Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos - Vol 1

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Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos é um projeto cultural elaborado e motivado pela existência de um conjunto de fichas produzido pela Delegacia de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS/ PE) entre os anos de 1934 e 1958, com registros da passagem pelo estado daqueles indivíduos vistos e nomeados como artistas.

verbetes, foram digitalizados e disponibilizados no site obscurofichario.com.br. No endereço eletrônico também foram publicadas centenas de resenhas e boa parte dos subsídios encontrados ao longo da realização de uma extensa pesquisa a respeito dos artistas, dos espaços e dos eventos citados na documentação que conforma a base deste projeto.

Das mais de mil fichas que compunham esse conjunto, apenas 403 foram conservadas e encontram-se, desde 1991, sob a salvaguarda do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE). São indícios da vida de mulheres e homens, brasileiros e estrangeiros, protagonistas de uma movimentação ocorrida na cidade do Recife, no campo da arte e do entretenimento, nas décadas de 1930, 1940 e 1950, que lançam luz sobre uma potente história cultural e política do estado e do país.

Com exceção dos documentos pertencentes aos acervos do Centro de Documentação Osman Lins, do Teatro de Santa Isabel e da Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco, digitalizados pela equipe do projeto, toda a documentação complementar disponibilizada no site foi compilada a partir de dados já existentes na rede mundial de computadores. Em suas páginas, os visitantes encontram links para músicas e filmes, arquivos com documentos já disponibilizados por outros acervos públicos, além de centenas de notas, matérias e anúncios veiculados em jornais publicados no período compreendido pela pesquisa e hoje disponibilizados na rede pela Companhia Editora de Pernambuco (CEPE) e pela Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional (BNDigital).

Para trazer à tona essa valiosa documentação, dar visibilidade ao seu conteúdo e possibilitar o acesso direto à maquinaria discursiva articulada pela DOPS/PE, todas as fichas desse conjunto e milhares de documentos contidos em prontuários, relacionados direta ou indiretamente aos


Entre os diversos resultados gerados pelo projeto, merece atenção o ensaio do historiador Durval Muniz de Albuquerque Junior, publicado no site e também neste catálogo. O texto traz uma profunda e emocionante reflexão sobre as diversas motivações que levaram a Delegacia de Ordem Política e Social de Pernambuco a fichar os artistas registrados no conjunto de verbetes pesquisado. Em seu ensaio, o autor também sugere cinco possíveis cartografias para a cidade do Recife, ao constatar que a documentação da DOPS/PE aponta para redes e territórios pouco conhecidos nas narrativas oficiais da história cultural de Pernambuco. Exibidas virtualmente, as Cartografias das Delícias, Artes, Nomadismo, Paranoia e Política apresentam narrativas visuais e interativas da cidade do Recife, possibilitando aos visitantes do site acesso a imagens e informações sobre locais e eventos existentes entre os anos 1934 e 1958, assinalados em um mapa de 1952 e ilustrados por fotografias do acervo do Museu da Cidade do Recife. Por fim, com o objetivo de ampliar o alcance da

pesquisa, foi lançada uma convocatória para a criação de trabalhos inéditos de artistas interessados em pensar crítica e sensivelmente as dimensões históricas, culturais, políticas e sociais que atravessam ou tangenciam a história desse fichário da DOPS/PE e dos sujeitos, práticas e espaços por ele mapeados. Três propostas foram selecionadas, desenvolvidas e, em seguida, compartilhadas nas plataformas de produção e publicação do projeto O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos. Esperamos que todos os resultados gerados por esta iniciativa, que conta com apoio do programa Rumos do Itaú Cultural e o incentivo do Funcultura, não apenas lancem luz sobre um passado vivenciado pelo Brasil, mas também contribuam para a construção de uma sociedade cada vez mais democrática em nosso país, nos afastando de qualquer retrocesso político e social que possa nos levar a vivenciar, coletiva ou individualmente, tempos obscuros como aqueles, para que possamos conviver com as diferenças de opiniões e comportamentos respeitando a todos, inclusive os que contestam a ordem vigente.∆

Clarice Hoffmann


Durval Muniz de Albuquerque Júnior *

1. A CIDADE ENTRE LUZES E SOMBRAS

Os seres humanos se diferenciam no comércio do mundo por serem dotados da capacidade de falar, de usar a linguagem, de se comunicar através de uma narrativa. Os humanos são seres que cantam e que contam. Seres que contam aquilo que para eles conta, o que tem importância, o que se destaca, ganha forma, visibilidade e dizibilidade entre as coisas do mundo. Ao narrar, se fazem escolhas: nem tudo é dito, pois nem tudo é visto, nem tudo se torna presença. Mesmo entre aquilo que se vê, seleções são feitas a partir de critérios políticos, ideológicos, éticos, estéticos etc. Em tudo aquilo sobre o que a narrativa humana lança a sua luz, de tudo aquilo que a narrativa faz ver, algo permanece nas sombras, algo de obscuro se passa.

* Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Titular do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador 1A do CNPq. Autor de sete livros, dentre eles A Invenção do Nordeste e Outras Artes (Cortez).


Recife, cidade de luzes e sombras. Fotografia de Severino Fragoso. Acervo do Museu da Cidade do Recife. Todos os direitos reservados.

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Se para contar, para

e dos acontecimentos do

exercer essa atividade

mundo natural e social,

fundamental na construção

para poder com eles narrar,

do mundo humano, homens

dizer, contar esse mesmo

e mulheres precisaram

mundo. Palácios da memória,

desenvolver a capacidade

mapas, atlas, enciclopédias,

de registro, de fixação

dicionários, fichários,

do que ocorre (porque o

coleções, arquivos, museus

que não é fixado não pode

surgiram na esteira

ser contado), recorrendo,

desse desejo humano de

inicialmente, à faculdade da

ter toda a diversidade

memória, logo desenvolverão

do mundo e dos eventos

o que se pode chamar de

humanos à sua disposição

uma memória artificial ou

para poder ver e dizer.

complementar, suplementos de memória através da criação de técnicas, métodos e tecnologias mnemônicas ou de registro (Para o filósofo Henri Bérgson[1] é a memória que fixa as fugidias sensações que nos são trazidas pela percepção sensorial. Os sentidos percebem e a memória significa e faz ficar). Desde os hiponematas, na antiguidade, até os fichários contemporâneos, os homens não pararam de criar maneiras de tentar registrar, guardar, acumular, tornar presentes a diversidade das coisas

Nada desafiou mais a capacidade de contar, de narrar dos seres humanos do que a realidade da cidade, notadamente da metrópole moderna. Espaço do artifício humano, espaço que materializa, como nenhum outro, a capacidade dos homens de criar o seu próprio mundo, de criar um ecossistema próprio para habitar, a cidade, na sua crescente diversidade, multiplicidade, complexidade e velocidade, tornou-se um desafio para o desejo humano de dar sentido de conjunto ao que se vê, ao que se sente, ao que se vive,

[1] BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.


ao que se experimenta. A

o tempo inteiro em estado

metrópole moderna, como já

de alerta, preocupados em

visualizava Georg Simmel[2]

adotar atitudes e práticas

no início do século XX,

de defesa, contra inimigos

em sua multiplicidade de

que, cada vez mais, perdem

sensações, leva os seus

uma fisionomia ou um rosto

habitantes a ter uma visão

reconhecível e fixo, para se

cada vez mais fragmentária

tornarem uma grande mancha

e parcial do que se passa

ou massa indefinidas.

à sua volta. A experiência de viver em uma metrópole se torna amedrontadora na medida em que ela não pode ser mais dominada com um só golpe de vista, que ela dificilmente pode ser dita em toda a sua complexidade. O medo e a paranoia tendem a crescer à medida que um número maior de zonas de sombras, de seres e espaços estranhos passam a compor o tecido da cidade. Esses homens e mulheres, de nervos superestimulados, tenderiam a adotar uma postura blasé, um distanciamento defensivo em relação à balbúrdia dessa realidade em ebulição, mas, ao mesmo tempo, tenderiam a redobrar os mecanismos de vigilância. A busca pelo controle dessa colossal diversidade de coisas e seres levaria os homens e as mulheres a se manterem

A cidade, como nos fala Richard Sennet[3], é composta de corpos humanos e de espaços, a cidade, desde os primórdios, reúne a carne e a pedra. A cidade foi, desde o início, constituída de um conjunto de espaços pensados para serem habitados e para serem praticados pelos corpos humanos. Há uma analogia entre como uma sociedade pensa o corpo dos homens e como ela constrói os espaços que dariam forma ao corpo da cidade. A cidade ganha forma, ganha corpo, tendo os corpos humanos como modelo e inspiração. A partir do século XVIII, com o avanço nos conhecimentos anatômicos, com a emergência da ideia de organismo, a cidade passou a ser pensada e organizada para ter o que seria uma forma orgânica,

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com cada um de seus espaços exercendo uma dada função, sendo, portanto, funcionais. No entanto, ao ser assim pensada, a metrópole moderna, com sua proliferação desordenada de espaços não planejados, passa a ser vista e tratada como um organismo doentio, como um organismo que possui em seu interior espaços patológicos e patogênicos (a presença crescente do saber e do poder médico na gestão das cidades emerge e reforça essa percepção). Sempre que se pretendeu narrar a realidade de uma cidade, sempre que se pretendeu transformar a cidade em texto ou sempre que se tentou dar a ler o texto de uma cidade (Michel de Certeau[4] nos fala do caráter narrativo e escriturístico do texto urbano) teve-se que levar em conta os espaços que

a constituíam e os corpos humanos. Mas quando se vai contar uma cidade, há também que se escolher aqueles corpos e aqueles espaços que contam. A cidade narrada, a cidade contada, mesmo a cidade mostrada, dada a ver, através de tecnologias como a fotografia ou o cinema, nasce de escolhas. Entre a diversidade de corpos e espaços, de cenas e cenários, de carnes e pedras que constituem uma cidade, escolhas são feitas na hora de narrar ou figurar a sua cartografia. Nem tudo aquilo que se vê e se registra, nem tudo aquilo que se sabe ou se descobre numa cidade, deve ser dito. Na superfície lisa da narrativa que faz ver e diz uma cidade, muitas camadas de não dito, muitos corpos e espaços mergulhados na escuridão vêm se alojar. Na cidade que se diz e na cidade que se torna

[2] SIMMEL, Georg. O conflito da cultura moderna e outros escritos. São Paulo: Senac, 2013. [3] SENNET, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. CERTEAU, Michel de. Caminhadas pela cidade. In: A Invenção [4] do Cotidiano 1: as artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 169-192. [5] CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.


visível, cidades invisíveis, como diria Ítalo Calvino[5], permanecem como o recalcado, como o sintoma de outras possíveis cidades, como fragmentos a-significantes do texto urbano.Ω

Acervo do Museu da Cidade do Recife. Todos os direitos reservados.


Organograma da vigilância da DOPS/PE. APEJE-PE, Fundo SSP/DOPS-PE.



2. UMA GEOGRAFIA PARANOIDE

Ao nos depararmos com o arquivo da antiga Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) do Estado de Pernambuco, ao nos defrontarmos com as imagens e, muitas vezes, com os breves dados e textos que indiciam, que dizem, que narram em poucas linhas, em pequenas fichas ou em alguns poucos volumosos prontuários a vida de muitos corpos que habitaram ou que apenas passaram pela cidade do Recife, entre o início dos anos trinta e os finais dos anos cinquenta do século XX, que se referem a distintos e variados espaços da cidade, vemos outras possíveis cartografias da cidade, outras possíveis narrativas da cidade se desenhando.



Nas mais de 125.000 mil

nomes, esses breves relatos

fichas que sobraram de um

sobre o que chamamos

arquivo que deve ter sido

de artistas ‘mundanos’,

bem maior, chamou-nos a

mantidos na obscuridade de

atenção a presença de uma

um fichário, e os espaços

categoria de corpos e

da cidade que neles são

espaços, que parecem ter

descritos, constituem a

merecido especial atenção

possibilidade de se desenhar

daqueles que pretendiam,

outras geografias, outros

naqueles anos de ditadura

mapas, outras cartografias

do Estado Novo, de Segunda

possíveis para essa cidade.

Guerra Mundial, mesmo

O objetivo desta pesquisa

nos tempos ditos de

e do site deste projeto que

redemocratização, vigiar,

recolhe e disponibiliza

controlar e dizer de dado

esse arquivo, constituído

modo a cidade, ou seja, a

por este conjunto de

categoria dos artistas e os

fichas e prontuários que

espaços por onde circulavam

registraram e indiciaram

e exerciam seus ofícios,

a vida desses artistas, é

que perfazem 403 fichas e

o de permitir que outras

28 prontuários. Para além

narrativas da cidade possam

da narrativa oficial, que

ser feitas, que outras

tentava dar conta e dizer o

camadas da vida e da

que era a cidade do Recife,

realidade da cidade possam

para além do Guia Prático,

ser manejadas, que se possa

Histórico e Sentimental da

fazer uma arqueologia dos

Cidade do Recife, em que

distintos tempos, espaços

o grande intelectual da

e sujeitos que construíram

cidade, Gilberto Freyre

e constituíram, em sua

constrói uma cartografia

multiplicidade e dispersão,

hegemônica para a cidade,

cartografias outras para

escolhendo espaços e

essa cidade dos arrecifes.

corpos que mereciam ser vistos e ditos pelos e aos turistas que desembarcavam na cidade, esses corpos e

Empreendimento paranoide, nascido do pânico das classes dirigentes com o fenômeno urbano, com a


nova realidade econômica, política e social que o capitalismo metropolitano instaurou, qualquer recorte que façamos no arquivo da DOPS, nos permite desenhar o que seriam geografias do medo e da suspeita (Mapa da geografia paranoide); nos permite visualizar que corpos e que espaços, que nomes e que práticas, que discursos e que ideias metiam medo, causavam suspeitas entre aqueles que compunham as elites econômica, política e intelectual de cada período. Na sua lógica classificatória e taxonômica, herdada ainda dos primórdios da modernidade, o fichário tenta tudo registrar, tudo dizer, tudo guardar. Ter a informação sobre o que seria o corpo, o nome, o espaço ou o evento suspeito se tornava fundamental para reinstaurar a sensação de segurança perdida, diante de uma realidade feita de estranhos e estrangeiros como era a cidade, notadamente, um grande porto internacional como a cidade do Recife. Por isso, até mesmo todo o

casario, todos os edifícios, cujas fachadas miravam o porto, mereceram o fichamento (Prontuário: Casas avistam...).

que

Contraditório e

antinômico, esse arquivo devia iluminar vidas, trajetórias, identidades, lançar luzes sobre comportamentos, ideias, pensamentos, gestos, atitudes, eventos; devia elucidar tramas, conúbios, tratos, acordos, encontros e desencontros; devia aclarar conspirações, sabotagens, crimes, contravenções, tráfegos e tráficos; devia se inteirar de tentativas de subversão, desordem, revolta, revolução; devia focalizar momentos e tormentos, com a condição, no entanto, de que tudo se fizesse no anonimato, na escuridão; que todas as ações de seus agentes se passassem no segredo, nas sombras; que tudo se registrasse silenciosamente; que tudo se dissesse discretamente; que tudo e todos se seguissem sem se dar notar, embora sobre tudo e sobre todos anotando. Daí porque esse fichário, essa 15

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superfície de registro e

uma cartografia dos corpos

iluminação, deu origem à

desviantes, na sociedade

obscuridade, pelo menos da

brasileira, entre os anos

maioria de seus integrantes.

trinta e cinquenta do

Os tempos sombrios de

século XX. O corpo do

ditadura e de guerra,

artista já parece ser em

dos quais a maioria são

si mesmo suspeito, por ser

testemunhos, projetou suas

um corpo fora do normal,

sombras sobre essas pessoas,

por ter habilidades que

sobre esses artistas e sobre

não são comuns a um corpo

o que fizeram e pensaram.

que, naquele momento,

Nesses dias em que muitos

no Brasil, era pensado

saem às ruas do país para

como um corpo masculino,

pedir a volta aos tempos

rígido, militarizado, corpo

de sombra das ditaduras,

higienizado e moralizado,

trazer à luz esses registros

corpo conformado pelo

é fundamental, para que

trabalho e pela disciplina:

se saiba o que significa

corpos que se contorcem

viver sob um regime ditatorial e de exceção. Podemos, através desse fichário, nos inteirar de quais corpos se tinha medo, quais os corpos eram motivos de repulsa ou de recusa nessa sociedade. Toda sociedade é presidida por um dado regime de corpos, cada época é dominada por um dado modelo hegemônico de corporeidade, o que nunca impede a existência de corpos que transgridam ou que fujam desse padrão. Através desse material podemos traçar

(Natalio Sharf. Olinda Pereira

Guimarães), que quase voam ou se despedaçam (Valentina M atos Souza, conhecida como Cidália Mattos. Moralino Antonio Alves, o ‘Cabo Verde’. M anoel Fernandes da Silva. Ricardo Rodolfo Montaño. Pablo Lautaro Pereira), corpos que flutuam, que dançam, que rebolam,

corpos sensuais (Reina Aurora

Lincheta de Hidalgo. Salvador Luis Aragón Y Cardenas. Sergio Peretti. M artin Navarro A margos. Nicholas Klevchikoff), corpos que se travestem (Walter Bank), que se divertem, que se embriagam (Nilza Cabral


de

Góis. M aria Montesinos),

em espaços noturnos e de

corpos alijados do trabalho

frequência predominantemente

Júlia Rodrigues Nuñe

corpos mais noturnos

Stauber ou Miss Baby. Vicentina de Paula Oliveira ou Dalva de

Giamarelli

de que lançam mão essas

regular (Miguel Nemolowsky. ou

Muñe),

que diurnos (M agdalena de

Mejia ou Lydia

Campos), corpos capazes de

masculinos (A lice Zivicher

Oliveira.). As artimanhas mulheres para sobreviver e

performances e disfarces

viver nesse mundo de homens

Morris. A lda Bogoslowa).

sobre cada uma de suas ações.

(Reinaldo Rodrigues ou Charles Muitos desses corpos eram corpos femininos, que não seguiam rigorosamente as normas e os códigos definidos para seu gênero, nesse momento da história brasileira, pois não eram corpos de mulheres domésticas, devotadas ao lar, ao papel de mães e

esposas (M aria Wiesner da Trupe Internacional das Mulheres Lutadoras). Ao medo do corpo feminino, tão presente num imaginário masculino que define a mulher como um ser perigoso, estranho e traiçoeiro, vem se somar, ao mesmo tempo, o desejo, o fascínio e o medo, o preconceito em relação aos corpos das mulheres públicas, que se dedicavam a atividades fora do lar, que trabalhavam

geram insegurança e suspeita Artistas performáticas, teme-se que fora do palco elas também continuem atuando, participando de tramas políticas e

diplomáticas (A rlete Flôres.

Genette Alves Georges).Ω








3. UMA CARTOGRAFIA DAS DELÍCIAS E DOS PRAZERES: AS ARTES DO NOMADISMO

Esses corpos femininos e de artistas, no entanto, não participam apenas dessa geografia paranoide da vigilância e da suspeita; eles são parte constitutiva de uma outra geografia da cidade, de uma cartografia das delícias ou dos prazeres (Mapa geografia das delícias). O Recife da vigilância e da suspeita construída pelas ações e relatos dos agentes da DOPS, dá lugar a um Recife da vida noturna, da boemia, das diversões, das festas, das atividades lúdicas, dos encontros e desencontros sexuais e amorosos (ver

Imperial Casino

e

Festa

da

Mocidade – Delícias).


Mapa do Recife. 1952. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE - PE)


Essa geografia surge

classificação usada pela

dispersa, fragmentada,

instituição (Nilo Scansetti).

feita de pequenos blocos ou

Presidido pela lógica

platôs, como diriam Deleuze

do sedentariedade e da

e Guattari[6], no interior

sedentarização, esse arquivo

do relato paranoide.

não cessa de se deparar com

Coexistentes e concorrentes,

o nomadismo, com corpos

essas duas geografias da

que nomadizam nos espaços

cidade aparecem tensionadas

e nos códigos, permitindo

no interior dessa

desenhar uma verdadeira

documentação, impedindo

geografia do trânsito ou da

que se tenha uma visão

deambulação, possibilitando

harmônica e identitária

fazer uma cartografia

da cidade. A cidade surge

da cidade constituída

em sua polifonia e em suas

pelas trajetórias e fluxos

rugosidades, surge como uma

daqueles que nela chegam

geografia das diferenças.

ou por ela se deslocam e

Presidido pela lógica da identidade e da identificação, esse arquivo votado aos artistas, não cessa de esbarrar com, de ter de dar conta de, de contar o diferente. Os corpos, espaços, práticas e eventos diferentes, divergentes, contestatários, transgressores, não cessam de aparecer sob o texto e a imagem que buscam capturálos em sua identidade, em sua identificação, na mesmice das categorias que compõem a grade de

que, por seu turno, nela provocam deslocamentos de códigos e sentidos (Mapa do nomadismo). Empresa destinada a um possível aprisionamento desses corpos, os agentes desse arquivo não cessam de se defrontar com práticas de liberdade e de libertinagem

(M arie M athilde Giroux ou Lydia Yvonne. Karl Jurisberg ou

Charles Aronoff.). Agentes em busca de sedentarizar, mas que, contraditoriamente, para isso se fazem nômades, nomadizam, perambulam,

[6] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. In: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1995.


se deslocam por distintos

Os agentes que produziram

espaços da cidade. Na caçada

esse arquivo não cessaram

a dados corpos, à identidade

de se encontrar com corpos

de dados corpos, os agentes

que mudam constantemente de

da DOPS terminam por perder

nome (M anoel Tibúrcio Corrêa

seus nomes, também mudam

de

de identidade, também se

Araújo ou Apolo Correia. M aurício Tajman ou Maurice

escondem sob codinomes e

Tamara), de identidade, de

apelidos, na caça às pessoas

documentação, corpos que

esses se despersonalizam,

se deslocam por distintos

perfomatizam personagens

espaços, que não conhecem

(como o policial que se

fronteiras, nacionais ou

vangloria de ter encarnado

internacionais (Julien M andel

mesa e bebido com Boris

Popoff, a quem vinha vigiando

M andelbaum. M artin Navarro A margos. Carmen Silvia Munefelt Brown ou Vênus de Bronze.),

sem que esse percebesse),

que mudam de nacionalidade

um personagem, sentado na

na espreita aos artistas

ou de naturalidade (Rita

Talvez por isso, o mentor

Helene Gouillaux. M arina Vargas Aguirre), corpos que

desse arquivo, aquele que

alteram sua origem étnica

também fazem as suas artes.

o dirigiu e o organizou

(Beatriz Janovite ou Emília

por anos a fio, que mereceu

Tayirivitch), até mesmo

homenagem e condecoração

corpos que mudam de sexo

pelos serviços prestados

ou de identidade de gênero

à segurança e à repressão,

(Norberto A merico Aymonino

tenha, ele mesmo, se fichado,

ou Aymond), corpos que

tenha constituído um

mudam constantemente seu

prontuário para si mesmo,

lugar de residência, sua

para ganhar identidade,

profissão, seu trabalho,

para ter existência, para

sua especialidade, suas

sua presença permanecer

atividades, seu estado

mesmo depois de lá ter

civil, suas parcerias, seus

se ausentado (Júlio

Vasconcelos Barros).

de

amores, suas amizades, até mesmo mudam de parentes e de ascendentes (M anuel

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Santos Serna. M arcos Chertkow. Geraldine Virgínia Pike.). Vivendo nesse mundo do

do século passado. Nessa geografia, se destacam os espaços destinados à

de troca de lugares, de

ocorrência de espetáculos e

identidades, de papéis,

de

de personalidades, de personagens, como é o mundo artístico, este mundo do disfarce e da mascarada, muitos agentes parecem também ter se extraviado de seus papéis, a ponto de o governo de Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho, em 1948, no período da redemocratização, ter de criar uma Delegacia Auxiliar, para tentar corrigir, punir e até demitir os agentes que haviam se extraviado do mundo da lei e da ordem, que queriam também dar uma de artista. Esse obscuro fichário dos artistas mundanos nos permite também traçar o que seria uma cartografia das artes na cidade (Mapa da geografia das artes), ter acesso a fragmentos significativos das paisagens sonoras, visuais, táteis, gustativas e olfativas da cidade do Recife entre os anos trinta e cinquenta

diversões: teatros (Teatro

Emergência Almare), cassinos (Casino Chantecler), cabarés (Imperial Casino – Artes), circos (Nerino e Fekete), cinemas (Cine Teatro Moderno), casas noturnas (Boite Leite), casas de espetáculo (Casino Império), casas de jogos (Taco

de

Ouro), cafés,

restaurantes (Bar Gambrinus), hotéis (Hotel Central, Grande

Hotel e Palace Hotel), bares (Bar Royal) que ofereciam espetáculos artísticos ou

mesmo os diversos espaços da cidade que, em dada época do ano, se transformavam em cenários para festas, diversões e apresentações de espetáculos artísticos. Mas nela também podemos inscrever os espaços institucionais, empresariais ou organizativos destinados a fomentar a arte ou dedicado à diversão, que também padecem da vigilância e da censura do Estado [companhias cinematográficas (Meridional

Columbia Pictures), cineclubes (Cine Siri), e


livrarias, lojas de discos, jornais, estações de rádio (R adio Club

Pernambuco e R adio Jornal do Commercio), salas de cinema (Cinema São Luiz), companhias de teatro, de

organizações e clubes carnavalescos, associações de artistas (Sociedade

de

Arte Moderna), movimentos culturais e no campo da educação e da cultura ditas populares]. Em meio aos relatos pormenorizados dos prontuários, notadamente daqueles que trazem o relato das campanas feitas pelos agentes (campana é a atividade em que um agente da DOPS seguia, às vezes por dias seguidos, uma mesma pessoa e anotava tudo o que

ela fazia ou dizia) (Geraldine

Virgínia Pike), surgem o que são indicações de cenas e configurações urbanas da cidade, de sonoridades, referências ao que e onde

se comia e bebia na cidade (há os interessantes casos de um cardápio apreendido no Bar

e

Restaurante Familiar

Tabu, por suspeita de trazer no nome de seus pratos um código secreto ou do agente que ao achar caro e ruim um prato que lhe serviram num restaurante autuou imediatamente o dito prato) (Restaurantes), referências

aos cheiros que se sentiam em dados espaços da cidade, cheiros físicos e/ou morais, às sensações e sentimentos que dados corpos e espaços provocavam nos agentes da ordem ou naqueles que eles

vigiavam (Tamoio Films. Teatro

Pernambucano

de

Estudantes).Ω







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4. CENÁRIOS DE ANORMALIDADE

Arquivo presidido pela racionalidade da norma e da normalidade, esse arquivo só para artistas, não cessa de dar testemunho da anormalidade. Nele aparecem corpos e espaços que desobedecem às normas, que não correspondem ao que socialmente e juridicamente é definido como sendo o normal, naqueles momentos históricos. Figuras patológicas ou teratológicas, esses corpos e os espaços e cenas em que figuram são vistos como ameaçadores, por não estarem conforme a lógica de classificação, o plano social de significação e nomeação de pessoas e coisas.



Figuras derrisórias,

personalidades bizarras

muitas vezes voltadas

e estranhas realizando

para a produção do riso,

atividades ligadas aos

da gargalhada, (palhaços

mundos obscuros e suspeitos

e comediantes são sempre

da magia (Selma Josefina

da

a ordem), elas não deixam de

Costa Goebel. Juan José Pablo Jesonun, conhecido como

ser figuras incômodas, não só

Chang.), do curandeirismo

temidos por quem representa

porque o riso incomoda toda

(Krikor Tahra Kalfayan ou

autoridade que sempre se

Tahra Bay), das artes

julga séria e que busca ser

divinatórias (Neide A lvares

vista e dita com seriedade,

de

ser tratada seriamente

infernal’), da cartomancia,

(como no episódio em que

da quiromancia (Prontuário:

a senhorita Anita Palmeiro

Sousa ou Neide, a ‘mulher

Ocultismo

e quiromancia),

é intimada a comparecer

das religiões e cultos

à delegacia por gargalhar

populares e não obedientes

no mesmo espaço em que se

a ortodoxia da Igreja

encontrava o Interventor do Estado Agamenon Magalhães) (Grande Otelo. Mesquitinha.

Biriba.), mas porque não se

Católica (M amah Felicie

Abou), que se reaproxima do regime, no pós-trinta, lhe dando apoio ideológico

conformam aos códigos que

e participando da

definem o que são corpos

formulação dessa política

aceitáveis e desprovidos

e polícia dos costumes,

do perigo do contágio,

dos corpos e dos espaços.

do contato, do conflito.

Em tempos da prevalência

O mundo artístico estava

do pensamento eugenista,

povoado de corpos e seres

em tempos dominados pelo

estranhos: corpos de raças e

mito da raça pura, da

grupos étnicos considerados

raça ariana, os corpos de

inferiores, minoritários ou

negros, indígenas, judeus,

degenerativos (Eber A lfred

Goldberg. Ernest Alexander Hirsch. Heinz Dieter Grund. Kurt Heinrick M aschke.), de

ciganos parecem de saída perigosos e suspeitos

(Uyara M arques ou Santinha Marques ou Uyara de Goyás).


Corpos que não obedecem

política e ideológica, esse

aos padrões de normalidade:

arquivo da DOPS, não cessa de

anões, mulheres barbadas,

se deparar com a diversidade,

contorcionistas, corpos

com a multiplicidade, com

andróginos, corpos que se

a dissenção (temem-se os

destacam pela estatura fora

russos, os alemães, os

do normal, pela excessiva

italianos, os japoneses, as

magreza ou obesidade chamam

polacas, mas não se deixa

a atenção dos agentes da

de temer pelos americanos,

norma (Sixto A rgentino Gallo). Sendo uma cidade cosmopolita, um grande porto, Recife era constantemente visitada por estranhos e estrangeiros. Num momento de conflito internacional, num momento de guerra mundial ou de guerra fria, esses corpos estranhos e estrangeiros e os espaços por onde circulavam como hotéis, pensões, hospedarias,

os ingleses, os franceses, pelo o que possa acontecer

no país aos aliados) (Timóteo

Scripnic. Gregório Vassilieff. Miguel Klutchko. Yan Schuen Pan. Victoria Coppola ou Artemísia Miranda. Vera Emmermacher). No interior do corpo e do rosto homogêneo e unitário que se quer construir para a cidade, outros corpos e outros rostos vêm constituir corporeidades e rostidades outras para essa cidade.Ω

restaurantes, cafés, bares, casas noturnas, casas de jogos, bordeis, tornamse parte dessa geografia paranoica que, ao mesmo tempo, se confunde, se bifurca e se diverte nas geografias dos prazeres, das delícias e na geografia das artes e das diversões. Empresa da homogeneização, da construção da unidade nacional e da unidade

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Acervo do Museu da Cidade do Recife. Todos os direitos reservados.






5. MAPAS DA SUSPEIÇÃO, DA RESISTÊNCIA, DA TRANSGRESSÃO

Por fim, esse arquivo paranoide, essa geografia da suspeição que ele desenha, tem como grande motivação o fato de que não existem corpos e espaços humanos que não sejam, como nos diz Foucault[7], parte de uma rede de poderes e de saberes. Esses corpos tramam a cidade em suas relações que são atravessadas sempre pelo poder. A cidade é uma malha de corpos e objetos articulados por relações de negociação, consenso, assentimento e conflito. Como nos diz Giorgio Agamben[8], o que diferencia a vida humana de qualquer outra vida, o que faz os humanos ter uma vida para além da mera vida biológica, é o fato de que a vida humana é política.

[7] FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: Ditos e Escritos, vol. III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 411-422. [8] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Belo Horizonte: UFMG 2010.



Um corpo destituído de

agentes, das imagens por

cidadania, um corpo que era

eles feitas ou recolhidas,

expulso da cidade, desde

dos recortes de jornais

os gregos, era visto como

e revistas apensadas aos

um corpo que perdia essa

prontuários (M ário Melo.

apenas carne nua, corpo

Cícero Dias. José Lins do Rêgo), dos diversos

que perde sua sacralidade

documentos políticos

e se torna matável. A

apreendidos ou coletados

criação da DOPS, em 1935,

pelos agentes (discursos,

se deu preferencialmente

panfletos, manifestos,

por motivos políticos, como

declarações públicas,

uma resposta à movimentação

programas partidários,

dos comunistas que viria

plataformas políticas e

resultar na chamada

sindicais, atas de reuniões,

Bastos

Modesto Bittencourt

condição e passava a ser

Intentona Comunista (Rene de

Miranda). Ela foi

etc) (A lberto Cavalcanti, de

Souza),

criada para defender o

pode-se ir desenhando

Estado, a ordem, a nação da

as diversas linhas que

ameaça comunista, da ameaça

constituem o intricado e

da subversão e da revolução,

emaranhado mapa político

embora na paranoia geral

de diversos períodos na

em que nasce, termine

cidade, no Estado, no país

por se imiscuir em muitas

em suas conexões internas

outras atividades sociais.

e internacionais. Tendo

Esse arquivo composto pelo fichário e prontuários voltados para o registro de artistas, que disponibilizamos nesse site, também permite desenhar uma quinta cartografia, uma geografia política da cidade do Recife (Mapa da geografia política). Através dos relatos feitos pelos

sempre o cuidado de pensar que esse, como todo arquivo, está atravessado também pela censura, está marcado pelo ponto de vista de quem o elaborou (embora a barafunda de agentes e agências que o produziu e os distintos períodos de que é testemunho, o censura em múltiplas


linhas e impede que se dê

espaços de manifestação

a ele qualquer unidade,

e atuação político-

seja política, ideológica

eleitoral ou partidária,

ou ética). Em busca da

mas também de lugares

coerência, esse arquivo

onde clandestinamente

não cessa de produzir o

ou veladamente homens

disparate, e como poderão

e mulheres de diversas

ver, eles são muitos.

condições sociais e de

Nessa cartografia aparece a cidade ameaçadora, rebelde, vermelha, de conspiratas e conspirações, a cidade de movimentos e movimentações, a cidade de homens e mulheres que lutam pela vida e por direitos, que se revoltam contra as injustiças e explorações de que são vítimas, corpos que buscam ocupar lugares de poder, liderança e autoridade. A cidade das reuniões e meetings políticos, a cidade dos comícios, das passeatas, dos protestos, a cidade dos sindicatos, dos partidos, das organizações populares e intelectuais, das instituições de articulação e solidariedade das distintas parcelas das elites. Uma cartografia da cidade feita dos lugares de concentrações populares para fins políticos, de

diversos locais da cidade se reuniam para o debate de ideias políticas ou para o exercício da preparação de atividades e atitudes

políticas (Cine Clube Charles

Chaplin). Uma cidade feita

de locais de ajuntamentos, de greves, de conflitos e confrontos com as forças policiais e da ordem, de enfrentamentos entre partidários de diversas correntes políticas, quando as pedras da cidade eram riscadas e marcadas, quando não arrancadas, pela refrega das lutas políticas e, algumas vezes, tingidas pelo sangue dos que se feriam ou caíam mortos nas lutas (Demócrito

de Sousa Filho). Uma cartografia

desenhada pelas trajetórias, deambulações, deslocamentos, ajuntamentos, dispersões, alianças e conflitos, fugas e maquinações, pelas 51

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peripécias dos corpos que se colocavam como sujeitos de práticas e pensamentos identificados como políticos. Uma cidade feita de aparecimentos, de manifestações e de clandestinidades de corpos que ganhavam humanidade ao se assumirem como seres políticos. Em alguns casos, esse arquivo registra o aprisionamento de corpos que perderam todos os seus direitos jurídicos e políticos; que ao entrarem na clandestinidade dos porões dos regimes, tornaram-se carne nua, carne matável, corpos que ainda hoje clamam por justiça, alguns ainda clamam por uma sepultura, clamam por sair da condição de desaparecidos, clamam pelo estranho e doloroso direito de ter uma morte.Ω



6. CONVITE A BORBOLETEAR

Enfim, o site que se coloca à disposição de todos, como um dos resultados do projeto O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, quer ser um convite para que cada um possa, a partir da documentação, dos casos disponibilizados, imaginar e produzir outras cartografias possíveis para a cidade do Recife.



Nem a pesquisa, nem seu

aos artistas, ou seja,

site, nem este texto têm

a renúncia a procurar

a pretensão de apresentar

qualquer unidade de sentido

uma imagem unificada e

ou a buscar qualquer

homogeneizada do que foi o

unidade visual ou a

Recife, do que foi a vida

imobilização temporal desses

dos artistas, do que foi

elementos, mas ressaltar a

a repressão, do que foram

heterogeneidade de tempos

as ditaduras e regimes

e espaços que constituem

democráticos nesse período.

esse arquivo, tempos e

Eles são apenas sugestões,

espaços heterogêneos que,

ponto de partida para que

no entanto, não param

cada leitor possa traçar

de se encontrar, de se

seus próprios roteiros pela

confrontar, de se cruzar,

cidade, possa escolher os

de se amalgamar. Diversas

corpos e espaços que farão

cartografias da cidade,

parte de seus relatos. O

compostas por diversas

site tem a pretensão de

linhas e planos, por

se constituir em um atlas,

distintos elementos e

tal como o pensaram Aby

cenários, onde o quadro

Warburg, Walter Benjamin ou

final não se encontra

Georges Didi-Huberman,[9]

consumado, mas apenas

ou seja, como uma mesa ou

constituem um dispositivo

uma prancha sobre as quais

aberto, onde toda ordenação

diferentes elementos estão

poderá ser desordenada, onde

dispostos, como um campo

o trabalho de significação

operatório do díspar e

deve recomeçar. “Como

do móvel. Isto significa a

o amor físico, em que o

renúncia a tentar operar

desejo se renova, se relança

com a mesma racionalidade

constantemente, é necessário

que presidiu a montagem do

redispor as figuras do

arquivo da DOPS ou mesmo

atlas constantemente.

da parte dele destinado

Nada nele está fixado

[9] WARBURG, Aby. L’Atlas Mnémosyne. Paris: L’Ecarquille, 2012; BENJAMIN, Walter. Eduardo Fuchs, colecionador e historiador. In: O anjo da história. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 107-144; DIDIHUBERMAN, Georges. Atlas ou a gaia ciência inquieta: o olho da história. Lisboa: KKYM + EAUM, 2013. [10] DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. Cit. p. 54.


de uma vez para sempre,

vida, de pessoas que apenas

tudo nele é a refazer

desempenhavam a difícil arte

– por prazer renovado,

de viver como humanos, as

mais do que por castigo

delicadas artes da existência

sisífico – a redescobrir e

e delas retiraram não só

a reinventar”[10]. O site

seu sustento, mas muito

obscurofichario.com.br quer

prazer e alegria. Corpos

ser, portanto, apenas uma

que, como lindas falenas

tela aberta a redescobertas

noturnas, borboletearam pela

e a reinvenções de sentido

cidade, sem paradeiro certo,

para esses corpos e espaços

distribuindo a beleza com

artistas e artísticos

seus corpos e com o adejar de

que participaram das

suas possíveis asas, as asas

tramas e que tramaram a

de seus dotes artísticos,

cidade do Recife durante

fazendo voar a imaginação

trinta anos do século XX,

de quantos os viram, mesmo

fazendo dessa cidade um

a imaginação paranoide

espaço permanentemente em

de todos os vigilantes de

montagem e desmontagem e,

plantão, deixando no rastro

por isso mesmo, um espaço

de suas passagens e de

que infundiu tanto medo

suas apresentações, de suas

e insegurança naqueles

presenças e performances,

defensores da ordem e dos

o aparecimento de todos os

privilégios. Cidade montra

fantasmas e fantasias do

e cidade monstra que

desejo. As brilhantes cores

assombrou o Estado e seus

e formas de seus corpos

agentes, que lhes tirou o

pulsantes fazendo voar pelos

sono, que lhes provocou

ares o desejo de morte

a elaboração paranoide de

prevalecente nos tempos de

uma geografia do medo, da

ditadura e guerra. Esses

perseguição, da delação, do

corpos mariposas convocam

aprisionamento, da tortura,

todos a produzir sobre eles

do terror e da morte; que

um saber tremulante, um saber

jogou sombras sobre e

sem o repouso das certezas,

obscureceu a vida de simples

um saber lindo e frágil como

artistas mundanos, artistas

uma asa de borboleta.Ω

do mundo, artistas na e da

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FICHA TÉCNICA

Idealização e Coordenação do projeto.

Equipe Curatorial. CLARISSA DINIZ

CLARICE HOFFMANN

E GLEYCE HEITOR

Assessoria Histórica. DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR

Obras selecionadas. Vaga (IRMA

Pesquisadores Convidados. ALEXANDRE

FIGUEIRÔA E MARCÍLIA GAMA

Pesquisa. ALBERTO DE OLIVEIRA,

BRUNA DOURADO, CLARICE HOFFMANN, MARIANA LACERDA (DEOPS/SP) E MATEUS SIMON.

Estágio. THULIO ARAGÃO (pesquisa) Textos das Resenhas. ALBERTO DE

OLIVEIRA (artistas fichados), BRUNA DOURADO (artistas fichados e locais prontuariados) E MATEUS SIMON (artistas e locais

prontuariados)

Revisão. ALBERTO DE OLIVEIRA

(padronização)

Edição de textos. FABIANA MORAES

(cartografia) (fichário)

E MARCIA LARANGEIRA

Edição Cartografia (mapas e ilustrações). MATEUS SIMON

Edição Final (conteúdo). CLARICE HOFFMANN

Desenvolvimento do site. COFFEECUP Design Gráfico (web). LIN DINIZ Reprodução fotográfica. JOSIVAN RODRIGUES

Digitalização e Tratamento de Imagens. CHIA BELOTO (imagens pins cartografia) E MICHELLY PESSÔA

Design Gráfico (catálogo). DANIELA BRILHANTE

BROWN, FRANCISCO BACCARO E MOACYR CAMPELO) Folhetim dos Encontros (JULIANA BORZINO) e Teta Lírica (MARIE CARANGI)

Assessoria Jurídica. DIEGO MEDEIROS Assessoria Produção Executiva. JOÃO VIEIRA JR. + REC PRODUTORES

A realização do projeto O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos está amparada pela Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 18/11/2011) em seu art. 21, assim como no art. 58, II, do Decreto nº 7.724/2012. A pesquisa desenvolvida não viola direitos de terceiros e seus resultados estão sendo compartilhados com o público sem ônus. A responsabilidade jurídica que, porventura, decorra do uso indevido das imagens dos documentos disponibilizados por este projeto, caberá, única e exclusivamente, a quem fizer uso das mesmas. O internauta que desejar enviar comentários, sugestões ou que de alguma forma se sinta prejudicado/ constrangido por algum dado e/ou informação disponibilizada, pedimos a gentileza de entrar em contato conosco através do e-mail obscurofichario@gmail. com ou através da seção Contato do site.


AGRADECIMENTOS

A equipe do projeto O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos agradece o apoio de PEDRO MOURA,

EVALDO COSTA, DIOGO BARRETO, LEONARDO ARRUDA e de todos

os outros profissionais do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – Apeje; de BETÂNIA CORRÊA DE ARAÚJO, SANDRO VASCONCELOS, JADSON JOELSON E YURI FAIRBANCKS

(Museu da Cidade do Recife); de todos os membros da Comissão Estadual da Memória e da Verdade Dom Helder Câmara; a POLIANA DO

Estado do Rio de Janeiro – Aperj); CAMILA NADER, GLAUCY

TUDDA E TÂNIA RODRIGUES

(Instituto Itaú Cultural), PATRÍCIA GONÇALVES (Rec Produtores); DENISE GADELHA, WALTER COSTA e a todos da Galeria Vermelho; PAULA E

TICIANO ARRAES E GUILHERME LUIGI (Orbe Coworking), a SIL

(que nos manteve alimentados) e a todos os artistas que participaram da convocatória lançada por este projeto.

NASCIMENTO, EUNICE DA HORA, JOSÉ WALDERICO LEMOS E CÍCERO SOUZA (Biblioteca Pública

do Estado de Pernambuco);

QUIERCLES SANTANA E LUIZ ANTÔNIO MORAES (Teatro de Santa Isabel); NATALI OLIVEIRA, ALFREDO BORBA, CARLOS CARVALHO

(Centro de Documentação Osman Lins/ Centro Cultural ApoloHermilo); RICARDO LEITÃO,

ANA CLÁUDIA ALENCAR E IGOR BURGOS (Companhia Editora de Pernambuco); FABIANA MARCOLINO (Arquivo Público de São Paulo); SÁTIRO FERREIRA NUNES (Arquivo Nacional); ANGELA BETTENCOURT E VINICIUS MARTINS (BNDigital/Fundação Biblioteca Nacional); JOHEMIR VIÉGAS (Arquivo Público do

Esse catálogo foi impresso em offset pela MXM Gráfica - Recife em 2016. Os papéis utilizados foram o offset 90 gr/m2 (miolo), e triplex 250 gr/m2 (capa). As tipografias utilizadas foram a Courier (corpo de texto), e IM Fell Double Pica (títulos). Tiragem de 800 exemplares.




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