O Obscuro Fichário dos
Artistas Mundanos é um projeto cultural elaborado e motivado pela existência de um conjunto de fichas produzido pela Delegacia de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS/ PE) entre os anos de 1934 e 1958, com registros da passagem pelo estado daqueles indivíduos vistos e nomeados como artistas.
Das mais de mil fichas que compunham esse conjunto, apenas 403 foram conservadas e encontram-se, desde 1991, sob a salvaguarda do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE). São indícios da vida de mulheres e homens, brasileiros e estrangeiros, protagonistas de uma movimentação ocorrida na cidade do Recife, no campo da arte e do entretenimento, nas décadas de 1930, 1940 e 1950, que lançam luz sobre uma potente história cultural e política do estado e do país. Para trazer à tona essa valiosa documentação, dar visibilidade ao seu conteúdo e possibilitar o acesso direto à maquinaria discursiva articulada pela DOPS/PE, todas as fichas desse conjunto e milhares de documentos contidos em prontuários, relacionados direta ou indiretamente aos
verbetes, foram digitalizados e disponibilizados no site obscurofichario.com.br. No endereço eletrônico também foram publicadas centenas de resenhas e boa parte dos subsídios encontrados ao longo da realização de uma extensa pesquisa a respeito dos artistas, dos espaços e dos eventos citados na documentação que conforma a base deste projeto. Com exceção dos documentos pertencentes aos acervos do Centro de Documentação Osman Lins, do Teatro de Santa Isabel e da Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco, digitalizados pela equipe do projeto, toda a documentação complementar disponibilizada no site foi compilada a partir de dados já existentes na rede mundial de computadores. Em suas páginas, os visitantes encontram links para músicas e filmes, arquivos com documentos já disponibilizados por outros acervos públicos, além de centenas de notas, matérias e anúncios veiculados em jornais publicados no período compreendido pela pesquisa e hoje disponibilizados na rede pela Companhia Editora de Pernambuco (CEPE) e pela Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional (BNDigital).
Entre os diversos resultados gerados pela pesquisa, merece atenção os artigos dos pesquisadores Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Alexandre Figueirôa e Marcília Gama, disponibilizados no site do projeto, e a proposição de cinco possíveis cartografias para a cidade do Recife, a partir da constatação de que a documentação da DOPS/PE aponta para redes e territórios pouco conhecidos nas narrativas oficiais da história cultural de Pernambuco. Exibidas virtualmente, as Cartografias das Delícias, Artes, Nomadismo, Paranoia e Política apresentam narrativas visuais e interativas da cidade do Recife, possibilitando aos visitantes do site acesso a imagens e informações sobre locais e eventos existentes entre os anos 1934 e 1958, assinalados em um mapa de 1952 e ilustrados por fotografias do acervo do Museu da Cidade do Recife. Com o objetivo de ampliar o alcance dos resultados da pesquisa desenvolvida, foi lançada uma convocatória para a criação de trabalhos inéditos propostos por interessados em pensar crítica e sensivelmente as dimensões históricas,
culturais, políticas e sociais que atravessam ou tangenciam a história desse fichário da DOPS/PE e dos sujeitos, práticas e espaços por ele mapeados. Os interessados deveriam levar também em consideração as plataformas específicas de produção e publicação do projeto. Entre as quarenta e quatro propostas inscritas e procedentes de diferentes regiões do país, três foram selecionadas, desenvolvidas e, em seguida, compartilhadas no site do projeto. Um ensaio redigido pelas curadoras Clarissa Diniz e Gleyce Heitor sobre as reflexões que as levaram a tal seleção e sobre as obras criadas pelas artistas Marie Carangi, Irma Brown e Juliana Borzino também pode ser conhecido em obscurofichario.com.br e através deste catálogo.∆
Clarice Hoffmann Recife, 2016
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TETA LĂ?RICA. M arie Carangi
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Sangramos
VAGA. Irma Brown
Eu Abel, tu abismo
Igreja
Guerra
FOLHETIM DOS ENCONTROS. Juliana Borzino
abril poderia ser um mês qualquer e seria. abri os olhos em olinda, na cama o peso forte da madeira. pela janela passavam quem eu conheço e quem eu não conheço. caminho até a varanda. ventania, o mar subiu. meus dedos encolhidos tentavam se abrir quando pisava no chão. me diagnosticaram com síndrome crônica de recolhimento. – eu olhava pela janela. ouço o rádio.
– revolução? ou não, assombração. naquela lembrança de rua, de demolição – o que não resta é o tempo. oiarici não acreditava em mudanças. mas estava preso. quem visitou a cabeça seca? as forças de tocaia investiam. sem pânico, sem pânico, vou ler o jornal. outra chamada, não aguentava. chegou caipora, ele não era intelectual, mas acreditava em outras forças – não é desgosto não, ele dizia. eu prefiro jogar volei, e depois beber um caldo de cana.
a cidade cresceu vertical, mas não chegaria ao céus o cimento. o desejo de avanço soterrava as águas e os corpos, juntava ilhas, e quem iria observar esse vento ofegante de pressa e tropeço? um tiro no tijolo, e muitas pedras no chão. suava suava suava / a umidade do ar chegava noventa porcento.
vamos ver o bloco passar, só não passa quem sorrir demais, tinha sempre alguém na espreita. subimos correndo as escadas, esperamos na sala das cadeiras amarelas. que vista, que vista, onde tudo se avista e nada se vê! sentamos lado a lado, mas ninguém dizia nada.
um dos aspectos mais expressivos do entusiasmo avistamos as ruas e as obras pela janela da livraria, subia pela cabeça aquela poeira de entupir o nariz, e o povo passando. minha intuição dizia que daqui há alguns anos será outra coisa. peguei um mapa para imaginar. – imaginar desfaz muita coisa.
c o m p l ô v e r d a d e i r o o u i m a g i n á r i o
– a fala que mistura os anos, investe na quase-ficção. severino jogou no sport, hoje trabalha com o tempo, ou melhor, com relógios, e toma café no gil.
– meu bem, meu bem, acorda! assim me acordaram. eu gritava e suava frio.
foi encontrado na beiramar o bicho do tempo, esse ainda não entrou no jogo.
era um incêndio no centro, nas livrarias.
mas certamente será o mais escolhido. ele foi avistado encalhado na areia, vez ou outra sacudido pelo balanço das águas.
acordei. não lembro os detalhes, mas um conhecido meu, motorista da praça rio branco me relatava o ocorrido (aos berros), enquanto eu ouvia. ele me dizia do fumaceiro que surgiu, logo após uma caminhonete verde ser vista rodeando por lá.
parece sonho não.
vivo ou morto?
-------------------acidente demográfico. alguma sonoridade musical nesse dizer tem, nas palavras se dissermos em voz alta.
Clarissa Diniz e Gleyce Heitor *
ENGAJAR CORPOS ALHEIOS, ALHEAR CORPOS ENGAJADOS.
A singularidade de O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, projeto de publicização de um arquivo policial ligado a regimes ditatoriais brasileiros, é lidar com o entendimento histórico sobre modos de vida que foram arbitrariamente identificados pela categoria “artista”. No contexto da DOPS, para além daquilo que se convencionava designar como arte, “artista” indicava uma série de “desvios” e uma rede de práticas sensíveis e políticas que escapavam às normas funcionais do trabalho e, portanto, dos padrões sociais de comportamento.
* Clarissa Diniz (Recife, 1985. Reside no Rio de Janeiro) é curadora e, desde 2013, Gerente de conteúdo do Museu de Arte do Rio - MAR. Graduada em Lic. Ed. Artística/Artes Plásticas pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Entre 2006 e 2015, foi editora da Tatuí, revista de crítica de arte. Publicou diversos livros e organizou inúmeras exposições. Foi curadora assistente do Programa Rumos Artes Visuais 2008/2009 (Instituto Itaú Cultural, São Paulo) e, entre 2008 e 2010, integrou o Grupo de Críticos do Centro Cultural São Paulo, CCSP.
Por sua especificidade, à absoluta relevância do projeto O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos – em sua denúncia da fragilidade das políticas de acesso à memória e às verdades sobre as ditaduras do Brasil – soma-se uma clara compreensão da importância de abordar essa documentação numa perspectiva alargada, na qual pesquisa e difusão se colocam para além dos referenciais que habitualmente circunscrevem esse tipo de arquivo. É nesse lugar que se insere a Convocatória Artística do projeto, destinada a artistas ou quaisquer interessados em pensar crítica e sensivelmente dimensões históricas, culturais, políticas e sociais que atravessam ou tangenciam a história desse fichário da DOPS/PE e dos sujeitos, práticas e espaços por ele mapeados.
Por meio dos trabalhos escolhidos através da convocatória, refletimos sobre um desafio posto para processos artísticos que se relacionam com contextos documentais: como ativar poética e contemporaneamente um arquivo, sem que isso signifique atualizálo ou traduzi-lo? Como se inserir em projetos interdisciplinares, compostos por diferentes profissionais e modos de leitura e interpretação desta documentação, sem atribuir aos artistas a tarefa da ilustração? Estas questões, que atravessaram o processo de acompanhamento e interlocução das três artistas que aqui apresentadas, foram partilhadas por todos os participantes do projeto e desdobram-se de diferentes maneiras no desenvolvimento
* Gleyce Heitor
(Recife, 1982. Reside no Rio de Janeiro) é educadora e pesquisadora. Graduada em História (UFPE) e mestre em Museologia e Patrimônio (Unirio-MAST). Tem desenvolvido pesquisas com ênfase na história do museu e da museologia no Brasil e se interessa pela relação entre museu, arte contemporânea e educação e pelas interfaces entre museu e pensamento social brasileiro. Co-organizou, juntamente com Clarissa Diniz, o livro Gilberto Freyre (Coleção Pensamento Crítico. Rio de Janeiro: Funarte, 2010), coletânea da crítica de arte freyreana. Atualmente trabalha como Coordenadora Pedagógica na Escola do Olhar - Museu de Arte do Rio. 23
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do conjunto intitulado Vaga, de Irma Brown (PE) [em colaboração com Moacyr Campelo (PE)]; no Folhetim dos encontros, realizado por Juliana Borzino (RJ); e na performance Teta Lírica, de Marie Carangi (PE). Trabalhos que articulam vida, memória, arquivo, corpo e cidade. Se a dimensão mundana é aquilo que criminaliza os indivíduos e espaços fichados como artistas pela DOPS/PE – personagens da noite, lutadores de rinha, cantores, poetas, travestis, imigrantes, prostitutas, artistas de circo, bares, pensões, teatros –, o mundano é o que, por sua vez, qualifica e inspira a ação de Irma, Juliana e Marie. Enquanto a pesquisa histórica do projeto lidou fundamentalmente com a dimensão obscura do fichário, instituindo formas de transparecê-lo, a Convocatória Artística parece de fato terse apropriado daquilo que, sendo do fichário, é eminentemente do mundo. A ação das artistas potencializa o mundano do fichário, no fichário e para além dele ao mundanar como
modo de vida e de criação. A ligação com a dimensãomundo do Recife, já ordinária à vida de Marie Carangi e Irma Brown – cuja relação e sentido da arte são indissociáveis de uma rede de amizade e trocas que se dão num circuito de bares, espaços independentes e de invenção de formas de ocupar a cidade – foi também vertebral ao projeto de Juliana Borzino, que se lançou, extraordinariamente, numa imersão em Recife, num encontro com a cidade que foi também um mergulho na história de sua família através da evocação de lembranças e da exploração de arquivos institucionais e privados. A partir de diferentes motivações, as artistas percorrem os interstícios do Recife de forma mundana, tocando corpos, memórias, lugares, sem, todavia, desejarem elaborar uma imagem unívoca do universo no qual se lançam, ordinária ou extraordinariamente. A própria condição de incompletude do fichário de artistas da DOPS/PE – e por quê não da ideia de arquivo? – impossibilita
uma leitura mais abrangente desse período, mas por outro lado mantêm em aberto, e pulsantes, os devires cuja intangibilidade o repressivo gesto do fichamento um dia quis disciplinar. Articulados, o mundano e o incompleto instauram um modus perceptível nos três projetos, cujas forças são a afirmação de poéticas e políticas do corpo, da cidade e da ficção. Teta Lírica (2016), de Marie Carangi, é uma performance na qual a artista realiza um concerto a partir do movimento de seus seios diante de um teremim. Performance que se dá em palcos em desuso da cidade (um coreto e uma concha acústica), variando entre uma apresentação solitária para um público inexistente e um solo, para um público passante. Com o corpo recoberto por uma malha preta, que deixa à mostra, através de buracos, somente os seios, de botas e sem recursos cênicos como maquiagem, penteados ou adornos, a artista evidencia um corpo
eminentemente político, cuja nudez crua, de movimentos agressivos, faz com que escape a eventuais leituras erotizantes do trabalho. Longe da utopia do corpo livre, que nos anos 1970 teve no auge do topless um marco político, as tetas de Marie Carangi tampouco reafirmam a hipótese da arte como ‘livre expressão’. A dimensão convulsiva da sua coreografia afasta a performance de uma ideia de liberdade hedonista, aproximando-a, por sua vez, da performatividade da luta. Gestos rápidos, precisos e rígidos marcam a coreografia angulosa de uma nudez repleta de arestas sociais, cuja liberdade não está dada como condição natural, mas é sobremaneira uma continuada luta pela desopressão. Na versão em vídeo da performance, realizada numa concha acústica, o preto do traje da artista contrapõe-se à brancura do fundo contra o qual se coloca, ressaltando uma arquitetura que é misto de utopia e falência de
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um projeto de modernidade. Esse contraste entre preto e branco, figura e fundo, torna quase gráfico o movimento do corpo de Marie que, visto à distância, não apenas não se permite erotizar como também maquiniza-se. Corpomáquina que realiza um concerto solitário com um dispositivo que produz som a partir da simples presença, prescindindo do toque. Trata-se de um concerto composto por corpos-máquina – a artista e o teremim – numa partilha de espaço que tem, na fronteira entre corporeidades, seu lugar produtivo. Outra dimensão do corpo, atrelada à cidade, surge em Vaga, projeto de Irma Brown. A artista reúne e provoca, em quatro vídeos, situações de deriva pelo Recife, nos quais vivencia diferentes momentos e perspectivas da cidade, perpassados por um cotidiano em primeira pessoa, pela conjuntura política atual, pela emergência das agendas feministas e pela experiência de uma ação política no mundo a partir da arte. Caracterizados
por uma “linguagem crua” – imagens captadas, em sua maioria, por câmera de celular –, os vídeos compartilham e convocam um modo de estar na cidade. A noite, os caminhos, os amigos, os encontros, as manifestações, os bares, os monumentos, o rio, dentre outras situações que aparecem nos vídeos de Irma Brown, compõem uma vida na cidade, numa experiência que singulariza a versão cartográfica da urbe. Singularização que se dá através da artista, sujeito de seu conjunto de vídeos por ser deles, simultaneamente, protagonista e perspectiva. Assim como os corpos do fichário de artistas da DOPS/ PE possibilitam – através de suas pouco conhecidas trajetórias e biografias – que imaginemos outras histórias para o Recife, ao dispor abertamente seu corpo à cidade, Irma Brown torna possível que, por meio daquilo que manifesta, vislumbremos o desenrolar de uma história política que é tecida a partir
de micronarrativas. Sua poética ordinária consiste no caráter indissociável entre o público e o privado, entre o intervir e o estar no mundo. Nesse sentido, as urgências feministas, por exemplo, passam pelo seu corpo que, saído da Marcha das Vadias, permanece nu ao adentrar uma igreja, numa atitude tão iconoclasta quanto aberta ao inesperado dos encontros. Buscando o Recife que reside no fichário, advém a necessidade de identificar os espaços da cidade por ele mapeados, encontrando o que, reconfigurado, resiste ao tempo e à repressão. Em colaboração com Moacyr Campelo, o projeto Vaga se estende a uma intervenção sobre os prédios que no contexto do arquivo figuravam como estabelecimentos de usos sociais tomados por suspeitos. Os artistas colam – sobre as fachadas do que um dia foram pensões, cassinos, bares, espaços de lazer e festas – lambelambes que reproduzem e rearranjam as fichas e todo conjunto de evidências que corroboravam a criminalização das pessoas e lugares. Com isso se
revelam não só as camadas de tempos que conformam a cidade, como se reverte o gesto político do rótulo que – usado pela DOPS como forma de repressão – é por sua vez retomado pelos artistas como estratégia de denúncia, de informação e de liberação de subjetividades em estado de invisibilidade. Nesse contexto, a afetividade é preponderante. Do amor pela cidade às relações de amizade, passando por um erotismo implícito, da euforia à melancolia. Da afecção coletiva da ocupação das ruas à solidão da experiência do aborto, é a cidade cúmplice, mesmo quando em ruínas, que tudo perpassa. Já o encontro com a cidade vivido por Juliana Borzino é marcado pelo caráter de incompletude da memória e do arquivo. No Folhetim dos Encontros, a artista entrecruza ficcionalização e arqueologia para criar uma publicação inspirada por um folhetim outrora distribuído pela loja de seu bisavô pernambucano, a Livraria Mozart. Diversamente à versão da livraria, dedicado 27
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a personagens e eventos da cidade, Borzino vai ao encontro de uma cidade experimentada por entre momentos de coletividade e recolhimento. Sua narrativa soma-se a uma iconografia que mistura pesquisa em arquivo e produção de imagens. Diferentemente da centralidade do corpo do artista visto nos trabalhos de Irma Brown e Marie Carangi, este elemento perde o protagonismo na publicação de Juliana que, num flerte com o obscuro, toma o anonimato como modo de ação, privilegiando a ficção como forma de criar inteligibilidade ao desejo de desarquivar a vida do seu avô. Assim, relaciona história pública e familiar até que esta tome contornos e proporções de história da cidade. Na ficção de Borzino, escrita ao longo de sua imersão em Recife, múltiplos tempos e vozes se articulam. Pesquisas em diferentes acervos,
conversas com familiares e desconhecidos, encontros inesperados, lugares, sensações, lembranças que marcaram suas derivas pela cidade, levaram-na a achar, descobrir, conhecer e, na mesma medida, inventar. A busca por referências da Livraria Mozart a conduziu a equivalências entre o próprio e o apropriado, o documento e a ficção, o lógico e o intuído, o lendário e o verídico – elementos combinados na produção de um texto poético que amalgama fatos históricos à dimensão fantasmática da história. Na medida em que se lança na missão de recolher e organizar memórias alheias, o folhetim une o que é possível lembrar, ao que se convém esquecer. Polifônico, o texto costura percepções que parecem pertencer a uma única voz cuja autoria ou lugar de enunciação não se revela. O que faz do texto do folhetim, fundamentalmente, uma escrita de fluxos e intensidades.
“É favorável atravessar a grande água”, indica Borzino na página de abertura do Folhetim dos encontros. A afirmação, apropriada do oráculo I Ching, revela a dimensão dada pela artista ao seu desafio com o projeto: tratava-se, evidentemente, de uma missão. Como tal, foi preciso engajar-se. Borzino, Brown e Carangi engajaramse com O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos desde o ponto de vista de um mergulho dedicado no seu arquivo, ao engajamento político, atual e urgente, perante as violências que o possibilitaram e alimentaram. Interessa-nos ressaltar o fato de serem mulheres as três artistas selecionadas, como também considerar o dado de que 60% das fichas da DOPS/PE são relativas a mulheres, tantas vezes criminalizadas pelo exercício de sua sexualidade, trabalho, posição política, interlocuções ou simplesmente por viverem em trânsito. A identificação entre as mulheres do projeto, as fichadas e as selecionadas, parece ter propiciado – num
momento em que o debate do feminismo se radicaliza e transborda seus tradicionais nichos – uma exacerbação da experimentação, da indisciplina e do desejo de agir a despeito da persistência e da atualização de formas de normatizar gêneros e naturalizar violências. Para essa identificação concorreram movimentos de engajamento e alheamento, presentes nos trabalhos resultantes da Convocatória Artística. Os vídeos de Brown modulam a presença em manifestações a deambulações na noite recifense. Lançando-se na cidade, Borzino encontra, no desconhecido, a chave para o compromisso de imaginação que a liga a Recife. Carangi desestabiliza a ideia de nudez com seu modo dissonante de imbricar o corpo. E, assim, alheando corpos engajados e engajando corpos alheios, reafirmam o direito ao mundano.∆
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FICHA TÉCNICA
Idealização e Coordenação do projeto.
Equipe Curatorial. CLARISSA DINIZ
Assessoria Histórica. DURVAL MUNIZ DE
TETA LÍRICA . Marie Carangi
CLARICE HOFFMANN
ALBUQUERQUE JÚNIOR
Pesquisadores Convidados. ALEXANDRE FIGUEIRÔA E MARCÍLIA GAMA
Pesquisa. ALBERTO DE OLIVEIRA,
BRUNA DOURADO, CLARICE HOFFMANN, MARIANA LACERDA (DEOPS/SP) E MATEUS SIMON.
Estágio. THULIO ARAGÃO (pesquisa) Textos das Resenhas. ALBERTO DE
OLIVEIRA (artistas fichados), BRUNA DOURADO (artistas fichados e locais prontuariados) E MATEUS SIMON (artistas e
locais prontuariados)
Revisão. ALBERTO DE OLIVEIRA
(padronização)
Edição de textos. FABIANA MORAES
(cartografia) (fichário)
E MARCIA LARANGEIRA
Edição Cartografia (mapas e ilustrações). MATEUS SIMON Edição Final (conteúdo). CLARICE HOFFMANN
Desenvolvimento do site. COFFEECUP Design Gráfico (web). LIN DINIZ Reprodução fotográfica. JOSIVAN RODRIGUES
Digitalização e Tratamento de Imagens. CHIA BELOTO (imagens pins cartografia) E MICHELLY PESSÔA
Design Gráfico (catálogo). DANIELA BRILHANTE
Assessoria Jurídica. DIEGO MEDEIROS Assessoria Produção Executiva. JOÃO VIEIRA JR. + REC PRODUTORES
E GLEYCE HEITOR
Nasceu em 1989 no Recife-PE, onde vive e trabalha. Graduada em Arquitetura e Urbanismo na UFPE, trabalha com performance, vídeo e instalação. Inicia o trabalho de performance-serviço - Peluqueria Carangi - no Lesbian Bar do artista Fernando Peres, no mesmo momento que libera seu cabelo crespo do alisamento. Em Peluqueria Carangi, as relações entre corpo, espaço, estruturas e auto-imagem que atravessam o corte de cabelo viram trabalho de conclusão do curso de Arquitetura e Urbanismo. Esse laboratório se desdobra em outros gestos nas performances Corte estilo guilhotina e GRITOFONIA, apresentadas na exposição GRITO CORTE, já exibida na Galeria Maumau, Centro Cultural São Paulo e Galpão Bela Maré. Filmagem: João Lucas / Som direto e desenho de som: Thelmo Cristovam/ Edição vídeo: João Lucas / Técnico de som: Mozart/ Som direto coreto: Juliana Borzino / Som direto lesbian bar: Luciana Freire D’Anunciação / Fotografia making off e perfil: Luciana Freire D’Anunciação / Fotografia coreto e Lesbian Bar: Benjamin de Burca / Agradecimentos: Cristiano Lenhardt, Fernando Peres, Priscila Gonzaga, Itamar Siqueira, Lara Moura e Escola Sensório.
VAGA. Irma Brown Nasceu e
vive no Recife, Pernambuco. Artista de trânsito livre. Substantivo feminino plural. Seu trabalho se funde em
diversas linguagens. Não por coincidência, coordena desde 2009 a Maumau, espaço de resistência e convergência artística, onde mora e trabalha. Produtora, ciclista mensageira, artista. Avoada. Utiliza a fotografia e o vídeo como suporte para suas obras. Faz colagens, serigrafia, gravura, costura. Trabalha como atriz e realiza performances. Design gráfico lambe-lambes: Moacyr Campelo / Fotografia artista: Ruth Steyer Agradecimentos: Abel Alencar, Ayla Alencar, Christina Machado, Cecília Araújo, Gabi Cabral, Fernando Peres, Iezu Kaeru, Juan Eduardo Saucedo Isaza, Lucas Peres, Mariana Fortes e Marcha das Vadias.
FOLHETIM DOS ENCONTROS. Juliana Borzino Vive e trabalha
no Rio de Janeiro. Mestranda em Linguagens Visuais pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Sua pesquisa dialoga com questões relativas a memória e a arqueologia, a partir da construção de imagens, escritas, objetos e sons. Realizou em 2015 uma exposição individual no Centro Cultural Oduvaldo Vianna Filho - Rio de Janeiro; participou de algumas exposições coletivas dentre elas, no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, SescRio, Plano B Lapa, Galeria Luciana Caravello. Participa do projeto sonoro Meteoro. Esteve no programa de residência Interacciones Urbano Rural na Residencia en la Tierra, na Colômbia. Publicou o livro A-125 em parceria com J. Frontin e M. Nóbrega, projeto contemplado pela Editora Temporária no RJ. Em memória à Livraria Mozart
e a Orlando da Silva Telles / Design e texto: Juliana Borzino / Fotografias: acervos particulares. Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e Museu da Cidade do Recife / Impressa em risograph pela Editora Aplicação. Tamanho de 21,5 x 15,5 cm. Papel chamois. Fonte BF Solo Sans. Agradecimentos: Fundação Joaquim Nabuco, Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, Museu da Cidade do Recife, Editora Aplicação, Silvana Maria da Silva Telles, Everaldo da Silva Telles, Glória Maria Ferreira Telles, Malu Barros Telles, Davi Telles, Arthur Telles, Thiago Telles, Kátia Telles, Rúbia Telles, Ieda Maria Telles, Isabel Telles, Priscila Gonzaga, Claudio Moreira, Maria do Carmo dos Santos, Eleonara Saldanha-Marston, Wilton de Souza, Rostand Paraíso, Fátima Quintas, Dona Illka, Ana, Sheila, Edson Carlos, Severino de Oliveira, Wilson Ferreira de Souza, Café do Gil, Julia Pombo, Flora Dias, Anna Thereza Menezes, Luiz Eduardo Borzino e Eduardo Borzino.
Esse catálogo foi impresso em offset pela MXM Gráfica - Recife em 2016. Os papéis utilizados foram o offset 90 gr/m2 (miolo), e triplex 250 gr/m2 (capa). As tipografias utilizadas foram a Courier (corpo de texto), e IM Fell Double Pica (títulos). Tiragem de 500 exemplares.