QUE BELEZA !
Por Dani da Gama
V
inícius que me perdoe, mas beleza não é fundamental. Pelo menos não no sentido que o poeta desejou, ao estabelecer padrões como a existência de saboneteiras nas clavículas femininas e temperaturas ideias para suas reconcavidades...
Apesar da ditadura da beleza ainda existir, cada vez mais mulheres percebem que beleza é muito mais um estado de espírito do que a medida da cintura ou do quadril, e começam a sentir-se bem em sua própria pele.
Mente sã, corpo são A história da beleza remonta à das primeiras civilizações do planeta. Atrair o parceiro ou a admiração alheia é fato normal, principalmente para as mulheres, que não podem ver sua silhueta numa vitrine que já a fazem de espelho provisório. O problema é que nem sempre esse espelho reflete o que seu espectador deseja. Segundo a psicóloga Suely Silveira, de 43 anos, a questão dos padrões de beleza é complexa e multifatorial. E ressalta que distúrbios alimentares como anorexia e bulimia, por exemplo, já existiam na Idade Média, e que no Egito antigo já se usava maquiagem. O que muda com o tempo é o pano de fundo sociocultural. Assim, tais transtornos têm fatores psicológicos, sociais e culturais, adequados a cada contexto. As mulheres japonesas forçam-se a reduzir o tamanho de seus pés, como em alguns povos africanos a beleza está em alongar muito o pescoço ou em desenhar pinturas pelo corpo. Suely afirma ainda que o próprio significado do corpo veio mudando durante a História: na Idade Média, o corpo era sacralizado. Já na Revolução Industrial, passou a ser instrumento de trabalho. Hoje, para a psicóloga, o corpo se tornou principalmente objeto de consumo. Ele precisa consumir e ser consumido, aceito, muitas vezes substituindo-se o que nele há de mais natural.
Da mesma forma alguns transtornos são mais incidentes na população em determinadas épocas. Hoje temos a ortorexia, que é a obsessão por alimentos saudáveis. Há ainda uma variedade de transtornos dismórficos corporais, segundo os quais o indivíduo passa a ver parte de seu corpo deformada, ou não natural. Para Suely, as maiores vítimas desses distúrbios são as mulheres. Isso se explica por sua predisposição em fazer do corpo um objeto desejável, cobiçado pelos homens. E não é anormal, até que vire uma obsessão. “A mulher obesa”, exemplifica a doutora, “é vista como uma pessoa doente, sem força de vontade”. As queixas dessas mulheres é de que não conseguem encontrar roupas bonitas para vestir, que não são bem tratadas em lojas ou não encontram espaço nos ônibus. “Se tudo isso não precisasse ser uma preocupação, o que iria acontecer?”, questiona Suely. Se pudessem sentir-se bem e não excluídas, muitos destes transtornos seriam bastante reduzidos. Cria-se assim uma cultura da estética e da busca de um corpo perfeito irreal – como os corpos exibidos em páginas de revistas. A mulher se vê lutando para seguir um padrão de beleza que, na verdade, não existe.
Alguns distúrbios... - Transtorno Dismór�ico Corporal - Anorexia - Bulimia
- Ortorexia
É tudo natural Se é difícil lidar com peso, textura dos cabelos, e rugas a mais, imagine lidar com a parte mais natural do corpo, que inclui odores, pelos e barulhos. O corpo desejável precisa inibir e disfarçar esses fatores, virando um corpo de certo modo artificial, explica a psicóloga. “Tudo tem um sentido e uma função, só que somos levados a pensar que não”. Para ela, o corpo é natureza, vai envelhecer e transcorrer em seu ciclo, mas isso não quer dizer que você não possa desejar uma vida saudável ou sua beleza conservada... O que precisa ser pensado, conforme a doutora, é qual o sentido que esse esforço tem para cada mulher. É o bem-estar que ela procura, ou apenas ser aceita? Isso diz muito de quanto esforço extra ela terá de fazer, ao invés de se guiar pelo prazer de alimentar-se, exercitar-se ou apenas vestir uma roupa que deseje. Uma dieta radical, explica Suely, pode causar alterações hormonais importantes. Assim, a mulher ansiando pelo corpo perfeito e em busca de uma vida saudável pode acabar adoecendo. Casa de ferreiro Nem mesmo a psicóloga se viu livre das neuras e obsessões que a beleza nos impõe por todos os lados. Suely nos conta que até seus vinte e poucos anos se achava gorda, fez mil dietas malucas e não usava nada muito
curto ou alcinhas, por achar sua canela e braços grossos. “Hoje me preocupo, sim, mas não em seguir padrões”, afirma. “Se tiver que colocar um vestido eu coloco... Me preocupo com meu peso, e que meu corpo esteja bem, mas eu estou envelhecendo e quero envelhecer de boa, então não quero agredir meu corpo”. A maturidade leva tempo. Hoje Suely tem consciência de que segue um padrão que é seu, preocupando-se muito mais com seu próprio bem-estar e saúde. “A gente vai quebrando esses contrastes... Tem dias que às vezes não dá tempo e eu não me depilo. E não deixo de colocar um vestido, uma saia por isso”, completa. Para ela a beleza é olhar-se no espelho e gostar do que se vê, seja gorda ou magra, de cabelo curto ou comprido... E acredita que beleza vem de dentro para fora – quase todas conhecemos mulheres que estão fora de algum padrão de beleza, mas que transpiram feminilidade e sensualidade. Talvez, para ser bonita, o importante, mesmo, é ser feliz.
CIRURGIAS PLÁSTICAS NO BRASIL
- 1.224.300 cirurgias em 2015 (12.000 a menos do que em 2014); - O Brasil é o 2o. país do mundo em número de cirurgias plásticas; Cirurgias mais procuradas:
- Lipoaspiração, implante de silicone nos seios, cirurgia da pálpebra, abdominoplastia, lifting de mama, redução de mama, rinoplastia, aumento de bumbum, preenchimento do rosto, lifting de rosto, orelha, lifting de sobrancelha e de pescoço, redução de mama masculina.
Fonte: Pesquisa da Sociedade Internacional de Cirurgias Plásticas e Estética (ISAPS).
Que beleza? Com o passar dos anos, os padrões de beleza também vão mudando. Por isso, também, a busca incessante de se “encaixar” pode ser tão frustrante e improduviva. Década de 20 Magras e de sobrancelhas finíssimas, as mulheres saem de casa e quebram de vez com muitos padrões remanescentes do século XIX.
Década de 40 Surgem as pin ups, modelos de muitas curvas e cinturas finíssimas. A mulher sensual, mas ainda, objeto de cobiça para os homens.
Década de 60 Brigitte Bardot se torna o ícone da época. O bumbum passa a ser o foco da beleza feminina.
Década de 70 A esquálida e quase andrógina modelo Twiggy substitui as curvas dos últimos 30 anos.
Década de 90 A era das supermodelos trouxe mais diversidade, e personalidade ao que se podia chamar de belo
Anos 2000 Conviveram pernas longas e finas com seios fartos e uma certa postura blasè.
Dias de hoje Embora ainda sejam corpos magros que predominam nas passarelas e fotos de revistas, a beleza aparece de forma cada vez mais natural..
Cabelo, cabeleira
“Acho que por conta desde contato e com outras meninas que já tinham Cleo Souza, de 24 anos, é se assumido que eu por conta estudante do curso de História. própria fui lá e cortei meu cabelo Negra, foi escrava da chapinha por e resolvi me assumir assim.” Para uma década antes de se autodescobrir Cleo, em relação a imposições de e libertar-se dos padrões relativos à beleza, o cabelo é “esteticamente sua própria etnicidade. Ela conta que e simbolicamente falando”, seu o processo de autodescoberta como principal fator de libertação. negra não foi rápido. “Até meus 19, “Eu lembro que no dia que pros 20 anos, eu ainda não me via eu cortei bastante meu cabelo, como negra até porque eu tentava a primeira sensação, uma das fazer coisas que me aproximassem de melhores da minha vida, foi poder uma estética não negra: alisava meu sair e tomar chuva. Senti-la na cabelo, não havia minha cabeça, simboSua presença maquiagens próprias licamente foi o para a pele negra...” ajuda as crianças momento mais mara Cleo sempre teve vilhoso da transição”, a se verem o cabelo muito cacheado conta Cleo. e cheio, e que sempre o como negras e Hoje ela gosta do prendia para ir para seu cabelo natural, começarem a se a escola, até chegar um bem volumoso. Mas momento em que ela e a ainda percebe a difilibertar. mãe optaram por alisá-lo. culdade da ditadura Mas a história mudou. O cabelo, dos lisos quando está no ambiente alisado desde os 9 anos por conta de escolar, dando aulas. “Eu vejo bullying sofrido na escola, inclusive outras meninas negras e percebo por comentários de professores, foi que ali existe, sim, imposição. No finalmente liberto e hoje vive lindo, nosso meio universitário talvez seja leve e solto. Aos 19 anos, Cleo parou um pouco mais fácil, mesmo tendo de alisar o cabelo. Ela explica que isso dificuldades. Mas quando estou no se deve muito ao acesso que passou a ambiente escolar percebo que ainda ter, fora da escola, a outras formações, tem muito trabalho a se fazer...”. e à ligação pessoal com a temática do Mas sua própria imagem racismo e do feminismo negro. certamente influencia esta nova geração. “Eu comcei a perceber que
só pelo fato de eu estar ali, muitas meninas começaram a se sentir mais livres para irem para a escola com o cabelo natural. Inclusive uma veio até falar comigo, que me achava muito bonita, meu cabelo muito bonito”, afirma. Mesmo havendo ainda brincadeiras, Cleo crê que sua imagem na sala de aula já é um fator para que as meninas negras se sintam mais à vontade para falar sobre o assunto e desconstruir aos poucos estéticas aprisionadoras centenárias. Cleo costuma levar para a sala de aula a temática do racismo, e vê sua presença como ajuda às crianças a se verem como negras e começarem a se libertar. Mas ressalta que reconhecer-se é um processo longo, e não só estético. E se sentir bonita também não é um processo fácil. Para Cleo, beleza é liberdade, sentir-se bem na própria pele e vai muito além da estética. “É o que você escolheu pra você mesmo, independente do tipo de corpo que você tem, do tipo de cabelo que você escolheu. É você acordar de manhã, se olhar no espelho e não sentir que está tendo uma imposição”, reflete. Há ainda muitos padrões impostos, como relembra Cleo – para a mulher negra, a gordinha, a trans, e todas as minorias. Mas para ela, se sentir bonita é se sentir livre, independentemente do que a sociedade quer que você seja.
Pelo sim, pelo não O problema de Cecília Santos, 22 anos, estudante de Comunicação, está em outro tipo de cabeleira. “Eu ainda não me sinto bem com meus pelos, me sinto muito suja”. De sobrancelhas grossas, num rosto delicado, Cecília vai narrando suas maiores dificuldades quando o tema é beleza: “Na verdade da sobrancelha eu nunca liguei, mas o meu bigode eu me sinto muito mal...”. Cecília lembra também da repressão que sente ao estar em determinados lugares com determinadas roupas, ou que se sente pressionada a sair “mais arrumada” para ir a determinados eventos. Conta que sua mãe sempre comenta: “Não vai de tênis, se maquie”. “Fazer a unha, também”, adiciona, “eu já me senti bem mal, com vergonha, mesmo, de não mostrar porque estava todo mundo com a unha feita e eu não estava”. Hoje Cecília se sente muito mais livre, embora tenha dúvidas, como qualquer mulher. “Não ligo de não usar sutiã, e me sinto muito mais à vontade quando estou peluda. Eu acho até bonito tudo peludão.”
Para Cecília, uma pessoa é bonita quando está se sentindo bonita. “Se eu estou me sentindo bonita, eu vou estar usando uma roupa que eu quero, é talvez uma coisa mais de segurança, acaba que as outras pessoas vão me ver também bonita. Se eu ficar muito insegura vou estar corcunda, me escondendo , cabelo no rosto”, descreve. Para ela, beleza vem de dentro, e é muito maior que mera aparência.
o que faz mnha visão de mim mesma variar conforme meu humor”, afirma. Hoje em dia, Janete consegue controlar os transtornos quanto a sua própria imagem. Quer perder peso, mas não é mais algo essencial, e sim uma questão de “conforto”: “Não me importo tanto em agradar outras pessoas. Sou realmente desencanada com o corpo porque concluí que o mais importante pra mim é a forma como eu usufruo desse corpo”, Dois pesos, duas medidas ensina. Para Janete, a beleza está mais Janete Helena Resende Souza, de ligada ao aspecto vivencial. “Há dias 35 anos, é funcionária pública. Ela em que eu acho tudo lindo em mim, relembra sua adolescência não importa o que os quando tinha a ideia de “Beleza é sobre outros pensem ou que seu corpo era o que digam. Há dias em que ela possuía para chamar a como eu me sinto”. nada funcionará e a atenção. “Aos 18 anos me minha visão de mim achava gorda e feia. Usei pode ficar distorcida”, óculos fundo de garrafa por muito explica. tempo”, conta. E por muito tempo Muito mais consciente de si, atribui tudo o que dava errado à sua hoje Janete ensina: “A minha beleza aparência. “Fiz dietas malucas, virei rata geralmente denota conforto. Se estou de academia, até 2005, quando uma parecendo bonita é sinal de que depressão me levou à necessidade de estou confortável vivendo sob minha tratamento medicamentoso”, explica. própria pele. Beleza para mim não é Depois disso, Janete perdeu muito mais sobre como eu pareço para os peso, passou a usar lentes, e pensava que outros. É sobre como eu me sinto”. devia estar se sentindo melhor, mas não acaonteceu. “Magrela e sem óculos”, narra, “eu não me senti melhor. Precisei reavaliar várias vezes meu conceito sobre beleza. Fui diagnosticada com Transtorno Bipolar aos 30 anos,
Suely Silveira, 43 anos, psicóloga
“Beleza é bem-estar.”
Cleo souza, 24, estudante
“Beleza é liberdade”.
“Beleza é auto-confiança”. Cecília Santos, 22, estudante de Jornalismo
Janete Souza, 35, funcionária pública
“Beleza é conforto”.
Conhecendo as histórias destas mulheres, parece que conseguimos nos sentir um tanto mais reais. Com os mesmos medos e inseguranças. E percebemos o quanto nos enganamos a respeito do que seja bem-estar, beleza ou felicidade. Todas somos belas, se formos inteiras e confiantes. Quanto aos padrões e receitas, como a poesia de Vinícius, desculpem mais uma vez: que a gente possa escrever com nossos próprios corpos as poesias de nossa existência, nos sentindo belas, apenas por estarmos bem em nossa própria pele. ______________________________ Texto: Dani da Gama Imagens: Arquivo Pessoal Imagem Cleo Souza: Fernando Lopes