hotel. Ainda pode ser chamado de Mister Álcool. Y Sobre a vida pessoal? Renê nunca soube lidar com namoradas. Todas foram embora. Um dia, escreveu: Não consigo Não posso Não mereço Não sei Não tenho As fantasias eletivas

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Não sonho Não amo Não choro mais Copi ficaria orgulhosa Z Diálogo entre Copi e Renê: “Ei, Ratón, você confia em mim?” “Claro, claro, você é minha amiga, porra...” Renê achou graça, abriu a porta e foi embora. Copi sorriu, satisfeita, pensou e começou a acariciar as paredes.

ANÁLISE DA OBRA As fantasias eletivas nasceram do conto Os recepcionistas, segundo o próprio Carlos Schroeder, o qual aproveitou-se de sua experiência como recepcionista de hotel em Balneário Camboriú - SC para escrever essas obras. A história nos conta sobre a vida de Renê (um recepcionista) e Copi (um travesti), sobre suas semelhanças e diferenças, sobre a alma humana em um mundo muito cruel: o da solidão, do abandono. Se o personagem Renê é escrito a partir das experiências profissionais do autor, o personagem Copi é uma referência ao escritor, ator, dramaturgo e cartunista argentino Raul Taborda Damonte, cujo pseudônimo era Copi (Raul foi exilado na França por conta de suas obras subversivas; era homossexual e portador do vírus HIV. Morreu em 1987, por problemas decorrentes da aids). A obra As fantasias eletivas apresenta-se dividida em quatro capítulos: S de sangue; A solidão das coisas; Poesia completa de Copi e As fantasias eletivas. 460

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S de sangue O capítulo S de sangue apresenta-se dividido em partes (como se fossem capítulos), as quais são intituladas com as letras do alfabeto, de “A” a “S”. Nessas partes, temos a apresentação fragmentada do personagem Renê; sabemos que ele está jantando com uma tal Maria (mas também não sabemos de quem se trata); sabemos que ele leva uma facada, mas ignoramos o motivo; ele relembra episódios da juventude em que fora agredido; recebe uma promoção (aumento salarial) no hotel e começa a trabalhar no turno noturno. O hotel é utilizado por gente da mais variada espécie: desde familiares até pedófilos, traficantes, prostitutas, travestis, enfim, um ambiente como muitos outros. Certa vez, estava trabalhando, quando Copi entra e lhe entrega um book, para que ele mostre aos clientes do hotel; ao ver que era um travesti, ele coloca o book no fundo da gaveta. Era comum, os recepcionistas ganharem uma comissão de travestis, prostitutas e traficantes quando arrumassem clientes a eles. O pagamento poderia vir por dinheiro ou por “boquete”. Ciente de que Renê não a ajudaria, Copi entra no hotel e faz um escândalo porque Renê nunca a chamou – jogou-lhe os sapatos. No outro dia, trouxe-lhe presentes para selar a amizade. Não sabemos como, mas dali a pouco tempo, Renê, que era preconceituoso e tinha ojeriza pelo travesti, já se torna amigo dele; quando vemos, já estão se visitando e tomando vinho juntos. Mas Renê não quer saber de homossexualismo. No apartamento de Copi, Renê descobre que ela fora jornalista e, pela primeira vez, ele vê uma estante de livros que não fosse uma biblioteca. Ao descobrirmos um pouco mais sobre Copi, percebemos que sua família não a aceitava da forma como ela era. “Travesti não tem família, ao menos de onde eu venho, não mesmo.” No final do capítulo, uma pergunta: “Você conhece Sebastián HernánAs fantasias eletivas

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dez?” Era a polícia. Copi havia se suicidado, cortando os pulsos com gilete. Deixara ao recepcionista alguns presentes, dentre eles uma máquina fotográfica Polaroid (na época era o máximo, tirava fotos e revelava na hora, na própria máquina), um envelope com fotografias, textos e alguns poemas. Ou seja, Copi deixou a Renê todo seu espólio. A partir daí, nos próximos dois capítulos, existe uma obra dentro de outra obra, ou seja, temos acesso a esse material que Copi deixou a Renê.

A solidão das coisas Neste capítulo, são expostas as fotografias tiradas por Copi e, abaixo delas, pequenos textos e descrições sobre os diversos tipos de solidão. De forma melancólica e às vezes humorada, Copi nos relata seus sentimentos por meio de 22 fotografias. Em sua maioria, são fotografias de objetos solitários: relógio de parede, placa de trânsito, rejunte de piso cerâmico, tecido, baseado, espelho, enfim, objetos e cenas simples, comuns, mas que mostram um mundo de significados no contexto e no tempo em que se vive.

Poesia completa de Copi Este capítulo mostra as poesias compostas por Copi. São apresentados sete poemas contemporâneos; a maioria deles possui versos muito curtos (alguns com uma só palavra), outros com poucos versos. Os temas variam: o primeiro poema aborda o homossexualismo (duas cambojanas nuas); o segundo, de forma humorada, a condição humana; o terceiro poema, o sofrimento; o quarto, uma metonímia, ou seja, aborda a palavra, o poema; o quinto poema tem apenas dois versos: “No fim,/ é só o fim.” e mostra o resultado da vida, ao final, tudo acaba; no sexto poema, a temática gira em torno da desgraça, dor, sofrimento; e, finalmente, no último poema, o poeta diz que ouviu uma música que dizia “morra morra morra” no bairro de Chinatown e 462

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se borrou de medo.

As fantasias eletivas Este capítulo, que dá nome ao livro, está dividido em sete partes, intituladas com as demais letras do alfabeto que iniciaram na primeira fase: de “T “até “Z”. É um fechamento do ciclo. Aqui voltam os personagens Renê e Copi, e as narrativas são completamente fragmentadas. Os personagens mostram suas fantasias eletivas: Copi, transformou-se em travesti, escritora, vadia, melancólica, como ela se autodefine. Já Renê, optou por não mais oferecer prostitutas aos clientes, passou a fotografar por meio da Polaroide de Copi e até rascunhou um poema. Na última parte, intitulada “Z”, outra fantasia eletiva de Copi: quando “Ratón” (Renê) deixa a casa dela, ela fica pensando por alguns instantes e começa “a acariciar as paredes”. Uma interpretação muito convincente seria Copi fantasiando sua paixão por Renê (afinal, quando se acariciam paredes? Quando se está sonhando, quando se desejaria acariciar o ser amado...) – essa foi a principal fantasia escolhida por Copi, a lembrança de Renê, mas que ela sabia que jamais iria se concretizar.

A linguagem A obra é escrita em linguagem culta, com algumas inserções de linguagem coloquial repleta de gírias e palavrões, a fim de dar veracidade à narrativa. Copi é travesti e prostituta (daí a linguagem da rua), no entanto, é culta; já Renê é recepcionista de hotel, acostumado a lidar com todo tipo de pessoa, e limitado culturalmente. Destacamos aqui alguns trechos da obra: “É um aviso, um lembrete, mermão, é pá deixa a Seca na dela. Some, sacô? (p.17) “Quando folheou o material, viu que a bela moça tinha aquilo que seus As fantasias eletivas

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amigos de recepção chamavam de “palmito na salada”, ou seja, um pau.” (p.37) “Que mané paz, eu quero distância de traveco, ainda mais de você, vaza, senão vou te arrebentar, ó!.” (p. 46) “Linda, mas com uma cenoura no meio das pernas.” “E que cenoura, olha aqui! Hahaha.” (p. 56) “... essa é a natureza da vida, ganhar e perder, nascer e morrer, caminhar e correr, dar o cu e comer, hahahahaha...” (p.59)

O tempo e o espaço A obra As fantasias eletivas não deixa claro, não dos dá noção do tempo em que se passa a narrativa; é, portanto, um tempo psicológico. O espaço, porém, é bem detalhado; a história se passa em Balneário Camboriú – litoral de Santa Catarina, com a indicação de alguns nomes de ruas para dar veracidade ao texto.

A narrativa A história é narrada em terceira pessoa, por um narrador onisciente. Não se pode deixar de lembrar, também, que nos capítulos 2 e 3 temos “um livro dentro de outro livro” e quem o escreve é o personagem Copi – são os textos abaixo das fotografias e os poemas.

O título da obra No primeiro capítulo, o narrador nos dá uma explicação sobre o termo “Fantasias eletivas”: “o que nos liga ao passado, a memória (que rege essas inúmeras fantasias eletivas que chamamos de lembranças) empalidece ao sinal do primeiro desejo.” Logo, a expressão que dá nome ao livro remete às lembranças que os personagens elegeram para que lhes ficasse na memória: Copi, a imagem de Renê em sua casa, indo embora; 464

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Renê, a imagem daquela alegre e ao mesmo tempo melancólica Copi que lhe deixara os seus bens.

Os personagens Renê tem 34 anos de idade, é divorciado e tem um filho (não se sabe o motivo, mas ele diz que quase matou os dois: mulher e filho; talvez por isso, a família não quer saber dele, inclusive, a ex-mulher não o deixa ver o menino). Tentou se matar, certa vez, jogando-se no mar, mas não conseguiu. Sem muita cultura, vai para Balneário Camboriú e tenta reconstruir a vida. Torna-se recepcionista de um hotel na cidade e passa parte de seu tempo limpando o tampo de granito da recepção com álcool. Por essa razão, recebe a alcunha de “Mister Álcool”. Renê é ciumento; teve várias namoradas, mas não consegue aguentar com alguém por muito tempo. No início da história, janta com Maria, passeia com ela, mas depois, simplesmente sabemos que os dois terminaram. Copi é argentina, nasceu em Las Heras, na província de Mendoza; cursou jornalismo em Buenos Aires e trabalhou no famoso jornal El Clarín. Foi na capital argentina que ela caiu na noite portenha. Tentara ganhar a vida escrevendo para voltar a Mendoza, mas, por fim, criou coragem de fazer o que achava que devia fazer. Assumiu sua homossexualidade, tornou-se travesti e foi se prostituir. Por causa disso, supõe-se, foi abandonada pela família e agora, morava sozinha em um apartamento em Balneário Camboriú. A personagem demonstra marcas de sofrimento, solidão e desilusão com a vida, tanto que chega ao suicídio.

A fotografia e a literatura Copi, sendo jornalista, tem o domínio das palavras; mas agora já não mais lhe satisfaziam palavras técnicas, queria a literatura e amava fotografias. As fantasias eletivas

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“O que me move para a fotografia são as similaridades com a literatura. A fotografia quer congelar um instante, e a literatura, recriá-lo, e ambas têm essa capacidade de permitir uma outra visão das coisas. Meu interesse pela fotografia começou justamente para tentar entender um pouco mais os processos literários; afinal, contar histórias é desvelar imagens.” As fantasias eletivas são, portanto, um álbum de fotografias. Tanto a vida de Copi como a de Renê nos são contadas de forma fragmentada, como se fossem fotografias em um álbum: há vários fatos que nos são contados separadamente, mas que juntos formam o todo, a lembrança. Daí a saber, as fotos/lembranças de Renê (o jantar com Maria; a facada que recebe – e isso o remete a episódios de sua juventude, a outras agressões; o filho; a ex-mulher; a mãe) e as lembranças/fotos de Copi (a família na Argentina, os clientes, os amantes, a escritora, os encontros com Renê). Importante ressaltar que esse “álbum de fotografias” é uma espécie de segunda memória, é para onde você corre quando quer lembrar os melhores momentos de uma viagem, seu casamento, de sua família, do fim de semana. E assim é a estrutura do livro, uma premissa dessa paridade entre literatura e fotografia.

A temática da solidão na vida dos personagens e nas fotografias

Uma das temáticas mais marcantes na obra é a solidão. Ela é refletida tanto na vida dos personagens como nas fotografias tiradas por Copi e impressas no livro. Copi é abandonada pela família depois de assumir sua homossexualidade; não se tem relato de que tenha amigos; de seu lado, Renê assume um papel muito parecido, sua família também o abandona, o pai não quer vê-lo, a mãe fala com o filho por telefone, mas tem medo de que o pai saiba; a ex-mulher não quer saber dele e também não o deixa ver o filho. O motivo, ficamos sabendo de forma muito fragmentada: ele quase matou filho e mulher, daí o divórcio e, posteriormente, a tentativa de suicídio. Eis porque o personagem tem 466

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como característica essa luta constante pela/contra a vida. A obra aponta, ainda, um ato muito solitário: os dois personagens cometeram suicídio, Renê, jogando-se ao mar, sem sucesso, e Copi, cortando os pulsos com a gilete, que foi fatal. A solidão de Copi a faz deixar todo o seu espólio ao amigo Renê: seus poucos poemas, a fotografia da menina no trilho do trem e sua série de fotografias e textos sobre a solidão. E a máquina fotográfica Polaroid. A marca da máquina fotográfica, “Polaroid”, também é muito interessante nesse aspecto solitário; ela revela as fotos por si só, não depende de outras pessoas para atingir seu resultado. Creio que se Copi conseguisse tirar a foto da própria máquina para expô-la como objeto de solidão, ela o teria feito. Fica a dica! Copi é categórica ao afirmar: Foi a fotografia que me mostrou o que é literatura. E ela relata um cenário lindo na Itália em um parque, mas o que lhe chama a atenção é um pneu. Um pneu solitário, descansando numa das árvores-de-algodão, cercado por centenas de flocos alvissareiros de algodão. E aquela fotografia me pareceu tão cheia de possibilidades e metáforas, imaginei tantas coisas, criei pequenas histórias a partir dela, e gostaria de repetir mais uma vez aquele instante. E passei a fazer isso, criar histórias a partir das fotografias. A partir dessa descoberta desse novo prazer, o livro se redesenha; ocorre o que chamamos de metaficção (o livro dentro do livro, ou seja, uma narrativa ficcional que tematiza o próprio processo da escrita literária) e metalinguagem (a palavra falando dela mesma). No capítulo seguinte, aparecem as 22 fotografias impressas com o tema da solidão. As fotografias são, portanto, como a própria Copi indica, a razão de sua literatura; é por meio delas que os textos se criam. Não menos solitária é a fotografia que se destaca na obra: a da menina sozinha no trilho do trem. Esta parece ser a preferida dos personagens, pois é minuciosamente analisada por Copi enquanto tomava um porre de vinho e cheirava cocaína, explicando-a ao limitado Renê. A foto foi tirada As fantasias eletivas

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no norte de Santa Catarina, certa vez, quando Copi estava andando sem rumo (gostava de fazer muito isso) e a marcou de forma intensa. Aí a personagem registra o “instante da fotografia”: Ela [a menina] não me viu, eu não existo para ela, mas a fotografia que fiz e o tempo que passei pensando nela fizeram um movimento, e são uma lição: de que para os outros somos um conjunto de imagens, de memória, fotográfica ou não. E ironiza com o colega esses seus pensamentos filosóficos: Que merda de filosofia de botequim, hein, Ratón! Você arrumou uma amiga que além de uma cenoura tem neurônios! Hahaha. Copi considerava essa foto e todo esse momento como seu “amuleto”. Se apanho ou me maltratam, eu tenho minha foto, eu tenho a menina. E ela me despertou a paixão pela escrita.

EXERCÍCIOS 1. Assinale a(s) opção(ões) correta(s) em relação ao romance As fantasias eletivas. 01. A obra narra a história de Renê, um recepcionista de hotel que começa a ter uma amizade incomum com Copi, um travesti que se prostitui em Balneário Camboriú para sobreviver. 02. O romance mostra que Copi e Renê, apesar de viverem contextos diferentes, possuem histórias de vida muito parecidas: ambos foram abandonados (e recriminados) pela família e ambos vão para Balneário Camboriú reconstituir a vida. 04. Pode-se afirmar que o tema maior do romance é a alma humana e suas implicações. 08. Copi, para escrever seus textos e poemas, tem como referência as fotos que ela mesma tira em sua câmera Polaroid. 16. No romance, fica bem claro que Renê tenta se matar porque a família o abandonou após tantos anos vivendo no mundo das drogas.

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2. Em relação à estrutura de Fantasias Eletivas, indique a(s) proposição(ões) Verdadeira(s) e faça o somatório. 01. O livro é dividido em quatro partes: “S de sangue”; “A solidão das coisas”; “Poesia completa de Copi”; “As fantasias eletivas”. Elas iniciam com a apresentação das personagens e culminam com a morte de Renê e Copi. 02. Na primeira parte, “S de sangue”, temos o encontro conturbado entre Renê e Copi, quando o travesti vai até o hotel levar o seu book para que o recepcionista consiga clientes a ele. 04. A última parte do livro leva o mesmo nome do romance: “As fantasias eletivas”; ali, vemos uma carta que Copi escreve à mãe sobre seus sonhos e desejos não realizados. Também nessa parte temos uma pequena continuação da vida de Renê sem Copi. 08. “A solidão das coisas” e “Poesia completa de Copi” são, respectivamente, fotografias seguidas de pequenas descrições sobre diversos tipos de solidão e a antologia completa de seus poemas. 16. O autor se utiliza do recurso da metaficção, ou seja, existe um livro dentro do próprio livro: a literatura de Copi, dentro da história que está sendo narrada. 3. Marque as alternativas corretas em relação á obra Fantasias Eletivas. 01. A linguagem utilizada no romance é do tipo culta, fragmentada, muito prolixa e rebuscada. 02. Ao final da história, ficamos sabendo que Maria, a moça com quem Renê janta no início, foi a razão pela qual o espancaram na rua. Ela era a “Seca” a qual se referia o bandido. 04. Podemos afirmar que o romance é um verdadeiro álbum de fotografias: tanto a história de Renê como de Copi são contadas de forma fragmentada, esparsa, como se tivéssemos a sensação de estar olhando um álbum de fotografias, em que cada foto retrata um As fantasias eletivas

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momento da vida. 08. Na obra, percebemos um grande choque cultural: o mundo dos letrados (Copi) e dos iletrados (Renê); mas ambos são povoados pela solidão. 16. Ao final da história, Renê guarda a série de fotografias e textos de Copi, bem como seus poemas junto a seus pertences. Nunca mostrou a ninguém. Copi seria de leitor só. 4. (UFSC 2017) Quanto à obra do escritor catarinense Carlos Henrique Schroeder, As fantasias eletivas, é correto afirmar que: 01. pode-se dizer que o autor catarinense constrói um livro dentro de outro porque apresenta os textos da personagem Copi nos capítulos “A solidão das coisas” e “Poesia completa de Copi”. 02. o romance põe em xeque o imaginário popular de que ser travesti é uma condição de vida à qual as pessoas se associam por falta de opção, pois Copi abandona voluntariamente sua profissão anterior, a de jornalista. 04. a partir da busca de significado para uma fotografia – a da garota sentada nos trilhos do trem –, Copi faz longa reflexão sobre a ausência de afeto na cena contemporânea. 08. embora haja uma amizade sincera entre Renê e Copi, o tema sexual é um tabu, pois aquele repudia qualquer conversa que envolva as práticas sexuais do travesti. 16. a lógica do senso comum afirma que “uma imagem vale por mil palavras”, concepção que indica o fato de a imagem bastar por si mesma, razão pela qual Copi não consegue produzir textos com base nas fotografias que tira. 32. no que se refere a questões estruturais da obra, a história de Renê, alcunhado Ratón e Mr. Álcool, é contada nos capítulos “S de sangue” e “As fantasias eletivas”, ambos fragmentados em capítulos menores. 64. o tema central da obra de Carlos Henrique Schroeder é o mercado 470

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da prostituição nas cidades litorâneas brasileiras, e o livro tem como cenário narrativo a cidade de Balneário Camboriú. 5. Assinale as alternativas corretas acerca da obra As fantasias eletivas, em seguida faça o somatório. 01. A história se passa em Balneário Camboriú nos anos 1970 e tem como personagem central um suicida. 02. Copi é um travesti que ama fotografias. Ele diz que começou a gostar de escrever por causa das fotos que tirava. 04. Renê foi a única pessoa que teve acesso aos poemas e fotografias de Copi. 08. Ao final da história, Renê tenta se matar atirando-se ao mar. 16. A obra tem como um dos temas a solidão (solidão das coisas e das pessoas). 6. Indique a(s) opção(ões) verdadeira(s) acerca do romance estudado e se autor. 01. Carlos Henrique Schroeder é catarinense e publicou As fantasias eletivas em 2014. 02. O livro pertence à literatura modernista e tem como um de seus principais temas a criação literária. 04. Renê tinha um apelido, Mister Álcool. Isso porque ele vivia limpando o tampo de granito da recepção com álcool. 08. Copi era um ex-jornalista. Havia cursado a faculdade de Jornalismo em Buenos Aires e já havia trabalhado no jornal El Clarín. 16. A linguagem coloquial predomina na obra. Prova disso são os inúmeros palavrões e palavras de baixo calão usadas pelo narrador. 7. Faça o somatório das questões verdadeiras. 01. O título da obra, As fantasias eletivas se remete às lembranças selecionadas nas memórias dos personagens. 02. O livro está dividido em quatro partes, assim separadas: na primeira As fantasias eletivas

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e terceira parte, temos a história dos personagens Copi e Renê, na segunda parte, temos as fotografias que retratam a solidão e, na última parte, os poemas de Copi. 04. A história é narrada em terceira pessoa, por um narrador onisciente. 08. Pode-se afirmar que existe em As fantasias eletivas um recurso utilizado pelo autor que se chama “metaficção”, ou seja, uma narrativa de ficção que tematiza o próprio processo da escrita literária. No caso, a literatura de Copi dentro da história que está sendo narrada. 16. Pode-se afirmar que o tema da solidão se desenvolve especialmente nos devaneios de Copi a partir de suas próprias fotografias. 8. Indique a(s) opção(ões) correta(s) sobre a obra As fantasias eletivas. 01. Renê é um homem sem muita cultura que se refugia no emprego para tentar esquecer os problemas familiares que tanto o atormentam. Ele foi para Balneário Camboriú para recompor sua vida. 02. Copi, apesar de ter sido jornalista, não escreve muito bem; por isso, entrega seus poemas a Renê para que ele os leia e faça uma crítica acerca de sua produção literária. 04. Uma das fotografias mais importantes tiradas por Copi e que a fez refletir sobre o ato da escrita e o ato da fotografia foi a imagem de uma senhora com dois filhos no colo. 08. A temática dos poemas de Copi são sempre as mesmas: morte, solidão, violência, sexo e drogas. 16. Copi e Renê, cada qual a sua maneira, reconhecem no outro o porto seguro que respectivamente lhes falta em função de suas escolhas passadas. 9. Tendo como base a obra As fantasias eletivas e o fragmento abaixo, faça o somatório das questões verdadeiras. “Visitei um parque maravilhoso na Toscana [Itália], e ele estava toma472

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do por algodão: no chão, nos arbustos, nas ruelas, algodão voando ao vento. As árvores-de-algodão espalhadas pelo parque propiciaram este espetáculo e parecia um campo de sonhos, o verde do parque salpicado pelo branco do algodão, e eu me senti num sonho ou num quadro impressionista. O parque estava quase deserto, e toda aquela cena parecia ter sido desenhada pra mim. Imediatamente comecei a bater fotos, dezenas delas. Depois, no hotel, passada a euforia, namorando as fotos, uma delas me chamou a atenção. Um pneu solitário, descansando numa das árvores-de-algodão, cercado por centenas de flocos alvissareiros de algodão. E aquela fotografia me pareceu tão cheia de possibilidades e metáforas, imaginei tantas coisas, criei pequenas histórias a partir dela, e gostaria de repetir mais uma vez aquele instante. E passei a fazer isso, criar histórias a partir das fotografias.” (SCHROEDER, Carlos H. As fantasias eletivas. Rio de Janeiro: Record, 2014. p. 63)

01. Quem narra essa passagem é o personagem Copi, que passara três meses na Itália no ano anterior a essa narrativa, contada a Renê. 02. Em: “...o verde do parque salpicado pelo branco do algodão...”, as palavras “verde” e “branco” são classificadas como adjetivos. 04. Renê, ouvindo essa história, vendo as fotos e lendo os escritos deixados por Copi após sua morte, será o único leitor dos instantes que Copi elege para se salvar do mundo. 08. Na primeira linha do texto, ““Visitei um parque maravilhoso na Toscana, e ele estava tomado por algodão...”, a vírgula foi usada para separar sujeitos diferentes. Na primeira oração, o sujeito é do tipo oculto “eu” e, na segunda, do tipo simples, “ele”. 16. Percebe-se que, foi por meio da fotografia de um pneu solitário que Copi imaginou todo o cenário do parque com o algodão caindo por todos os lados. 32. No fragmento: “O parque estava quase deserto...”, a oração é formada por: sujeito: “o parque”; verbo de ligação: “estava” e predicativo do objeto: “quase deserto”. As fantasias eletivas

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64. O trecho: “E aquela fotografia me pareceu tão cheia de possibilidades e metáforas, imaginei tantas coisas, criei pequenas histórias a partir dela, e gostaria de repetir mais uma vez aquele instante.” é formado por cinco orações.

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OLHOS

D’ÁGUA


OLHOS D’ÁGUA Autora: Conceição Evaristo Escola literária: Literatura Contemporânea Ano de publicação: 2014 Gênero: Conto Divisão da Obra: 15 contos Locais em que passa a história: Belo Horizonte e Rio de Janeiro Temas: violência, pobreza, miséria, desigualdade social, preconceito racial, infância, erotismo, a vida de mulheres negras, favelados, homossexuais.

A AUTORA Conceição Evaristo (1946) Nasceu numa favela da zona sul de Belo Horizonte. Teve que conciliar os estudos com o trabalho como empregada doméstica, até concluir o curso Normal, em 1971, já aos 25 anos. Mudou-se então para o Rio de Janeiro, onde passou num concurso público para o magistério e estudou Letras na UFRJ. É mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. É romancista, contista e poeta. Atualmente leciona na UFMG como professora visitante.

BIBLIOGRAFIA Romances: Ponciá Vicêncio (2003); Becos da Memória (2006). Contos: Insubmissas lágrimas de mulheres (2011); Olhos d`água (2014).

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Poesia: Poemas da recordação e outros movimentos (2008).

A ESCOLA LITERÁRIA Literatura Contemporânea (a partir de 1960) Ver dados sobre essa escola literária na análise da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada.

SÍNTESE DA OBRA Olhos d’água Narração: primeira pessoa Personagem principal: a narradora, uma mulher negra e pobre. A narradora, já adulta, se acorda no meio da noite e questiona: De que cor eram os olhos de minha mãe? E o que a princípio tinha sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite se transformou em uma dolorosa pergunta carregada de tom acusativo. Então eu não sabia de que cor eram os olhos da minha mãe?” Então, recorre aos tempos de infância para buscar a resposta. Era a primeira de sete filhas, moravam em uma favela, num “frágil barraco”; a mãe era lavadeira e passadeira e passavam necessidades. A comida era escassa: “As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio de nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida.” Mas a mãe sempre estava muito presente e, os dias de maior dificuldade, eram os que ela mais brincava com as filhas; brincava para que esquecessem a fome... “se tornava uma grande boneca negra para as filhas.”; contemplavam nuvens no céu e a mãe pegava rapidamente um pedacinho da nuvem e dava para cada filha comer. Olhos d’água

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Em dias de chuva, a mãe se agarrava a elas, com medo de que o barraco desabasse. E, nesses momentos, a menina percebe os olhos da mãe, que sempre são descritos com lágrimas: “Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então por que eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?” Tempos depois, a narradora sai de casa em busca de uma vida melhor para ela e sua família. Deixa a mãe e as irmãs, mas nunca se esquecera de nenhuma delas; não só delas, mas de nenhuma de suas ancestrais, por reconhecer a importância que tiveram na sua formação: “(...) Eu entoava cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue. Não esqueço essas Senhoras, nossas Yabás, donas de tanta sabedoria.” Em seu desespero para lembrar a cor dos olhos da mãe, a narradora decide voltar a sua terra natal. Sentia que estava cumprindo “um ritual, em que a oferenda aos Orixás deveria ser descoberta da cor dos olhos de minha mãe.” E, no reencontro, viu só lágrimas e lágrimas. Entretanto, sorria feliz. “E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso prantos e prantos a enfeitar seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe eram cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum!” Ao final do conto, após já ter alcançado a cor dos olhos da mãe, a narradora tenta descobrir a cor dos olhos da filha dela. Para sua surpresa, a menina questiona: “- Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?”

Ana Davenga Narração: terceira pessoa, por um narrador onisciente Personagem principal: Ana Davenga, uma moça de 26 anos, negra e pobre 478

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Era quase meia-noite, Ana Davenga estava dormindo, quando os homens bateram à porta de seu barraco. Abriu a porta, estranhou que seu homem não estava ali com eles, ficou muito preocupada. No entanto, ouviu um toque, “O toque prenúncio de samba ou de macumba estava a dizer que tudo estava bem. Um toque diferente, de batidas apressadas dizia de algo de mau, ruim, danoso no ar.” As mulheres daqueles homens, vendo a movimentação, também entraram no barraco. Onde estaria Davenga? Ninguém falava nada, ela só os acompanhava com os olhos. Davenga era o chefe de uma milícia criminosa e sua casa era o local em que faziam as “reuniões”. Ana era testemunha de tudo. Em princípio, os homens não gostaram disso, mas depois relevaram. No começo, também ficaram de olho nela, mulher bonita, mas Davenga colocou ordem: “qualquer um que bulice com ela haveria de morrer sangrando nas mãos dele feito porco capado.” Então, recuaram. Ana começa a lembrar que o marido, de vez em quando sumia, ficava dias sem aparecer. Talvez fosse isso. Começa a se recordar do início de seu relacionamento com o marido. “Nuzinho. Bonito o Davenga vestido com a pele que Deus lhe deu. Uma pele negra, esticada, lisinha, brilhosa.” No entanto, o marido, que era assim, estilo, “bruto”, quando fazia sexo, após o gozo, “chorava feito criança. Tinha o prazer banhado em lágrimas.” Cada vez que ela via aquilo, “era como se Davenga estivesse sofrendo mesmo, e fosse ela a culpada.” Mas isso era segredo deles. Os homens continuavam olhando para ela sem falar nada. Ela relembra de quando conhecera o marido, em uma festa; ela dançava samba; ele havia acabado de assaltar um deputado (gostava do mundo do crime; gostava mesmo era de ver o medo, o temor, o pavor nas feições e modos das pessoas.) Depois daquele dia, ele a levou para a casa dele; ficaram juntos desde então, e ela adotou o nome dele. Ela queria a marca do homem dela no seu corpo e no seu nome. Não perguntou de que o homem vivia. Ele trazia sempre dinheiro e coisas. Sabia dos riscos que Olhos d’água

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corria ao lado dele. Mas achava também que qualquer vida era um risco e o risco maior era o de não tentar viver. Davenga se sentia bem. Ana fê-lo se lembrar de uma antiga namorada; lembrou com remorso de Maria Agonia, uma evangélica, que ele havia mandado matar. Conhecera a moça quando fora visitar um amigo na cadeia. Gostaram-se, transaram várias vezes, mas quando ele lhe propôs casamento, ela recusou, pois ele era um marginal e ela, uma pessoa instruída. Sentiu-se usado, ficou com raiva e mandou matá-la com vários tiros. A narrativa volta para o presente: onde estaria Davenga? Novas batidas ecoaram na porta e já eram prenúncios de samba. Ana quis sair, mas os homens e as mulheres fecharam o círculo e a impediram. Nisso, entra Davenga todo alegre e sorridente. Abraça a mulher, ela sente a pressão da arma. Na verdade, estava fazendo uma festa surpresa de aniversário para ela; fazia 27 anos. Agora, esbanjavam felicidade. A festa acaba e Davenga manda que seus comparsas fiquem alerta. Foram para a cama, estavam nus. Era tão bom ficar se tocando primeiro. Depois haveria o choro de Davenga, tão doloroso, tão profundo, que ela ficava adiando o gozo-pranto. De repente, policiais invadem a casa e entram de arma em punho. Mandaram que Davenga se vestisse e que não tentasse reagir. O barraco estava cercado. Não iria nunca para a prisão, tinha horror daquele lugar. Se reagisse, sabia que iria morrer. Talvez Ana também. Decidiu arriscar. Ao pegar sua camisa, pegou também a arma. E desse gesto se ouviram muitos tiros. Ana e Davenga foram mortos, luto na favela. Ela morrera ali, na cama, metralhada, protegendo com as mãos um sonho de vida que ela trazia na barriga.

Duzu-Querença Narração: terceira pessoa, por um narrador onisciente Personagem principal: Duzu, uma senhora mendiga, negra e louca

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Duzu é uma mendiga que, em seus delírios, imagina voar. Estava sentada na escadaria da igreja lambeu os dedos gordurosos de comida, aproveitando os últimos bagos de arroz que tinham ficado presos debaixo de suas unhas sujas. Depois se levantou, cambaleando. Ela é que não ia ficar ali assentada. Se as pernas não andam, é preciso ter asas para voar. A narrativa volta para o tempo de infância de Duzu; chegara ali ainda menina com a família que viera para tentar a vida. O pai queria que ela estudasse e fosse alguém na vida; faria igual a um conhecido seu, iria empregá-la na casa de uma moça, e ela poderia trabalhar e estudar. Mas não foi bem assim. Duzu ficou na casa de dona Esmeraldina, uma dona de prostíbulo; mas nem ela, nem a família sabiam disso. Ela achava aquelas moças muito bonitas, que pintavam o rosto e a boca. Como a casa tinha muitos quartos, aprendera que deveria bater e só depois de ter a permissão é que poderia entrar. Um dia, esqueceu-se disso e entrou direto. Viu um homem nu deitado em cima de uma moça. Achou bonito. Depois disso, entrava sempre sem ter permissão e obtinha diversos flagrantes. Gostava do que via; alguns casais a mandavam embora, outros não ligavam e houve até aquele quarto em que o homem lhe fez um carinho no rosto e foi abaixando a mão lentamente... A moça mandou que ele parasse. Era só uma menina. Ele deu dinheiro a Duzu, que voltou ali em diversos outros dias para entrar entrando, mas o homem não era o mesmo. Até que ele voltou, acariciou o rosto e os seios da menina enquanto estava deitado em cima da moça. Duzu tinha gosto e medo. Era estranho, mas era bom. Ganhou muito dinheiro depois. A partir daí, começou a se prostituir, sem saber que aquilo era prostituição. Começou a ganhar dinheiro e só entendeu que havia se tornado uma prostituta quando a dona do lugar passou a cobrar parte do dinheiro que ela ganhava (daí entendeu o porquê do homem lhe dar dinheiro. Entendeu o porquê de tantas mulheres e de tantos quartos ali. E entendeu também qual seria a sua vida.) Ganhou fama e fregueses. Viveu em muitos prostíbulos e levou a difícil Olhos d’água

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vida da prostituição por muitos e muitos anos, presenciando violência, exploração, drogas e assassinatos. Fez muitos filhos, nove, todos espalhados pelos morros. Os filhos também tiveram filhos (no mínimo dois cada um) e apegou-se a três netos: Angélico, Tático e a menina Querença. Agora, idosa, começou a delirar após a morte de Tático, menino de 13 anos, que já andava no mundo da violência, andava com uma arma. A dor foi tanta, que ela resolveu criar alguma forma de amenizar o problema. Voltou para o morro e foi morar com os filhos. Foi retornando ali que Duzu deu de brincar de faz de conta. E foi aprofundando nas raias do delírio que ela se agarrou para viver o tempo de seus últimos dias. As roupas balançando no varal eram sua inspiração. Sentia-se alegre, sentia que voava. Em seus delírios, pensava que não havia tristeza, que era carnaval. Precisava de uma fantasia para desfilar. E pegava papeis no lixo e ia montando sua fantasia para desfilar na “ala das baianas”. Até que o “dia do desfile” chegou. Ela voou alto, lembrou-se de rostos da mãe, do pai, dos filhos, da avó, da neta Querença. E morreu ali mesmo, nas escadarias da igreja. Querença soube da morte da avó quando chegou da aula. A avó, mesmo em seus delírios, havia ensinado uma grande lição: era preciso reinventar a vida, encontrar novos caminhos.

Maria Narração: terceira pessoa, por um narrador onisciente. Personagem central: Maria, uma doméstica negra e pobre Este conto narra a história de Maria, uma empregada doméstica que estava voltando do trabalho, carregada com sacolas de restos da festa do dia anterior. A patroa havia lhe dado frutas e uma gorjeta. Estava feliz, poderia comprar os remédios dos meninos e, ainda, compraria uma lata de Toddy. Os dois menores estavam em casa, gripados. 482

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Também trazia na mão um corte feito com a faca laser que havia cortado o pernil. Que coisa! Faca a laser corta até a vida! Quando o ônibus parou, Maria encontrou um homem que fez questão de pagar sua passagem. Pagou e foi sentar-se com ela no banco. Era seu ex-marido, pai de seu filho mais velho. Havia muitos anos que eles não se viam. Sentiram tristeza. Poderiam estar juntos, mas o destino não quis. Ele lhe segredara que não tivera ninguém depois dela; já ela arrumara dois filhos. Era difícil levar a vida sozinha. Cochichou um pouco mais alto: mandou um abraço, um beijo, um carinho no filho. Depois, levantou-se rapidamente sacando uma arma. O homem de trás anunciou o assalto. Maria ficou com medo, perderia o único alimento que destinara aos filhos. Era a primeira vez que via um assalto. Meu Deus, como seria a vida dos seus filhos? Mas o assaltante passou e não levou nada dela. Saíram do ônibus, fugiram. “ Foi quando uma voz acordou a coragem dos demais. Alguém gritou que “aquela puta safada lá da frente conhecia os assaltantes”. Maria se assustou. Ela não conhecia assaltante nenhum. Ela só conhecia o pai do seu primeiro filho. Ouviu uma voz: Negra safada, vai ver que estava de coleio com os dois.(...) Alguém argumentou que ela não tinha descido do ônibus só para disfarçar. Estava mesmo com os ladrões. Foi a única a não ser assaltada. (...) Alguém gritou Lincha! Lincha! Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos (...) Por que estavam fazendo isto com ela? Ela precisava chegar em casa e transmitir o recado ao filho. Estavam todos armados com facas a laser que cortam até a vida. Quando o ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o corpo da mulher estava todo dilacerado, todo pisoteado.”

Quantos filhos Natalina teve? Narração: terceira pessoa, por um narrador onisciente. Personagem principal: Natalina, uma jovem negra e pobre Olhos d’água

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A narrativa começa com Natalina alisando a barriga. Estava grávida pela quarta vez. Mas agora era diferente. Os outros [filhos] eram como se tivessem morrido pelo meio do caminho. Foram dados logo após e antes até do nascimento. As outras barrigas ela odiara. E o narrador começa a contar sobre as gestações anteriores da moça. Na primeira vez que ela engravidou, tinha apenas 13 anos; engravidara de um namoradinho chamado Bilico. Não queria o filho; a mãe lhe deu muitos chás, mas de nada adiantou. Um dia, a mãe disse que a levaria na casa de Sá Praxedes, uma mulher que fazia abortos, mas que era conhecida por “comer criancinhas”. Todas as crianças tinham medo dela. E como Natalina também era uma criança, teve medo. Teve medo e fugiu de casa. Foi ter o filho muito longe dali e no hospital mesmo já doou o filho a uma enfermeira. Saiu com a alma leve. A segunda gravidez foi com um peão de obra. Quando ele soube que ela estava grávida, ficou feliz e lhe propôs casamento, mas ela não quis casar-se, não queria família nenhuma. Ganhou o filho, e o pai foi embora para sua cidade natal com ele. A terceira gestação foi a pedido da patroa. Os patrões queriam um filho, mas a mulher não podia tê-lo. Então, Natalina lhes prestou esse favor: dormiu com o patrão até engravidar. Foi assistida em toda a sua gravidez. Ganhou o bebê e doou-o à patroa. A quarta gravidez era resultado de um crime. Um dia, uns homens invadiram seu barraco, confundiram-na com outra pessoa, queriam que ela falasse o paradeiro do irmão. Mas ela não tinha irmão, deixara suas 6 irmãs, a mãe e o pai há muitos anos. Não acreditando na moça, eles a levaram a um lugar deserto, de madrugada, e um homem a violentou. Em seu estado de êxtase, ele dormiu e deixou sua arma ao lado. Ela deu-lhe um tiro certeiro e fugiu. Meses depois, descobriu que estava grávida. Estava feliz. Estava ansiosa para ver aquele filho e não ver a marca de ninguém, talvez nem dela. Aquela criança, Sá Praxedes não ia conseguir 484

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comer nunca. Brevemente iria parir um filho. Um filho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da morte.

Beijo na face Narração: terceira pessoa, por um narrador onisciente. Personagem principal: Salinda, uma mulher negra e infeliz no casamento Salinda lembrou-se do beijo dado na face na noite anterior. Ainda trazia consigo a lembrança. Algo tão tênue como os restos de uma asa amarela, de uma borboleta-menina, que foi atropelada nos primeiros instantes de seu inaugural voo. Ela estava aprendendo um novo amor. Salinda era casada e infeliz no casamento. Desde que seu marido desconfiara de um colega de trabalho, ele vivia perseguindo a mulher; chegou a colocar detetive atrás dela. Quando jovens, eles namoraram, mas depois terminaram. Mais tarde, ela teve uma filha com outro homem, depois eles se reencontraram e casaram-se. Mas o casamento ia de mal a pior; ele constantemente ameaçava se suicidar e deixar uma carta colocando a culpa nela; ou matá-la; ou tomar as crianças, caso descobrisse que ela o traía. Estava desfazendo a mala que ficara ali desde a manhã e pensava na vida. Havia deixado as crianças em Chã de Alegria, na casa de uma tia, dona Vandu, que também era sua cúmplice. Salinda traía o marido, sim, mas não com o colega de trabalho, como ele pensava, mas com outra mulher. Já era noite, estranhou a ausência do marido. Algo estava estranho. Quando o telefone tocou, era ele. Dizia que já sabia de tudo, que ela e a tia foram descuidadas. Que se preparasse para a guerra, pois iria disputar “ferrenhamente” os filhos. Sem ter/saber o que fazer, Salinda contemplou-se no espelho. E no lugar de sua face, viu a da outra. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves Olhos d’água

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gêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E um leve e fugaz beijo na face, sobra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória.

Luamanda Narração: terceira pessoa, por um narrador onisciente. Personagem principal: Luamanda, mulher negra de quase 50 anos, mas com aparência de 35 As marcas da idade não haviam atingido Luamanda. Beirando os 50 anos, mas com corpinho e mente muito mais jovens, em noites de nostalgia, lembrava-se de seus amores. O primeiro foi quando tinha onze anos, mas ficou só naquele romance de criança. A mãe descobriu, aplicou-lhe uma surra. O amor dói? Desejou crescer, os pelos crescendo e seu corpo se formando; cartinhas de amor... O amor é terra morta? Aos treze anos, em um terreno baldio, perdeu a virgindade – o menino também era virgem. Luamanda chorando de prazer. O gozo-dor entre as suas pernas lacrimevaginava no falo intumescido do macho menino. O amor é terremoto? Depois, em outros tempos, quando já havia adquirido vasta experiência, revela abortos sofridos: cinco. O amor é um poço misterioso onde se acumulam águas-lágrimas? Depois experimentou o amor de ouras mulheres. No começo achou estranho, mas depois de nada sentiu falta. O amor se guarda só na ponta de um falo ou nasce também dos lábios vaginais de um coração de uma mulher para outra? Depois, conta sua experiência com um rapaz bem mais jovem que ela; ela pensava que o intumescido bastão dele ia penetrar no seu corpo, 486

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desde lá de baixo e lhe vazar pela boca afora. O amor não cabe em um corpo? E assim, teve muitas experiências, com vários homens e mulheres de naturezas diversas. Até que teve uma paixão avassaladora por um velho. Ela diz que seu membro nem sempre funcionava na hora do sexo, no entanto, foi no corpo do velho que ela melhor executou o ritual do amor. O amor é um tempo de paciência? “Entre encontros e desencontros, Luamanda estava em franca aprendizagem. Uma aprendizagem por dentro e fora do corpo. A cada amor vivido, Luamanda percebia que a lição encompridava, mas que ainda faltava testes, arguições, sabatinas e que ela sabia só um pouquinho ou talvez nem soubesse nada ainda.” Olhou-se no espelho, pensou em um poema em que uma mulher se contemplava procurando sua outra face. Não era o caso dela, ela se descobria sempre. Imaginou-se com os cabelos brancos sobre o rosto negro. Distraiu-se ; tinha um compromisso naquela noite. Outro amor a esperava. Ouviu os assobios, saiu apressada. Podia ser que o amor já não suportasse um tempo de longa espera.

O cooper de Cida Narração: terceira pessoa, por um narrador onisciente. Personagem principal: Cida, uma mulher de 29 anos Este conto narra a história de Cida, uma garota de 29 anos que corria todos os dias no calçadão de Copacabana. O problema é que ela corria não só no calçadão, sua vida era uma corrida. Vivia sempre agitada, sempre tendo que fazer mil coisas, rotina certeira. Não era natural do Rio de Janeiro; estava ali desde os 17 anos, quando um tio lhe arranjara um emprego. Era sozinha e corria cada vez mais. Corria contra ela própria, não perdendo e não ganhando nunca. Um dia, acordou estranha, foi correr, mas sentiu vontade de parar. Olhos d’água

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Tornou-se lenta e, pela primeira vez, viu o mar. Começou a perceber as coisas; a vida era frágil. Abandonou o calçadão e foi para a areia. Sentiu necessidade de arrancar os tênis que lhe prendiam os pés e deixou aquelas correntes abandonadas ali mesmo. Ao olhar o mar, viu um nadador brincando. Como era possível se divertir àquela hora? Eram 6h55min. Deveria ser muito rico, pensou ela. Saiu dali, a passos lentos. Quando chegou em frente ao prédio, o amigo já esperava, completamente surtado pelo atraso da moça. Ficou pior ainda quando a viu em trajes de cooper. Pensou que tivesse sido assaltada ou algo parecido. Falou, esbravejou, mas ela só lhe olhava. Depois de algum tempo, mandou-o ir trabalhar. Ela não iria naquele dia. Ia dar um tempo para ela. Mas falou tão baixinho, como se fosse um momento único de uma misteriosa e profunda prece.

Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos Narração: terceira pessoa, por um narrador onisciente. Personagens principais: as gêmeas Zaíta e Naíta Este conto narra a história de Zaíta e Naíta, duas crianças gêmeas que viviam tirando a mãe do sério porque deixavam seus brinquedos espalhados pelo chão. A mãe morava com as duas filhas e dois filhos em um barraco de uma favela; trabalhava, mas a vida estava cada vez mais difícil; um dos filhos se metera com tráfico e drogas, andava armado; ela não deixava que dinheiro dele entrasse em casa, mas, sinceramente, às vezes se questionava se tanto trabalho e nenhum dinheiro valia a pena – no entanto, jamais disse isso a alguém. Um dia, Zaíta sentiu falta de sua figurinha da menina que carregava flores, a figurinha que ela mais gostava e que parecia exalar perfume. Não quis perguntar à mãe, porque sabia que ia apanhar. Então, precisava achar a irmã. Naíta havia lhe oferecido uma boneca negra, muito 488

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bonita, mas que só tinha um braço. Zaíta não aceitou. Na noite anterior, dormira com a figurinha debaixo do travesseiro; levantara-se para ir à escola e, agora, já não estava mais lá. Saiu para a rua à procura da irmã. Foi casa por casa e não a encontrou. A cada ausência de informação sua mágoa crescia. Tinha o pressentimento de que a figurinha-flor não existia mais. Zaíta andava de beco em beco à procura da irmã. Chorava. Lembrou-se da mãe. Iria apanhar muito quando chegasse a casa. Em sua caminhada, tentava se lembrar de como a figurinha havia ido parar em sua mão. Não conseguia. Em casa, quando a mãe deu falta das filhas, saiu a procurá-las e tropeçou naquele monte de brinquedos espalhados pelo chão. Xingou, ficou com raiva, quebrou toda a boneca negra bonita. Naíta, que estava escondida da irmã na casa ao lado, ouviu o barulho e resolveu voltar para casa. Foi recebida com tapas e safanões. A mãe mandou que fosse procurar a irmã. Iria dar duas notícias de que a irmã não iria gostar muito: uma é que ela perdera a sua figurinha e, a outra é que a mãe estava braba com elas. Zaíta, em sua busca pela irmã, acabou sendo assassinada por um tiroteio ocorrido no morro, que envolvia o irmão dela. Cinco ou sei corpos, como o de Zaíta, jaziam no chão. Quando Naíta viu a irmã, demorou um pouco para entender. Aproximou-se do corpo dela e gritou: - Zaíta, você esqueceu de guardar os brinquedos?

Di lixão Narração: terceira pessoa, por um narrador onisciente. Personagem principal: Di Lixão, um garoto de 15 anos Di Lixão era um menino de 15 anos que morava com outro garoto, de 14 anos em uma favela. Certo dia, amanheceu com o dente doente e sentiu uma bola de pus no canto da gengiva. Aquilo doía feito um inferno. Acordou e deu uma cusparada no companheiro de quarto; o garoto, em instinto de defesa, pulou sobre ele e deu-lhe um pontapé nas partes Olhos d’água

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baixas. Di Lixão estava apavorado de dor. Agora a dor de cima se juntava com a dor de baixo. Pensou na mãe. Ainda bem que aquela puta tinha morrido. Sabia quem a matara, tinha visto tudo, mas não dizia nada à polícia. Não gostava dela. O dente de Di Lixão latejava compassadamente. Ele era uma dor só. As dores haviam se encontrado. Doía o dente. Doíam as partes de baixo. Doía o ódio. Ficou naquela agonia. Queria mijar, mas tudo doía. O dia amanhecia quente, mas ele sentia muito frio. Conseguiu urinar. Estava urinando sangue. Passou a língua no canto da boca. O carocinho latejou. Num gesto coragem-desespero levou o dedo em cima da bola de pus e apertou-a contra a gengiva. Cuspiu pus e sangue. Di Lixão morrera ali mesmo, fora encontrado em posição fetal, morto, com um filete de sangue saindo da boca entreaberta.

Lumbiá Narração: terceira pessoa, por um narrador onisciente. Personagem principal: Lumbiá, um menino negro Conta a história de Lumbiá, um menino que vendia amendoins e chicletes na rua, junto com a irmã e um amigo. Mas o que ele gostava mesmo era de vender flores. Ficava fascinado com aquele colorido em seus braços. E tinha a manha para vender aos namorados apaixonados; gostava de ver que também não havia somente namorados homens e mulheres, mas que os iguais também namoravam. E vendia muito! Às vezes, sentava-se em uma mesa e fingia que chorava muito – muitas vezes, não era fingimento, lembrava-se da vida triste que levava e chorava de verdade; as pessoas o ajudavam dando-lhe dinheiro. Mas o que o encantava mesmo na vida era o Natal, mais especificamente, a imagem do menino Jesus. Sentia-se parecido com ele em toda a sua pobreza, só faltava ser negro como ele. Um dia, uma das casas comerciais iria armar um presépio no interior da loja e abriria para 490

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visitação. O problema é que criança sozinha não entrava; ele sabia que se esperasse pela mãe dele, não veria nunca. As crianças tentaram entrar, mas os seguranças não deixavam. No dia 23 de dezembro, fazia muito frio, a loja já quase fechando, quando o segurança deu uma bobeira, ele entrou. Lá estava o Deus-menino de braços abertos. Nu, pobre, vazio e friorento como ele. De braços abertos, o Deus-menino pedia por ele. Erê queria sair dali. De repente, Lumbiá pegou o Deus-menino nos braços e saiu correndo. O segurança tentou pegá-lo, mas o garoto fugiu. Atravessa a rua, não vê o carro, o sinal aberto; é atropelado e morre.

Os amores de Kimbá Narração: terceira pessoa, por um narrador onisciente. Personagem principal: Kimbá, um adolescente negro e pobre O conto narra a história de Kimbá, um jovem rapaz negro e pobre, que morava em uma favela carioca. Kimbá (esse apelido veio de um amigo rico, Gustavo, que morava na zona sul do Rio, que dizia que o rapaz era parecido com um outro amigo que ele deixara na Nigéria) não gostava da vida que levava; não gostava do morro, nem de seus habitantes. Vivia em condição de extrema pobreza: morava com a mãe, as tias, a avó, duas irmãs e um irmão em um pequeno barraco. Achava-se muito bonito e atraente; tinha um belo corpo que chamava a atenção de mulheres e de homens. E isso o assustou um pouco: os homens também gostavam dele. Não se acostumava muito com aquela ideia. Gostava mesmo era de Beth, uma garota rica, que fora apresentada a ele pelo amigo que lhe dera o apelido de Kimbá. Lembrou-se do dia em que conhecera a garota, um encontro bom, gostoso e cheio de safadezas. O encontro, na verdade, era a três. De repente, a garota ficou nua e Gustavo também tirou a roupa. Mas, o que mais causou estranheza em Olhos d’água

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Kimbá foi o fato de o amigo vir até ele, tirar a sua roupa e fazer sexo oral. Depois Beth veio participar da festa... Kimbá saiu daquele encontro de corpo leve. Não sabia, porém, se estava feliz ou infeliz. Estava apaixonado por Beth, mas e o amigo? Nunca tinha percebido que ele era... Será que o homem ia dar em cima dele? A situação se desenrolava: Beth estava apaixonada por Kimbá, e ele por ela, mas Gustavo também era apaixonado por Kimbá, porém nunca teve coragem de se declarar.. Isso acabou gerando certo incômodo, ciúmes que não poderiam ocorrer, afinal eram amigos, e Gustavo havia apresentado Kimbá a Beth. A situação chegou a tal ponto, que Kimbá teria de se decidir entre um e outro; combinaram um encontro em casa de Beth e fizeram um pacto: a morte selaria o pacto de amor entre eles. A morte pelo amor dos três. Quando ele chegou, Beth e Gustavo já estavam nus; tirou também sua roupa e cada um tomou um copo de veneno. Deitaram-se e esperaram a morte chegar.

Ei, Ardoca Narração: terceira pessoa, por um narrador onisciente. Personagem principal: Ardoca, um homem negro e pobre É a história de Ardoca, um trabalhador que sempre convivera com os trens, mas que nunca se acostumara com eles. Mesmo aos domingos, em casa, ouvia o barulho do trem nos trilhos, e isso o perturbava muito. Uma tarde, caminhou em direção à estação, comprou o bilhete, entrou no trem, encostou-se na parede e, lentamente, foi escorregando o corpo até chegar ao chão. Uns tinham pena, outros diziam que estava bêbado; uma mulher deu-lhe um copo de água. Ele suava frio. De repente, um rapaz veio abrindo caminho: Ei, Ardoca! Ei, Ardoca! Pegou o homem no colo e levou-o até o banco, na rua. Quando os passageiros viram, o trem já em movimento, o rapaz estava 492

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tirando sapatos, relógios, roupa, enfim, estava assaltando Ardoca. Não podiam fazer mais nada por causa da velocidade do trem. Também Ardoca já estava sem vida. Havia bebido veneno e decidira morrer no trem. O barulho da máquina sobre os trilhos entoava uma música réquiem de descanso eterno para Ardoca. Amém.

A gente combinamos de não morrer Narração: vários narradores Personagens principais: Bica e Dorvi A história é dividida em partes, cada qual com um narrador, e separada apenas por um espaço, como se fosse uma linha em branco. 1ª parte – narração: 3ª pessoa, narrador onisciente Dorvi se lembra do juramento feito junto a outros meninos do morro: “A gente combinamos de não morrer.” Estava chorando, ao lado de uma lixeira na qual jogaram o corpo de uma mulher que haviam matado. Era a fumaça, pensou para justificar as lágrimas. Cheirou droga, lembrou-se do filho que acabara de nascer, seu “putinho”; quis cutucá-lo com a ponta da escopeta, mas Bica, a mulher, não deixou. 2ª parte – narração: Bica Pensa no medo; pensa na coragem; não tinha medo daquela vida violenta. Medo, coragem, medo, coragemedo, coragemedo, dor e pânico. Uma festa. Ouve barulhos de tiro e tapas; não gosta de tevê. Lembra-se do irmão Idago, morto na favela com tiro. Vacilou, dançou. Meu neném dorme. Ainda me resto e arrasto aquilo que sou. 3ª parte – narração: inicia com terceira pessoa, e depois com a mãe de Bica A mãe de Bica e Idago está assistindo televisão; lá fora barulho intermiOlhos d’água

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nável de tiros. Decide se fixar na novela para esquecer o mundo real em que vive. Teve dois filhos e alguns abortos provocados. Adora novelas. Preferia viver a vida das personagens a viver a sua. Naquele dia, fazia cinco anos da morte do filho – pobre garoto, era calado e infeliz. 4ª parte – narração: Bica Bica se lembra do irmão. Idago teve morte merecida. Ali no morro, as regras eram claras: falou, dançou. E ele era “bocudo”. Lembra que uma vez, na escola, entregou a todos que roubavam merenda; os meninos pegaram-no e encheram sua boca de pimenta. Ele tinha 11 anos, ela, 12. 5ª parte – narração: Dorvi Dorvi pensa na vida: muita droga, violência, morte, exclusão social, injustiça. Lá de cima olha o mar, sente-se pequeno. Quero boiar no profundo fundo do mar. É lá no profundo fundo que eu vou construir um castelo para a morada de meu filho. Bica, predileta minha, vai também. Ela sabe que da ponta da escopeta também sai carinho. 6ª parte – narração: Mãe de Bica A mãe relata a preocupação dela para com a filha. Gostava de Dorvi; conhecia-o desde criança, mas não era esse o futuro que queria para a filha. Sabia que o genro estava encrencado, conseguira um ponto de droga, mas confiara na pessoa errada e agora estava com problemas com os fornecedores. 7ª parte – narração: Dorvi Dorvi sente que a morte se aproxima, o pior é que juraram: “A gente combinamos de não morrer.”, e agora ele teria de ir atrás do seu amigo. Mataria e morreria; o juramento seria quebrado. O garoto reflete sobre como a sensação de perigo lhe dava prazer; uma vez, chegou a gozar no meio de um tiroteio, tamanha era sua excitação com a violência. Agora, sentia que seu corpo formigava. Vou matar, vou morrer. É lá no mar que vou ser morrente. É no profundo do fundo, que guardarei para sempre as 494

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lembranças do meu putinho e da dileta minha. 8ª parte – narração: Bica O esperado acerto de contas aconteceu. Dorvi matara Neo, colega ali do morro e estava sumido. Bica relembra de todos ali que cresceram juntos, meninos e meninas. Está escrevendo; adora escrever, inventar histórias. Escrever funciona para mim como uma febre incontrolável, que arde, arde, arde... Gosto de ver palavras plenas de sentido ou carregadas de vazio dependuradas no varal da linha. Palavras caídas, apanhadas, surgidas, inventadas na corda bamba da vida. Bica tinha fome, mas não era fome de comida, era outro tipo de fome. Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro. Tenho fome, outra fome. Entre Dorvi e os companheiros dele havia o pacto de não morrer. Eu sei que não morrer, nem sempre é viver. Deve haver outros caminhos, saídas mais amenas. Enquanto ela escrevia, lá fora, muito barulho de tiros, muitos corpos no chão; e lembra que lera: “Escrever é uma maneira de sangrar”.

Ayoluwa, a alegria do nosso povo Narração: terceira pessoa, por um narrador onisciente. Personagem principal: Ayoluwa O conto narra a história de uma aldeia, antes e depois do nascimento de uma menina de nome Ayoluwa. Conta o narrador que antes do nascimento da menina, a comunidade estava em uma fase de total depressão: ninguém tinha mais ânimo para nada; a escassez de tudo (alimentos, alegria, água, sonhos, desejos, dança, etc.) era visível por ali. As pessoas morriam cedo e matavam-se, pois não tinham razão de viver. Nenhuma criança nascia por ali há muito tempo. Até que um dia, quando estavam em volta da fogueira, uma mulher jovem anunciou: “Bamidele, a esperança, anunciou que ia ter um filho.” Isso transformou a aldeia, todos voltaram a ter esperança; a vida renascia naquela comunidade. Ficaram esperançosos, mas tinham consciência de Olhos d’água

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suas dificuldades. A maior era a nossa dificuldade interior de acreditar novamente no valor da vida... Ayoluwa não veio com a promessa da salvação, mas também não veio para morrer na cruz. Ayoluwa, alegria de nosso povo, e sua mãe, Bamidele, a esperança, continuam fermentando o pão nosso de cada dia.

ANÁLISE DA OBRA Olhos d’água é um livro composto por 15 contos, alguns deles já publicados nos “Cadernos Negros”, uma série que reúne poetas e escritores de todo o Brasil e tem como fim dar visibilidade à literatura negra. A obra, de autoria de uma escritora negra e pobre, de pais desconhecidos, que nasceu em uma favela de Belo Horizonte – MG e que passou de empregada doméstica a professora da Universidade Federal de Minas Gerais, trabalha com relatos de vida de personagens negras e sua consequente herança da época de escravidão: a discriminação racial e todo o tipo de violência aí envolvido. Em Olhos d’água, percebemos uma diferenciação bem grande daquela literatura que envolve negros a que estamos acostumados nas obras canônicas: o negro com o papel de servidão ao branco, exercendo o papel de escravo, cozinheira, faxineira e, em alguns casos, de objeto sexual. As personagens de Conceição Evaristo são pessoas comuns que habitam o dia a dia dos morros e da comunidade negra/afro-brasileira urbana. É uma literatura escrita por negro e voltada para o sujeito negro que sente na pele muitas das situações por que passam os personagens. As histórias narradas chocam. São relatos de vida, dor, sofrimento, miséria e violência narrados na perspectiva de homens, mulheres, velhos, jovens e crianças que, apesar do sofrimento, possuem fé e esperança em dias melhores, mas sempre com o pé no chão. E atenção: este livro já caiu no Vestibular 2017 da UFSC. As questões sobre ele estão reproduzidas nos exercícios desta edição. Vale ressaltar que a UFSC trabalhou os seguintes contos: “Ana Davenga”, “O cooper 496

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de Cida”, “Ei, Ardoca” e “Quantos filhos Natalina teve?”.

A temática

Os temas trabalhados na obra são muitos, porém, são repetitivos em virtude da condição a que o negro é submetido; em quase todos os contos, a violência marca presença constante. No entanto, além disso, pode-se citar: a pobreza, a miséria, a desigualdade social, o preconceito racial, a infância, o erotismo, a vida de mulheres negras, faveladas, homossexuais em dilemas sobre o amor, a vida e a ancestralidade africana.

O tempo e o espaço As histórias se passam em um tempo psicológico, ou seja, não existem datas, não existe cronologia. Já os espaços são explicitados em alguns contos como favelas do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte.

A narração Os contos são narrados, em sua maioria, em terceira pessoa, por um narrador onisciente, aquele que sabe de tudo. Isso pode ser proposital, pois muitos autores se utilizam deste recurso para demonstrar algo impessoal, isto é, que pode ser qualquer um. Outra questão interessante também é pensar que essa terceira pessoa é feminista e negra – só alguém que vive aquelas situações é capaz de sugerir imagens, atos, características das personagens. Aqui neste livro, para cada conto descreveu-se a narração (se está em primeira ou terceira pessoa, convém voltar e conferir). Além disso, percebemos, nos contos narrados em primeira pessoa, como a autora dá voz às mulheres negras e suas vivências e, ao dar voz a quem esteve silenciado por tantos anos, eles nos mostram a afetividade, seus laços familiares, seus conflitos internos, suas lutas, suas reflexões Olhos d’água

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e, principalmente, mostram que são humanos e que sentem esperança.

O título Importante refletir também sobre o título da obra (e a consequente ilustração da capa da edição). A linguagem imagética da capa mostra um olho preto, inserido em uma pele negra, com tons de azul saindo do olho, representando as lágrimas. Existe um conto na obra (o primeiro) também intitulado “Olhos d’água” que tem tudo a ver com o título do livro e a ilustração; no entanto, esse título e essa ilustração parecem se casar muito bem com todos os contos. Isso porque, em todos eles sempre aparecem o retrato da tristeza, do sofrimento e da dor; sempre há alguém chorando (nunca de alegria) ou situações que remetem à água (lágrima, rio, mar, chuva). Assim, há personagens que têm “rios caudalosos” sobre a face; “águas correntezas” devido aos prantos; olhos tão “úmidos”, que eram “olhos d’água”. Há quem chore “diante da novela”; quem chora a morte do filho; quem chora pela miséria, pela fome; quem chora porque vive sozinha, sem um companheiro. O homem de Ana Davenga tinha um “choro-gozo” (sempre ficava em prantos após o prazer sexual). Já Luamanda, no gozo-dor, entre as pernas, “lacrimevaginava”. Dorvi tinha um “rio-mar” que rolava pela face – fazendo-se de durão, justifica suas lágrimas ao estar próximo da mulher em que havia botado fogo: era a fumaça que o fazia arder os olhos; para espantar a dor, sai cantando (“quem canta, os males espanta”): “Quem não tem colírio usa óculos escuros”. No conto “Quantos filhos Natalina teve?”, a personagem chorava “silenciosamente”. E, assim como esta, várias outras personagens vivem com os olhos úmidos, olhos d’água.

A linguagem

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A linguagem é de fácil acesso e, na maioria das vezes, é do tipo culta. Importante, porém, é perceber que a autora se utiliza de uma linguagem, muitas vezes, poética e tão sutil que parece amenizar a intensidade da gravidade do problema. Exemplo: Na favela, os companheiros de Davenga choravam a morte do chefe e de Ana, que mostrava ali na cama, metralhada, protegendo com as mãos um sonho de vida que ela trazia na barriga. Em uma garrafa de cerveja cheia de água, um botão de rosa, que Ana Davenga havia recebido de seu homem, na festa primeira de seu aniversário, vinte e sete, se abria. (p. 30) Olho d’água também parte em busca da renovação da linguagem; a autora cria um recurso da linguagem que alguns críticos denominam de “hifenização da escrita”, ou seja, junta palavras e as separa por hifens. Exemplo: “lava-lava” e “passa-passa” (p. 16); “peitos-maçãs” (p. 22); “gozo-pranto” (p. 23); o nome de uma de suas mais contundentes de sua galeria de personagens, “Duzu-Querença” (p. 31); “flor-criança” (p. 46); “borboleta-menina” e “dedos-desejos” (p. 51); “ave-mãe” (p. 55); “corpo-coração”, “gozo-dor” e “jorro-d’água” (p. 60); “barrigas-luas”, “águas-lágrimas”, “dança-amor” e “buraco-perna” (p. 61); “alma-menina” (p. 63); “figurinha-flor” (p. 74); “quarto-marquise” (p. 76); “coragem-desespero” (p. 80); “beija-beija” (p. 82); “verdades-mentiras” e “peito-coração” (p. 83); “Deus-menino”, “imagem-mulher” e “imagem-homem” (p. 84); “rio-mar” (p. 99); “fumacinha-menina” e “contra-contra” (p. 101); “mar-amor” e “mundo-canal” (p. 104); “mar-amar” e “mar-morrente” (p. 107). O fato de a escritora também ser poetisa, faz com que ela trabalhe os jogos de palavras, brinque com elas, invente-as, criando neologismos.

Olhos d’água

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Exemplo: “Luamanda” (p. 59) – formada dos vocábulos lua + manda (do verbo mandar); “Dorvi” (p. 99) – dor + vi (do verbo ver); “lacrimevaginava” (p. 60) – lacrimejar + vagina + sufixo –ava, que indica ação; “Salinda” (p. 51) – sá (abreviação de sinhá) + linda; coragemedo (p. 100) – coragem + medo. A autora utiliza, ainda, alguns nomes e vocábulos de origem africana: Yabás, Orixás, Oxum, Duzu, Lumbiá, Erê, Kimbá, Ayoluwa, Bamidele, dentre outros. Conceição Evaristo brinca, ainda, com os nomes das personagens, fazendo anagramas. É o caso da personagem ARDOCA, anagrama de ACORDA.

Os contos e as personagens de Olhos d’água A obra de Conceição Evaristo, como já vimos, tem o foco de interesse na população afro-brasileira, abordando a pobreza e a violência urbana que permeiam sua trajetória. Nesse contexto, vários personagens nos são apresentados, cada qual com sua história, mas todos com algo em comum: a violência a qual são submetidos em virtude de sua condição social ou de sua cor ou de sua opção sexual.

Olhos d’água No conto que dá nome ao livro, “a narradora não tem nome; ela é apresentada como mulher, negra, pobre, mãe e filha – nenhuma menção a personagem masculino na história. A personagem manifesta recordações das mulheres de sua família e de suas ancestrais desde a África: “Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida, não só dela, mas de minhas tias e todas as mulheres de minha família. E também, já naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas as nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra 500

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da vida com suas próprias mãos, palavras e sangue.” (p. 173-74)

Ana Davenga A personagem, que tem o mesmo nome do conto, tem 27 anos, é mulher, negra, pobre e amante. Ana se amasia com Davenga, um homem violento, líder de favela. Sabe os perigos que corre, mas não se incomoda. Morre assassinada com vários tiros, quando a polícia invade seu barraco.

Duzu-Querença Outro conto que traz o nome da personagem principal como título. Duzu é mulher, negra, pobre, fora prostituta, mãe, senil, avó, mendiga, demente. Duzu começa a se prostituir mesmo não sabendo o que era prostituição. Tem nove filhos, todos espalhados pelos morros. Ao final de sua vida, em seus delírios, deseja voar (a liberdade) e deseja também que a vida seja um carnaval: precisava construir sua fantasia.

Maria A personagem central, Maria, é mulher, negra, pobre, doméstica, separada, mãe de três filhos. Encontra o pai de seu filho em um ônibus que ele estava assaltando. Morre linchada e pisoteada pelos passageiros, que viram nela um comparsa dos ladrões. Além da violência física, Maria sofre violência moral no ônibus.

Quantos filhos Natalina teve? Natalina é uma personagem negra, pobre, solteira (não queria marido), mãe, violentada sexualmente. Engravidara quatro vezes e fizera vários abortos. Das 4 vezes em que as crianças vingaram, nunca teve amor pelas três primeiras, doou-as sem piedade. Apenas a última, que era fruto de estupro, de um homem que nunca vira, quis ficar para si.

Beijo na face Olhos d’água

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A personagem apresentada é Salinda, uma mulher, negra, casada, infeliz, mãe de dois filhos e mulher de marido inseguro; descobre-se homossexual. Salinda tem como cúmplice uma tia, e é na casa da tia que ocorrem seus encontros extraconjugais com outra mulher.

Luamanda Luamanda, personagem mulher, negra, 50 anos, mas com aparência de 35 (amava o corpo), que gostava de experiências sexuais diferenciadas. Assim, lembra-se de seus amores: homens jovens, mulheres, velhos.

O cooper de Cida Cida, 29 anos, solteira, tinha uma vida corrida. Um dia, decide parar para aproveitar a vida.

Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos, Di Lixão e Lumbiá Contos que trabalham o tema da infância. No primeiro, a personagem Zaíta é vítima de violência no morro (morre em um tiroteio na favela). Já no conto “Di Lixão”, a personagem principal, um menino de mesmo nome do conto, tem 15 anos, é órfão e não vive com a família. Um dia, amanhece com dor no dente; tudo estava infeccionado. É encontrado morto, em posição fetal, com a boca entreaberta correndo sangue. No conto “Lumbiá”, a personagem é um menino negro, de nome Lumbiá, que é obrigado a trabalhar na rua (vendia chicletes, flores, etc.) para ajudar no sustento da família. Gostava do Natal, do presépio; sentia muita afinidade com o menino Jesus, que se parecia muito com ele em sua pobreza, só não era negro. Morre atropelado ao pegar o menino Jesus de uma loja e sair correndo.

Os amores de Kimbá Kimbá é um garoto jovem, negro, pobre, morava no morro, mas não gosta de sua condição social; envolve-se com amigos ricos; apaixona-se por Beth, uma menina rica. É convidado para uma “festinha a três” 502

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e descobre que o amigo é apaixonado por ele. Mediante situação tão complicada, os jovens não veem saída e tomam veneno.

A gente combinamos de não morrer Dorvi e Bica são jovens, negros, pobres, pai e mãe ainda adolescentes. Ele é ligado ao tráfico de drogas; ela sabe do risco, gosta do perigo. Paralelo a isso, tem a mãe dela (negra, pobre, separada, mãe, filho morto por causa de drogas, se refugia nas novelas). Dorvi mata um amigo, quebra o juramento que combinaram, o de não morrer e some. Bica fica com o filho, os barulhos de tiros, mas tem a escrita para consolá-la.

Ei, Ardoca Ardoca é apresentado como uma personagem pobre, negro, casado, pai. Descontente com a vida, fraqueja, toma veneno e morre no trem, lugar que ele odiava.

Ayoluwa, a alegria de nosso povo Ayoluwa é uma menina que, ao nascer, traz esperança para uma comunidade negra que estava em crise. Aqui é importante dizer que sabemos que se trata de uma comunidade negra por causa dos elementos lançados pela autora que nos remetem a cultos, crenças e simbologias de origem africana, como, a etimologia dos nomes, a questão de se referenciar aos ancestrais, a simbologia da questão do nascimento (o ciclo da vida continua).

EXERCÍCIOS 1. Assinale a(s) opção(ões) correta(s) em relação à obra Olhos d’água. 01. O conto “Olhos d’água”, que abre o livro, traz marcas ancestrais da mulher, evocadas como um mantra, “que cor eram os olhos da Olhos d’água

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minha mãe?” Descobrir a cor dos olhos da mãe significa redescobrir a própria história, num ritual rítmico de presente e passado, que entram em harmonia, como as águas de um rio calmo. 02. “Duzu Querença”, ainda menina, foi morar na cidade com os pais, que por falta de condições financeiras, deixaram-na aos cuidados de uma mulher que prometia estudos em troca de trabalho. Duzu nunca estudou e acabou num prostíbulo se acostumando aos gritos de mulheres espancadas e à dor da morte. 04. As histórias de Conceição Evaristo são do tipo que podem ser perfeitamente encontradas nas páginas policiais dos jornais, na nossa família, na casa do vizinho; no entanto, a autora consegue transformar violência em poesia e transmitir a dor pela linguagem. 08. O livro conta histórias que refletem a pobreza, a miséria, a desigualdade social, a violência e a vida de mulheres, negros, favelados e outras diversas personagens envolvidas nesses contextos em dilemas sobre o amor, a vida e a ancestralidade africana. 16. “Beijo na face” retrata a história de Salinda, uma mulher perseguida pelo marido, que contratou um detetive particular para persegui-la, crente de que ela o traía com um colega de trabalho. 2. Indique a(s) proposição(ões) verdadeira(s) e faça o somatório. 01. No conto “Maria” a temática é a da violência urbana. Maria acaba sendo assassinada pelos passageiros do ônibus ao ser confundida como comparsa de ladrões. 02. No conto “Lumbiá”, temos um personagem adolescente que se recorda da mãe que lhe batia. Não gostava dela, mas quando é acometido de dores lancinantes, ele se deita “retomando a posição de feto”, como a buscar subconscientemente o colo de uma mãe que não existe mais. 04. O livro Olhos d’água traz à tona vozes negras, periféricas e em contextos de grande vulnerabilidade social. Os contos falam da banalidade da vida e mostram o silenciamento que sofrem os personagens. Esse 504

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universo pode ser claramente percebido no conto “Quarenta dias”. 08. A autora trabalha em seus contos uma linguagem sempre em busca de algo novo, de renovação, fazendo verdadeiros jogos com a escrita. É o caso, por exemplo, do recurso da hifenização em palavras como: “lava-lava”, “passa-passa”,“peitos-maçãs”,“gozo-pranto”, “Duzu-Querença”. 16. Conto que trata das lembranças erótico-amorosas de uma cinquentona que aparenta ser mais jovem do que os outros pensam: “Ana Davenga”. 3. Marque as alternativas corretas em relação à obra Olhos d’água. 01. É possível identificar a violência de modo muito claro no conto “Lumbiá”, tendo em vista que o personagem convive com ela desde criança. Inicialmente, o leitor depara-se com a violência praticada pela mãe, que dá safanões no menino, como castigo se ele não vendesse as mercadorias. 02. O conto que abre o livro ,“Olhos d’água”, e o conto que o encerra “Ayoluwa”, trazem questões referentes à ancestralidade de seus personagens e não indicam o mundo de sofrimento, fome e dor como acontece em outros contos como: “Maria”, “Ana Davenga”, “Di Lixão” e “Quantos filhos Natalina teve?” 04. Desde criança, na barriga da mãe, essa personagem andava de trem; agora, já adulto, tomava-o todos os dias para chegar ao trabalho, presenciava muitas situações desagradáveis e perigosas como assaltos, assassinatos, brigas que acontecem no trem, meio de transporte trabalhadores, pobres, negros. A personagem descrita é Kimbá. 08. Nos contos, percebemos que a autora vai além de uma construção vinculada apenas ao sofrimento; ela conduz o leitor a um aspecto da ancestralidade e identidade afro-brasileira que perpassa e em alguns momentos até acalenta a dura realidade de seus personagens. 16. O conto “Ayoluwa, a alegria do nosso povo” retrata elementos e Olhos d’água

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características de uma comunidade negra que passa por uma crise. A primeira parte do conto se refere ao momento em que as personagens se encontram desamparadas. A segunda, que se inicia com a notícia do nascimento de uma criança (Ayoluwa), é o momento em que se devolve à comunidade a esperança. 4. (UFSC 2017) Sobre a coletânea de contos Olhos d’água, de autoria de Conceição Evaristo, é correto afirmar que: 01. Conceição Evaristo, representante da literatura brasileira contemporânea, por meio de sua obra Olhos d’água, permite ao leitor tomar contato com questões de literatura e consciência negra, não apenas em razão do conteúdo desses contos, mas também em vista da figura politizada da autora – negra e de origem humilde. 02.o conto “Ana Davenga” explora a violência urbana, o espaço criminoso e marginal das favelas, a luta pela sobrevivência de uma faixa ignorada da população, além do tema do preconceito de classe expresso pelo relacionamento às escondidas de Davenga com Maria Agonia, filha de pastor. 04.em sua maioria, os contos possuem como título o nome dos seus protagonistas, evidenciando a simplicidade de sua origem social, fato destacado pela escolha de nomes comuns, tais como os dos personagens Zé Ninguém, Creuza, Mariazinha, João, Silva. 08. o conto “O cooper de Cida” apresenta a trajetória de uma atleta negra, sem condições econômicas propícias à prática desportiva competitiva, que precisa treinar na orla da praia de Copacabana, sem qualquer patrocínio ou equipamento qualificado. 16. “Ei, Ardoca” desenvolve conteúdo simbólico poético com base no meio de transporte do conto: a linha do trem é uma metáfora da jornada da vida, e o “fim da linha” para Ardoca se dá quando ele decide suicidar-se com veneno, tendo na morte sido despojado de todos os seus bens por um assaltante, ironicamente, um conhecido dele. 32. Olhos d’água é uma coletânea de narrativas curtas na qual está au506

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sente sentimentalismo ou julgamentos de valor moral, sendo caracterizada essencialmente pela crueza e complexidade no tratamento da realidade, podendo-se citar, por exemplo, o caso da personagem-título de “Quantos filhos Natalina teve?”, vítima de violência sexual que vê na criança a única gravidez desejada. 5. Assinale as opções verdadeiras em relação à obra Olhos d’água. 01. Na obra de Conceição Evaristo, a violência não aparece só de forma explícita: em “Beijo na Face”, por exemplo, a violência está no controle que o marido da personagem faz por ciúme, nas ameaças que ela sofre. Não há sangue, mas há uma constante tensão, que até dá um certo ar de suspense. 02. Os contos possuem personagens variados, no entanto, o local é sempre o mesmo: os morros de Belo Horizonte, lugar onde nasceu a escritora, e Rio de Janeiro. 04. O livro é formado por 15 contos que retratam a violência nas favelas cariocas. 08. Em muitos trechos, temos uma prosa poética, tamanho é o trabalho com a linguagem de Conceição Evaristo. 16. Os contos de Olhos d’água retratam a pobreza, a miséria, a desigualdade social, a violência e a vida de mulheres, negros, favelados e outras diversas personagens envolvidas nesses contextos em dilemas sobre o amor, a vida e a ancestralidade africana. 6. Assinale a(s) alternativa(s) correta(s) acerca cos contos de Olhos d’água, em seguida faça o somatório. 01. Em “Lumbiá”, o nome do conto é o mesmo do personagem. Lumbiá era um garoto negro que vivia pelas ruas vendendo balas, chicletes e flores. 02. No conto “A gente combinamos de não morrer”, Dorvi é assassinado pelo amigo por causa de traição. 04. Luamanda era uma mulher casada, com filhos, que traía o marido Olhos d’água

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com outra mulher. 08. Duzu começou a se prostituir ainda menina. Ao final da vida, tornara-se moradora de rua, pois os filhos a renegaram. Ela morre sozinha e triste nas escadarias da igreja. 16. Natalina tinha 14 anos quando engravidou pela primeira vez. A mãe colocou-a para rua de casa porque o pai não quis assumir o bebê e isso era uma vergonha para a família. 7. Faça o somatório das questões verdadeiras. 01. Contos como “Di Lixão” e “Os amores de Kimbá” retratam a violência ocorrida com crianças negras. Nesses contos, os personagens principais não têm família e vivem com outros meninos pelas ruas. 02. No conto “Luamanda”, a personagem se olha no espelho e lembra-se de um poema de Cecília Meireles (mas a personagem não se lembra da autoria do poema). A esse fenômeno, dentro da literatura, chamamos de intertextualidade. 04. No fragmento assinalado: “Ela sabia porém que ele possuía uma arma e que a cor vermelho-sangue já se derramava em sua vida.”, extraído do conto “Duzu-Querença”, temos uma figura de linguagem chamada sinestesia. 08. No conto “Ana Davenga”, a personagem Ana tem como companheiro um homem que é o chefe de um morro e que já matou uma mulher porque esta não queria casar com ele, pois ele era um marginal. 16. No fragmento do conto “Maria”: “Precisava comprar xarope e aquele remedinho de desentupir nariz. Daria para comprar também uma lata de Toddy.”, a figura de linguagem presente no termo sublinhado denomina-se metonímia (a troca do produto pela marca). 8. Treinando todos os contos... Escreva o título correspondente à síntese de cada conto. (Só para lembrar os títulos: Olhos d’água, Ana Davenga, Duzu-Querença, Maria, Quantos filhos Natalina teve?, Beijo na face, Luamanda, O cooper de Cida, 508

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Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos, Di Lixão, Lumbiá, Os amores de Kimbá, Ei, Ardoca, A gente combinamos de não morrer, Ayoluwa, a alegria de nosso povo) a) A personagem tem 50 anos, mas corpo e mente bem mais jovens. Conta suas experiências sexuais com homens de sua idade, outros bem mais jovens, outros bem mais velhos e com outras mulheres. b) A personagem é um menino negro que adorava a figura do menino Jesus. Um dia, rouba a imagem do Cristo de uma loja e, ao fugir, morre atropelado por um carro. c) A personagem provocou vários abortos e teve 4 gravidezes. Doou 3 filhos, porque não gostava deles e, agora, esperava o mais desejado: o filho de um estupro. d) É a história de uma mulher que foi trabalhar, ainda criança, como empregada e que acabou se tornando prostituta. Teve nove filhos, todos espalhados pelos morros. Ao final, já idosa, fica esclerosada e imagina que pode voar. e) e) A personagem é uma menina que sai de sua casa e anda pela favela em busca da irmã gêmea, que havia ficado com sua figurinha. Morre em uma troca de tiros entre bandidos. f) Ana encontra um companheiro líder de morro e vai morar com ele. No dia da festa de seu aniversário, a polícia invade seu barraco atrás do marido; como ele esboça reação, a polícia atira. Ana e o marido morrem assassinados. g) A personagem tem 29 anos e vivia sempre correndo. Um dia, decide parar para aproveitar a vida. h) Uma mulher se acorda com uma dúvida que vai perpetuar enquanto ela não encontra com a mãe: “De que cor eram os olhos de minha mãe?” i) Em uma comunidade negra, o nascimento de uma menina representa a esperança para o povo, que estava em crise. j) Bica e Dorvi, ambos adolescentes, têm um bebê. Ele é um traficante e acaba matando seu amigo, pois o outro o traíra. A morte do amigo Olhos d’água

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quebra o juramento que eles haviam feito de não morrer. k) A personagem é um menino de 15 anos que amanhece com dor de dente e, quando vê, tem uma enorme bola de pus na boca. A dor é tanta que ele fura a bola de pus com o dedo, mas acaba morrendo ali mesmo na rua. l) A personagem se criou no meio de trens, mas os odeia. Descontente com a vida, decide se matar, toma veneno e vai morrer dentro de um trem. m) Salinda era casada e infeliz. Por ciúmes, o marido colocou detetive atrás dela. Ao final é descoberta a traição: ela traía seu marido com outra moça. n) Um garoto jovem e pobre é convidado a uma festa na casa de uma menina rica da qual ele gostava; lá, ele descobre que seu amigo também gostava dele. Indecisos, os três decidem tomar veneno. o) A personagem central é morta após um assalto a ônibus – foi linchada porque julgaram que ela era comparsa dos bandidos, pois um dos assaltantes era seu ex-companheiro. 9. Tendo como base o conto “Olhos d’água” e o fragmento abaixo, faça o somatório das questões verdadeiras. “E quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi? Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas, eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum. Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção. Senti as 510

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lágrimas delas se misturarem às minhas. Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma são o espelho dos olhos da outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente o meu rosto, me contemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como estivesse buscando e encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei quando, sussurrando, minha filha falou: - Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?” (EVARISTO, Conceição. Olhos D´água. In: Olhos D´água. Rio de Janeiro: Pallas, 2016. p. 18-19)

01. Ao final do conto, a pergunta que a filha faz à mãe indica que a narradora tinha os olhos tais quais os da mãe, neles se reproduziam toda uma história, toda uma descendência que se perpetua de geração para geração. 02. É correto afirmar que a narradora utiliza uma voz poética, voz com sinestesias em: “Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha.” 04. O título do conto é muito significativo: a água é o elemento vital, o choro indica a dor, mas também é símbolo de resistência. 08. A narradora indica que os olhos de sua mãe são da cor de olhos d’água, águas de Mamãe Oxum. Na mitologia africana, Oxum representa a sabedoria e o poder feminino. É o orixá do amor, da fertilidade e da maternidade. 16. Em: “Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção”, temos um período composto, formado por três orações coordenadas assindéticas. 32. No conto, o marido da personagem é um chefe do tráfico. Por causa disso, seu filho fora morto pelas quadrilhas rivais.

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