Tecem MÃOS QUE
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AS REDES QUE SUSTENTAM O PONTAL DA BARRA Júlya Rocha
por Júlya Rocha
Às margens da Lagoa Mundaú, quando a tarde cai e o céu fica alaranjado, centenas de mulheres vão às portas de suas casas e exibem peças de bordados e rendas. As artesãs do bairro do Pontal da Barra, carregam consigo mais que os movimentos habilidosos e repetitivos que fazem com que linhas, muito bem combinadas, tornem-se o que a imaginação desejar. Tradição e resistência são duas palavras que, lá no histórico bairro que mais parece um museu do artesanato a céu aberto, andam lado a lado.
Ficha Técnica
Ficha Técnica
Texto Júlya Rocha Fotografias Júlya Rocha, Gustavo Mata e Daniel Borges Projeto Gráfico Daniel Borges e Júlya Rocha
Ilustração Eva de Oliveira Freepik Colaboração Teresa Machado Orientação Júlio Arantes
Universidade Federal de Alagoas Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte Curso de Jornalismo Este é um trabalho experimental do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Alagoas.
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É
o colorido das suas ruas estreitas que anuncia o que podemos encontrar. Entre linhas e cores, o bairro do Pontal da Barra, localizado na Zona Sul de Maceió, vai revelando aos poucos seus atrativos. Não é preciso ir muito longe para encontrar algumas mulheres nas portas de suas casas, com linhas e agulhas nas mãos. Elas dão a fama do Pontal, também conhecido como o Bairro das Rendeiras. Por lá, o artesanato, principalmente o Bordado Filé, se trata de uma tradição secular, passada de geração em geração. Ainda com ar de cidade do interior, com casas simples
e sempre com pessoas sentadas nas calçadas, o Pontal da Barra, segundo o último censo do IBGE, em 2010, tem o total de 2.478 habitantes. Destes, mais de mil são artesãos e 90% deles são mulheres. Surgindo às margens da Lagoa Mundaú, no século XIX, o bairro é famoso por se sustentar da pesca e do artesanato. Das redes que se tornaram importantes para o desenvolvimento do Pontal, além da de pesca, a do Filé se tornou uma importante fonte de renda. É normal a confusão entre o que é bordado e o que é renda. Considerado internacionalmente bordado, o Filé, que vem do francês “filet” e
quer dizer “rede”, é feito sobre uma superfície de fios tramados, enquanto a renda se trata de um conjunto de fios confeccionado com a ajuda de pequenas peças de madeira e outros materiais, que resulta numa superfície plana. O “pano” que se forma é a própria renda. Mesmo fazendo outros tipos de bordados e rendas, é o Filé o mais popular entre as artesãs, também chamadas de filezeiras ou bordadeiras. Sendo assim, ele se torna um dos personagens principais dessa reportagem. “Mãos que Tecem” traz relatos de mulheres, que, linha a linha, escrevem suas histórias e mantém a tradição desse bordado.
Filé feito sobre uma superfície de fios tramados.
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Teka posa em frente sua casa.
' COISA LA ' DE ALAGOAS'' ''E Martinho da Villa já cantou as belezas do Pontal e adiantou “é coisa lá de Alagoas”. “Só em Maceió” foi composta em 1981 pelo cantor, que destacou logo em seus primeiros versos Maria Teresa, mais conhecida como Teka Rendeira, a artesã mais famosa do bairro, que exporta o bordado filé para vários estados do Brasil e até para o exterior. Aos 73 anos, Teka, que não deixa nunca o sorriso de lado, me recebe em sua casa em meio às peças de filé, produzidas ali mesmo. “Até estando doente, não consigo ficar parada”, conta a artesã que acabara de passar por uma cirurgia. A sua história com o Filé começou bem cedo, aos oito anos para ser exata. Seguindo a tradição,
Teka aprendeu com sua mãe, que aprendeu com sua avó, e o resto vocês já podem imaginar. “Sou nascida e criada no Pontal. Já me mudei várias vezes, mas nunca saí do bairro. Inclusive, foi aqui que Martinho me encontrou”, começa ela a relembrar um dos momentos importantes da vida de artesã. “Ele veio passear no Pontal logo após um show. Nos conhecemos e nos demos muito bem, ali, naquela hora, parecia que a gente se conhecia há uns 10 anos. Martinho passou o dia na minha casa, a música foi feita na minha mesa. Sempre que ele vem à Maceió nos encontramos”. A música, que de certa forma divulgou o artesanato alagoano Brasil afora, também deu a Teka Rendeira a sua im-
portância. “Até hoje as pessoas lembram da música e me perguntam se sou eu a ‘Teka Rendeira’. Sempre me sinto lisonjeada”. Suas peças abriram novos caminhos, e até hoje a artesã faz questão de viajar por aí levando o seu trabalho. “O Filé já me levou a vários lugares. Quando não podia ir, outras pessoas sempre levavam minhas peças para vender e mesmo assim me sentia representada. No outro dia só via as notícias, até capa de revista eu já fui”, conta orgulhosa. Quando perguntada sobre sua rotina, a artesã é categórica. “Eu vivo em meio a isso aqui. Não consigo ficar bem sem fazer o Filé, é a minha vida. Só deixo mesmo quando meu coração parar”.
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A DANCA DOS FIOS ' A loja repleta de peças de Filé chama a atenção. No fim do corredor Dona Dilma, de 78 anos, trama uma rede. Certamente, mais uma peça do bordado está em execução. Nascida no bairro do Pontal, a artesã conta que aprendeu a bordar com a tia. “Amo viver aqui. Não cogito morar em outro lugar. A gente aprende a bordar com os mais próximos. Não aprendi com a minha mãe porque tinham outros irmãos mais novos para ela cuidar, faltava tempo”. O bordado de origem
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europeia chegou a Alagoas através dos portugueses, que ensinaram aos pescadores da região o trançado para utilização nas redes de pesca. “Desde o início os homens pescavam e as mulheres faziam filé. Interessante, né? A nossa fonte de renda já vinha das redes, mesmo que redes diferentes”, explica a senhora atenta a rede do Filé. Formada em Pedagogia, Dona Dilma hoje vive só do artesanato. “Quando me perguntam o que faço, eu digo que sou artesã. Pra mim isso
sempre foi mais importante do que ser pedagoga”. E foi o seu trabalho que a fez alçar voo. “Já viajei para vários lugares levando o Filé, que lá fora é muito valorizado. Foi através dele que conheci um pouco do mundo, tem como não ser grata?”. Ciente do trabalho das bordadeiras, junto a Associação dos Artesãos do Pontal da Barra, organização sem fins lucrativos, em hotéis e pontos turísticos de Maceió, Dilma diz que é preciso um equilíbrio entre o comércio e tra-
dição. “Hoje nós temos uma parceria com os hotéis onde sempre tem alguma artesã lá divulgando os trabalhos. Isso tem seu ponto positivo, mas também seu negativo. Eu acho que devemos tomar cuidado com isso. Muita gente deixa de vir ao Pontal, porque encontra o produto a dois passos do quarto. Aqui a gente vende na porta, faz parte da história do bairro. O movimento caiu muito comparado ao de anos atrás. Antes o turista dizia: ‘vir a Maceió e não vir ao Pontal é como ir a Roma e não ver o Papa’. Agora a realidade é diferente”, afirma. Enquanto a rede em
“Antes de ser comerciante, eu sou artesã”
suas mãos vai ganhando forma, a bordadeira conta um pouco da peculiaridade do Filé alagoano. “A Teka passou três meses no Ceará pra ensinar o Filé em uma cidade do interior. Mas ela foi muito esperta. Dos 22 pontos do bordado ela ensinou apenas três. O que faz do nosso Filé único e especial”. Apaixonada pelo que faz, ela diz que não se preocupa tanto com os lucros da loja. “Eu só sento e faço a hora que eu quero. Mesmo sem ter dinheiro eu não fico tão preocupada, faço porque gosto, pra mim é uma terapia. Antes de ser comerciante sou artesã”.
Dona Dilma é uma das moradoras mais antigas do bairro.
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CADA PO “Vou te dizer, nunca foi só o Filé. Mas ele sempre esteve presente”, é assim que a artesã, Lígia Mirim, também presidente da Associação dos Artesãos do Pontal da Barra, começa a contar sua história. Também nascida e criada no bairro, foi aos 10 anos que o bordado entrou na sua vida. “Eu ficava vendo o trabalho que as mulheres de lá faziam e fui aprendendo. Comecei fazendo apenas os acabamentos, depois tudo foi fluindo. O tempo foi passando e outras oportunidades foram surgindo, mas desde então nunca deixei de bordar. Trabalhava durante o dia e bordava durante a noite”, explica. Entre idas e vindas, Lígia está envolvida com a Associação desde 1998. Hoje, aos 55 anos, ela conta que foi preciso abrir mão de outros objetivos e buscar muita garra para que o ramo evoluísse. “Como é um trabalho que exige muito de mim, alugo a minha loja para correr atrás das nossas necessidades. Temos parcerias com alguns hotéis aqui de Maceió, onde todos os dias têm artesãs divulgando e comercializando seus produtos. Temos também o nosso trabalho interno. Quando uma artesã enfrenta problemas, nós tomamos à frente. E não só com questões relacionadas ao trabalho. Aqui a gente se comporta como uma
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Lígia posa em frente ao pôr do sol visto da Lagoa Mundaú como blusa de filé.
' ONTO UMA HISTORIA grande família, um ajudando o outro. É um trabalho social e comercial como um todo”. Diante do cenário econômico que o país vem enfrentando nos últimos anos, algumas dificuldades surgiram, fazendo com que os desafios de estar a frente da associação também aumentassem. “Os apoios são poucos. Uma das dificuldades é o Pontal voltar a fazer parte do Citty Tour de algumas agências de turismo. Hoje o turista vai à Praia do Gunga, na volta desce no Pontal e perto das 16h vai embora. Com o Citty Tour ele ficaria, só aqui no bairro, umas duas horas. Mas estamos correndo atrás, junto aos gestores, de mais atrativos para atingir o turista. Nossa maior inimiga é a crise. Antes uma artesã conseguia tirar um valor mensal de R$ 2.500, hoje quando conseguimos metade disso já comemoramos. Turista ainda tem, o que não tem é dinheiro”, afirma. E por falar em dificuldades, não são apenas as questões externas que afetam o bom funcionamento dos negócios. Segundo a artesã, ainda há resistência na comunidade quando surgem algumas mudanças. “O ser humano é o melhor e o pior produto pra se trabalhar. É ótimo quando a gente conhece alguém que tem a mente aberta e está disposto a melhorar, mas quando
é ao contrário, fica um pouco complicado. Como a maioria das artesãs daqui conciliam o trabalho doméstico com a produção do Filé, elas meio que não conseguem separar as duas coisas. Muitas vezes os clientes chegavam e elas saíam direto da cozinha para atendê-los, sem uma postura adequada. A gente tenta fazer com que elas entendam que a imagem é o cartão de visita da loja. Hoje a maioria já acatou, mas nem sempre é fácil”. A Associação conta com 52 mulheres parceiras, que são as que pagam regularmente a mensalidade no valor de R$ 25, e participam de 50% das reuniões. Mas, de fato, ela atende em torno de mil artesãos, mesmo os que não são sócios. Segundo Lígia, o artesanato do Pontal gera em torno de 400 empregos diretos e 15 mil indiretos, isso se dá ao fato da Associação comprar a produção de outras associações. Como forma de aprimorar o conhecimento e trabalho das artesãs, a Associação desenvolve algumas ações. “Todas as segundas, oferecemos curso de inglês para as associadas, pagamos 50% da mensalidade, e os sócios pagam o restante, o valor é de R$ 40. São iniciativas como essas que fazem com que elas se capacitem e facilitem o próprio trabalho. Por exemplo, quando chega algum navio
por aqui, elas precisam pelo menos saber falar Good Morning! Ou entender quando o cliente pergunta sobre alguma peça que está exposta. Também já trouxemos os cursos de estilista e modelagem. Mas, como disse, não são todas que estão dispostas. Muitas dizem que não têm mais cabeça para estudar. O nosso trabalho é tentar mostrar o melhor caminho pra que o trabalho delas como artesãs avance”. Quando perguntada sobre a valorização do Filé no estado, Lígia faz uma comparação de como ele é visto dentro e fora de Alagoas. “Sem dúvidas o Filé é mais valorizado pelo turista do que pelo alagoano. Nesse caso, o pessoal daqui leva bem ao pé da letra aquele ditado ‘casa de ferreiro, espeto de pau’, achando que o que vem de fora é melhor. Mas sinto que uma boa parcela já olha nosso artesanato de uma forma diferenciada. Muito se deve a mídia em geral, as novelas, revistas. Martha Medeiros, estilista alagoana, também ajudou muito nessa questão, mesmo trabalhando mais com a renda renascença, o fato de ela vestir vários famosos trouxe um olhar atento e especial para o artesanato alagoano. Não a conheço, mas se um dia isso acontecer, com certeza vou agradecê-la por isso”. Mesmo o Filé receben-
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do um novo olhar, a tradição de mulheres às portas, com telas e linhas nas mãos corre o risco de se perder. O medo de que o bordado não seja produzido pelas novas gerações arrodeia as artesãs, que competem todos os dias com as novas tecnologias. “No mundo digital em que vivemos, corremos o risco do trabalho das artesãs do bairro ir sumindo aos poucos, mas eu espero muito que isso não aconteça. A associação também está construindo projetos para incluir as crianças nesse meio. É um caminho longo, mas disposição para caminhar não falta”, explica Lígia. que deixa claro o seu amor pelo que faz. “O Filé me ensinou a ter cal-
ma. Eu sou muito agitada. Só tem duas coisas que eu faço devagar na minha vida: Filé e amor. Amor tem que ser devagar e com muita paciência pra ser muito bom, e o Filé tem que ser devagar e com muita paciência para que as cores e o formato tenham a mesma sintonia da dança de uma valsa”. E quando se trabalha com o que se gosta, tudo serve de inspiração. “A lagoa me inspira demais! Ás vezes penso em cores que não combinam, mas é só ter a sorte de olhar pra lagoa no fim de tarde que a gente vê, que, por exemplo, o cinza e o laranja casam direitinho. Também amo fazer Filé em noite de lua cheia. Vou pra calçada, pego a minha peça, o
meu whisky, coloco uma música que gosto e pronto, a festa é ali mesmo, entre um ponto e outro”, encerra. E se é o interesse dos mais jovens que pode ajudar a preservar a tradição, Vanessa, de 15 anos, cumpre seu papel com maestria. Com tear nas mãos ela diz que partiu dela a vontade em aprender a bordar. “Eu nasci no em meio a isso aqui, linhas, agulhas e tear. Acho que não tive pra onde correr, foi algo natural. Comecei a bordar aos seis anos, fazendo apenas alguns acabamentos, hoje já dou conta do recado e não pretendo deixar de fazer isso nunca mais, mesmo partindo pra outro ramo”, afirma.
Entardecer visto da Pousada Pontal do Sol.
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' REDE, ONDE HA ' RENDA HA Considerado por muitos um dos principais símbolos da cultura alagoana, o Filé, mesmo em meio às dificuldades do comércio, continua chamando a atenção de turistas. Para que o potencial turístico do bairro cresça, órgãos e serviços do estado trabalham junto às artesãs. “O bairro está inserido dentro das ações de promoção do Destino Alagoas em eventos nacionais e internacionais, oferecendo visibilidade para seus atrativos como a tradição artesanal e história do local, tanto no material de divulgação como também durante as palestras e workshops para agentes e operadores de viagens. Além disso, o bairro faz parte do roteiro de agentes de viagens, influenciadores e jornalistas que visitam o Destino Alagoas a convite da Secretaria do Desenvolvimento Econômico e Turismo de Alagoas (Sedetur)”, conta a Gerente de Design e Artesanato da Sedetur, Daniela Vasconcelos. Os artesãos do bairro
são atendidos por meio das ações promovidas pelo projeto “Alagoas Feita à Mão”, coordenado pela pasta, e que promove a comercialização, divulgação e valorização do artesanato genuinamente alagoano. “Entre as principais ações destacam-se as publicações de editais para participações em eventos nacionais, realizações de feiras e exposições locais, publicação de catálogo do artesanato, instalação de placas de sinalização, além da emissão e renovação da Carteira do Artesão, documento que garante isenção no ICMS na emissão de notas fiscais avulsas além de dar acesso às linhas de crédito oferecidas pela Agência de Fomento de Alagoas, a Desenvolve”, explica Daniela. Ainda como promoção ao artesanato, a Sedetur no fim do segundo semestre de 2018 pretende realizar um mapeamento com a placa “Alagoas Feita à Mão” na região metropolitana que contempla o Pon-
tal da Barra. A marca foi feita pelo Governo do Estado, com o objetivo de dar mais visibilidade à arte popular produzida aqui. Nos últimos quatro anos, os artesãos que recebem o apoio do projeto, participaram de 50 eventos, comercializando mais de 20 mil peças que somam mais de R$ 2 milhões. De férias em Maceió e de passagem pelo Pontal, a empresária Carolina Cavalcante, natural do Rio de Janeiro, conta que visitar o bairro superou suas expectativas. “Já tinha vindo a Maceió, mas ainda não conhecia o Pontal. Vim em busca do Filé tão famoso lá fora, mas também me deparei com uma cultura convidativa. Tudo aqui chama a atenção. A culinária, as ruas, o modo como as pessoas se comportam sentadas nas calçadas com as peças nas mãos, é como se a gente acompanhasse todo o processo de produção. Vim em busca de blusa de Filé, mas to voltando com bem mais que isso”, comemora.
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''SABER FAZER'' Diante da tradição secular, o bordado ganhou Salvaguarda. A arte do “saber fazer” precisou ser protegida para que, mais à frente, não se perca. Em 2014 o Filé tornou-se Patrimônio Imaterial de Alagoas. O registro foi solicitado por oito associações de artesãs, localizadas no entorno das Lagoas Mundaú e Manguaba, apoiadas e orientadas pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) em Alagoas, junto às Secretarias de Estado da Cultura (Secult), do Desenvolvimento Econômico e Turismo (Sedetur) e da Comunicação (Secom), pela Academia Alagoana de Letras, Universidade Federal de Alagoas (Ufal), a Rede Alagoana de Pontos de Cultura, pelo Serviço Social do Comércio (Sesc/AL), a Associação dos Folguedos Populares de Alagoas (Asfopal), e membros do Conselho Estadual de Cultura. Em 2016 o bordado também ganhou O Selo de Indicação Geográfica, concedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), que representa o reconhecimento da qualidade e originalidade do bordado filé produzido no estado. O estudo apresentado para a conquista dos títulos, foi elaborado pelo Laboratório da Cidade e do Contemporâneo
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(LACC), núcleo de pesquisa do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Ufal, e coordenado pelo antropólogo e pesquisador Bruno César Cavalcante. A pesquisa e reuniu a documentação sobre o processo de produção e comercialização do Filé, em especial na região das lagoas. “O Filé é um case de sucesso. Se trata de uma economia popular que cresceu por iniciativa própria. A história dessas mulheres é muito bonita, foram elas que criaram esse mercado. Muita gente pensa que foi após o turismo, e não é verdade. O turismo impulsionou essa cadeia de produção, mas elas foram heroínas no início, quando nem existia mercado local expressivo, as artesãs correram atrás, saíram de Alagoas e foram vender lá fora”, explica o antropólogo. De certa forma, o turismo impulsionou a produção do bordado, como por exemplo a criação de novos pontos de Filé, entre eles o “olho de pombo” e “jasmin”. O Filé que é feito hoje, policromático, não é o mesmo que era feito há décadas atrás, ainda monocromático. Para o pesquisador essa e outras inovações não oferecem risco à tradição de
como se fazer o bordado. “Uma das vantagens da patrimonialização é definir o que é tradicional. Identificar os elementos característicos do bordado. Eu não vejo exatamente um risco dessa tradição se extinguir, acho que a inovação faz parte do processo. Inovar não é o problema, a questão é como continuar tendo qualidade de um modo responsável com o ‘saber fazer’ do Filé. Esse próprio saber garante essa continuidade. A renovação seria mais danosa se não existissem os critérios que normatizam o bordado”. Presente em eventos cívicos e repartições públicas, o Filé se tornou uma marca local muito forte. Apesar de ser ligado à cultura alagoana, o consumo dentro do estado não é o mesmo que o de fora. “Acho que o fato do Filé ser mais consumido fora do
estado do que dentro, é algo normal. No clima em que os alagoanos vivem, o Filé não é uma roupa do dia a dia. Quando eu viajo para algum lugar frio, sempre levo como lembrança uma peça do bordado para amigos, e faz muito sucesso. Ele é muito bem-vindo como um sobretudo.
O mesmo não podemos dizer de Alagoas”, opina o antropólogo que conta uma curiosidade. “Na minha juventude, nos anos 80, existia no Pontal blusas de Filé masculinas. Isso quase ninguém sabe. Eu sou de uma geração um pouco hippie, onde era normal todo mundo usar essas peças.
Agora não há mais esse consumo. Mas, antes de existir um mercado turístico, o consumo masculino era evidente. Hoje o homem saiu desse mercado consumidor, não se sabe ao certo o motivo. Mas acho que tem a ver um pouco com essa onda hippie, que hoje não vemos mais”.
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DA TRADICAO AOS ' ' NOVOS NEGOCIOS Muito antes da conquista dos títulos, um trabalho árduo já acontecia. O interesse das artesãs das regiões das lagoas em preservar o Filé, fez com que surgisse o Instituto do Bordado Filé de Alagoas (Inbordal), que desde 2010 trabalha com o objetivo de proteger a tradição do bordado, garantindo a qualidade das peças produzidas e fomentando o Filé como Patrimônio Imaterial. Localizado na Ilha de Santa Rita, em Marechal Deodoro, o Inbordal conta com 30 artesãs associadas, que rece-
O Inbordal conta com
14 30 artesãs associadas.
bem o apoio do Sebrae, responsável por realizar capacitações para o aprimoramento da técnica e melhor comercialização dos produtos. “Ajudamos com formação de preços, liderança, desenvolvimento de equipes, vendas, segurança no trabalho, aplicação das normas da ABNT em relação ao processo produtivo. Também prestamos consultorias de melhoria de produto, criação de coleções, tags, trabalho cooperativo e colaborativo”, explica a gerente de Turismo e Economia Criativa do Sebrae,
Vanessa Fagá. A entidade também apoia a abertura de novos mercados, por meio do acesso a feiras e eventos para comercialização, tais como a Fenearte, considerada a maior feira de artesanato da América Latina, eventos nos principais Shoppings da capital, sempre em parceria com a Sedetur, que atua junto aos artesãos por meio do PAB. “Estamos com um convênio em vigência, que une ações do Sebrae, Inbordal, Linhas de Círculo, Sedetur e a Fundação
Municipal de Ação Cultural (FMAC), no qual cada um tem atividades específicas a serem realizadas. Mas, sobretudo, buscamos juntos incorporar ao bordado melhorias no processo de produção, discutindo com as Linhas Círculo e seus especialistas do processo produtivo da linha, principal insumo para a produção, questões de vazamento de cores, tensionamento da linha na hora de bordar, harmonização de cores, entre outros. É objeto do convênio também reestruturar o site (www.inbordal.org.br) para permitir o rastreamento do produto pelo comprador. Isto é fundamental quando se fala de Indicação Geográfica”, explica. Com um avanço notório no processo de comercialização, uma questão ainda permanece
como um elo fraco. “É preciso de mais apropriação, do Filé como Patrimônio Imaterial, por parte das próprias bordadeiras, que precisam comunicar isso de forma mais contundente para poder gerar um impacto maior em termos de comercialização. Não existe uma placa, por exemplo, no bairro do Pontal, principal ponto de comercialização do bordado, informando que se trata de um Patrimônio Imaterial do estado”. A gerente ainda explica que, apesar dessa questão, ainda no processo de busca pela patrimonialização e pelo registro do INPI, já houve a geração de negócios. “O Sebrae acompanhou de perto a parceria do Inbordal junto a marca Cantão, auxiliando na negociação e acompanhando o processo produtivo,
pois foi uma encomenda muito significativa. Eles criaram uma coleção incorporando o bordado filé em diversas peças da marca. A aposta da equipe comercial foi superada em 400%. A marca não devolveu uma peça sequer que foi produzida. Isso só foi possível porque todo o processo de padronização, catalogação, melhoria da qualidade do produto, já havia sido realizado pelo Sebrae por meio de consultorias. Infelizmente no Brasil não temos ainda uma cultura de consumidores que buscam por produtos com Indicação Geográfica como em outros lugares do mundo, por isso o impacto ainda não é tão grande, mas em termos de abertura de mercado com grandes players, isso está mudando”, comemora.
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GENUINAMENTE ALAGOANO GENUINAMENTE A casa coberta de plantas da Rua Ramon de Lima, em Marechal Deodoro, esconde bem o que acontece em seu interior. Mas não é preciso dar mais de dois passos além do portão para testemunhar as cores do Filé, expostas em peças ainda em acabamento, contrastando com o verde que predomina no local. O Inbordal funciona na Casa dos Freis, cedida ao Instituto, e recebe todos os dias dezenas de artesãs e compradores. Pelos corredores, as artesãs, sentadas com tear em mãos, focam em mais uma entrega de encomenda. Nenhuma
novidade para o local. Enquanto as linhas e agulhas passeiam de uma malha para a outra, a vice-presidente do Instituto, Petrúcia Lopes, conta como tudo começou. “A partir do momento que algumas artesãs se interessaram pelo projeto de indicação de procedência, foi pensado em criar uma nova associação. Nós temos várias associações nas regiões das lagoas Mundaú e Manguaba, porém, muitas delas não estão com a sua documentação em dia. Não teria como entrar com os documentos exigidos irregulares, junto ao INPI. Assim surgiu o Inbordal, como uma nova as-
sociação detentora do selo”, relembra. Antes do Instituto se concretizar, o Sebrae deu o ponto de partida com um chamamento público para explicar às artesãs o que era uma indicação de procedência. Hoje, qualquer artesã das regiões das lagoas pode pedir o apoio do Inbordal. “Ela pode vir ao instituto e adquirir o selo. Para isso, os produtos passarão por uma averiguação, junto a três conselhos reguladores, um da Sedetur, um da Ufal e outro do Iphan, que podem intervir a qualquer momento com observações”. Após o processo de averiguação
ALAGOANO
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ela escolhe ou não se associar. “A artesã pode não querer se associar, mas terá que pagar pelo selo, pois temos o custo do rastreio, das tags, do selo e do lacre. São duas etiquetas, onde uma traz um QR Code do selo, que quando rastreado no site trará todas as informações da artesã e o tag que vai falando sobre o produto. Quando a artesã decide se associar, ela paga um valor de R$ 15, 10% do que for vendido, e já tem direito ao selo. Mas, claro, ela terá que seguir o estatuto e regimento interno. Depois de todo o procedimento, ela pode deixar os produtos dela aqui no Inbordal ou vender em outro local”. Cerca de 80% das encomendas do Instituto são pedidos por atacado de lojistas, cliente empresa e organizações. O trabalho é dividido para cada artesã igualmente, porém, algumas delas ainda sentem a dificuldade de se adaptar. “Quando tudo começou muitas delas não sabiam usar uma fita métrica. Nas oficinas a gente apresenta a fita, ensinamos a usá-la. A maioria, contava as malhas, uma por uma, e não medem com as fitas. O que é errado, porque nem toda malha tem o mesmo tamanho. Diante disse há alguns casos de rejeição quanto às regras. Algumas não se adaptam. Não querem trabalhar com a rede de 1cm e chegam com uma de 1,5 cm. Como a gente mede com a fita, constatamos que o produto não segue as instruções, muitas delas se chateiam e não querem
mais vir. Mas é algo que sempre é avisado em reuniões”, explica. Para que o Instituto se tornasse referência, foi criado o seu próprio estatuto e regimento interno, e as decisões são tomadas por todas as artesãs em assembleias e reuniões ordinárias. Além disso, foi disponibilizado um Caderno de Instruções onde se ensina a fazer o Filé da maneira correta para o Inbordal. O objetivo principal é preservar a maneira certa de construí-lo e também não desapontar o comprador. “É frustrante até para o turista que compra uma peça, coloca pra lavar pela primeira vez e percebe que os pontos estão todos soltos. Para que isso não aconteça, somos bem rigorosos. É um trabalho muito bonito pra ser feito com uma qualidade tão baixa”. Com o objetivo principal da salvaguarda do Filé, o Inbordal busca se aprimorar e capacitar suas artesãs para que os produtos continuem sendo referência. “Eu vi uma mudança significativa das artesãs querendo melhorar. Elas estão mais engajadas. Um dia desses criamos uma coleção com uma cor chamada ‘porcelana’ que não tinha venda no mercado. Foi um sucesso, tanto que hoje está em falta no mercado, porque outras artesãs começaram a seguir. O Instituto é como um espelho, o que me deixa muito feliz!”, encerra. Seja pelas cores exuberantes, os fios que ganham formas ou a habilidade inegável
Selo de indicação geográfica criado pelo Inbordal
das mãos que as tecem, o Filé, mais que um bordado tradicional, também desenha a vida de centenas de artesãs que continuam apostando nele suas fontes de renda, e até de vida. A Lagoa Mundaú que emoldura a produção dessas mulheres, que não descuidam para não perder o ponto, serve de inspiração, assim como para Martinho da Vila, para todas as personagens da reportagem. “É resistência, sabe? Tem que gostar sem esperar receber um retorno maior! Às vezes a gente pode fraquejar, mas quando o sol se põe ali na lagoa, parece que nos faz lembrar que isso aqui não pode acabar. Para isso é necessário que todos continuem com um olhar especial, não só para o Filé, mas também para quem sobrevive dele. Mas uma coisa de cada vez, né, menina? Quem sabe você também ajude a mudar.”, torce Teka Rendeira, com tear em mãos. •
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Vice-presidente do Inbordal, Petrúcia Lopes. Malha de suporte do Filé. mede geralmente de 0,8 mm a 1,5cm.
Peça de Filé em processo de acabamento.
Um dos pontos de Filé representa a flor jasmin.
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saiba mais
Para ter acesso aos códigos abaixo, é necessário ter em mãos um smartphone com câmera fotográfica e possuir o aplicativo QR Code .
Ouça “Só de Maceió” de Martinho da Vila
Visite o site do Inbordal
Veja o mapa de indicação geográfica do Filé Alagoano
Conheça o serviço de rastreamento do bordado Filé
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