História da Violência Contra a Criança

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Curso: Abuso Sexual Contra Crianças

MÓDULO 1

História da Violência Contra a Criança

GPEC – Educação a Distância | Autora: Ana Andrade da Silva Layout: Janaína Corrêa Martino Bernaola


ABUSO SEXUAL CONTRA CRIANÇAS MÓDULO 1

HISTÓRIA DA VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA

Capítulo I A Violência física como método de educar crianças e adolescentes A história do disciplinamento corporal de crianças e adolescentes no Brasil ainda não foi escrita, mas vamos fazer uma costura do que temos para entendermos melhor como são preparadas as nossas crianças para o mundo, onde “apanhar” é um termo que até pouco tempo era ou ainda é a forma de “educar”. Esta prática foi adotada ao longo de séculos de nossa história. No Brasil Colônia metro consolação A criança indígena vivia e crescia numa comunidade de princípios e costumes bem definidos. Era educada através de rituais da tribo, que desde cedo impunham regras que regulariam seu comportamento. O “Jurupari”, figura demoníaca de um bicho representada por um dançarino com máscaras, cabelo de gente, pelo e penas de bichos, era figura central desses rituais pedagógicos indígenas que, através do medo, passavam seus ensinamentos e preparavam a criança para enfrentar a vida. Seu corpo era desfigurado para espantar os espíritos maus: pintava-lhe a pele, perfurava-lhe os lábios, septo e orelhas, com fusos ou penas, pendurava-lhe dentes de animais no seu pescoço. Com muito medo e muita dor, a criança selvagem crescia trazendo no corpo as lições de 2


seus ancestrais e a força necessária para enfrentar os perigos e a beleza da vida. Não se penalizavam os índios com o “corpo frágil” da criança – isso é “coisa nossa”. Também os rituais de medo e de dor não tinham nada de “sadismo”. Traduziam, sim, uma pedagogia de alto significado cultural que incluía a criança em seu grupo e fazia-a identificar-se com ele. A criança sofria não castigos corporais corretivos, impostos por pais disciplinadores, mas o flagelo que lhe ensinava o uso e domínio de suas forças, que lhe ensinava a ser valente. “Brincava livre, solta, mas para tornar-se dona de sua vida, tinha que sofrer”. “O menino filho de escravos era, na expressão de Gilberto Freyre, o “leva-pancadas” do menino branco. Era como seu brinquedo e, na verdade, usado como tal”. O corpo da criança havia de ser protegido não só de doenças, mas também de “mau-olhado”, pra o que se fazia um sem número de feitiços, até hoje não totalmente descartados. A sua educação tinha no medo um dos mais importantes recursos. Não faltavam personagens terríveis e monstruosos para lembrar à criança os seus limites. Surgiam de toda parte, das praias (o homemmarinho), do mato (o Saci-Pererê) e tantos outros, dos riachos (a mãe d‟água), da beira dos rios (sapo cururu). Podia ser simplesmente “o bicho”, legado indígena, derivado do “Jurupari”. Esse recurso não parece ter sido eliminado. Continua fazendo parte de uma “pedagogia marginal” muito forte. “Olha que o bicho te pega” é uma frase que escutamos ainda hoje com muita frequência e que não é privilégio de uma determinada classe social. Os cuidados com o corpo da criança misturavam crendices e recomendações médicas. Nas senzalas, a negra africana tinha o costume sagrado de apertar o ventre e amassar o nariz e a cabeça da criança recém-nascida, coisa que havia de ser vigiada rigorosamente para que não fosse praticado nos filhos das sinhás, nem com os próprios, cuja morte significava perda da cria e de capital para o senhor de escravos. “Muitas crianças morriam, escreveu John Luccok, por causa de maneiras impróprias de tratar, de negligência ou indulgência danosa, frequentemente misturada uma com a outra. Deve-se levar também em conta a idade prematura em que as pessoas novas deixam já de ser consideradas como crianças... E, é doloroso acrescentá-lo, usa-se dos meios da mais baixa espécie a fim de impedir o nascimento de crianças, sendo que o infanticídio não é de forma alguma raro”.

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No Brasil Império “O menino branco, nos tempos da escravidão, era, a partir dos cinco anos, o “menino-diabo”, sádico, malvado (embora extremamente bem educado nas situações de cerimônia). Suas vítimas preferidas eram, evidentemente, os animais, as meninas e os moleques, filhos dos escravos, seus companheiros de brinquedo. Os seus jogos de maldade imitavam as crueldades dos senhores com os escravos”.

Nos colégios os meninos aprendiam o que era “sair da linha”. O professor, verdadeiro senhor dos escravos, usava de vários recursos para punir os alunos: punha o menino de braços abertos, ou humilhava colocando chapéu de palhaço na cabeça de quem desse risada, ou ainda ordenava a um coitado que ficasse de joelhos sobre grãos de milho. Batia com a palmatória ou espetava a barriga da perna do menino com uma vara de marmelo que tinha, para esse fim, um espinho enfiado na ponta. Beliscava, puxava as orelhas, dava bordoadas nos dedos, especialmente durante os exercícios de caligrafia que Gilberto Freyre assim escreveu: “o menino com a cabeça para o lado, a ponta da língua de fora, numa atitude de quem se esforça para chegar à perfeição; o mestre de lado, atento à primeira letra gótica que saísse troncha”. Em casa era a mesma coisa. Na frase de “menino-diabo”, entre os cinco e dez anos, o menino só apanhava menos que o escravo. “Era castigado pelo pai, pela mãe, pelo avô, pela avó, pelo padrinho, pela madrinha, pelo tio padre, pela tia solteirona, pelo padre-mestre, pelo mestre-régio, pelo professor de gramática”, escreveu Freyre. Nesta fase, símbolo de tudo o que não prestava, o menino era castigado com violência e crueldade, e os mestres nos colégios tinham total permissão para “fazer sua parte”... Os jesuítas, desde os primeiros tempos da colonização, tentaram apoderar-se, assim como fizeram com as crianças indígenas, do menino branco das Casas-Grandes, rivalizando com o pai no poder sobre aquele. O menino era forjado, então, para ser o adulto religioso que fizesse 4


penetrar, mais tarde dentro dos lares, a moral católica e os seus ensinamentos. Nas mãos dos jesuítas, o menino tornava-se adulto independentemente de sua vontade e da sua idade. O “menino-diabo”, instintivo, vagabundo, preguiçoso, era o alvo certo. Com palmatória e vara de marmelo entrava na linha e voltava para casa pronto, homem feito, culto, precoce, estudioso, amante das letras e, acima de tudo, religioso; vestindo, falando, pensando e vivendo de modo diferente, urbano, “europeizado”, fazendo com a família de hábitos rurais um contraste que o século XIX havia de aprofundar para depois, aos poucos, amenizar pela vitória de um sobre o outro. A transformação do “menino-diabo” em um homem culto e religioso. A disciplina ferrenha dos colégios de padres se manteve até fins do século XIX.

Brasil República “Era preciso disciplinar a criança”. Em todos os casos de violência física fica marcada a violência psicológica que era imposta à criança e ao adolescente. Alguns fragmentos literários demonstram as várias formas de violência na infância, tanto a violência física (corporal) como a psicológica.

“A agressividade de Recife, nos meninos estranhos e o movimento de tanta gente desconhecida, só fizeram aumentar ainda mais a timidez de Chateaubriand. Se os irmãos Jorge, Oswaldo e Ganot podiam ser vistos no meio de bandos de moleques, brigando nas ruas, tomando banho de mar e empinando papagaios, o raquítico Francisco de Assis passava os dias agarrado à saia da mãe. Já se tinha tentado de tudo para fazê-lo engordar um pouco: regimes especiais, canjas, suco retirado de músculo de boi. Durante meses ele foi obrigado a tomar vidros e mais vidros de enjoativo leite maltado Horlick, que um marinheiro trazia em caixas no vapor que vinha do Sul, mas nada deu resultado. Os médicos tranquilizavam a família: não havia por que se preocupar com a magreza dele, aquilo não era doença. Mas quanto à gagueira podiam desistir que a medicina ainda não tinha descoberto a cura para tal moléstia. Ele teria de conviver para sempre com a sofreguidão de tentar completar cada frase, cada palavra. Aconselhados por amigos e parentes, os pais experimentavam mezinhas e tratamentos domésticos para superar o problema. Punham-no diante de um espelho para que se visse tentando falar corretamente; apagavam as luzes, à noite, para ver se na escuridão a voz se animava a sair como a dos irmãos; obrigavam-no a conversar com outros gagos, na esperança de que o diálogo pudesse curar um deles. Mas nada dava 5


certo. Ao contrário, ele ficava mais irritado, emburrava e chegava a passar dias sem abrir a boca a fim de não pronunciar nem uma sílaba. No dia em que tentaram obrigá-lo a falar com pequenas pedras sob a língua – um método infalível, diziam, que já havia curado milhares de gagos pelo mundo – ele começou a tossir, engasgou e por pouco não morreu asfixiado”. (Azevedo, 1996) Este sadismo se manifesta curiosamente no caso de erros cometidos no canto das orações, fazendo distinção entre adultos e crianças. “Se um adulto, ao recitar salmo, responsório, antífona ou lição, errar e não se humilhar, ali mesmo diante de todos, com uma penitência, seja submetido a uma pena mais severa, porque não quis corrigir-se humildemente do erro cometido por negligência. As crianças, porém, sejam açoitadas por tal erro”. (45,1-3). A violência doméstica aparece em todas as camadas sociais em diferentes momentos da história do Brasil, sendo que nas camadas menos favorecidas ela se torna pública em virtude das denúncias e do decorrente acompanhamento feito pelos órgãos públicos. As camadas mais privilegiadas mantêm o anonimato e a discrição em atendimentos particulares. Do Século XVIII até 1950, a Roda dos Expostos era o dispositivo utilizado com o objetivo de receber crianças e recém-nascidos que eram abandonados e ou rejeitados pelos seus familiares em todas as classes sociais e hoje temos ainda o abandono, os castigos físicos, psicológicos, os abusos sexuais e a negligência que devasta a nossa infância.

As raízes do disciplinamento corporal de crianças e adolescentes no Brasil As raízes da prática, amplamente aceita, praticada e defendida, do disciplinamento corporal, se assentam: 

Na emergência da infância no Brasil;

Na pobreza política de nosso país.

Vejamos como esses processos interligados se articulam com a (re)produção das estratégias de disciplinamento corporal de crianças e adolescentes. Pode-se afirmar que a emergência da infância no Brasil é um processo que começou com a chegada dos portugueses, nossos primeiros colonizadores; 6


prosseguiu a partir do século XVI-XVII com a implantação do regime escravocrata, desenvolvendo com a instauração da República, na virada do século XIX para o século XX. Esse processo histórico representou, entre nós, não a fabricação de uma maneira universal abstrata de SER CRIANÇA, mas a construção de várias condições concretas de SER CRIANÇA, que podemos sintetizar enquanto “infância indígena”, “infância negra”, “infância pobre”, “infância rica”, “infância vitimizada” etc. Todas essas condições específicas e concretas de existência foram sendo construídas a partir do sentimento de infância que em desenvolvimento na Europa Pós-Medieval, veio para o Brasil pelos jesuítas. “O sentimento da infância trouxe consigo o interesse psicológico pela criança e a preocupação com sua saúde, higiene e formação moral: agora era preciso conhecê-la para melhor corrigi-la e a preocupação com sua educação e disciplinamento se tornou evidente”. (Holanda, 1990). Estado e Sociedade, para desincumbir-se da obrigação de educar muitas crianças brasileiras, desenvolveram estrategicamente dois dispositivos articulados, que é a pedagogia tradicional e a ideologia da criança-Criança. Através do Império e da República, essa Pedagogia Tradicional vai se adaptando às várias “situações da infância” e se modificando sem jamais desaparecer. A pedagogia Tradicional é a pedagogia da submissão da criança ao adulto. A pedagogia tradicional chegou ao Brasil também com os jesuítas e aqui frutificou como Pedagogia de ascese e do medo. Em contato com a criança indígena, a primeira criança brasileira, essa pedagogia assentava na percepção da infância como “momento oportuno para a catequese porque também é momento de união, iluminação e revelação. Mais além, é o momento visceral de renúncia da cultura autóctone das crianças indígenas, uma vez que certas práticas e valores ainda não se tinham sedimentado: valorizar a criança para que ela valorizasse o objetivo jesuítico na nova terra. O pepino torcido desde pequeno evitaria os „medonhos pecados‟ e mais que isso, o trabalho jesuítico seria visto como uma benesse... [Por isso mesmo], a fala dos jesuítas sobre a educação e disciplina tinha gosto de sangue: „como um cirurgião que dá um botão de fogo ao seu filho ou lhe corta a mão em que entram herpes, o qual ainda que pareça crueldade não é se não misericórdia e amor, pois com aquela ferida lhe sara todo o corpo‟. (Anchieta, J., Sermão de domingo de Pentecostes, 1564, p.504). Amor, pois feito de disciplina, castigos e ameaças importados para o Brasil Colonial pelos primeiros padres da Companhia de Jesus em 1549. (Amor correcional). 7


Para a Pedagogia Tradicional, a natureza da criança é originalmente corrompida e a tarefa da educação é erradicar esta selvageria natural que caracteriza a infância. “A educação se esforçará antes de tudo em disciplinar a criança inculcando-lhe regras. Não é por sadismo que a escola tradicional exige silêncio e imobilidade, que coloca as crianças em fila e que atribui tanta importância à aprendizagem das regras... É porque se apóia numa pedagogia da disciplina... e, a disciplina transforma a animalidade em humanidade...”, diz Kant. Não é por acaso que a Pedagogia Tradicional de índole escolar se traveste também de Pedagogia Déspota no âmbito da tradicional família brasileira. Déspota porque o disciplinamento é assumido como uma obrigação “natural”, do PAI-PATRÃO enquanto senhor dos mais fracos dentro do sistema familiar: mulheres, velhos, crianças, adolescentes, empregados, que dele dependem inclusive para sobreviver. Essa pedagogia enquanto concepção pessimista e idealizada de criança é a concepção da criança-Criança, enquanto Ser Menor, subalterno, desvalorizado, despossuído de bens e direitos. Essa concepção pessimista de uma suposta natureza infantil traz a ideia de que a infância dever ser VIGIADA e PUNIDA. “Basta relaxar por um só momento a vigilância sobre as crianças e adolescentes para que elas pendam para o mal‟. Sintetizando: Pedagogia Tradicional e a ideologia criança-Criança são como duas faces da mesma moeda: uma não existe sem a outra. As duas se vinculam e constituem o suporte ideológico para as políticas de disciplinamento corporal das novas gerações. O mapa cronológico das Principais Práticas de Disciplinamento Corporal InfantoJuvenil permite afirmar que somos uns Pais que, desde a descoberta até hoje, crianças e adolescentes – índias, negras, mulatas, brancas, ricas, pobres, do sexo masculino e feminino, vêm sendo disciplinados através de castigos físicos e/ou psicológicos, incluindo-se, no primeiro caso, as punições corporais e, no segundo, a intimidação e a humilhação. O disciplinamento tem se tornado sinônimo de EDUCAÇÂO para a OBEDIÊNCIA à lei do ADULTO (no sentido bíblico de obediência à lei do PAI). As estratégias de disciplinamento, geralmente ancoradas na punição física ou psicológica, são manifestações do que Manacorda (1992) chama de sadismo pedagógico de tradição greco-romana e judaico-cristã.

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VIOLÊNCIA UM PROBLEMA MUNDIAL DE SAÚDE PÚBLICA

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, “talvez a violência tenha sempre participado da experiência humana. Seu impacto pode ser visto de várias formas, em diversas partes do mundo. Todo ano, mais de um milhão de pessoas perdem suas vidas e muitas outras sofrem lesões não fatais, resultantes da violência auto-infligida, interpessoal ou coletiva. De forma geral, no mundo todo, a violência está entre as principais causas de morte de pessoas na faixa etária de 15 a 44 anos”. Apesar da dificuldade em se obter estimativas precisas, o custo da violência se traduz em bilhões de dólares americanos em gastos anuais com assistência à saúde no mundo todo e, no caso das economias nacionais, mais alguns bilhões em termos de dias de trabalho perdidos, aplicação das leis e perdas em investimentos. É claro que não se pode calcular o custo humano em sofrimento e dor. Na realidade, muito deste custo é invisível. Ao mesmo tempo em que a tecnologia dos satélites tem tornado certos tipos de violência – terrorismo, rebeliões, tumultos civis, guerras - visíveis ao público, há muito mais violência ocorrendo de forma invisível nos lares, locais de trabalho e, até mesmo, em instituições médicas, sociais, criadas para cuidar das pessoas. Muitas vítimas são muito jovens, fracas ou doentes para se protegerem, outras são obrigadas a manter segredo das violências sofridas. Assim como ocorre com seus impactos, algumas causas da violência podem ser facilmente percebidas. Outras estão profundamente enraizadas no arcabouço cultural e econômico da vida humana.

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UM PROBLEMA QUE PODE SER EVITADO (?) Apesar de a violência sempre ter estado presente, o mundo não tem de aceitála como parte inevitável da condição humana. Desde que a violência existe, também existem sistemas – religiosos, filosóficos e legais - que se desenvolveram para evitá-la ou restringi-la. Nenhum desses sistemas foi totalmente bem sucedido, mas todos deram sua contribuição para esse marco definidor da civilização. A violência pode ser evitada e seu impacto minimizado, da mesma forma que os esforços em saúde pública evitaram e reduziram, em muitas partes do mundo, complicações ligadas à gravidez, mortalidade infantil, doenças infecciosas e doenças resultantes de alimentos e água contaminados. A violência pode ser evitada. Não se trata de uma questão de fé, mas de uma afirmação baseada em evidências. Podem-se encontrar exemplos bem sucedidos em todo o mundo, desde trabalhos individuais e comunitários em pequena escala até políticas nacionais e iniciativas legislativas.

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DEFININDO VIOLÊNCIA

Qualquer análise abrangente da violência deve começar pela definição das várias formas de violência, de modo a facilitar sua mensuração científica. Existem várias maneiras de definir a violência. A Organização Mundial da Saúde define violência como: “O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação”. A definição utilizada pela OMS associa intencionalidade com a prática do ato propriamente dito, independentemente do resultado produzido. A inclusão da palavra “poder”, além da frase “uso da força física”, amplia a natureza de um ato violento e expande o entendimento convencional de violência de modo a incluir aqueles atos que resultam de uma relação de poder, inclusive ameaças e intimidações. O “uso do poder” também serve para incluir a negligência e todos os tipos de abuso físico, sexual e psicológico, bem como o suicídio e outros atos de auto-abuso. Essa definição cobre uma ampla gama de consequências, inclusive dano psicológico, privação e deficiência de desenvolvimento. Ela reflete um reconhecimento cada vez maior por parte dos pesquisadores e profissionais acerca da necessidade de incluir a violência que não resulta necessariamente em lesões ou morte, mas que, contudo, oprimem as pessoas, as famílias, as comunidades e os sistemas de assistência à saúde no mundo todo. Muitas formas de violência contra mulheres, crianças, idosos, por exemplo, podem resultar em problemas físicos, psicológicos e sociais que não necessariamente levam a lesões, invalidez ou morte. Essas consequências podem ser imediatas, 11


bem como latentes, e podem perdurar por anos após o abuso inicial. Portanto, definir os resultados somente em torno de lesões ou mortes limita a compreensão da totalidade do impacto da violência sobre as pessoas, as comunidades e a sociedade como um todo. O castigo físico e humilhante imposto à infância poderá ter reflexos negativos ao longo da vida de uma criança.

O que se pode dizer da violência doméstica? A violência doméstica é um mito que ainda é tratado com certa restrição: a família é considerada um “santuário”, onde ninguém tem o direito de interferir e questionar as atitudes dos pais, pois há um mito que os envolve. Mito que confere aos responsáveis uma imagem de protetores e guardiões da criança, e que, pressupondo a existência da relação de afeto, toda atitude tomada pelos pais é “justificada” pela sociedade. A partir da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma lei federal (Lei 8.069 de 13.07.90) que regulamenta as conquistas em favor da infância e juventude, de acordo com o Art. 227 da Constituição Federal: “É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, crueldade, opressão e violência”. Sobre a conceituação de maus-tratos, esta é difícil e complexa, principalmente considerando-se que vivemos em uma sociedade onde os castigos são relativamente comuns. Castiga-se a criança/adolescente para educá-lo, castigase para dominá-los e por inúmeras outras causas. Torna-se, porém, difícil definir até onde vai o educativo e onde começa o exagero. Cabe aqui uma descrição sobre o termo “maus-tratos”, segundo o Código Penal: “expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda

ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de coerção ou disciplina”. Historicamente, foi feito em 1860 um estudo de medicina legal, a primeira a estabelecer o conceito de criança maltratada, por Ambrosie Tardieu, na França. Ao proceder ao estudo de 32 casos (com 18 mortes) de crianças submetidas a sevícias, ele constatou que elas haviam sofrido variadas lesões (fraturas diversas, queimaduras, hematomas, equimoses) e que explicações fornecidas 12


pelos pais discordavam das características destas mesmas lesões: “entre

numerosos e diversos fatos que compõem a história médico-legal das pancadas e ferimentos, há um que forma um grupo completamente separado do resto. Estes fatos, que até agora permaneceram em total obscuridade, merecem por mais de uma razão ser trazidos à luz do dia. Refiro-me aqueles relativos ao tratamento brutal e cruel do qual algumas crianças são vítimas e imposto por seus pais, seus professores, por aqueles que exercem uma autoridade mais ou menos direta sobre elas... desde a mais tenra idade estas indefesas e desafortunadas crianças passam a cada dia e a cada hora pela mais severa crueldade... por punições corporais violentas, torturas que enchem de horror a nossa imaginação, que consomem seus corpos, encurtam suas vidas e, finalmente, a coisa mais inacreditável é que os executores destas crianças são na maioria das vezes aqueles que deram a vida, isto é, o problema mais terrificante que perturba o coração do homem”. (Wolfe, 1988) Tardieu, ainda em seu trabalho, descreve certas características de comportamento dos pais e identifica algumas condições sócio-culturais associadas ao fenômeno.

Muito tempo depois, a Medicina retomaria a questão da violência física doméstica contra crianças e adolescentes. Isto ocorreu em 1962, nos EUA, com os Drs. Kempe e Silverman que batizaram o fenômeno de Síndrome da Criança Espancada. Esta síndrome se refere usualmente a crianças de baixa

idade que sofreram ferimentos inusitados, fraturas ósseas, queimaduras, etc., ocorridas em épocas diversas, pelos pais.

Já Fontana, 1971, propôs uma definição mais ampliada do conceito de Kempe, definindo a violência física contra crianças e adolescentes como “a síndrome do

maltrato, na qual a criança pode se apresentar sem os sinais óbvios de ter sido espancada, mas com evidências múltiplas e menores de privação emocional, às vezes nutricional, negligência e abuso. A criança espancada é a última fase do espectro da síndrome do maltrato”.

Em 1969, David Gil propôs, depois de organizar uma investigação de caráter nacional nos Estados Unidos, a seguinte definição para o fenômeno: “o abuso

físico de crianças é o uso intencional, não acidental, de força física por parte de um parente ou outra pessoa incumbida dos cuidados das crianças, tendo como objetivo danificar, ferir ou destruir aquela criança”. 

Abuso Físico – O abuso do poder do mais forte (o adulto) contra o mais fraco (a criança) é um fator comum a todas as situações de maustratos. Frequentemente, crianças/adolescentes maltratados tornam-se adultos maltratantes.

Abuso Psicológico ou Emocional – É a utilização da criança ou adolescente para atender as necessidades psicológicas do adulto. Também designado como tortura psicológica. Geralmente ocorre quando 13


o adulto constantemente deprecia a criança/adolescente, bloqueia seus esforços de auto-aceitação causando-lhe grande sofrimento mental. Um dos tipos de maus-tratos mais difíceis de detecção e conceituação devido a sua sutileza e falta de evidências imediatas, apesar de ser o mais frequente. Muitos pais desconhecem força e influência de suas palavras. O relacionamento entre pais e filhos é algo bastante complexo e mutável ao longo do desenvolvimento da criança: muitas dificuldades que os pais tiveram quando pequenos e relativos à vida atual – no casamento, na profissão ou no ambiente onde vivem - transparecem na relação com os filhos, podendo gerar problemas. A forma como os pais se comunicam com seus filhos, as mensagens que enviam nos momentos em que interagem com eles, constituem um alicerce poderoso no relacionamento. A maneira como se encara o que é “ser criança” possui grande influência na relação que se estabelece com os filhos e é determinante da atitude dos pais, por exemplo, se:  Acredita-se que “a criança não tem vontade”, não poderá ter o direito de escolher, não será capaz de encontrar soluções para muitos de seus problemas, e se tentará dominá-la autoritariamente através de muitas ordens a serem cumpridas com obediência e submissão, com uma atitude de vigilância permanente;  A criança é encarada como um ser basicamente instintivo, impulsivo, meio selvagem, haverá a necessidade de domá-la, colocá-la nos eixos, impondo-lhes valores e padrões de condutas, não permitindo a sua liberdade de ação e, provavelmente, se adotará diante dela uma posição defensiva com o intuito de não se deixar dominar.  A criança é vista como um ser frágil, não poderá enfrentar situações de vida mais difíceis e haverá a tendência a protegê-la ou poupá-la excessivamente, omitindo-lhe fatos importantes e enganando-a.

 Negligência – Falha ou omissão do responsável pela criança ou adolescente em prover as necessidades básicas para o seu bom desenvolvimento. Geralmente sofre grande influência de variáveis políticas, econômicas e sociais.

 Abandono – Recusa por parte dos responsáveis em assumir suas responsabilidades com a criança ou adolescente, ficando os mesmos desamparados, expostos a várias formas de perigo, sem habitação e cuidados com a saúde. A violência doméstica contra Crianças e Adolescentes são como um câncer silenciosamente espalhado pelas casas de qualquer cidade. Daí a importância 14


da prevenção como estratégia privilegiada para combater mais eficazmente a (re)produção da violência doméstica contras as crianças e adolescentes.

Os sentimentos gerados pela dor decorrente das agressões físicas de adultos contra crianças são, na maioria das vezes, reprimidos, esquecidos, negados, mas eles nunca desaparecem. Tudo permanece gravado no mais íntimo do ser e os efeitos da punição permeiam nossas vidas, nossos pensamentos, nossa cultura. (Greven, 1992).

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